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A transferência com crianças autistas e psicóticas na percepção de psicólogas que atuam na clínica

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A TRANSFERÊNCIA COM CRIANÇAS AUTISTAS E PSICÓTICAS NA PERCEPÇÃO DE PSICÓLOGAS QUE ATUAM NA CLÍNICA

Julia Maria CapelettiIAna Maria Pereira LopesII

Resumo: A presente pesquisa diz respeito à compreensão da transferência na clínica com

crianças autistas e psicóticas, considerando que o manejo terapêutico nesses casos ocorre de modo diverso daquele com sujeitos neuróticos. Nesse sentido, o estudo tem como objetivo compreender como ocorre a transferência na clínica com crianças autistas e psicóticas na visão de psicólogos psicanalistas que atuam na clínica, identificando de modo específico como os psicólogos psicanalistas se percebem como alvo da transferência das crianças autistas e psicóticas e também como alvo da transferência dos familiares destas; identificar como esses psicólogos psicanalistas desenvolvem estratégias de se comunicar com a criança a partir da transferência e contratransferência; identificar como os profissionais percebem as diferenças da transferência entre crianças autistas e psicóticas; e por fim identificar como psicólogos psicanalistas compreendem teoricamente o fenômeno da transferência com crianças autistas e psicóticas. A presente pesquisa é caracterizada como qualitativa, exploratória, com uso de estudo de multi caso. Foram entrevistadas 3 psicólogas psicanalistas, as quais possuem tempo de experiência na aérea de no mínimo dois anos. A coleta de dados se deu através de entrevistas semiestruturadas, fazendo-se uso de um roteiro pré-formulado. Como resultado da pesquisa, identificou-se que as profissionais se percebem diante da transferência com essas crianças, envoltas em dificuldades, porém, servindo como condutora do trabalho a ser realizado. No que diz respeito à transferência da família, foi identificado que as entrevistadas a percebem como sinais para construir uma relação de confiança e como meio para normalizar fenômenos infantis, e até mesmo para clarificar o diagnóstico de autismo. Quanto à forma como as psicólogas psicanalistas desenvolvem estratégias de se comunicar com a criança, foi identificado que é um instrumento a ser construído no manejo da sessão, o qual necessita da atenção ao que a criança irá mostrar ao analista. Referente à percepção das psicólogas sobre a diferença entre a transferência de crianças autistas e psicóticas, foi identificado que ou não fazem distinção e que ela também aparece, quando o profissional ocuparia funções diferentes dependendo da estrutura. Por fim, quanto ao modo como as profissionais compreendem teoricamente os fenômenos da transferência desse público, foi localizado que tal percepção perpassa por uma compreensão teórica em debate, além de ser considerada como uma língua que não se presta à significação. É possível concluir, que a transferência com crianças autistas e psicóticas é permeada por dificuldades, não deixando de ser o alicerce para o andar do tratamento, sendo imprescindível a inclusão dos pais no processo. Entretanto, são identificadas diferenças no modo de ser entre autismo e psicose, não fazendo total distinção, contudo, considerando a existências de aspectos que destoam entre si.

Palavras-chave: Transferência. Autismo. Psicose infantil. Infância

I Acadêmico do curso Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. E-mail:

juliamariacapeletti@gmail.com

II Doutora em Psicologia – Unisul. Professora Titular do Curso de psicologia da Universidade do Sul de Santa

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1 INTRODUÇÃO

O uso do termo “autismo” surgiu dentro do contexto dos estudos sobre esquizofrenia, o qual foi relacionado por Paul Eugen Bleuler, no começo do século XX, como um estado de retraimento em que permanecia o sujeito, centrado em seu mundo interior, autoerótico. Ainda que o autismo seja como condição alvo de grande preocupação no cenário social, existem, ainda, dificuldades em se tratar do autismo sem pender para o tema também complexo da psicose (MALEVAL, 2017).

Ao se tratar de autismo, fala-se já de início em crianças, o que é explicado pelo fato de tal condição apresentar sintomas desde da tenra idade, ensejando o diagnóstico precoce. Sabe-se que o advento da psiquiatria infantil Sabe-se deu de forma posterior a do adulto. Foi a partir de 1930 que o campo da psiquiatria infantil começou a criar autonomia e a construir seus próprios conceitos, sobretudo com a disseminação dos trabalhos de Paul Eugen Bleuler e Sigmund Freud que possibilitou maiores estudos acerca das esquizofrenias infantis (MALEVAL, 2017; MARCELLI, 2007).

Os responsáveis por isolar o termo autismo, separando-o da esquizofrenia, foram Hans Asperger e Leo Kanner. Para este último, as principais características do autismo infantil precoce eram o isolamento social e a necessidade da imutabilidade do ambiente, ou seja, o mesmo afirmava que qualquer aspecto que possa alterar o meio externo ou interno da criança, acaba por representar uma grande intrusão. A criança autista possui relações singulares com os outros infans e com os próprios pais e se abstém de interações comuns e não dirige o olhar interessado comumente, pelo contrário, se faz notar seu desinteresse quando estes se ausentam (MALEVAL, 2017).

Com o desenvolvimento da teoria e técnica psicanalítica, houve a possibilidade do trabalho analítico aplicado a crianças autistas e psicóticas, apesar de Freud ter efetuado observações que dariam entender a impossibilidade de tal. Freud afirmava não ser possível a ocorrência da transferência nas neuroses ditas narcísicas, justificando que tais pacientes se ocupavam exclusivamente consigo mesmo, negligenciando qualquer relação possível com o mundo externo e consequentemente, com o próprio analista. Dessa forma, o procedimento rumo ao tratamento do sintoma utilizado com outros pacientes tornar-se-ia inaplicável a esse público, ou seja, nada poderia ser feito quanto ao psicótico e sua respectiva condição (ALMEIDA, 2010).

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Sigmund Freud, apesar de defender a inviabilidade da análise de psicóticos, reconhece uma possível abertura do campo psicanalítico, em que os instrumentos utilizados na clínica poderiam estar constantemente se desenvolvendo, proporcionando alterações no contexto teórico e técnico. Concomitante com os estudos relacionados às condições psicóticas, foram desenvolvidas investigações e tratamentos referentes aos sujeitos autistas, com as respectivas distinções do conceito e técnica (ALMEIDA, 2010).

Em 1980, o autismo foi classificado no Diagnostic and Statistical Manual of Mental

Disorders (DSM-III) entre “Distúrbios Globais do Desenvolvimento”, sendo considerado um

subtipo mais severo entre eles. Em 1987, no DSM-III, surgiu a mudança de nomeação para “Transtornos Invasivos do Desenvolvimento”, os quais possuem como características predominantes as dificuldades relacionadas às aptidões cognitivas, linguísticas, motoras e sociais. No que diz respeito a Classificação Internacional das Doenças (CID- 10), este manual também mantém o autismo na categoria “Transtornos Invasivos do Desenvolvimento”, sendo definido como uma condição na qual o desenvolvimento é comprometido, se manifestando na criança antes dos 3 anos e com funcionamento atípico nos aspectos de: interação social; comunicação e comportamento restrito e repetitivo (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1993).

No que diz respeito à relação entre a etiologia e fatores biológicos no autismo, Ansermet & Giacobino (2013) afirmam não existir causalidade genética identificada. Porém, não faltam pesquisas que tentam comprovar a relação deste com a genética, ou seja, há diversas tentativas com o intuito de localizar genes responsáveis por essa condição subjetiva. Entretanto, ao invés de tais estudos comprovarem a relação íntima entre o modo de ser autístico e aspectos de ordem biológica, comprovam justamente o oposto. Em outras palavras, os achados consistem na variedade genética do público autista, sem a identificação de elementos comuns neste - que poderiam explicar a condição. Dessa forma, ao invés da univocidade genética, evidencia-se a multiplicidade - a singularidade - biológica de cada sujeito autista. Aqui, o determinismo genético é colocado em questão, dando espaço a outros elementos que influenciam a constituição de todo ser humano (ANSERMET; GIACOBINO, 2013).

