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Crime, mercado e controle social de elites: sobre o tratamento jurídico dado ao trabalho escravo

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Academic year: 2021

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(1)JOÃO GUSTAVO VIEIRA VELLOSO. CRIME, MERCADO E CONTROLE SOCIAL DE ELITES: SOBRE O TRATAMENTO JURÍDICO DADO AO TRABALHO ESCRAVO. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais.. Orientador: Prof. Dr. WILSON MADEIRA FILHO Coorientador: Prof. Dr. ROBERTO KANT DE LIMA. Niterói 2005.

(2) VELLOSO, João Gustavo Vieira Crime, Mercado e Controle Social de Elites: sobre o tratamento jurídico dado ao trabalho escravo/ João Gustavo. Vieira. Velloso,. UFF/. Programa. de. Pós-. Graduação em Sociologia e Direito. Niterói, 2005. 90 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) – Universidade Federal Fluminense, 2005. 1. Trabalho escravo. 2. Administração de conflitos em perspectiva comparada. 3. Ilegalismos dos poderosos. 4. Controle social. 5. Descriminalização. 6. Polissemia jurídica. I. Dissertação (Mestrado). II. Título. 2.

(3) CRIME, MERCADO SOBRE. E. CONTROLE SOCIAL. O TRATAMENTO JURÍDICO DADO AO. DE. ELITES:. TRABALHO ESCRAVO. JOÃO GUSTAVO VIEIRA VELLOSO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Ciências Jurídicas e Sociais.. Banca Examinadora:. _______________________________________________. Prof. Dr. Wilson Madeira Filho – PPGSD/UFF (Orientador). _______________________________________________. Prof. Dr. Roberto Kant de Lima – PPGA/UFF (Coorientador). _______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Stella Amorim – PPGD/UGF. _______________________________________________. Prof. Dr. Roberto da Silva Fragale Filho – PPGSD/UFF. Resultado: _______________________. Grau obtido: ____________________. Niterói, ______ /______ / _________.. 3.

(4) Dedico este trabalho a todos aqueles que conviveram comigo ao longo dos últimos oito anos no ICHF (UFF), no IFCS e na Praia Vermelha (UFRJ), nas rodas de samba, e, principalmente, nos bares, botequins e afins, que felizmente ainda são os principais espaços de interlocução existentes em nossa sociedade. E de forma especial, dedico este trabalho àqueles(as) que tiveram saco de me aturar durante a pós-graduação – o que de certa forma é um presente de grego, já que provavelmente estas pessoas não agüentam mais me ouvir.. 4.

(5) Agradecimentos. Este trabalho é fruto de não apenas de um Mestrado em Sociologia e Direito, mas das múltiplas institucionalidades as quais percorri nos últimos três anos. As vezes eu acho que o meu lugar é um pouco o meio, o “&” que se encontra subscrito em títulos, siglas, nomenclaturas etc. Sempre fui um pouco flâner, estando aqui e ali, percorrendo diversos caminhos. Não estava a andar por precisar me encontrar como diria o grande Candeia, mas apenas por andar, conversar com os outros, não me fechar... Este triênio fechou um ciclo de andanças entre o Rio e Niterói que já se arrastava por outros quatro anos anteriores. Enfim, os agradecimentos que se seguem são tão interdisciplinares e esquizofrênicos quanto a minha trajetória. Tenho dádivas a retribuir, extrema consideração em mencionar e muito a agradecer a inúmeras pessoas, de muitos lugares, pois foram elas que me permitiram andar e a poder voar. Neste triênio rompi as amarras com a graduação, aliás, com as graduações. Os meus ritos de pós-graduação não foram somente associados ao mestrado. Após terminar a minha graduação (de bacharel) em Ciências Sociais na UFF eu fiquei vinculado a duas outras graduações: a licenciatura de Ciências Sociais e Comunicação Social na UFRJ. Este período me ocupou cerca de um ano e meio do triênio, sendo uma interessante experiência de “pós” graduação. Já não estava tão preso a questões banais como a implicância com a língua estrangeira, obrigatoriedade de créditos etc.; foi um tempo de mudança de posturas, de questões, de objetos... Tenho muito a agradecer neste sentido aos professores Milton José Pinto e Maura Sardinha da ECO/UFRJ pela amizade e incentivo, e ainda mais por me formarem enquanto produtor editorial. Assim como devo menção ao professor Marcos Alvito, História/UFF, que foi de suma importância nesta fase de “pós” graduação como amigo, interlocutor, flamenguista, sambista etc.; sem o qual talvez não tivesse me reaproximado das questões jurídicas. E é claro, tenho a agradecer aos companheiros de curso e de esbórnia, o que era mais ou menos a mesma coisa, são eles: Lenílton, Belo, Louise, PC, Michele, Raquel, Thiago, Pavuna, Leandro, Danielle, Milena, Pri(s), Ypuan, Theou etc. (para lembrar dos prováveis esquecidos).. 5.

