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5 6 Ciênc. let., Porto Alegre, n. 43, p. 41-56, jan./jun. 2008

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O pensamento infantil na perspectiva

de Decroly e Wallon

Lenira Haddad*

Resumo

Este artigo tem por objetivo traçar um paralelo entre as idéias de Ovídio Decroly (1871-1932) e Henri Wallon (1879-1962), em torno do pensamento infantil. Foca os conceitos de ‘função globalizadora’ do primeiro e ‘pensamento sincrético’ do segundo, procurando situar sua gênese, o significado das terminologias e suas principais características. Ao pontuar as especificidades do pensamento infantil em relação ao pensamento do adulto, também levanta reflexões sobre a necessária adequação de posturas e práticas em educação infantil.

Palavras-chave: Pensamento infantil. Decroly. Wallon. Educação infantil.

Introdução

A psicogênese coloca em evidência um fato particularmente importante para a organização das primeiras aprendizagens: a criança não é nem um adulto em miniatura nem uma folha branca de papel. As crianças são, simplesmente, “diferentes”. (...) É por ignorar a mentalidade infantil que o adulto freqüentemente compreende mal a formidável energia “epistemológica” que a criança manifesta pelo jogo, pela experimentação e imitação. Ele não compreende também a força das primeiras representações que a criança constrói espontaneamente para si mesma ao contato com o mundo exterior: globais, não sujeitas à análise e reúnem em um só bloco as propriedades do objeto e as reações próprias da criança. Em um desenho ou uma estória, por exemplo, esses “todos” se manifestam tanto em grupos indiferenciados como a partir de um só traço dominante que evoca uma totalidade indivisível. (DUBREUCQ, 1993, p.5) 1.

No começo do século XX, dizia Merani (1977), a pedagogia estava pronta para receber a mudança que acabava de se produzir na psicologia, com o conceito de evolução introduzido pelo positivismo evolucionista de Spencer. Ao mesmo tempo, as transformações da educação assinalavam-se em todo o mundo pelo movimento da “Educação nova” ou “Escola ativa”. Neste contexto, de conjugação de teorias pedagógicas e psicológicas, está presente a experiência de diversos pioneiros cujas práticas e teorias

*Universidade Federal de Alagoas – lenirahaddad@uol.com.br

1 Francine Dubreucq é psicóloga e a atual diretora do Centro de Estudos decrolyanos e da

Biblioteca sociopedagógica Dr. Decroly, em Bruxelas, tendo trabalhado durante 31 anos na escola Decroly, Ermitage, primeiro como professora e depois diretora.

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foram de grande relevância tanto para a psicologia quanto para a pedagogia. Ovídio Decroly (1871-1932), ao lado de Maria Montessori (1870-1952), aparece como um dos colaboradores mais surpreendentes para essas duas disciplinas. Os sistemas educativos que ambos elaboram nascem do interesse pelos casos patológicos que suscitavam problemas pedagógicos especiais e reúnem frutos de décadas de investigação psicológica e pedagógica que logo se revelaram grandes princípios da educação nova até a atualidade. Merani ressalta três desses princípios.

O primeiro diz respeito à especificidade da infância, até então ignorada tanto pela psicologia quanto pela pedagogia. Para ambos, a infância é uma etapa necessária, talvez a mais importante da vida, e tem um sentido e valor que a justifica em si mesma.

O segundo princípio é que a criança tem uma mentalidade que lhe é própria, diferente da do adulto, e, portanto, deve ser objeto da psicologia infantil. A criança é um ser em formação e existem períodos de aprendizagem especialmente receptivos em diferentes estágios de desenvolvimento, tarefa esta de que a psicologia logo se ocupa.

Um terceiro princípio é a valorização do jogo como um estado de atividade própria da criança. Opondo jogo ao trabalho, a pedagogia tradicional só o aceitava por períodos breves de tempo como uma distração ou repouso necessário. Ao conceder-lhe virtudes próprias ao exercício da formação, “preparação para o esforço, acicate da inteligência”, Decroly e Montessori iniciam nesse domínio, na visão do autor, a mais espetacular revolução com seus célebres materiais e jogos educativos dos mais variados tipos e fins (p. 60-61).

Este artigo volta-se ao segundo princípio, propondo uma reflexão em torno da especificidade do pensamento infantil, a partir do diálogo entre dois teóricos que muito contribuíram para elucidar essa questão:

Ovídio Decroly (1871-1932) e Henri Wallon (1879-1962)2.