Considerando os impasses da causalidade genética do autismo, passou-se a considerar o conjunto de fatores ambientais como elemento contribuinte para o estabelecimento do quadro. A influência de tais fatores poderia variar de acordo com a genética do indivíduo. Nessa vertente, ao invés dos elementos ambientais se oporem aos genéticos, ambos podem contribuir para o cenário do quadro. Assim, como a causalidade do autismo não é identificável

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por um fator universal e tem sido uma empreitada a definição da sua contingência, os percalços também rodeiam a definição do respectivo tratamento. Este por vezes visa a solução de sintomas, sem que a causa destes seja isolada (ANSERMET; GIACOBINO, 2013).

Ao se abordar o autismo infantil, é necessário, antes, distinguir a posição singular em que a criança se encontra. Esta, por vezes, fica imbuída em uma alienação a qual provém de um lugar e uma significação formulados pelo Outro, a mãe – ou a pessoa a qual acaba por desempenhar tal papel. A criança, então, acaba por se encontrar em uma posição de objeto de um outro. A subjetivação, nesse sentido, seria o desmanche dessa alienação, quando a criança possa a desenvolver sua própria singularidade se posicionando de uma forma diversa daquela que lhe fora atribuída outrora. Esse contexto implica na defesa do querer do outro, de ser reduzido ao seu próprio corpo, onde o sujeito possa se desenvolver e se organizar em torno das significações mundanas, identificando a posição em que ele põe o outro e a si mesmo (VORCARO, 1999).

É interessante destacar as duas posições diferentes que o sintoma na criança pode possuir no ponto de vista de Jacques Lacan, encontrado nas notas a Jenny Aubry (1967/ 1991). A primeira diz respeito a uma resposta efetuada pela criança, referente ao que há de sintomático na relação parental, enquanto a segunda, refere-se à encarnação do objeto a no fantasma materno. Ou seja, nesta última a criança incorpora o desejo da mãe, revelando a verdade de tal objeto. Este desdobrar impede a estruturação do próprio fantasma da criança. O fantasma pode ser definido àquilo que falta ao sintoma, o real do simbólico que existe dissociado da representação do sintoma - o fantasma é aquilo que o indivíduo é. Nesse sentido, é necessário fazer um discernimento a respeito da queixa, a qual pode se constituir como uma demanda da criança para o analista, ou como posição de identificação referente às duas formas que o sintoma pode ter de acordo com Lacan: a resposta decorrente ao que há de sintomático na estrutura parental ou a encarnação do objeto no fantasma materno (VORCARO, 1999).

Maleval (2017) cita quatro abordagens psicanalíticas clássicas na compreensão do autismo infantil, são elas formuladas por: Margaret Mahler; Donald Meltzer; Bruno Bettelheim e Frances Tustin. O ano de 1970, é apontado ainda pelo autor, como um importante marco no desenvolvimento das teorias psicanalíticas e das ciências cognitivas, ao tempo em que os defensores do então DSM-III passam a investir na medicamentação da psiquiatria, dispensando maiores interesses nas compreensões teóricas das outras etiologias do autismo.

No que diz respeito à clínica psicanalítica com crianças autistas, de acordo com Tafuri e Safra (2008), esta teve seu início com o caso do menino Dick, de quatro anos, atendido por

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Melanie Klein e publicado no ano de 1930. Nesse período desconhecia-se acerca do autismo infantil, o que se reverteu em 1940 devido aos estudos de Léo Kanner. Porém, a descrição do autismo já era de conhecimento desde 1911, a qual fora elaborada por Bleuler em seu livro “Dementia Praecox oder Gruppe der Schizophrenien” (TAFURI; SAFRA, 2008).

Apesar de Dick se mostrar introvertido, com ausência de fala e relação afetiva, Klein acreditou ser possível iniciar o tratamento devido ao simbolismo que surgia nas minúcias do seu comportamento. Ela fez uso da técnica do jogo que estava sendo utilizada para o tratamento de crianças neuróticas, interpretando o comportamento do infan, conferindo-lhe sentido simbólico. Dessa forma, foi elaborado o modelo kleiniano relativo à técnica de interpretação na clínica infantil, o qual contribuiu fortemente para o avanço da teoria e prática psicanalítica (TAFURI; SAFRA, 2008).

O estabelecimento do diagnóstico na psicanálise ocorre no contexto da transferência, levando-se em consideração a particularidade de cada caso em questão - a fala do sujeito e a sua respectiva subjetividade. É importante salientar que a especificidade do diagnóstico orienta o percurso do tratamento, ou seja, este é elementar ao tratamento analítico (ALVERNE; MARTINS, 2016). Na linha de se problematizar as contribuições da psicanálise ao estudo das crianças autistas, propõe-se aqui estabelecer a transferência como objeto de análise.

Almeida (2010) afirma que muitas mudanças ocorreram no entendimento do conceito de transferência, o qual foi se ampliando e abarcando diversos outros elementos próprios do funcionamento psíquico, sem com isso perder suas características próprias. A autora pontua que por mais que sujeitos de estados primitivos da mente - psicóticos e autistas - não possuam um comportamento relacional no sentido objetal, há aspectos do seu funcionamento mental que se mostram no contato com o analista, na relação com este. Esses acontecimentos, por mais que não estejam atrelados ao simbólico e não contenham conteúdo representacional, tornam-se presentes no ambiente analítico, repetindo-se diversas vezes (ALMEIDA, 2010).

De acordo com Winnicott (1978), quando há o estabelecimento de um ego intacto, ou seja, quando houve um cuidado materno suficientemente bom, o analista deixa de se preocupar com tais aspectos na clínica, sendo a interpretação sua maior ocupação. No entanto, quando o ego não é desenvolvido, o trabalho do analista deve ser voltado ao setting da análise, aos aspectos do manejo clínico. Nesse sentido, o papel do profissional deve ter a função de suficientemente bom, atendendo à demanda do paciente, para que com isso se possibilite o advento do seu self verdadeiro. É através do trabalho de análise voltado ao setting, que torna

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possível o estabelecimento de um ego intacto, ensejando uma relação do indivíduo com o ambiente externo. É passando por tal transição, que se torna viável o início de uma análise comum, relativa às defesas do ego (WINNICOTT, 1978).

Já Klein (1974), ao se referir às primeiríssimas experiências da criança, deixa interessante contribuição para a compreensão do processo de constituição do psiquismo e por conseguinte, para a compreensão de processos psicóticos infantis. Traz o conceito de objeto bom e mau, assim como de inveja e gratidão, aspectos os quais irão determinar suas relações interpessoais no decorrer da vida e, consequentemente, a transferência estabelecida no processo de análise. A autora afirma que o conceito de gratidão está intimamente ligado com as relações primeiras da criança com o seio materno e sua capacidade em reconhecer os benefícios que o mesmo lhe traz, fazendo a distinção entre o seio bom e o seio mau. O seio bom seria este que lhe satisfaz e atende a sua demanda, enquanto o seio mau, é aquele que a priva de tal prazer. Assim, os excessos de fontes primeiras são pistas importantes para a compreensão de desenvolvimentos vindouros. Vejamos.

De acordo com Klein (1974), a gratidão na infância está estreitamente relacionada com a capacidade de amar do sujeito. Quando a criança consegue ser grata pelo objeto bom, pelo prazer que este lhe causa, há o surgimento do desejo de retribuição pela satisfação sentida. Desfrutar o seio bom, também implica a base para a capacidade do indivíduo de sentir diversos outros prazeres. Reconhecer o objeto bom, aceitando-o e com isso dando ensejo à gratidão, somente é possível se a inveja sobre o mesmo não toma proporções exacerbadas. Tal inveja surge, devido a facilidade com que o leite vem, parecendo ao bebê como uma dádiva inalcançável. No entanto, quando o seio bom não é reconhecido e a inveja deste é predominante, tal sentimento posteriormente é transferido aos familiares, se estendendo em seguida, ao restante das pessoas. Para Klein (1974, p. 33) a inveja é definida como:

[...] o sentimento irado de que outra pessoa possui e desfruta de algo desejável - sendo o impulso invejoso tirá-lo dela ou espoliá-la. Além disso, a inveja implica na relação do indivíduo apenas com uma só pessoa e remonta à mais primitiva relação exclusiva com a mãe.

Em outras palavras, a inveja extrema do objeto desejado impede a diferenciação entre seio bom e mau, interferindo na construção de um objeto bom. Tal aspecto irá refletir ao longo da vida no modo de ser do indivíduo, e indiretamente na transferência. É possível concluir que o estabelecimento do tipo de transferência está intimamente relacionado com as relações

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ulteriores do bebê com as figuras primárias. As experiências primeiras possuem papel determinante na estrutura psíquica do indivíduo, o qual irá revivê-las no processo de análise, projetando-as ao analista (KLEIN, 1974).