(6) Em relação aos espaços “não” universitários, merecem ser ressaltadas três organizações: o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), o Centro de Justiça Global e o Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP). O SNEL foi uma instituição que me acolheu em um período complicado, o que me permitiu a atuar enquanto produtor editorial e a instrumentalizar recursos para sobreviver um ano sem bolsa. Do eixo Justiça Global tenho muito que agradecer a Andressa, Javier, Aninha, Diogo, Sandra, Marcelo, Xanxe, Juliana, Renata e, sobretudo, às minhas conviventes Nathalie, Fannie, Dida e Emily – especialmente a esta última por ter me esfregado o tema do trabalho escravo. E finalmente ao ISP, tenho a agradecer, em especial, à Ana Paula, à Gláucia e à Sabrina, companheiras também de pesquisa, com as quais espero colaborar certamente por um bom tempo. No que diz respeito ao fomento e recursos, merece destaque a CAPES, instituição a qual fui bolsista, e, sobretudo a PROPP/UFF que sempre se mostrou solícita às demandas para participação em congressos e demais eventos. Neste sentido, devo especialmente agradecer ao pró-reitor Sidney Mello pelo incentivo, apoio e disponibilidade em diversas ocasiões. E já que chegamos à UFF e à pós-graduação e pesquisa, seguimos às menções que lhe são específicas. Em especial devo extrema gratidão aos dois espaços que me formaram enquanto pesquisador: o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) e o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP). Do PPGSD devo agradecer não só aos professores e colegas de curso, mas também às funcionárias e a própria dinâmica do programa. Eu não aprendi só nas aulas, um dos maiores espaços de socialização acadêmica foi o dia a dia do Programa, as reuniões de Colegiado, comissões etc. Aprendi a pós-graduação, eu vivenciei isso e foi muito importante para minha formação. Com isso, tenho a agradecer a: Roberta, Graça e Córa pela atenção de sempre no cotidiano do mestrado; Ellen, Marta, Fábio, Rogério, Evandro, Rita, Leonardo e Felipe, companheiros(as) da turma de 2003, e em especial aos quatro últimos pela amizade, interlocução e convívio em espaços não acadêmicos; Maurício, Zé Fernando, Marcelo, Fridman, Daizy, Fragale e Napoleão, sobretudo aos dois últimos pelo apoio, diálogo e interação fora da sala de aula. E é claro, tenho muito a agradecer ao Wilson não só por ser meu orientador, mas também parceiro, amigo e incentivador, que me permitiu uma interessante experiência docente na Faculdade de Direito e sem o qual esta dissertação jamais se findaria.. 6.

