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A condição da mulher mediada pela cultura na obra A asa esquerda do anjo, de Lya Luft

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 10

A condição da mulher mediada pela cultura na obra A asa esquerda do

anjo, de Lya Luft

Cesar Marcos Casaroto Filho

Resumo: Esse trabalho tem por objetivo apontar a condição da mulher dentro da cultura

patriarcal que está presente na obra A Asa Esquerda do Anjo, de Lya Luft, destacando a forma como a protagonista Gisela enxerga o mundo desde pequena até a fase adulta, e todos os padrões culturais que precisa seguir na condição de mulher. Aspectos relevantes que condizem com o espaço da mulher no mundo patriarcal são destacados, fundamentado em aportes teóricos que dizem respeito ao universo feminino, buscando hipóteses do que a obra poderia representar em seu mundo ficcional. Partindo do pressuposto de que a cultura difere do natural e de que gênero social é diferente de sexo, pode-se afirmar que gênero é uma forma de comportamento estabelecido pela cultura, o que o torna não-natural. Já sexo, sendo uma função biológica, pode ser considerado algo que não sofre interferência dos ditames da cultura. A obra aborda a forma com que a protagonista entende o mundo, em que tenta subverter os paradigmas estabelecidos às mulheres no contexto patriarcal, determinantemente machista.

Palavras-chave: Cultura, gênero, sociedade patriarcal, sujeito feminino.

Lya Luft, escritora gaúcha, nascida em 15 de setembro de 1938, em Santa Cruz do Sul, é romancista, colunista, formada em pedagogia e letras anglo-germânicas, em Porto Alegre. Por ser de descendência alemã, aborda, em sua obra, muito dessa cultura rígida que seus antepassados trouxeram por bagagem ao imigrarem ao Brasil, abordando o subjetivo e enfatizando a condição feminina no contexto histórico. Lya Luft aborda, na obra A asa esquerda do anjo (1981), uma questão que, podendo ter sido compreendida por ela mesma em sua vida, desde a infância, até a adolescência e a fase adulta, permite o entendimento da condição da mulher dentro da sociedade.

A sociedade é minada de doutrinas resultantes de uma velha cultura há muito definida pelas pessoas. Partindo do pressuposto de que o ser humano é civilizado, é preciso que ele se enquadre em alguns parâmetros estabelecidos pelo grupo social. Sabe-se que há uma diferenciação na fisionomia masculina e feminina, no entanto, até que ponto esses aspectos biológicos interferem no modo de agir, pensar e se portar enquanto homem e enquanto mulher? Entretanto, o poder cultural estabelecido pelos paradigmas da sociedade patriarcal é visível na obra de Lya Luft, A asa esquerda do anjo, em que é possível observar o quanto esses preceitos comportamentais interferem

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 11 na vida do sujeito feminino desde criança até a fase adulta.

Provinda de uma família tradicional patriarcal, a protagonista Gisela, ou Guisela, em alemão, é induzida, desde os primeiros anos, a aceitar os padrões impostos a ela: Ainda menina, mesmo sem compreender o porquê disso, é vítima daquilo que se estabelece como uma incompreensão universal das mulheres diante das obrigações que lhes são impostas pela cultura. Como a própria protagonista mostra: “Alguma coisa em mim estava errada, mas eu não sabia o quê. Talvez fossem muitas coisas”. (LUFT, 1991, p. 17). Ela se mostra perdida desde o princípio, incompreendida, solta em um abismo onde, por mais que deseje entender o que se passa a sua volta, ou as mudanças que ocorrem com seu corpo, nunca consegue obter uma explicação clara de si mesma, oculta por uma máscara que encarcera o corpo feminino, minado pelo peso maçante da cultura patriarcal.

Desde a mais tenra infância, Gisela questiona os fatores que a cercam. O pai é autoritário, e a mãe, por sua vez, não tem voz diante dos acontecimentos e das decisões do marido. Crescendo no âmbito de uma família padrão, desde pequena, a protagonista é obrigada a aprender piano, costume notável às meninas “bem dotadas” da época, paradigma estabelecido às mulheres provindas de uma classe social mais elevada, muito comum no século XIX até os primeiros anos do XX. Já no iníc io do livro, a narradora-personagem, Gisela, observa: “Tenho sete, oito anos. Ao menos três vezes por semana passo nesta rua para visitar minha avó e estudar piano na sua sala de música. Um ritual a ser cumprido, como tantos numa família organizada: tudo é bem organizado na família Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca, minha avó”. (LUFT, 1991, p.14).