A afinidade teórica entre Wallon e Decroly já nos era familiar pelas várias menções que o autor francês faz ao método ativo de Decroly em várias de suas obras, especialmente em Psicologia e Educação da Infância. No capítulo “Sociologia em educação”, por exemplo, no qual Wallon (1975) faz uma análise crítica dos diferentes sistemas educativos da escola nova, mostrando os equívocos que incorreram por não terem conseguido vencer a oposição entre indivíduo e sociedade, apenas Decroly e Makarenko (1888-1939) escapam a sua crítica. Decroly é colocado entre aqueles que dedicaram seus métodos à pessoa da criança, incluindo sua personalidade no circuito educativo. Diferentemente de Montessori, que se esforçou em reduzir todas as operações intelectuais e particularmente as operações matemáticas aos seus componentes sensoriais, Decroly tratou o objeto de conhecimento como um objeto “global que tem todos os seus traços, essenciais ou fortuitos, 2 Participou da fase inicial deste trabalho Márcia Pires Duarte Fiori, mestre em Psicologia

da Educação pela PUC/SP. Ver HADDAD e FIORI, 2006.

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confundidos, de tal modo que um deles pode eventualmente substituir todos os outros” (p. 233).

Nesse mesmo artigo, Wallon menciona que os métodos ativos, ao qual se mostra adepto, que visam “tornar o aluno ativo, desenvolver as suas iniciativas e não a sua receptividade, de lhe fazer conquistar e não dar”, devem muito a Decroly” (p. 234). Indica ainda que os “centros de interesse” propostos por ele, apesar das diversas dificuldades encontradas na sua aplicação, parecem-lhe uma estratégia legítima para fazer o objeto “suscitar verdadeiramente a atividade intelectual da criança”, pois oferecido na sua “integridade e não dividido pelas várias disciplinas cuja soma constitui o ensino nos seus diversos níveis”.

Chama-nos a atenção o modo peculiar com que Wallon refere-se à “psicogênese” da criança estudada por Decroly para constituir seu sistema pedagógico e em especial as soluções encontradas pelo pesquisador belga para responder ao caráter global do pensamento infantil. Este nos parece ser, portanto, a principal convergência do pensamento de ambos os teóricos, que levou Decroly a desenvolver a noção de função globalizadora e Wallon o conceito de pensamento sincrético. Entretanto, a verdadeira aproximação entre os dois termos, globalização e pensamento sincrético, qual antecede o outro e a possibilidade de influências recíprocas eram questões a serem investigadas.

A principal pista foi encontrada no texto de abertura da Conferência a Decroly por Wallon, ocorrida em Bruxelas em 1945, publicada em Des

parents, des enfants, des enseignants (Wallon, 1979). Nele, Wallon não apenas elege os conceitos de globalização, interesse e expressão como as três idéias mais fecundas da teoria psicológica de Decroly, quanto pontua a primazia do conceito de função da globalização, com importância sem precedente para a psicologia e a educação da infância.

O conceito de globalização em Decroly

O conceito de função globalizadora é formulado de uma forma muito

fecunda em La función de globalización y la enseñanza (Decroly, 1935)3 e está

fundamentado nos estudos do autor com crianças pequenas e anormais e nas experiências educacionais destas crianças. Ele foi precisado pela primeira vez, em 1907, quando o autor publicou, em Anneé psychologique, junto com a Srta. Degand, os resultados de um experimento que apoiava o procedimento de leitura ideovisual por ele defendido. Consistia em mostrar e fazer reter séries de letras, sílabas, palavras, frases, formas geométricas e imagens a crianças de 5 a 6 anos não iniciadas ainda na leitura. Os resultados indicavam que as crianças retinham melhor as imagens que as 3 Essa obra foi publicada originalmente em língua espanhola, em 1924, antes de receber

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figuras geométricas, as frases que as palavras e, sobretudo, mais as sílabas que as letras (p. 29).

Outros experimentos publicados em 1917, também em Anneé

psychologique, relativos aos “testes das imagens em desordem” apontam resultados semelhantes. Acima de tudo evidenciam que se fazia necessário chegar aos 8 ou 9 anos para a criança começar a mostrar a possibilidade de colocar as imagens em sua ordem lógica, para o que era necessário “ser capaz de analisar e encontrar, graças à análise, dirigido sem dúvida por uma hipótese, as relações de união lógica que existem nas diversas etapas da história” (idem, p. 34).