(7) Do NUFEP devo extrema gratidão a todos e não são poucos: Flávinha, Lucía, Lenin, Lúcio, Mello, Fabinho, André, Vanessa, Helinho, Roberta, Luis, Ronaldo, Juliana, Fernanda, Michael, Luciane, Haydée, Rosa, Nígela, Naiana, Maria Fabiana, Maria de Paula, Lídia, e até mesmo a Renatinha... Sei lá se tem mais gente, é capaz de ter, mas acho que os que mais contribuíram com minha formação pessoal e de pesquisador estão supracitados. Considero este grupo muito importante para mim e todos colaboraram bastante lendo projetos, fazendo comentários, reclamando, pesquisando, trocando experiências, participando em eventos, bebendo cerveja, sendo grandes amigos etc. Neste sentido, também incluo neste meio os parceiros do NECVU (IFCS/UFRJ), em especial Michel, Brígida e Vívian pelos mesmos motivos; assim como os de Ottawa, em especial a Daniel dos Santos, um colaborador decisivo para os rumos que tomaram minha pesquisa. E certamente tenho muito a agradecer ao Roberto Kant por me orientar no núcleo, coorientar no mestrado e me ensinar a ser competente academicamente, ao lidar com a universidade, agências de fomento etc. Ainda do eixo pós-universitário há alguns perdidos, pessoas de encontros, cursos e eventos esporádicos, mas que também foram importantes neste triênio; são eles: André, Nilton, Lana, Luis e Elane (o casal cabeção), Angelinha e Raquel (minhas queridas irmãs), e outros tantos que reconheço e cumprimento ao encontrar nos espaços mais diversos – mesmo que por vezes não me lembre de seus nomes. Em relação à disponibilização de material para a(s) pesquisa(s), devo agradecer a algumas instituições jurídico-políticas: - À Câmara Municipal de São Gonçalo, mais especificamente à Secretaria, à Procuradoria e ao Arquivo; -. À Secretaria de Inspeção ao Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (SIT/MTE), responsável pelos dados sobre a atuação do Grupo Móvel, em especial ao Marcelo Campos;. - Ao Ministério Público do Trabalho (MPT), sobretudo à coordenadoria atuante no combate ao trabalho escravo; - Ao Ministério Público Federal, especialmente à pesquisadora, professora e subprocuradora geral da república Ela Wiecko e à sua acessora Morgana Pinheiro, sem as quais esta pesquisa não teria os registros criminais – fruto do trabalho de sistematização destes dados realizado junto à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.. 7.

(8) Finalmente, agradeço também aos meus familiares, sobretudo à minha mãe e ao meu irmão, pela ajuda, afetividade, confiança e paciência que tiveram principalmente nos períodos difíceis de minha formação. E por último e não menos importante, agradeço de forma especial à Marie-Eve, minha chérie companheira que cada vez mais é a família que eu escolhi, pelos motivos supracitados, e sobretudo por uma importância que é única nesta fase de mudanças pela qual eu passei nos últimos dois anos. Esta dissertação não é uma obra individual e foi ela certamente quem mais participou de sua elaboração, cotidianamente, do momento da simples tradução despretensiosa de um artigo sobre trabalho escravo até as situações limites dos ajustes finais da dissertação. Não só fonte de inspiração, mas de conhecimento. A melhor interdisciplinaridade e interlocução que pude ter com o mundo jurídico.. 8.

(9) “Conflitos podem matar, mas em quantidade insuficiente podem paralisar.” A Nils Christie (Conflicts as property, p. 1). 9.

(10) SUMÁRIO Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17. Parte I: Contextualização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20. 1- Crime, ilegalismo e mercado: controle social de elites nos estudos criminológicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 2- Panorama sobre escravidão contemporânea no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31. Parte II: Formas de controle sobre o trabalho escravo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37. 3- Controles Cíveis: Grupo Móvel, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério da Justiça, e Ministério Público do Trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 4- Controle Penal: Ministério Público Federal, a criminação-incriminação através do artigo 149 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47. Parte III: Gestão diferencial e controle social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56. 5- Hipóteses sobre o movimento de descriminalização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57. Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68. Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74. Notas de fim: originais de citações traduzidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85. 10.