Nesse contexto, é possível compreender o tom irônico que a narradora-personagem utiliza ao denotar a família Wolf como sendo muito organizada dentro dos padrões que a sociedade cobra. Desde a infância, até a fase adulta, o fantasma dessa cobrança incompreendida que sofre acompanha-a até o fim, envolvendo-a em um sentimento de amargura, angústia e pavor. Isso é visível em um dos momentos finais da obra, resgatando as antigas lembranças da vida da personagem: “Estou tão nervosa que falo sozinha. Vou até meu quarto, começo a me vestir, troco de roupa duas vezes, não sei o que usar, os dedos se atrapalham, eu errava nas escalas e Frau Wolf espancava a minha mão”. (LUFT, 1991, p.135). A avó, Frau Wolf, comportamento de matrona, rígido e imperialista, faz com que se abram chagas que acompanham Gisela por toda a vida, que ora se abrem de forma dolorosa, ora sutilmente, até que a personagem se veja efetivamente enfraquecida. A personagem Frau Wolf está fortemente presente desde o princípio da obra até o seu final. É a imagem típica de uma mulher amarga e fechada para novas ideias, cobrando dos familiares, em especial, das mulheres, o cumprimento de suas tarefas de forma rigorosa.

Na realidade, as mulheres estiveram moldadas dentro da cultura patriarcal. Seus gestos, atitudes, ou ainda no que diz respeito ao corpo e funções sexuais foi o resultado urdido pela cultura patriarcal. Da forma como explica Showalter (1994, p. 44), “a psique feminina pode ser estudada como o produto ou a construção de forças culturais”. Essa afirmação contradiz o pensamento comum que levou a crer que as ações feitas pelas mulheres eram naturais. Os grupos silenciados tanto quanto os dominantes são condicionados por ideias moldadas pela cultura de forma inconsciente, entretanto, os grupos dominantes são aqueles que irão controlar esse pensamento, com o intuito de estruturar a concepção dos silenciados. Segundo Showalter (1994, p. 49), para algumas críticas feministas, a forma de fazer a mulher se expressar é tida como “o lugar de uma crítica, uma teoria e uma arte genuinamente centradas na mulher, [que possibilita] trazer o peso simbólico da consciência feminina para o ser, tornar visível o invisível, fazer o silêncio falar”.

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 12 A cultura tem disseminado a ideia de que a construção política e da própria cultura foi elaborada pelo homem, assim sendo, é por ideia de ancestralidade que o pensamento masculino se torna algo tão rígido e pouco maleável à mudança, pensamento esse que pode ser compreendido através da ação da avó da protagonista Gisela, Frau Wolf. Ela está tão condicionada pelos padrões de pensamento patriarcais, acreditando incontestavelmente naquela única visão de mundo, que acaba acreditando erroneamente na sua própria concepção, mediada pelo pensamento machista naturalizado. A cobrança para com a mulher dentro de casa pode ser expressa pela repreensão que a sogra Frau Wolf remete à sua nora Marie, mãe da protagonista

[...] minha mãe não queria desapontar o marido. A sogra aparecia frequentemente, era recebida com cerimônia e, como nas lápides do Jazigo, não hesitava em correr o dedo em algum móvel, repreendendo a nora, sem maldade, mas com uma frieza que me gelava o coração: - Marie, você precisa ser mais exigente com suas empregadas! (LUFT, 1991, p.45)

Observa-se, nessa passagem do texto, um momento em que a narradora constata a não existência da maldade na atitude de Wolf. Pode-se compreender a naturalização do pensamento quanto ao assunto que diz respeito ao interno do lar, espaço estritamente feminino, de responsabilidade da mulher. Como de costume, a mulher submetia-se ao marido e, por decorrência, à família do mesmo, negando as antigas origens e aceitando obedientemente a nova realidade.