De acordo com Falek (2013), na psicose não há inscrição – há a foraclusão - do Nome-do-Pai. Tais indivíduos, por assim dizer, não teriam meios para supor um saber existente no outro, o que acarreta, consequentemente, na inviabilidade do processo analítico, já que o analista não ocuparia a posição de sujeito suposto saber. Falek (2013) afirma que acreditar no estabelecimento da transferência com sujeitos psicóticos requer uma visão outra da transferência, considerando que existe outras formas de subjetivação além daquela proposta por Freud relacionada ao édipo - das relações autoeróticas às objetais. Cita que Lacan considerou possível a transferência de um modo específico nos casos de psicose, devido ao seu percurso nessa seara, com início no caso Aimée. Foi Lacan, portanto, que abordou inicialmente a possibilidade da clínica psicanalítica da psicose, tendo como referências as obras freudianas e voltando-se ao conceito de transferência, o que o permitiu traçar vertentes distintas entre a clínica da neurose e psicose (FALEK, 2013).

Maciel (2008) afirma que a transferência ocorre de forma diversa na psicose. Citando Lacan, a autora acrescenta que para esse indivíduo a relação amorosa é viável se este abole a si próprio como sujeito ao tempo em que o Outro ocupa uma posição de supremacia, absoluta. Ou seja, trata-se aqui de uma relação peculiar, na qual o psicótico se coloca como objeto na relação transferencial. Dessa forma, o estabelecimento de uma posição de sujeito no quadro da psicose frente à linguagem dependerá no manejo clínico do Outro no cenário transferencial. Nesse sentido, há o risco de se instaurar a erotomania ou uma relação persecutória devido a um lugar de gozo que o analista pode ocupar (MACIEL, 2008). De acordo com Alverne; Martins (2016), o manejo da transferência na psicose consiste em dissolver o Outro absoluto, acompanhando o sujeito psicótico em seu percurso.

Almeida (2010), referente ao processo analítico com sujeitos autistas e psicóticos, ressalta o importante papel da contratransferência no observar das minúcias comportamentais destes - os quais transformam sua subjetividade paulatinamente -, nos elementos rudimentares. A autora afirma que um possível aprimoramento da percepção dos analistas, frente ao que lhe é comunicado, ou do que surge na contratransferência com tais sujeitos, viabilize doravante novas formulações e alterações conceituais no que diz respeito à transferência. Se faz necessário citar que o aspecto da contratransferência pode surgir como um sentimento de invisibilidade e insignificância, devido a postura de fechamento da criança autista. Nesse caso

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se faz necessário uma postura mais ativa por parte do analista, o qual deve incorporar um papel mais ativo com o intuito do sujeito o perceber ali (VERDI, 2010).

As peculiaridades das crianças autistas as distinguem das demais. As mesmas acabam por fazer transcrição literal da realidade, como se a apreendessem de forma crua. Ou seja, o meio externo é incorporado ao sujeito sem modificações, sem significações. Outra característica elementar, diz respeito ao seu isolamento do ambiente externo, onde não há investimento. Parecem se satisfazer com as pulsões do Id, com a sensorialidade e sensualidade própria, abrindo mão de qualquer investimento libidinal no mundo externo. Há um fechamento subjetivo aí, que por vezes cede na sessão analítica, fazendo emergir conteúdos do interior, os quais são dificilmente externalizados (VERDI, 2010).

De acordo com Verdi (2010), é possível supor que no espectro autista o Id efetua demandas exacerbadas, talvez pela constituição do sujeito, somando-se um contexto que falha em dar uma resposta adequada a tais demandas. O eu, dessa forma, responderia a esse aspecto recusando qualquer envolvimento com o ambiente externo - voltando-se a si mesmo - e se submetendo à exigência do Id. Tal recusa em se envolver com a realidade, direcionando a libido a si mesmo, pode ocasionar tamanho prazer ao ponto de interromper o processo do desenvolvimento, da apreensão da linguagem. A aprendizagem, quando se dá nesses casos, parece estar associada, de acordo com Verdi (2010), ao bel prazer do indivíduo, a autossatisfação. A autora também acrescenta que alguns sujeitos do espectro desenvolvem uma relação objetal de ordem primitiva, onde o outro não é reconhecido como objeto externo, pertencente à realidade externa, e acaba por ter função de objeto autístico. Porém, não ocorre aí a maturação das relações, a transição de fases que possibilitam a separação entre sujeito e objeto.

De acordo com Maleval (2017), no que diz respeito à comunicação do sujeito

autista, este se põe em uma posição de recusa frente a enunciação, devido ao gozo da fala o qual recusa ceder, pois este lhe causa grande horror. O que ocorre com tais sujeitos, é que a mutação do real no significante não ocorre plenamente, o autista rejeita a dor da perda própria da alienação significante. Porém, o autor ainda afirma que tal sujeito não se encontra excluído da linguagem, esta difere amplamente da dita fala. De acordo com Maleval (2017), é característica própria do sujeito autista a dissociação entre fala e linguagem, fato que geralmente envolve alguma deficiência cognitiva, porém esta não é o suficiente para sua determinação. O autor afirma que a abdicação da voz pelo autista é dada como uma forma de égide contra um

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Outro demasiadamente real, porém esta é uma estratégia dolorosa a qual está fora da possibilidade de escolha do autista (MALEVAL, 2017).

A adequação do autista à realidade vai depender da construção de uma borda, a qual servirá como égide contra a ameaça do Outro. Isso se dá através de uma barreira autossensual, constituída por estímulos corporais, a qual possibilita a criação de duplos, objetos autísticos e ilhas de competência. Quando tal borda é impedida ou quando se dá de forma débil, o autista se torna mais vulnerável, dando espaço as crises de urros e automutilações (MALEVAL, 2017).

O prognóstico do sujeito autista está intimamente ligado com seu entorno, este possui importante papel na subjetividade de tais crianças. Mas o processo educacional não deve ser visto como meio único para o tratamento, o que comumente acontece devido à visão do autismo como uma deficiência. Para a integração do autista no meio social, é necessário, entretanto, uma disposição deste em abandonar as satisfações de seu mundo privado, só por meio dessa escolha é que viabiliza a sua adaptação na realidade externa (MALEVAL, 2017).

Devido o modo como o autista se sente perante o Outro, uma forma de entrar em contato com ele é quando o clínico adota uma postura na qual apaga sua presença, onde estabelece uma indiferença, com falas as quais não deem de forma a exigir algo do sujeito - palavras indiretas, ou até mesmo, registradas em um gravador. Devido à recusa destes na fala, a inserção na linguagem ocorre através de signos, e por isso, muitos desses sujeitos aprendem antes a escrever. Os signos primeiros se dão como objetos, os quais o autista se prende para ordenar seu mundo caótico (MALEVAL, 2017).

Referente à psicose, Falek (2013) cita que a loucura estabelece uma demanda

por auxílio em sua subjetividade. Ou seja, na clínica com tais sujeitos, há uma demanda a qual exerce mobilização ao analista. Dessa forma, a loucura se daria como meio outro do sujeito escrever sua própria questão. Nesse sentido, Maciel (2008) afirma que de acordo com a experiência clínica com esse público específico, é possível dizer que há algo da palavra que é direcionada à pessoa do analista. Independentemente de onde é realizado o trabalho analítico, em instituição ou clínica privada, a prática nesse campo atesta que há um longo caminho a seguir (MACIEL, 2008).

É de real relevância ao campo da psicologia, organizar e sistematizar o conhecimento referente a tal contexto no que diz respeito responder sobre como ocorre a transferência na

clínica com crianças autistas e psicóticas na percepção de psicólogos que atuam na clínica?

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Identificar como os psicólogos psicanalistas se percebem diante da transferência das crianças autistas e psicóticas; Identificar como os psicólogos psicanalistas se percebem como alvo da transferência dos familiares das crianças autistas; Identificar como os psicólogos psicanalistas desenvolvem estratégias de se comunicar com a criança a partir da transferência e contratransferência; Identificar como os psicólogos psicanalistas percebem as diferenças da transferência entre crianças autistas e psicóticas; Identificar como psicólogos psicanalistas compreendem o fenômeno da transferência com crianças autistas e psicóticas.