São muitas as evidências que Decroly reuniu, de seus próprios experimentos e de vários outros pesquisadores para deduzir que a criança designa um ser ou objeto com base no aspecto de conjunto da imagem, e apenas após a idade de 8-9 anos começa a estar menos dominada pela imagem global e a ser capaz de analisar antes de tirar uma conclusão.

Essa noção de que a criança pequena “globaliza com mais facilidade que analisa” levou o autor a discordar dos resultados obtidos por Binet e Stern sobre a prova de interpretação de imagens. Para ele, as respostas das crianças diante das imagens apresentadas não implicam uma análise propriamente dita que traduza uma direção sistemática e intencional das diversas partes do conjunto apresentado. “Quando uma criança, vendo uma imagem, diz: um homem, um cavalo, um carro, se contenta em designar um ser ou um objeto na sua totalidade, impressionada pelo aspecto característico do que domina na imagem”. Se a criança não pode ir além é, em parte, por falta de capacidade, de expressão verbal e também de experiência. A prova disto está no fato de que “se lhe é mostrada uma imagem que represente uma cena que lhe é mais ou menos familiar, ela a interpretará seguramente” (idem, 35).

Decroly analisa a questão por vários ângulos, não apenas no domínio da percepção visual, mas também das percepções auditivas, táteis e motoras. O jogo da galinha cega, em que se tem que reconhecer os participantes do jogo com os olhos vendados, é um exemplo típico deste trabalho de reconhecimento de um todo complexo, representado por uma pessoa graças a alguns signos táteis e motores.

Considera também o aspecto expressivo e centrífugo do fenômeno, o que inclui tanto a categoria dos movimentos e da própria ação quanto as artes visuais, musicais e literárias. No desenho, são exemplos notáveis de simplificação o esboço, o croqui, o plano, a silhueta e a caricatura. Uma pintura ou escultura começa geralmente com um esboço; as grandes linhas e os detalhes vêm depois.

Enfim, o fenômeno encontra-se nos diferentes domínios da atividade mental: percepção, recordação, pensamento, raciocínio, expressão e ação; está estreitamente dominado pelas tendências, afetividade e interesse; e permite compreender muitos fenômenos obscuros da mentalidade infantil e adulta. A esse respeito, Decroly faz uma menção a categorias semelhantes

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estudadas por outros autores como o pensamento pré-lógico dos primitivos de Levy Bruhl (que opôs o pensamento dos primitivos, que considerava pré-lógico, ao pensamento conceitual), as manifestações dos chamados instintos nos animais de Romanes, a função Gestalt de Köhler, a intuição de Bergson, as funções intelectuais inferiores de Cresson, a lógica dos desenhos infantis de Luquet e fenômenos semelhantes citados por Dewey em Como pensamos (p. 42-3).

São inúmeras as conseqüências pedagógicas tiradas por Decroly da noção de que a percepção infantil é essencial e antes de tudo global. Dela ele extraiu métodos novos, em particular “o método de leitura ideovisual, o sistema de escrita global, o procedimento de desenho por croquis, o trabalho manual unindo idéias-olhos e os métodos ativos em geral” (p. 46).

Mas para além dos métodos que Decroly tirou dessa consideração, há uma ligação essencial entre psicologia teórica e prática pedagógica, conforme aponta Wallon.

“Partindo de fatos concretos, limitados, que pertencem à experiência comum, Decroly extraiu uma forma filosófica e científica que teve posteriormente uma grande ressonância”. Uma das principais ressonâncias está na análise da maneira pela qual a criança raciocina, “podendo-se mostrar que ela não raciocina como o adulto, precisamente porque ela não possui o espírito analítico do adulto” (1979, p. 13).

A terminologia

Globalização ou representação global, atividade essencial do espírito humano, é uma expressão cunhada por Decroly no diálogo que travou com outros dois termos: a percepção sincrética, de Claparède e o esquematismo de Revault d’Allonnes.

Percepção sincrética é um termo que Claparède toma de Renan que, na publicação El porvenir de la ciência, estabelece uma ordem pela qual atravessa o espírito humano: “o sincretismo”, “a análise” e “a síntese”. “O homem primitivo”, dizia este escritor, “não divide, vê as coisas em seu estado natural, orgânico e vivo. Para ele, não há nada abstrato, porque a abstração é o parcelamento da vida. Tudo é concreto e vivo. A distinção não se encontra na origem, daí a extrema complexidade das obras primitivas do espírito humano” (apud Decroly, 1935, p. 43). Sincretismo para Renan seria então a “primeira visão geral, compreensiva, porém obscura, inexata, de onde tudo está amontoado, sem distinção”.