Historicamente, nas comunidades europeias antigas, havia duas culturas diferenciadas, uma que dizia respeito aos homens e outra às mulheres, tendo como base a divisão econômica de trabalho entre os sexos. Cada sexo possuía seu saber tradicional em específico, havia uma distinção para cada sentimento que tanto o homem quanto a mulher podiam sentir, entre eles a forma de pensar sobre o amor, a vida, a morte, a religião, entre outros. Desse ponto em diante, como explica Lemaire, (1994, p. 63) “ambos os sexos revelavam estratégias variadas de exclusão do outro sexo de seus universos culturais”. Já que o sexo (natural), e o gênero (cultural), muitas vezes acabam se confundindo, Saffioti (1976, p. 76) utiliza-se das palavras de Engels, apontando que: “A divisão do trabalho não era primitivamente senão a divisão do trabalho no ato sexual”.

Essa divisão de espaço e ideias é bem esclarecida na parte que segue, em uma convenção da família Wolf: “Meu pai e tio Ernst falavam sobre negócios, dirigiam as empresas da família. [...] tia Marta não faltava, sentava-se junto de minha mãe, fazendo tricô ou crochê, sempre pronta para ensinar uma nova receita de cozinha”. (LUFT, 1991, p.19).

Aos homens, cabe dialogar sobre negócios, envolvendo o espaço amplo e cheio de possibilidades que lhes é disponível, às mulheres cabe envolver-se com os assuntos da casa, voltadas sempre para o marido e para a família, dentro do espaço limitado que lhes é permitido.

A mãe, Marie, por sua vez, é passiva, como lhe cabe dentro do papel que efetua em sua condição de mãe, mulher e esposa, dificilmente alterada, incrivelmente doce, bem como a narradora coloca: “raramente a vi alterada ou zangada. Sabia manter a serenidade mesmo diante de certas observações mordazes da sogra”. (LUFT, 1991, p.20). É uma personagem sem voz e sem maiores cogitações, desenvolvendo o que faz parte do que lhe é imposto, encarcerada pelas amarras da cultura e das cobranças da sogra.

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 13 Foi a partir do século XIX que, no Brasil, e também na América Latina, se iniciaram discursos que diziam respeito à definição dos contornos das nações, discursos esses que tratavam da maternidade republicana. A figura feminina passa, então, a ser vista como a civilizadora dos filhos da nação, pelas ideias de uma nação moderna, educada e, por sua vez, homogênea. Da mulher, nas palavras de Santos (2010, p.42), “espera-se o cumprimento de seu papel feminino dentro do lar”. Ainda, em relação à sociedade vigente, Santos, utilizando-se das palavras de Comte, explica

O duplo ofício fundamental da mulher, como mãe e como esposa, equivale, em relação à família, ao poder espiritual do Estado. Exige, portanto, a mesma isenção da vida ativa, e uma análoga desistência de todo comando. Essa dupla abstenção é ainda mais imprescindível à mulher [...], a fim de conservar a preeminência afetiva onde reside seu verdadeiro mérito [...] Toda mulher deve, pois, ser cuidadosamente preservada do trabalho exterior, a fim de poder preencher dignamente sua santa missão. (SANTOS, 2010, p.72).

Os escritos desses pensadores contribuíram notavelmente para que ocorresse uma compreensão universal que submetia todas as pessoas a um pensamento, como se fosse a única forma de aprender a vivência humana, naturalizando comportamentos.

A teoria feminista, entretanto, desconstruirá o impasse de que gênero é igual a sexo, colocando em dúvida a formulação patriarcal cumpridora de uma ideia de naturalização desses pensamentos errôneos, estabelecendo uma prática social que serviu aos interesses do homem. Dessa forma, Santos (2010, p.78) explica que, “A partir dos estudos de gênero, é possível constatar que, diversamente do sexo, equipamento biológico inato não suficiente para elucidar o comportamento diferencial do feminino e do masculino, gênero é um produto construído no social, assimilado, figurado, instituído, transmitido de geração a geração”.

Uma vez instituído por meio da cultura, o gênero não pode ser considerado algo que provém da natureza humana, mas sim, uma construção elaborada por meio da mente das pessoas, enraizado pela cultura, estabelecido dentro das normas sociais.