(11) Resumo. Dissertação desenvolvida a partir de entrevistas e análise de documentos acerca da atuação do Grupo Móvel (da SIT/MTE) e do Ministério Público da União (MPT e MPF) na administração de conflitos condizentes ao chamado trabalho escravo. O objetivo é analisar as diferentes políticas públicas e ações dos agentes do Estado no controle social destes ilegalismos. As persecuções geralmente são conduzidas no âmbito cível (SIT/MTE e MPT), sendo estas apenas de cunho reparatório. A administração via justiça criminal (de atribuição do MPF) é deixada de lado, salvo raras exceções, apesar de positivada no artigo 149 do Código Penal. O movimento de descriminalização do trabalho escravo é bastante sintomático para se pensar a lógica de atuação destes operadores em nossa cultura jurídica e dos instrumentos de controle disponíveis. Se por um lado à falta de tratamento jurídico igualitário se apresenta como mais um fator na reprodução de desigualdades sociais; por outro, a utilização de sistemas normativos cíveis permite problematizar o Penal enquanto forma de controle social, abrindo novos caminhos para se pensar uma ordem pública no contexto democrático e republicano.. 11.

(12) Abstract. This dissertation is based on interviews and analysis of documents on the intervention of the Ministry of Labor’s Special Mobile Strike Force (SIT/MTE), a roving unit that conducts surprise inspections of properties accused of exploiting workers, and on the intervention of the Federal Public Prosecutor Office (including the Public Ministry of Labor – MPT, and the Public Prosecutor Office – MPF) in the resolution of conflicts related to slave labor. Its aim is to analyze the different policies and the actions of State agents in controlling these illegalisms. Legal actions are generally taken in the civil law sphere (SIT/MTE and MPT) where the remedies are merely compensatory. Although section 149 of the Brazilian Criminal Code provides for criminal penalties for slave labor, public authorities apply criminal laws (under the jurisdiction of the MPF) only exceptionally. The movement towards decriminalizing slave labor is revealing of the logic within which State agents operate in our legal culture and of the means of control available to them. On the one hand, unequal legal treatment appears to be just another factor in the reproduction of social inequalities, but on the other hand, the use of civil laws gives us the opportunity to think about the use of criminal law as a mean of social control and opens new paths to think about public order in a democratic and republican context.. 12.

(13) Lista de Siglas. ACC – Ação Civil Coletiva ACP – Ação Civil Pública AL – Alagoas ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CJG – Centro de Justiça Global CLT – Consolidação das Leis do Trabalho CONATRAE – Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CPP – Comissão Parlamentar Processante CPT – Comissão Pastoral da Terra DRPF – Delegacia Regional da Polícia Federal ECO – Escola de Comunicação FUNARTE – Fundação Nacional de Artes GERTRAF – Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado GT – Grupo de Trabalho ICHF – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia IFCS – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais ISP – Instituto de Segurança Púbica do Estado do Rio de Janeiro MA – Maranhão MEC – Ministério da Educação MG – Minas Gerais RO – Rondônia MPF – Ministério Público Federal MPT – Ministério Público do Trabalho MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MT – Mato Grosso MTE – Ministério do Trabalho e Emprego. 13.

(14) NECVU – Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana NUFEP – Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas OEA – Organização dos Estados Americanos OIT – Organização Internacional do Trabalho ONG – Organização Não-Governamental PA – Pará PEC – Proposta de Emenda Constitucional PFDC – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão PGR – Procuradoria Geral da República PGT – Procuradoria Geral do Trabalho PPGA – Programa de Pós-Graduação em Antropologia PPGCP – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política PPGSD – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito PROPP – Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa RBA – Reunião Brasileira de Antropologia RE – Recurso Extraordinário RJ – Rio de Janeiro RT – Reclamação Trabalhista SIT – Secretaria de Inspeção do Trabalho STF – Supremo Tribunal Federal TCAC – Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta TO – Tocantins UFF – Universidade Federal Fluminense UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro. 14.