Considerando que o diagnóstico de autismo infantil tem sido cada vez mais frequente, a presente pesquisa diz respeito às disseminações de informações acerca desse público e seu respectivo manejo clínico, possibilitando com que os profissionais da área da saúde tenham mais acesso ao conhecimento dessa vertente (AFLALO, 2014). Acredita-se também, que a respectiva pesquisa contribuirá para a maior compreensão da comunidade em relação às condições da infância, possibilitando a desconstrução de algumas crenças infundadas e, por assim dizer, preconceitos relativos à subjetividade de autistas e psicóticos.

Com o intuito de amparar uma revisão bibliográfica para a presente pesquisa, foi realizada uma busca na base de dados LILACS em abril de 2019, objetivando identificar produções teóricas acerca do autismo, psicose e transferência. A partir dessa busca, foram selecionados os artigos que mais se aproximavam da temática em vista, sendo realizada a leitura dos títulos e resumos, totalizou-se 10 artigos.

Na busca de artigos deparou-se com a escassez de artigos que estudam a transferência com crianças autistas e psicóticas em um trabalho de campo. Dos 10 artigos, 9 deles detém-se a ensaios da teoria. Sendo assim, foram mantidos somente um artigo original, sendo os demais tomados como apoio para o embasamento teórico da presente pesquisa. Neste artigo original, escrito por Falek, J. e intitulado “Para concluir um projeto de pesquisa”, o autor aborda sobre a necessidade de desenvolver um trabalho específico com as mães de crianças autistas; da postura de testemunhar o cenário estabelecido na clínica, o que proporcionou melhora da posição estática dos pacientes. A autora também aborda a relevância em se estabelecer uma leitura daquilo que ocorria em ato no cenário clínico através da história dessas pessoas e a importância de possibilitar a essas crianças o acesso às diversas linguagens que circulam no meio social.

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2 MÉTODO

A presente pesquisa é caracterizada como qualitativa, devido ao fato de os fenômenos relativos à pergunta de pesquisa não exigirem quantificação, pois houve o intuito de analisar e compreender os fenômenos em questão, levando-se em consideração os conceitos implicados (LAKATOS, 2001). Com a intenção de responder aos objetivos da pesquisa esta se deu de forma exploratória, de tal forma que o instrumento utilizado foi formulado visando compreender a inteireza dos aspectos relativos à resposta da questão de pesquisa. Considerando que houve a imersão em campo para ensejar a aproximação do fenômeno a ser estudado, a pesquisa se deu de forma aplicada.

De acordo com os procedimentos adotados, o projeto é classificado como estudo multi caso. Yin (2001) afirma que o estudo de caso é preferencialmente escolhido para se estudar fenômenos os quais o pesquisador tem pouco controle sobre e quando estão inseridos em contextos contemporâneos existentes na vida real. De acordo com o autor, no estudo multi caso também se inclui a realização sistemática de entrevistas, o que se sucedeu na presente pesquisa como procedimento de coleta de dados.

Participaram da pesquisa 3 psicólogas psicanalistas que atuam em clínica autônoma, que possuem tempo de experiência na área de no mínimo 2 anos e utilizam a linha teórica psicanalítica para as intervenções. Tais profissionais foram consideradas a partir de sua participação em escolas na vertente da teoria psicanalítica sem objetivar distinção entre as escolas. Em relação ao critério de inclusão, foi avaliado também o tempo de dedicação destas na clínica de no mínimo 20 horas semanais.

Para a coleta de dados foi utilizado gravador de voz para que fosse possível a transcrição literal da pesquisa; além do roteiro de entrevista, e Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual incluía a permissão para o uso de gravador.

A coleta de dados se deu através da entrevista semiestruturada. Se fez uso de perguntas abertas e fechadas, onde o entrevistado pode se posicionar acerca do tema. Para tanto, foi elaborado um roteiro de entrevista de acordo com os objetivos elencados no presente projeto pesquisa e pela análise de variáveis previstas na mesma. As entrevistas ocorreram nos consultórios dos profissionais, evidentemente buscando-se espaço privado para tal.

Primeiramente, para a coleta de dados, foi aplicada uma entrevista piloto, com o intuito de avaliar a sua adequação quanto aos objetivos propostos, e assim, foram realizadas as alterações necessárias. O tempo médio de entrevista variou entre 30 e 50 minutos. Todos os

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encontros foram gravados e transcritos em um computador que assegurasse o sigilo das informações obtidas.

A organização dos dados se deu após a transcrição das gravações. Como o roteiro foi estruturado através de perguntas referentes aos objetivos específicos, considerando que se tratou de uma entrevista semiestruturada, as respostas dos participantes foram organizadas em uma tabela, por meio de categorias em consonância com as perguntas formuladas, conforme o quadro 1.

Foram analisadas as entrevistas através da organização de um quadro, onde foram selecionadas as falas que correspondiam aos objetivos propostos, criando subcategorias separadas por títulos, o qual segue abaixo. Para identificar as falas de acordo com as diferentes profissionais, foi utilizada a letra “E” com o respectivo número da entrevistada, ou seja, utilizou-se E1, E2, E3, para se referir a entrevistada 1, entrevistada 2, entrevistada 3. As falas das entrevistas que correspondiam às mesmas subcategorias, foram mantidas sob o mesmo título.

As falas selecionadas para a análise de dados, tiveram como critério de seleção a importância do conteúdo a ser discutido juntamente com o material teórico. Os dados foram analisados à luz da abordagem psicanalítica acerca do autismo e psicose no público infantil. De acordo com Minayo et al. (2012, p.79), a análise e interpretação de dados em pesquisas qualitativas têm por objetivo "[...] a exploração do conjunto de opiniões e representações sociais sobre o tema que pretende investigar", ou seja, buscou-se compreender os aspectos do fenômeno em questão. Tal análise não precisou incluir todas as falas e expressões dos participantes, pois os integrantes de determinado grupo costumam possuir opiniões e representações bastante semelhantes, ao tempo que possuem características singulares (MINAYO et al, 2012).

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Quadro 1 - Tabela de categorias de classificação das falas provindas das entrevistas. Objetivo específico Categorias

Objetivo 1: Identificar como os psicólogos psicanalistas se percebem diante da transferência das crianças autistas e psicóticas

A TRANSFERÊNCIA É ENVOLTA EM DIFICULDADES TRANSFERÊNCIA COMO OBSTÁCULO PARA O OUTRO COMO O TODO QUE ACONTECE COM A DUPLA COMUNICAÇÃO DO INCONSCIENTE

TRANSFERÊNCIA COMO CONDUTORA DO TRABALHO COM O AUTISTA INDICATIVO PARA ASSUMIR LUGAR DIFERENTE DO HABITUAL Objetivo 2: Identificar como os

psicólogos psicanalistas se percebem como alvo da transferência dos familiares das crianças autistas.

SINAIS PARA CONSTRUIR RELAÇÃO DE CONFIANÇA FENÔMENOS INFANTIS A SEREM NORMALIZADOS CLARIFICAÇÃO DO DIAGNÓSTICO DE AUTISMO

Objetivo 3: Identificar como os psicólogos psicanalistas desenvolvem estratégias de se comunicar com a criança a partir da transferência/contratransferencia

A FORMA DIFERENTE DE SE COMUNICAR DA CRIANÇA AUTISTA/PSICÓTICA ATENÇÃO AO QUE A CRIANÇA IRÁ MOSTRAR AO ANALISTA

CONSTRUINDO UMA LINGUAGEM ACESSÍVEL

CONTORNANDO A AGRESSIVIDADE DA CRIANÇA AUTISTA/PSICÓTICA

Objetivo 4: Identificar como os psicólogos psicanalistas percebem as diferenças da transferência entre crianças autistas e psicóticas.

NÃO DINSTINÇÃO ENTRE AUTISMO E PSICOSE

O LUGAR QUE ANALISTA OCUPA NO AUTISMO E NA PSICOSE OUTRO QUE INVADE NO AUTISMO

A PRESENÇA DE COMPORTAMENTO MAIS HOSTIL EM CRIANÇAS PSICÓTICAS Objetivo 5: Identificar como

psicólogos psicanalistas compreendem o fenômeno da transferência com crianças autistas/ psicóticas

COMO UMA COMPREENSÃO TEÓRICA EM DEBATE MANUTENÇÃO DA CRIANÇA NA FASE DO ESPELHO COMO UMA LINGUA QUE NÃO SE PRESTA À SIGNIFICAÇÃO COMO UMA RELAÇÃO DE SONHO JUNTO A CRIANÇA Fonte: Autora, 2019.