Fruto de ideologias que foram trazidas de eras passadas, a modernidade veio apresentar, entre muitos fatores, uma visão de mundo mais ampla, aumentando os horizontes das pessoas, no entanto, ela também abrangeu consigo uma bagagem cristalizada em relação ao sujeito feminino. Formou-se um projeto de desenvolvimento humano que era postulado por uma ideia de consagração da mulher ao lar, confinada à esfera privada. A realidade até então estabelecida para o sujeito feminino prosseguiu sendo a mesma. É notável a condição imposta para a vida da mulher até a primeira metade do século XX, dentro da obra, quando a narradora descreve a mãe: “Assumira comportadamente a postura da nova família. Sua vida gira va em torno de meu pai e de mim. Era natural: ensinava- me que as boas donas de casa adoçam a existência dos homens, que trabalham o dia todo e têm grandes responsabilidades”. (LUFT, 1991, p.47).

Dentro do padrão da educação que era dada às meninas, a narradora descreve detalhadamente o pensamento que era tido como natural na compreensão das pessoas, em especial das próprias mulheres que não tinham outra alternativa que permanecerem confinadas ao lar. Quando crianças, eram educadas para serviram aos outros, em especial, ao marido, até que tivessem a idade apropriada para contrair matrimônio. A cultura lhes era imposta sem que houvesse contestações ou dúvidas. Já a personagem Gisela passa a maior parte de sua vida contestando os padrões, incompreendida, muitas vezes, por todos os que a rodeiam, é uma personagem incomum, peculiar, questionadora

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 14 diante da realidade que lhe é apresentada pela família.

A ideologia naturalista burguesa tem como base o determinismo biológico, considerando o corpo como o definidor das ações, sentimentos e pensamentos da mulher, negando, assim, o uso da razão do pensamento feminino. Descarta-se, então, a inteligência e se valoriza o corpo, tido para agradar aos homens. Com a união de beleza física e moral, uma mulher educada dentro dos preceitos religiosos e que sabe se portar dentro de sua função é entendida como o “capital simbólico e social”, presentes nas famílias patriarcais da época. Santos utiliza-se das palavras de Passos ao mostrar que “o corpo feminino é colocado no limite entre a natureza e a cultura, ele vai sendo interpretado ideologicamente, seguindo os interesses e o imaginário social. Dialética, que ora exige que ele seja escondido, ora seja mostrado...” (SANTOS, 2010, p.87-88).

A mulher sempre foi tida como um objeto a ser moldado, como o sexo mais cobrado e submisso, entregue à subalternidade maçante da cultura patriarcal. Wollstonecraft explica que “é preciso que também a mulher encontre a sua virtude no conhecimento. [...] é a ignorância que a torna inferior...” (WOLLSTONECRAFT apud ALVES, 1985, p.36). Através do conhecimento e da compreensão dos fatores que a cercam, a mulher tem condições de reivindicar seus direitos, de cogitar mudanças que dizem respeito a sua vivência.

Por ser moldada pelos padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal, não há como ter certeza que haja uma identidade própria da mulher, estipulada por ela própria. A constituição do sujeito feminino é algo histórico-cultural, compreendido pelas pessoas como a única forma de se entender os papeis de gênero. Por essa razão separa-se o mundo da mulher e o do homem, e é nessepara-se ponto que, quando é proposta uma nova visão de mundo transformadora, com o intuito de modificar esses papeis cristalizados, corre-se o risco de modificarem-se vários papeis sociais que deixam de ser fixos e definidos, tornando-se indeterminados e estranhos aos olhos das pessoas. Essa transição acarreta uma incerteza quanto à identidade das pessoas, gerando múltiplos entendimentos de uma coisa só. A construção de um novo paradigma, quanto à realidade dos gêneros, tem como base uma literatura feminista fundamentada na necessidade de compreender e reconceituar a formação da subjetividade feminina, utilizando-se de uma produção escrita dentro de um discurso, abrangendo um novo conjunto de ideias que surgiu paralela à pós-modernidade.