Claparède utilizou o termo, pela primeira vez, em 1908, em Archives

de Psychologie, para referir-se a um fenômeno observado em seu filho de 4 anos e meio que reconhecia as páginas de uma recopilação de cantos onde se encontravam os que mais gostava, quando não podia ler nem o texto

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nem a música. A criança havia associado a fisionomia geral das páginas de música com os títulos conhecidos verbalmente e os reconhecia, mesmo depois de não havê-los visto por seis meses.

O esquematismo, em contrapartida, é um termo que Revault d’Allonnes toma de Kant para incorporar ao seu estudo sobre a atenção. O fenômeno toma uma amplitude mais vasta que a de Claparède, pois ao invés de situá-lo no domínio da percepção, sobretudo da visual, coloca-o em todos os níveis da atividade mental, tanto na atividade centrípeta como na centrífuga, tanto nas funções de ordem periférica como nas de ordem central.

Globalização parece a Decroly um termo mais geral que poder sincrético e esquematismo, justificando que:

O primeiro convém, sobretudo para designá-lo no estágio perceptivo; o outro, implica uma análise prévia e supõe uma síntese consciente. O clichê globalização, para nós não deve permanecer, contudo, indefinidamente no mesmo ponto, sim que com novos ajustamentos sucessivos pode ir-se aproximando cada vez mais a um esquema, uma síntese, fruto de uma análise em vários tempos, porém dominado cada vez pela necessidade e o interesse. Se pode descobrir nisto as bases adicionais para desenvolver o programa de idéias associadas com argumentos novos [...] (idem, p. 45-46).

O conceito de pensamento sincrético utilizado por Wallon fundamenta-se nessa mesma noção de percepção global, que vê equivalência nos dois termos.

O que é a representação global? É o que se chamou posteriormente: o pensamento sincrético da criança. Global e sincrético são coisas equivalentes. O que sincrético acentua na noção de global é uma fusão de todos os detalhes ou de todas as qualidades umas nas outras. Na realidade, longe de perceber as coisas por meio de suas qualidades, a criança começa por perceber as coisas com todas as qualidades misturadas, eu não diria mesmo todas as qualidades misturadas, mas sua sensibilidade misturada às próprias coisas. Há então na palavra sincretismo essa idéia de fusão entre tudo o que pertence ao objeto, fusão de qualidades umas com as outras do detalhe com o todo, do todo com o detalhe, da significação objetiva do objeto e de sua significação para a criança do ponto de vista afetivo e subjetivo. (WALLON, 1979, p. 13)

Conforme dito anteriormente, sincretismo é um termo que remonta a Renan e designa um processo de espírito confuso, geral, obscuro, inexato, sem análise e sem distinções. Wallon o utiliza para criar uma noção que reúne todos os aspectos do pensamento da criança antes do advento das categorias por volta dos 9-10 anos. “O pensamento sincrético é o da criança

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enquanto esta não pôde ainda delimitar suficientemente a sua própria personalidade, nem apropriar-se das categorias usuais através das quais, actualmente, distribuímos os dados e os vários aspectos da experiência”. (Wallon, apud TRAN THONG, 1981, p. 228)

O conceito de pensamento sincrético em Wallon

Efetivamente, Wallon classifica o pensamento da criança de sincrético como uma forma de salientar os inúmeros aspectos que diferem qualitativamente a atividade mental da criança do pensamento adulto. Para este, que opera por análise-síntese, o objeto tem uma só imagem, constante e estável, e a variabilidade de seus aspectos se reduz a uma estrutura fixa. Para a criança, há descontinuidade entre as diferentes imagens de uma mesma realidade, que são simultaneamente mais estáticas e múltiplas. A identificação é feita por partes isoladas sem aptidão para transmutar umas nas outras e reduzi-las entre si. É por isso que Wallon argumenta que as representações da criança são muito mais condensadas, inadequadas e, em certo sentido, mais abstratas que as do adulto. Incapaz de ajustá-las à variabilidade dos aspectos que o objeto apresenta, opõe freqüentemente o que sabe do objeto (realismo intelectual) àquilo que vê (realismo visual). Ao desenhar uma casa, alinhará, no mesmo plano, duas ou três de suas fachadas, embora na realidade elas não estejam assim; ou então representará o que ela contém, como se as paredes fossem transparentes (WALLON, 1977, p. 260). Muitas vezes limita-se a justapor os elementos do objeto, à medida que os recorda, por exemplo, no mesmo rosto um olho de perfil e outro de frente.