3 ANÁLISE DE DADOS

3.1 PSICÓLOGOS PSICANALISTAS DIANTE DA TRANSFERÊNCIA DAS CRIANÇAS AUTISTAS E PSICÓTICAS

A partir das entrevistas realizadas, foi possível perceber que no trabalho com crianças autistas e psicóticas para as psicólogas entrevistadas A TRANSFERÊNCIA É ENVOLTA EM DIFICULDADES. As psicólogas entrevistadas, mencionam o sentimento de angústia suscitado, devido aos elementos emocionais exacerbados tão presente nessas crianças, os quais

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são difíceis de lidar, além da falta de simbolização, de representação das palavras e do brincar da criança autista e psicótica. Os profissionais também se sentem invisíveis, impotentes, como se sua presença não fosse reconhecida, não fosse vista, devido a indiferença de tais crianças diante deles. Diante desse contexto, a incerteza do que se passa no momento da sessão com a criança é um elemento característico do analista na relação que se estabelece, o qual faz parte da configuração do processo terapêutico, causador de angústia. Esse aspecto é evidenciado na seguinte fala:

[...] são muitas emoções, as vezes até algumas reações e é difícil suportar toda aquela carga de emoção que está ali e poder traduzir, dar algum sentido, primeiro internamente com a gente e depois se aquilo faz sentido para a criança também, porque é difícil, é a pura emoção [...] Você está ali e na maior parte do tempo não sabendo o que está acontecendo. Então é bastante ansiogênico nesse sentido. (E1)

A sensação de que a criança não estabelece o vínculo com o profissional, corrobora para os sentimentos de dificuldades. A forma de se relacionar da criança é sentida como inexistente, mas também, podendo se manifestar através de comportamentos muitas vezes violentos ou que faz com o analista se sinta rejeitado. Como é possível constatar nas seguintes falas das pessoas entrevistadas:

Os autistas e crianças psicóticas, eles têm um jeito diferente de se relacionar e muitas vezes aparentemente não estão se relacionando, aparentemente estão fora, parece que tu não está ali, isso é bastante angustiante, nossos sentimentos são bastante angustiantes. E às vezes parece que nem acontece, parece algo até como algo mais violento, isso aqui – mostra a mão – é uma mordida de um autista. (E1)

Na linha de se entender as dificuldades que envolvem a transferência foi presente nas entrevistas, os tipos de sentimentos que surgem por parte do profissional, decorrente da relação estabelecida na sessão. Porém, a grande dificuldade citada nas entrevistas é a de bancar o lugar de invisibilidade atribuído ao profissional.

[...] mas a dificuldade de tudo isso é realmente ficar ali no trabalho como se você não fosse nada, assim, né, acho que o desafio é esse, você tem que estar ali com a criança, sentada no chão, enfim, com ela, em toda sessão de análise, você não tem um função ali né, você não é nada ali por enquanto, então ficar nessa posição assim de suportar durante muitas sessões [....] (E2).

De acordo com Almeida (2010), no início do tratamento com crianças autistas, muitas vezes a pessoa do analista não é reconhecida, porém, ao longo das sessões, a criança acaba por criar condições de discernimento da realidade externa, as quais enseja sua percepção dos objetos que a cercam. Nesse contexto, em que a criança parece não notar a presença do profissional, é

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que os sentimentos de angústia surgem, entrelaçados com a sensação de invisibilidade e insignificância, elementos citados por Verdi (2010) como pertencentes à contratransferência do trabalho terapêutico com esse público. O autor menciona a necessidade de o analista manter um comportamento mais ativo no manejo da sessão, visando com que a criança o perceba.

Aqui, as principais características do sujeito autista já indicadas por Leo Kanner ficam evidentes, e também os efeitos destas na pessoa do analista. O autor já pontuava a solidão como um dos traços desses sujeitos, no sentido em que não estabelecem relações sociais com pessoas ao seu redor, mas justamente o contrário, são indiferentes quanto à presença de alguém (MALEVAL, 2017). Ou seja, essa singularidade própria do sujeito autista, e por assim dizer, marcante, no que tange seu desinteresse por outras pessoas, parece ser um incômodo, justamente, para quem o cerca, e não para si mesmo. Dito isso, é interessante identificar, até onde as demandas que chegam na clínica provém dos pais, da escola, dos contextos sociais em que a criança está inserida, ou do próprio paciente. Fazer essa distinção parece crucial para os manejos das sessões e para as intervenções a serem feitas junto aos responsáveis.

Foi possível identificar a TRANSFERÊNCIA COMO OBSTÁCULO PARA O OUTRO no trabalho das psicólogas, o que é possível perceber na seguinte fala: “É, então é uma coisa mais maciça, uma coisa até de corpo, assim né, o analista sente até no corpo assim mais forte, tudo que se entrega assim de um jeito tão maciço mesmo, então a transferência ela realmente é diferente.” (E3). O corpo é citado como fator participante de todo esse manejo, o qual está em jogo nas sessões. Outra entrevistada afirma:

[...] o autista muitas vezes ele não vai estar, ele tem toda a questão da linguagem, né, todos os poréns que ele tem, com a questão da linguagem, da voz, do olhar, então tudo isso o analista tem que ficar muito..., se teu olhar for muito intrusivo para o autista, tu tem que segurar, não que você não vá fazer isso com o neurótico, mas com o autista ou psicótico [...]

De acordo com Maciel (2008), a transferência na psicose ocorre como uma relação especular, a qual não possui uma barra simbólica, isso acaba por fazer com que o psicótico se misture ao Outro. Assim, um comportamento do analista pode ser sentido como intrusivo. Diante da fala, é possível concluir, que apesar do manejo clínico com autista, devido ao seu comportamento isolado, exigir do analista uma postura mais ativa, é necessário tomar o cuidado para tal postura não ser sentida como intrusiva pelo paciente. De acordo com Verdi (2010), o profissional deve manter um comportamento espontâneo, o qual favorece a aproximação com o paciente (VERDI, 2010).

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De acordo com Maciel (2008), na psicose não há a divisão pela linguagem, e dessa forma, o modo como o sujeito se dirige a pessoa do analista difere amplamente do neurótico. O psicótico não se direciona ao profissional com uma queixa que possui um saber sobre. A relação que se estabelece é outra, o paciente busca do analista uma testemunha da sua subjetividade. Maciel (2008) afirma que uma das modalidades do manejo clínico na psicose é a posição de testemunha, que consiste em possibilitar um espaço ao psicótico para que direcione suas interpretações – estabelecendo algum sentido. O profissional deve então manter uma postura não muito presente, pois quando o Outro não se mostra tão invasivo, promove as interpretações elaboradas pelo sujeito.

A transferência COMO O TODO QUE ACONTECE COM A DUPLA também aparece na percepção das psicólogas no trabalho com autistas. O desafio, portanto, é decifrar o que se passa na sessão, estando em um lugar de incerteza e permitindo o surgimento de algum sentido, como indica a entrevistada 1:

A gente na frente de uma figurinha, que a gente não sabe muito bem, mas que alguma coisa tá rolando ali e a gente tem que de alguma forma se permitir ficar nesse estado, assim, de não saber, mas nesse estado meio de sonho, pra quem sabe sentir algo que possa ter algum sentindo para o que está rolando ali. Essa disponibilidade que eu digo. (E.1)

Ou seja, tal qual em qualquer clínica psicanalítica, na clínica com autistas há o fator a ser considerado que é a transferência que ocorre na relação dual, onde a subjetividade do indivíduo é imprescindível para o estabelecimento de tal relação. Nessa relação, os comportamentos do paciente são considerados junto a suas vivências. Em outras palavras, o ambiente analítico oferece a possibilidade de acompanhar o sujeito em suas elaborações, através do lugar transferencial, onde possibilita-se encontros únicos permeados pelo vínculo construído (ANSERMET; GIACOBINO, 2013).