(15) Prólogo. Há cerca de três anos atrás, abril de 2002, comecei a acompanhar o desenrolar de uma reportagem sobre corrupção na cidade de São Gonçalo (RJ). Achava aquilo curioso: após a reportagem instaurou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara de Vereadores, que logo se desdobrou em uma Comissão Parlamentar Processante (CPP), e o Ministério Público entrou com duas ações na Comarca local, uma civil e outra penal. Esta é a dissertação que eu não escrevi, mas que merece ser lembrada aqui; pois, dentre outras coisas, despertou meu interesse para uma área de pesquisa: a administração de conflitos em uma perspectiva comparada. Ainda me lembro como se fosse hoje: foi o caso da “reportagem que virou uma CPI e dois processos” (como eu dizia) que me levou ao Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP) em 2002 e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) em 2003. Na minha primeira reunião do NUFEP eu me apresentei falando sobre isso, como este caso despertava meu interesse etc., queria fazer uma discussão comparativa da administração daquele evento no legislativo e no judiciário. Na entrevista do processo de seleção do PPGSD eu também acabei falando da mesma coisa. Estes dois espaços permitiram que eu desenvolvesse esta pesquisa por pouco mais de um ano: levantei documentações, cheguei a realizar entrevistas, e li, li um monte de coisas. As leituras, discussões e conversas que eu tive durante o ano de 2003 na pós-graduação e no grupo de pesquisa me levavam mais e mais para uma discussão jurídica. Na verdade, a CPI já não me preocupava tanto, mesmo sem querer assumir isso, o meu problema era os dois processos. Na medida em que lapidava o meu objeto de estudo percebia que talvez fosse mais interessante perceber as diferentes administrações de conflitos presentes no próprio campo jurídico a partir da comparação entre os seus distintos sistemas normativos. Esta não foi uma mudança fácil, lógica e imediata; não seria nenhum exagero dizer que só cheguei a este ponto graças à convivência em um ambiente institucional multidisciplinar que me incentivou e me deu liberdade em ir adiante. A pesquisa sobre o tratamento jurídico dado ao trabalho escravo começou a surgir por conta de uma daquelas fatalidades do destino, a roda da Fortuna estava a. 15.

(16) girar em minha frente, foi por bruxaria. Em janeiro de 2004 uma amiga, uma advogada americana pesquisadora de ONG, precisava de alguém para traduzir e revisar um artigo dela sobre trabalho escravo. Ela queria que realizasse este serviço porque era complicado achar alguém que dominasse a língua e tivesse um mínimo de conhecimento sobre as diferenças entre as tradições jurídicas do Brasil e dos Estados Unidos. De início eu repassei para uma outra pessoa, pois estava fazendo campo em São Gonçalo na ocasião. Mas acabei tendo que fazer a tal tradução por motivos de enfermidade da tradutora e para não deixar minha amiga na mão. O artigo era interessante, a pesquisadora levantou documentos, realizou entrevistas com trabalhadores libertos, agentes do Estado e de organizações atuantes nestes conflitos (a CPT, por exemplo) etc. No entanto, lá pelo meio do artigo eu comecei a achar algo meio estranho: falava-se que trabalho escravo era crime, citava o artigo 149 do Código Penal, mas os dados judiciais eram de ações cíveis (trabalhistas na maior parte). Estava lá na minha frente: trabalho escravo é crime e não é crime – só que ela não dizia isto de uma forma explícita. Esta questão me corroeu durante um bom tempo. Tivemos uma conversa bem inusitada e esclarecedora, em resumo: perguntei se era aquilo mesmo, crime e não-crime etc., e ela me respondeu “sei lá João, agora que você falou é que eu me dei conta disso”. Aos poucos fui percebendo como aquilo era parecido com o que estava estudando a partir de São Gonçalo e resolvi seguir adiante nesta nova empreitada. No início, acabei fazendo duas pesquisas ao mesmo tempo: uma sobre corrupção e a outra sobre condição análoga a de escravo; o que era uma loucura, apesar dos objetos serem próximos – eventos passíveis de administração em diferentes sistemas normativos e tidos como um tipo de criminalidade associado às frações dominantes da sociedade. Cada vez mais tinha prazer em desenvolver a temática relacionada ao tratamento jurídico dado ao trabalho escravo e percebia limitações em relação à pesquisa sobre as diferentes administrações do caso de São Gonçalo, sendo uma em especial: durante o ano de 2002 e no início de 2003, quando fiz campo sobre a gestão jurídica, ative-me ao Civil e deixei de lado o Penal. Isto era irrecuperável, somente acompanhei as audiências do processo civil, e quando percebi e me indicaram este outro lado já era tarde. Deixei de lado um evento associado ao político e me dediquei a observar o fenômeno da administração diferencial de ilegalismos a partir de eventos associados ao econômico.. E deu no que deu... 16.