A esquematização estereotipada do realismo intelectual tem seu equivalente no campo das reações sensório-motoras, de onde se desdobra a inteligência prática. Por isso, essa oposição entre realismo intelectual e visual não pode ser considerada como uma oposição entre a experiência em si e um atraso em concebê-la em toda a diversidade de seus aspectos e relações. Em outras palavras, a capacidade de representação das coisas sob seu aspecto verdadeiro não depende da capacidade de concebê-las. O realismo visual supõe um poder de seleção, identificação, simbolização, desdobramento e controle que a criança – confundida com as fontes espontâneas da sensibilidade e da experiência – ainda não desenvolveu. Assim, o realismo intelectual é na criança “uma forma ainda rígida, mais ou menos dispersa e estereotipada da representação”. Ainda que suponha uma integração entre as suas impressões sucessivas, trata de uma integração que neutraliza as suas diferenças e anula a sua individualidade, na medida em que absorve as impressões sem a possibilidade de atribuir a cada uma delas o seu significado. “Responde à necessidade essencial e elementar de reconhecer praticamente a coisa em si mesma e não nas suas relações variáveis”. Em outras palavras, trata-se de um substrato que

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permite reconhecer o essencial das situações ou das coisas e que não é ainda ajustável a cada caso particular.

Ao procurar identificar o que a criança percebe e concebe a princípio, Wallon associa sua vivência no concreto a uma incapacidade de transpassar a impressão presente. Para o autor, a criança só se ocupa do objeto que se oferece a sua atividade. Uma comparação verdadeira entre os objetos está acima de seus meios. Se uma relação entre eles se estabelece, é de ordem puramente subjetiva ou prática, sem que isso se constitua em diferenciação. Se semelhanças são reconhecidas, são simples reconhecimentos de experiências passadas, sem que isso signifique ordenar o evento em categoria. Procede por via de analogia, ou seja, associa substancialmente objetos entre si, mas não no campo de formação de conceitos. Nesse sentido, não percebe além do particular, passa do individual ao individual. Ao invés de classificar as pessoas e as coisas, assimila-as entre si.

A semelhança que a criança descobre nelas resulta sobretudo de sua própria atividade intelectual, perceptiva ou afetiva. As impressões, os hábitos, os desejos, as experiências que persegue nelas, constituem a sua substância comum. Liga-as na medida em que seus interesses e a sua conduta a fazem participar de sua realidade em forma semelhante; na medida também em que pode esquecer, no decurso da experiência presente, alguma coisa das experiências anteriores, atribuindo-lhes por vezes, indevidamente qualquer coisa das antigas. A sua imagem das coisas é simultaneamente dominada pelas suas tendências espontâneas e adquiridas e pelas circunstâncias do momento. Não é analítica e conceitual. É global e pessoal (idem, p. 266).

É a esse conjunto de traços que Wallon denomina sincretismo, caracterizando uma forma de pensamento que se opõe à capacidade de análise e síntese, que são duas operações complementares. A análise não é possível sem um todo bem definido e não há síntese sem elementos dissociados, logo combinados e recombinados. O sincretismo da criança permanece alheio a este duplo movimento de dissociação e recomposição. As impressões que a criança tem de cada situação formam um conglomerado onde se misturam os motivos afetivos e objetivos de suas experiências, sem que saiba habitualmente distinguir os dois. Entre as situações e os objetos a criança pode estabelecer aparências que apenas têm sentido para ela e que o adulto considera irregulares ou absurdas. “Há unicamente o todo simultaneamente vivido pela criança” (idem, ibdem).

A criança não tem mais do que uma idéia confusa das mudanças próprias das coisas. “Vive numa espécie de metamorfose difusa e contínua, que explica em parte a sua facilidade para admitir as metamorfoses dos contos” (idem, p. 267). Além do metamorfismo, a criança tem a tendência a fixar as coisas. Crendo-se fixa, acredita que tudo também o é. Suas

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representações têm cada uma algo de absoluto e estático.

Para sair dessa consciência exclusiva e global que tem diante de cada situação, para desprender do objeto a sua representação e para articular entre si as circunstâncias que ela encontra confundidas, a criança enfrenta dificuldades ou oposições de várias ordens. Uma delas é a distinção do uno e do múltiplo, o que supõe a individualização do que deve construir a unidade, do que deve ser suscetível de agregar-se a si mesmo, repetindo-se. A percepção da criança não proporciona senão conjuntos, que devem unificar-se à sua estrutura ao serem percebidos.