De acordo com Almeida (2010), o conceito de transferência passou por diversas mudanças, ampliando-se e considerando outros aspectos. Apesar do sujeito autista não manter um comportamento relacional como faz o neurótico, há elementos do seu funcionamento psíquico que se revelam na interação com o analista, que por mais que não estejam associados ao registro simbólico, estão presentes nas sessões de análise (ALMEIDA, 2010).

A transferência é percebida, por assim dizer, como algo que sempre ocorre, independente da estrutura do sujeito. Como afirma a entrevistada 1:

Bom, para mim ela sempre acontece, então ela está acontecendo, então eu conseguir entender e produzir algum tipo de conhecimento acerca disso, é outra coisa. Mas para

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mim ela está sempre acontecendo de alguma forma, já parto do pressuposto que ela está acontecendo [...] (E1)

É um constante debate a ocorrência da transferência em sujeitos autistas e psicóticos. Sobre estes últimos, há a discussão de que devido a sua não inscrição do Nome-do-Pai, ou seja, a foraclusão, são incapazes de supor o saber no analista, o qual acaba por não ocupar a posição de sujeito suposto saber, e dessa forma, o processo analítico é colocado em questão (FALEK 2013). Entretanto, de acordo com Falek (2013), crer na transferência com psicóticos, exige uma concepção diferente da transferência, para além daquela que estabelece o neurótico, imbricado no édipo. Ou seja, a loucura teria sua própria forma de relacionar-se, não necessariamente repetindo a forma do neurótico, o que não invalida sua forma de subjetivar-se (FALEK 2013). A transferência é considerada também como uma COMUNICAÇÃO DO INCONSCIENTE, a qual ocorre variando de acordo com as características próprias de cada sujeito. É possível evidenciar que o que predomina nas crianças autistas são as emoções, como se entende a partir da fala da entrevistada 1: “[...] a palavra tem que estar a serviço de algo, de uma emoção, e no caso essas crianças ficam só na parte da emoção.” (E1, p. 2). Ou seja, é possível concluir, que a forma como usualmente fazemos uso da palavra, a forma com que no expressamos através desse recurso é inexistente no autista, este estabelece uma relação outra. Essa caraterística tem a ver com a forma que o autista se relaciona com o ambiente externo, o qual efetua a transcrição literal da realidade, incorporando-a de forma crua, sem significações (VERDI, 2010)

No que diz respeito ainda a essa comunicação inconsciente, a entrevistada 1 afirma:

[...] eu engravido e a partir daí a relação dela comigo é completamente diferente, ela que não me tocava até dorme no meu colo, começa a acontecer algumas coisas meio esquisitas, de aproximação física, que remetia a um sentimento, ela vinha e se acomodava, eu estava com a barriga grande, uma menina que não deixava ser tocada, meio paradoxal.

Tal comunicação do inconsciente tem a ver com as relações objetais e representações internas, as quais são direcionadas ao analista, ou seja, a transferência. A possível compreensão de tal contexto ocorre apenas na relação analista analisando, e isso no caso da estrutura neurótica (ALMEIDA, 2010). O interessante a se pensar é: se a transferência diz respeito às vivências passadas, e relaciona-se com projeções interna à pessoa do analista, como isso se daria nos sujeitos autistas, os quais não possuem simbolizadas as relações? De acordo com a fala anterior, aparece algo na sessão que a criança autista dá algum sentido, não estando totalmente aquém da capacidade de representação. É necessário diferenciar a estrutura desses sujeitos, mas com

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cautela, pois querer delimitar suas características talvez seja muita pretensão. É difícil, e talvez impossível, precisar o funcionamento psíquico, o qual é inexato, impalpável, e provavelmente seja um erro o desejo de atribuir modos de funcionamento.

De acordo com Klein (1974), a capacidade da criança em diferenciar o objeto bom e mau, determina sua capacidade de gratidão, onde reconhece o prazer em que o objeto lhe causa, surgindo o sentimento de retribuição pela satisfação sentida. Esse discernimento está imbricado com a capacidade do sujeito em sentir diversos outros prazeres. De acordo com a fala anterior, pode-se dizer que parece que a paciente consegue fazer a distinção do objeto bom e mau, o que a permite mudar seu comportamento diante da analista, não a vendo como intrusiva, e com isso, se permitindo estabelecer outra relação com esta, onde o contato fico passa a ser possível. Ou seja, a mudança da aparência da analista quando engravida e tem sua barriga progredindo de tamanho, ocasiona um efeito na paciente, a qual começa a estabelecer contato físico antes inexistente. E ainda mais do que isso, ao adormecer diante da presença da analista, se permitindo ficar em tal estado, é possível refletir que passa a dispensar tentativas de defesa, se entregando a um estado de total vulnerabilidade: o adormecimento. O reconhecimento do objeto bom tem seu efeito aí, a autista passa do distanciamento da analista à sua aproximação, onde a profissional não é sentida como ameaça, mas sim pertencente a um outro lugar.

As profissionais consideram a TRANSFERÊNCIA COMO CONDUTORA DO TRABALHO COM O AUTISTA. O objetivo inicial com esse público, de acordo com as entrevistas, é fazer com que o outro tenha um lugar para a criança, que ocupe uma função. A partir disso, vão se estabelecendo outros manejos, mas apenas após a constituição do vínculo. O aspecto reconhecido como sinalizador da transferência é abordado na seguinte fala:

[...] a transferência começa a aparecer, a gente começa a ver que tem algo aí da minha presença que já não está mais tão demandante, que ele já está suportando, é, quando eu consigo tirar esses objetos mediadores, ou quando a criança começa a suportar que ela esteja brincando e eu pegue um lápis e vá pintar também, ela não faz o movimento de me tirar da brincadeira [...] (E2).

Maleval (2017) afirma que a característica do autismo para Kanner, é a imutabilidade, ou seja, os elementos que compõe a realidade externa devem sempre permanecer em sua ordem primeira em que a criança teve acesso, qualquer mudança do ambiente pode ser sentida com grande sofrimento o que vem tendo mudanças na clínica psicanalítica com autistas. De acordo com a fala da entrevistada, a ocorrência da transferência é entendida como quando o autista passa a suportar as mudanças do ambiente analítico, não sentindo a necessidade de proteger-se em meio ao sentimento de intrusão. Ou seja, tal sentimento parece amenizar-se, possibilitando

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a aproximação do analista. Nesse sentido, a característica marcante de isolamento do sujeito autista, parece ceder. De acordo com Verdi (2010), o fechamento subjetivo do paciente por vezes cede nas sessões, emergindo conteúdos do interior, os quais são raramente externalizados. Nesse sentido, pode-se concluir que a possibilidade de aproximação do analista surge em meio à transferência, e assim se torna possível o advento de conteúdos psíquicos antes inacessíveis para o profissional, fornecendo material para o manejo das sessões e conduzindo o trabalho a ser feito com o paciente.

Ainda sobre a transferência como condutora do trabalho com o autista, foi possível identificar os profissionais buscando os potenciais da transferência, como é possível identificar na seguinte fala: [...] eu acho que tem um grande potencial porque é uma coisa muita sincera, sincera no sentido de, como é criança, a gente está falando de criança, não tem tanto aquelas coisas, as fantasias, os fantasmas mesmo, definidos e confundindo até a transferência, a coisa vem mais nua e crua e mais clara [...] (E3). Diante da fala, se vê que o potencial citado no atendimento com crianças autistas e psicóticas diz respeito a característica de atendimento do público infantil, o qual difere do adulto no manejo clínico.

De acordo com Vorcaro (1999), no tratamento com crianças, há a especificidade da impossibilidade de tratar de repetições, já que esse público está em processo de desenvolvimento. Só se pode falar em repetição no público adulto, onde há uma estrutura acabada. Ou seja, a sinceridade citada na fala, parece ser justamente esse comportamento da criança, em que ocorre como anterior a formação da sua estrutura, se dando de uma forma genuína – se considerar as defesas que vão se formar a porteriori.