(17) Introdução. Esta dissertação é resultado de uma pesquisa que teve início em janeiro de 2004 como uma derivação de uma temática anterior – vide prólogo. Crime, Mercado e Controle Social de Elites surgiu a partir da idéia de analisar os diferentes tratamentos jurídicos dado aos eventos associados à exploração de trabalhadores que geralmente é denominada de trabalho escravo ou escravidão contemporânea por dívida, em especial a chamada impunidade penal. A metodologia adotada nesta pesquisa foi essencialmente qualitativa, consistindo em dois procedimentos principais: 1) levantamento de documentação pertinente, e 2) realização de entrevistas; sendo a análise dos dados elaborada a partir do método comparativo. A documentação (relatórios, estatísticas, normas e informes) foi levantada junto às instituições responsáveis pelos registros das diferentes ações de “combate” ao trabalho escravo, são elas: Secretaria de Inspeção ao Trabalho (SIT/MTE), responsável pelos dados relativos ao Grupo Móvel e à Lista Suja; Ministério Público do Trabalho (MPT), medidas relativas à Justiça do Trabalho; e Ministério Público Federal (MPF), em relação às ações criminais. Igualmente, procurou-se levantar documentos de outras instituições como a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), Ministério da Justiça, Secretaria Especial de Direitos Humanos, veículos de imprensa etc. para se ter uma visão mais adequada dos atores atuantes (in loco, promovendo ações, participando de grupos de trabalho ou comissões e assim em diante), e com isso delimitar as possíveis entrevistas. Os entrevistados foram selecionados a partir da análise da documentação levantada, o que resultou na escolha de cinco atores diretamente envolvidos na administração destes conflitos. Institucionalmente eles são vinculados à SIT (atuantes no Grupo Móvel), ao MPT e ao MPF; sendo, neste sentido, representativos do universo estudado e a opção mais viável tendo em vista que em sua maior parte são sediados em Brasília. Todas as entrevistas foram gravadas, fluíram sem grandes problemas ou restrições, e realizadas ao longo do segundo semestre de 2004 em vindas dos atores ao Rio de Janeiro. As identidades dos interlocutores foram preservadas por questões éticas, sendo os mesmos identificados apenas por vinculação institucional – o que é suficiente para atender os critérios teóricometodológicos adotados na presente pesquisa.. 17.

(18) Cabe aqui um esclarecimento sobre o recorte dado na pesquisa em relação ao tratamento jurídico: optei por considerar mais relevante o que seria associado ao movimento em colocar (classificar) o evento nos termos da lei. Trata-se de uma opção metodológica que em parte é pessoal, pois considero que o interesse maior desta pesquisa é o de perceber os movimentos de ação do Estado no tratamento de ilegalismos relacionados ao trabalho escravo; ou seja, a preocupação é muito mais com a entrada no jurídico do que com a saída. É claro, como veremos na Parte II, que consideramos dados de saída (sentenças), mas a idéia é demonstrar que a partir dos registros mais gerais (os de entrada) é que se torna possível perceber mais adequadamente a gestão diferencial dos ilegalismos – posição que os estudos clássicos sobre objetos análogos (white-collar crime etc.) corroboram. Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada durante o XXVIII Encontro Anual da ANPOCS, no GT “Conflitualidade social, acesso à justiça e reformas do poder judiciário”, com o título “Sobre o tratamento jurídico dado ao trabalho escravo: o movimento de descriminalização”, em outubro de 2004. E uma segunda, em novembro, na Agenda Acadêmica 2004 (UFF), no mini-curso “Crime e Mercado – administração de conflitos em perspectiva comparada a partir do tratamento dado ao trabalho escravo”. Foram duas oportunidades para apresentação de resultados e para obter retorno de um público interessado. Os retornos recebidos nestas apresentações resultaram em pelo menos uma alteração substancial na forma de apresentação dos resultados da pesquisa: a elaboração da Parte I, o que não existia nos originais. A Parte I corresponde a uma contextualização da pesquisa do ponto de vista teórico e empírico, dividindo-se em dois capítulos. O Capítulo 1 tem como objetivo inserir a presente pesquisa no horizonte dos estudos sociológicos e criminológicos que lidam com objetos de pesquisa semelhantes, a saber: ilegalismos econômicos administráveis em diferentes sistemas normativos (sejam eles jurídicos ou políticos). Neste capítulo são retomados os estudos clássicos de Edwin Sutherland sobre esta temática, passando por pesquisas mais recentes – em especial Susan Shapiro e Vincenzo Ruggiero.1 Já o Capítulo 2 focaliza o “como, quando e onde” ocorrem os casos de trabalho escravo. Trata-se de um breve panorama sobre a chamada escravidão contemporânea por dívida no Brasil, o que ajuda a visualizar o plano dos eventos que antecede o objeto desta pesquisa – a administração jurídica destes eventos conflituosos.. 1. Como boa parte da bibliografia é estrangeira e não disponível em português, optei por traduzir todas as citações ao longo do texto e disponibilizar os originais em inglês ou francês através do recurso a notas de fim. Estas notas, alfabetizadas ( A, B, C, ..., AA, AB etc.), são restritas à remissão aos originais.. 18.