É preciso rediscutir as questões que dizem respeito à formação da identidade da mulher para que se verifique a subjetividade feminina do pensamento coletivo. Ainda, temos de revisar os conceitos que existem do sujeito, da sua identidade e da transformação que vem sofrendo através dos séculos. Além disso, a desconstrução do princípio hegemônico masculino é de fundamental necessidade, pois, sem isso, não é possível fazer uma ideia mais clara dos fatores que contribuíram para que houvesse uma diferenciação de papeis, pensamentos e atitudes masculinos e femininos. As barreiras que antes havia e não davam oportunidade de pensar de outra forma, acabam se abrindo, oportunizando livre acesso a um entendimento mais abrangente da situação. A identidade, segundo as palavras de Zinani (2006, p.51), “se estrutura através da interação do sujeito com a sociedade”. E complementa

A recodificação do papel da mulher, a partir dos estudos de gênero, implica a constituição da subjetividade feminina, à medida que a modificação do padrão tradicional abala a maneira de lidar com a economia interna e a externa, forçando a mulher a assumir o seu lugar, tanto no espaço privado como no social, o que vai acarretar dificuldades para mulheres e homens, já que não há mais modelos em que se espelhar, e é necessário construir um novo paradigma.

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 15 (ZINANI, 2006, p.49).

O impacto que ocorreu como resultado do movimento feminista a partir da década de 60, do século XX, envolvendo as revoltas estudantis, a contracultura, acabou marcando a modernidade que já poderia estar mais avançada a respeito das relações de gênero. O feminismo abriu portas para a discussão de aspectos referentes à vida social que diziam respeito à família, à sexualidade, desconstruindo as diferenças que havia entre o público e o privado, além de pôr em prática a discussão da formação dos sujeitos dentro do gênero. Entretanto, essas novas perspectivas de sujeito e de gênero ocasionaram um deslocamento do entendimento por muitos visto como a única forma possível de enxergar, proporcionando- lhes segurança a respeito de sua identidade. Da forma como explica Zinani (2006, p.56): “Se, no período anterior, a identidade estava bem-estabelecida, e o sujeito ocupava efetivamente o seu lugar no tempo e no espaço, hoje o sujeito está fragmentado, e a identidade perdeu seu caráter de singularidade para se estruturar de formas múltiplas, de acordo com deslocamentos psíquicos e sociais”.

Se, por um lado, o masculino é visto dentro da norma como o correto, o universal, o feminino, por sua vez, tem a imagem do desvio, o particular e, até mesmo, o descartável. Sob o ponto de vista patriarcal, a ideia do diferente sempre foi reduzida: devido a esse fato, a nossa cultura só pode esboçar uma ideia de homogeneidade de cultura à custa da repressão de outras formas de pensamento. Como não havia uma forma de tradição literária essencialmente feminina no século XIX, as mulheres escritoras tinham como base a mulher dentro da literatura apenas como musa, objeto, o qual não pode tomar as próprias decisões. As escritoras tiveram um trabalho árduo, perpassado de incertezas diante de suas visões, falseadas diante da imagem que a cultura lhes apresentava como o que devia ser seguido. Elas tiveram de transgredir os padrões culturais, derivando, assim, o início de uma tradição feminina na cultura, cultura essa que tende a desequilibrar o ponto de vista patriarcal estagnado.

Há uma dupla conquista resultante da literatura que é preparada por mulheres, dentre elas a conquista da identidade feminina e também da escritura. Como explica Schmidt (1995, p. 188): “A literatura feita por mulheres hoje, se engaja num processo de reconstrução da categoria “mulher”, enquanto questão de sentido e lugar potencialmente privilegiado para a reconceptualização do feminino, para a recuperação de experiências emudecidas pela tradição cultural dominante”.

No que tange aos dogmas estipulados pela religião, a repressão sexual feminina sempre esteve presente em nossa história, principiam, segundo os preceitos bíblicos na hierarquia do grupo familiar, tomando o homem como supremo, e a mulher subalterna a ele. O homem é entendido como a cabeça do casal, e ela, por sua vez, o coração do conjunto familiar. Sendo a emoção considerada como inferior à razão, como explica Saffioti (1976, p.94), “ao homem cabe, “naturalmente”, o governo da casa e da mulher”. Levando o “naturalmente” em conta, volta-se à questão do universal, o natural como imutável, o gênero confunde-se novamente com a sexualidade, a cultura torna-se natureza e não uma invenção do homem. Assim sendo, Saffioti (1976, p.94) especifica que “a sujeição da mulher ao homem é, pois, princípio inatacável e de validade eterna para a Igreja”. Sendo uma lei bíblica sacralizada, estipulada pelas ordens de Deus, intocável e completamente suprema, não há como subverter o discurso ditado por ela, e a essência da família é estabelecida dessa forma, assim, não podendo ser modificada, pois haveria uma ruptura daquilo que é considerado essencial.