Os profissionais também tratam a transferência como INDICATIVO PARA ASSUMIR LUGAR DIFERENTE DO HABITUAL. Ou seja, o contexto em que a criança está inserida é levado em conta, considerando o papel que as pessoas desempenham ao seu redor, e com isso, se analisa a posição adequada a ser incorporada no manejo da sessão, recusando manter uma posição similar dos responsáveis para evitar que a criança estabeleça a mesma relação. Como é possível constatar no trecho a seguir:

É, e aí meu manejo foi de não entrar nessa série de pessoas que a corrigiam, de ficar de fora, acho que a transferência é isso, se eu assumo o mesmo lugar dos pais, se eu assumo o mesmo lugar de outras pessoas, o comportamento dela vai ser o mesmo assim né, no momento que eu assumo outro lugar, é possível que ela faça outro deslocamento aí [...] (E2)

De acordo com Maciel (2008), no caso da psicose, como se refere a entrevistada à paciente anteriormente citada, o vínculo estabelecido com outras pessoas é sustentado pelo imaginário, e aí que se encontra a sua especificidade, pois estabelece uma relação outra com Outro - não

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existe uma barreira simbólica. Dessa forma, é através do imaginário que a pessoa do analista vai ser considerada pelo psicótico, sendo seu papel o manejo da relação sustentada nesse registro. Sendo assim, é necessário de modo mais contundente considerar o lugar de sujeito que ocupa o paciente, para identificar a forma como está inserido na linguagem, a fim de se fugir do lugar comum.

Considerando os aspectos pontuados em relação ao modo como profissional se percebe diante da transferência com crianças autistas e psicóticas, é possível concluir que tal processo transferencial envolve diversas dificuldades, se dando, muitas vezes, como obstáculo ao profissional. Isso ocorre justamente devido às características do público em questão, o qual possui uma forma de comunicação diversa e faz com o que o manejo clínico destoe daquele com neurótico. Porém, o fator benéfico é identificado como próprio da clínica com crianças. A transferência também é percebida como a relação no todo entre analista e analisando, onde alguns aspectos inconscientes surgem, conduzindo o manejo clínico, no qual profissional deve atentar- se ao papel a ser assumido, levando-se em consideração o contexto social em que a criança está inserida.

3.2 PSICÓLOGAS PSICANALISTAS E A TRANSFERÊNCIA DOS FAMILIARES DAS CRIANÇAS AUTISTAS.

No que diz respeito à transferência com a família de crianças autistas e psicóticas, é possível perceber que os profissionais também a entendem como SINAIS PARA CONSTRUIR UMA RELAÇÃO DE CONFIANÇA como fica evidente na seguinte fala:

Então, acaba sendo bastante complicado, porque só a gente que está vivendo ali dentro a gente sabe, então essa coisa dos pais é uma coisa mais complicada, porque, eu sou a favor que a gente faça uma boa relação com os pais e que esse espaço de confiança seja construído ali também. Porque senão, tem que ter alguma forma que você acredite que aquilo vai rolar. (E1)

É possível notar a importância de proporcionar confiança aos pais referente ao trabalho a ser realizado com a criança. Justamente pelo público infantil se encontrar em uma fase de desenvolvimento, o contexto em que esteja inserido é imprescindível para o tratamento (MARCELLI, 2007). Marcelli (2007) cita as psicoterapia mãe-filho como meio para reparar as distorções interativas nessa relação, oferecendo a mãe algum tipo de segurança, e junto a ela introduzindo o aspecto do sentido, abordando também as angústias da genitora, as quais não rara as vezes fomentam um papel defensivo. Ou seja, é necessário criar vínculo com os pais,

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visando apaziguar suas próprias angustias acerca da condição e do tratamento do paciente. Nesse sentido de acolher as demandas provindas dos familiares, há a seguinte fala que explana tal aspecto: “[...] é mais a disponibilidade dos pais, a forma como eles vem, da forma como a gente acolhe, da forma como eu também não tento enquadrar eles, o que que eles estão fazendo de certo e de errado, botar um juízo de valor né, de estar junto na dor, que é o mais ou menos o que a gente faz com o paciente também.” (E1)

Marcelli (2007) cita ações terapêuticas junto aos pais, como forma de tratamento para criança psicóticas, as quais variam de caso a caso. Nesse sentido, o autor pontua a necessidade de considerar a disponibilidade psíquica dos pais, bem como a vontade ou desinteresse, mas avaliar o desejo de participar ou não de um processo de compreensão. A total ausência dos pais no processo de cuidado do filho acaba por afetar negativamente o andar desse processo, então, é nesse sentido que o profissional deve propor um trabalho em que os genitores consigam aceitar e se implicar. Ou seja, a implicação dos pais no processo é fundamental, como fica evidente na fala: “[...] é também a nossa função, pensando na transferência, ajudar esses pais a suportar e também possibilitar outro tipo de relação, ou ficar atento a outro tipo de relação possível do que simplesmente terceirizar.” (E1). Maleval (2017) também afirma que o prognóstico do paciente autista está intimamente vinculado com os aspectos do seu entorno, pois estes interferem na sua subjetividade. Dessa forma, criar um vínculo com os pais é fundamental para a continuidade do tratamento.

É possível identificar, nas entrevistas, que os profissionais percebem a transferência dos familiares de crianças autistas e psicóticas como meio para lidar com os FENÔMENOS INFANTIS A SEREM NORMALIZADOS. Em outras palavras, o profissional se encarrega de estabelecer um diálogo com os pais, com o propósito de clarificar a posição subjetiva que se encontra a criança, como é possível notar na seguinte fala : “Então às vezes não é um autismo, mas quer dizer que a dinâmica familiar também oferece algo aí para que ela fique mais confortável realmente brincando sozinha, ela não vai a escolinha, então natural que ela brinque sozinha, que ela não queira compartilhar, e vocês? Como que é a rotina de vocês?” (E2, p. 7). De acordo com Marcelli (2007) no que diz respeito ao debate sobre o normal e o patológico na infância, não é possível efetuar uma completa distinção entre esses dois lados, como se fossem polos opostos. Essa dicotomia não é sustentável, pois o próprio desenvolvimento da criança é imbuído por conflitos, que como qualquer outro, podem progredir para o aparecimento de sintomas.

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Ao se falar em normalidade na infância, se pende para uma ideia utópica do comportamento infantil, o qual fica entrelaçado com sistema de valores, de interesse muitas vezes dos pais, dos educadores, e etc. Existe uma pressão cultural, onde qualquer comportamento que difira da média, corre o risco de ser considerado como patológico (MARCELLI, 2007). Nesse sentido, de acordo com as entrevistas, há uma tentativa de localizar a criança em meio ao contexto em que está inserida, questionando os enquadres patológicos. Tais enquadres são reforçadas pelos manuais de transtornos mentais, onde se vê a ampliação dos critérios diagnósticos, favorecendo o aumento de sujeitos rotulados, indo de encontro aos interesses da indústria farmacêutica no que diz respeito ao acúmulo de capital (AFLALO, 2014).

Nesse sentido de normalizar comportamentos entendidos como patológicos, os profissionais abordam também uma característica própria dos sujeitos autistas: o uso de objetos autísticos.

E tem a questão dos objetos autísticos, geralmente a criança tem um objeto de segurança, que é chamado de hiperfoco né, e aí algumas abordagens querem retirar esse hiperfoco, os pais também tem essa tendência, assim né, de não querer, de conter esse comportamento repetitivo, essa estereotipia, então a conversa sempre mais ou menos por aí de ‘olha, a estereotipia parece num momento de angústia, é angustiante para ele estar, é, de ir pra creche, aonde tem muita criança, muito barulho, tem música, tem carro,’ enfim, a forma de ele conseguir fazer essa relação, de ele conseguir fazer esse laço é de estar com o objeto de segurança dele, porque a gente vai retirar? (E1)

De acordo com Maleval (2017), é característico dos sujeitos autistas o uso de objetos autísticos, os quais não são usados de acordo com sua utilidade, mas sim, de acordo com a função que a própria criança atribui. Tais objetos proporcionam o sentimento de segurança para o autista, podendo se estabelecer uma relação obsessiva. Maleval (2017) acrescenta a possibilidade de fazer o uso desses objetos, para ampliar a gama de interesse do sujeito, visando sua maior inserção no contexto social. Em outras palavras, ao invés da tendência de querer que o sujeito autista se comporte como o socialmente adequado, sem a compreensão da sua própria singularidade, o profissional deve justamente partir dela, utilizando-a como recurso , fazendo de um objeto visto como sem função, à um que sirva a seu contrário.