Outra ordem de dificuldade é a capacidade de estabelecer relações entre as partes e o todo. Essa capacidade supõe o poder de reunir em uma realidade nova o que o princípio da experiência prática, sensível ou intelectual, oferece de forma esparsa e sem coesão ou descobrir elementos justapostos ou articulados entre si no que se apresenta como global, sem partes distintas nem dissociadas. A criança se mostra muito mais capaz de separar os elementos de um todo que é dado de uma vez, que reunir em um agrupamento deliberadamente novo o que sua experiência encontrou separado. Fragmentar um todo não leva à concepção das partes e sim à condição de saber e manter a noção do todo.

Outra dificuldade é a comparação do idêntico e do diverso, pois, antes de decompor e recompor uma realidade, é necessário ter podido identificá-la, ou seja, distingui-la do que ela não é.

Da mesma forma, encontra-se o problema do mesmo e do outro, que supõe o poder de distinguir entre o objeto e suas qualidades, de classificá-lo entre outros objetos, segundo o grau ou a variedade de suas qualidades, de ver variar suas qualidades ou seus graus sem perder de vista sua identidade. A criança não sabe, por exemplo, abstrair a noção de vermelho do objeto que lhe empresta a qualificação. Para ela, o vermelho e o morango são tão equivalentes que somente o morango pode ser vermelho e o vermelho do morango é o único a ser vermelho. Admitir que os morangos possam não ser vermelhos e o vermelho possa ser a cor de qualquer outro objeto requer da criança a capacidade de duplicar a percepção das coisas, atitude própria do pensamento categorial (Wallon, 1989).

Enquanto não sabe distinguir um objeto de outros mais ou menos semelhantes, a criança atribui a cada objeto uma realidade em si e, se voltar a encontrá-lo ou se o tiver imaginado sob aspectos diferentes, lhe ocorre fragmentar o mesmo em várias partes.

Assim, são várias as dificuldades a serem superadas pela criança antes que ela atinja a capacidade de atribuir aos objetos e a suas propriedades uma existência superior e anterior a que é momentaneamente experimentada por si mesma. As ilusões prolongadas da criança mostram que esta operação pressupõe experiências e maturação mental, num processo que não está isento de choques e contradições.

Ter consciência dessas dificuldades é ter conhecimento dos conflitos que originam o pensamento e que se impõem à criança estimulando seu

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esforço. A superação do pensamento sincrético, indiferenciado, rumo ao pensamento categorial, analítico, depende de experiências e aprendizagens e das maturações progressivas do organismo e de suas funções, especialmente da maturação dos centros nervosos no córtex. Embora Wallon não precise uma idade cronológica para essa superação, o material que coletou junto às crianças evidencia que o estado sincrético existente no pensamento aos 6 anos perdura até os 9 anos e sua regressão não depende apenas da idade cronológica do sujeito, estando sujeita às circunstâncias afetivas que o envolvem e à natureza do objeto ao qual se aplica. Até que a inteligência se diferencie da afetividade a que está impregnada, a tendência é representar objetos e situações como um conglomerado de motivos afetivos e objetivos de suas experiências.

Conhecer esse processo para respeitá-lo, alimentá-lo e não apressá-lo deveria ser uma das tarefas mais importantes de quem lida com a educação da criança pequena.

Os conceitos de função globalizadora e pensamento sincrético encontrados em Decroly e Wallon ajudam-nos a compreender a essência do pensamento infantil, fundamental para adequação de posturas, intenções e expectativas nas práticas pedagógicas com crianças pequenas. Essencialmente, esta consciência nos remete a reconhecer a dimensão poética, inventiva e criativa da linguagem infantil em todas as suas formas, potencializando sua presença na ação educativa, ao invés de minimizá-la ou restringi-la em detrimento de uma visão compartimentada de construção de conhecimento.

Recebido em maio de 2008. Aprovado em maio de 2008

Title: The Child’s Thinking in Decroly’s and Wallon’s Perspectives.

Abstract

This article aims at tracing a parallel between the ideas of Ovídio Decroly (1871-1932) and Henri Wallon (1879-1962) on the child’s thinking. It focuses on the concepts of ‘globalizing function’ of the first and ‘syncretic thinking’ of the latter, trying to identify their geneses, the meaning of their terminologies and their main characteristics. By pointing the specificities of the child’s thinking in relation to the adult’s thinking, it also raises reflections on the need to adequate attitudes and practices in early childhood education.

Key words: Child’s thinking. Decroly. Wallon. Early childhood education.

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