Na obra de Luft, a voz da mulher, dentro da família tradicional, não tem força, bem como é denotado pela mãe da protagonista Gisela. A mulher procura sempre viver em torno dos demais, agradando ao homem e à família, a sua vida se resume a isso, acreditando que “essencialmente” essa é a tarefa sagrada da mãe e da esposa, levando a

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 16 mulher a crer que é feliz. Pode-se constatar a função estabelecida para a mulher no trecho da obra que segue: “Meu pai, solene; minha mãe, cabelo preso no alto, ansiosa para que ele aprovasse os preparativos. Via-se que ficava encantada com seus elogios: estava sempre querendo agradar ao marido e à nova fa mília”. (LUFT, 1991, p. 31).

A sexualidade é outro fator marcante na obra, tangendo novamente as questões clericais. Como explica Saffioti (1976, p. 97), sabe-se que “a Igreja Católica nunca deixou de ver a sexualidade como algo sujo e indigno, exceto qua ndo submissa à única finalidade que ela reconhece no matrimônio: a procriação”. Até mesmo o contado das mãos com o sexo, por muito tempo, foi mal visto e proibido pela sociedade submetida a um poder clerical intenso. A protagonista Gisela mostra-se profundamente constrangida e temerosa quando pensa em seu sexo, devido ao pudor que a avó Frau Wolf passa a ela desde pequena e pelo que a sociedade lhe mostra como errado. É possível compreender esse detalhe na passagem: “À noite, meu corpo comicha, sensações estranhas no sexo, no ventre, estou contaminada”. (LUFT, 1991, p.60). Ela não compreende o que ocorre com seu corpo, nunca recebe um esclarecimento coerente sobre o que significa o seu sexo, mas recebe a imagem do feio, do ruim, do nojento. O sexo é impuro, acarretando, assim, na personagem e dentro do universo de outras mulheres, a chamada “histeria”, ocasionada pelo ocultamento e pela repressão. A prisão e as amarras da cultura são tão intensas que a personagem principal chega a passar mal. Luft (1991, p. 62) descreve esse aspecto na passagem: “Tenho dentro de mim o animal. Meu ventre incha, convulsiona- me. O médico não encontra nada, a família já se habituou aos meus ‘acessos nervosos’”, e ainda, ao ambiente repressivo a que está submetida, “Acordo na manhã seguinte com os maxilares tão apertados que os músculos de meu rosto ficam doloridos o dia inteiro”. (LUFT, 1991, p. 62).

Pode-se perceber, assim, que o universo ficcional da obra em análise mostra o comportamento e o modo de pensar impostos pela cultura patriarcal às mulheres, subalternas ao contexto, confinadas ao lar, sem cogitarem de uma possibilidade de mudança devido à opressão a que são submetidas. Há uma carga cultural que vem sendo cultivada no inconsciente coletivo há milênios, difícil de romper devido à forma como se acha intrincada em nossos comportamentos diários. As reformas ocorridas dentro da história contribuíram significativamente para que algumas ideologias se rompessem das amarras estabelecidas pelo poder masculino, no entanto, indiretamente, alguns padrões antigos ainda podem ser observados dentro do lar e do mercado de trabalho em nosso país, difundindo ainda aquela ideia errônea que confunde sexo com gênero, natural com cultural. É necessário que haja uma conscientização coletiva que possibilite aos grupos sociais uma abertura ampla de horizontes, podendo, enfim, compreender como a história do masculino e do feminino foi trabalhada e estruturada há milênios até os dias atuais.

Referências Bibliográficas

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 17 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1976.

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ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. Caxias do Sul: EDUCS, 2006.

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