Foi possível identificar, nas entrevistas, a transferência da família da criança autista e psicótica como meio para a CLARIFICAÇÃO DO DIAGNÓSTICO DE AUTISMO, ou seja, o entendimento sobre a função que o diagnóstico possui para os responsáveis da criança. A seguinte frase exemplifica: “[...] mas a dificuldade está justamente é, eu acho que de ver as famílias caindo nesse sintoma de massificação né, de colocar todos em um lugar só, de fazer

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uso desse diagnóstico como uma bengala, né.” (p. 6) Tal fala nos remete à escalada de diagnósticos de autismo, as quais vêm tendo seus critérios de inclusão mais generalizados, abarcando mais indivíduos (AFLALO, 2014). A concepção de autismo sofreu diversas alterações, ao longo do tempo, no que diz respeito ao DSM e à CID. Com o passar dos anos, o quadro autístico nos manuais de transtornos mentais começou a ser cada vez mais abrangente, aumentando a quantidade de critérios de diagnóstico (ANSERMET; GIACOBINO, 2013). Esse fato teve por consequência o crescente número de crianças diagnosticadas com essa condição, o que de alguma forma favorece diretamente a indústria farmacêutica - a Big Pharma, a qual passa a possuir lucro assegurado (AFLALO, 2014).

Através da entrevista, é possível perceber que o diagnóstico também possui um papel para a família. Há ainda a tentativa de encontrar a causalidade genética para o autismo, que traz benefícios aos pais, no sentido de que possibilita a não implicação na causalidade do quadro - extinguido o sentimento de culpa nesse sentido, o diagnóstico parece favorecer de forma secundária à família (ANSERMET; GIACOBINO, 2013).

Sendo assim, é possível concluir que os profissionais entrevistados percebem a transferência da família das crianças autistas e psicóticas, como meio para construir uma relação de confiança, onde os pais tenham suas angustias apaziguadas, podendo passar à fala seus sentimentos. Nesse sentido, o papel do profissional se concentra no acolhimento e possíveis orientações necessárias ao caso. Os profissionais também percebem tal transferência como meio para questionar a exigência dos pais acerca de comportamentos considerados patológicos, vendo a necessidade aí de fenômenos infantis a serem normalizados. Por fim, a transferência também é vista como meio para a clarificação do diagnóstico de autismo, ou seja, a localização da função deste para a família.

3.3 COMUNICAÇÃO COM A CRIANÇA A PARTIR DA

TRANSFERÊNCIA/CONTRATRANSFERENCIA

Em relação às estratégias de comunicação desenvolvidas para com as crianças autistas, foi possível identificar que os profissionais entendem que existe uma FORMA DIFERENTE DE SE COMUNICAR DA CRIANÇA AUTISTA/PSICÓTICA, o que é visível na seguinte fala: “[...] é uma maneira de se comunicar, é uma linguagem, mas não está no discurso, no laço social, tu entende? Então a gente tem sempre que estar atento a isso, essa outra forma de se comunicar.” (E3). Lacan propõe no quadro da psicose, uma relação singular do sujeito em

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relação à fala. Nela este se encontraria excluído do discurso, mas não da linguagem. Haveria aí um superinvestimento nas palavras, não havendo separação entre a fala e o Outro. Dessa forma, as palavras são entendidas como uma espécie de “coisas”, sendo equivalentes ao Outro (SANTIAGO; LOPES, 2007).

De acordo com Maleval (2017), o sujeito autista possui dificuldade em ceder o gozo da fala, e por esse motivo recusa a posição de enunciação. Em tais sujeitos não ocorre totalmente a mutação do real no significante. Nesses casos, não há o recalque, e com isso, não ocorre a alienação ao Outro da linguagem. Dessa forma, não fazendo uso da voz com um sentido do meio externo, o sujeito autista fica sobrecarregado por um gozo vocal desregulado, sendo assim, é um fator característico deste a dissociação da fala e linguagem. Abrir mão de tal uso da voz, é uma forma de se proteger contra o Outro, porém, foge da condição de escolha por parte do autista (MALEVAL, 2017). Devido a essas peculiaridades, a comunicação com tais pacientes difere amplamente daquela com neurótico, já que o sentido foge às palavras, utilizadas comumente como meio a expressar algo. Não havendo o recurso usual da fala como meio para estabelecer o processo terapêutico, é necessário a utilização de outros recursos, diferenciando a forma de expressão da criança.

Nas entrevistas também foi possível identificar como estratégia de comunicação a necessidade de ATENÇÃO AO QUE A CRIANÇA IRÁ MOSTRAR AO ANALISTA para o estabelecimento de alguma forma de comunicação, como fica evidente na seguinte fala:

[...] eu acho q a forma de comunicação é essa assim, de primeiro você entender o que essa criança vai te mostrar e aí a partir disso ela vai te guiando na sessão e você vai tentando aí algum tipo de comunicação, sim, mas é muito a partir do que ela traz inicialmente, [...] ela está no lugar de objeto dos pais, ela está no lugar de sintoma dos pais, ela está no lugar de, qual o lugar q ela ocupa assim né, e partir disso poder trabalhar. (E. 3)

De acordo com a fala anterior, distinguir a posição que se encontra a criança é fundamental na orientação do trabalhado a ser feito. Lacan diferenciava as duas formas de sintoma que poderiam surgir na criança: a primeira, uma reposta da criança frente ao que há de sintomático na relação parental, e na segunda, a encarnação do objeto a no fantasma materno , onde a criança incorpora o desejo da mãe, o que impede a formação do próprio fantasma da criança. Aqui, se faz necessário diferenciar a queixa na clínica com crianças, localizando se essas provem do paciente ao analista, ou se diz respeito as duas formas que o sintoma pode ter na criança (VORCARO, 1999). É a partir do contexto que a criança está, no que diz respeito a

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queixa, que será possível estabelecer um manejo clínico, e por assim dizer, comunicação possível.

Também foi identificado nas entrevistas, que as psicólogas psicanalistas desenvolvem estratégias de comunicação com crianças autistas CONSTRUINDO UMA LINGUAGEM ACESSÍVEL, no sentido que é utilizada a própria forma de se comunicar da criança, ampliando-a, para que com isso se possibilite o vínculo transferencial, uma forma de comunicação possível, como é fica evidente na fala:

[...] eu tenho um paciente que é, dois gêmeos, que tem uma relação com os desenhos,

os smurfs, e só essa fala que vem ao atendimento, eles ficam repetindo incessantemente a fala desses filmes, então, e gostam muito da massinha de modelar, então é a partir da massinha de modelar, fazendo os bonequinhos, tentando é, uma interação, uma transferência a partir disso, que pra eles é uma língua possível, de inventar algum tipo de laço [...] (E. 2)

A forma de comunicação citada, diz respeito ao uso do duplo, característica própria das crianças autistas. Tal recurso ameniza a solidão destes e se constitui como algo que é conhecido pelo sujeito, pertencente ao seu mundo assegurado e tendo a função de proteção. O duplo também pode ser usado como meio para a enunciação do autista, como o uso de personagens, pois estes o protegem do Outro (MALEVAL, 2017). Ou seja, através das entrevistas é possível identificar o uso do duplo como meio de comunicação com a criança autista, partindo do seu interesse próprio, para assim, ampliá-lo a outros aspectos, o que favorece a utilização de outros meios de comunicação. Tal aspecto também fica evidente na seguinte fala:

É, mas mais que atribuir sentido de tipo é isso e aquilo, mas assim, brincar com aquilo, de alguma forma tentar desenvolver, não é essa ideia de desenvolver um brinquedo, mas que ele vá se aproximando desse espaço simbólico, dessa brincadeira, né, sei lá o que ele faz com o boneco, então poder trazer um outro boneco, aí se ele quer, se ele possibilita que outro boneco entre e interage, ou não ou né, pequenas aproximações assim [...], em geral as crianças autistas já vem um brinquedo que gostam muito, eles se apegam aquilo e vem com aquele brinquedo e normalmente são até brinquedos meio duros, assim não são muito fofinhos, pedaços de madeira, pedaços de pau , pedaços de coisas. (E. 1)

Assim como o duplo exerce uma função ao autista, o objeto autístico também o faz. Tais objetos geralmente não são usados de acordo com a sua função, proporcionam o sentimento de segurança para a criança, a qual pode desenvolver comportamento de ordem obsessiva com estes (MALEVAL, 2017). De acordo com Maleval (2017), esse comportamento obsessivo pode ser trabalhado para que se amplie a outros contextos relacionados ao objeto,

Referências

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