(19) Estes capítulos são uma parte da apresentação da pesquisa de escrita posterior e onde são fornecidos subsídios mais adequados para uma melhor compreensão da administração dos conflitos associados ao trabalho escravo. A Parte II da dissertação corresponde à parte mais etnográfica da pesquisa: uma descrição dos movimentos de ação dos atores, de diferentes instituições, envolvidos na administração destes conflitos, sobretudo no que tange ao acesso à justiça, ao pôr em forma jurídica. O termo acesso à justiça neste trabalho é entendido, em linha gerais, como acesso às instâncias sociais legitimadas na administração de conflitos; enfim, o acesso aos tribunais, à prestação de serviços jurisdicionais por parte do Estado. As Formas de controle sobre o trabalho escravo são apresentadas em dois capítulos e esta distinção se dá por imposição do próprio campo – a cisão entre cível e penal é, digamos, uma classificação nativa. No Capítulo 3 são descritas as estratégias de controle social cíveis, as atuações do Grupo Móvel, da Secretaria de Inspeção ao Trabalho do MTE, do Ministério da Justiça e Ministério Público do Trabalho. Já no Capítulo. 19.

(20) Parte I. Contextualização. “Muitos dos white-collar crimes são cometidos por corporações. E ainda não foi inventado nenhum método efetivo de lidar com corporações através do direito penal. Não é possível condenar uma corporação à morte, ou açoitála, ou mandá-la para prisão, a não ser em um sentido figurado.” B Edwin H. Sutherland (Crime and Business, p. 114). 20.

(21) Capítulo I. Crime, ilegalismo e mercado: controle social de elites nos estudos criminológicos Este capítulo foi fomentado pelos debates ocorridos durante o GT jurídico da última ANPOCS e, sobretudo, pelo seguinte comentário jocoso de uma das participantes a respeito do pioneirismo de alguns dos trabalhos: “O João também, de alguma forma, se beneficia porque a gente diz o que a gente quer; os outros que venham depois e critiquem o que a gente escreveu”. Isto me fez pensar bastante: se por um lado o trabalho é pioneiro ao propor uma análise comparativa dos diferentes tratamentos jurídicos dado ao trabalho escravo, por outro ele compartilha de um mesmo objeto em relação aos estudos sociológicos e criminológicos clássicos sobre criminalidade econômica. Creio que a associação entre o meu trabalho e tais estudos não é somente sugerida, uma reminiscência de que não se trata de nenhuma novidade. Na verdade é muito mais do que isso, a presente pesquisa se vincula diretamente com os estudos sobre white-collar crime2, criminalité des puissants, criminalité d’afaires, corporate crimes, elite deviance, etc. A referência clássica destes estudos é sem dúvida os trabalhos de Edwin Hardin Sutherland sobre white-collar crime. Deve-se a Sutherland a introdução deste campo de pesquisa nos estudos sociológicos e criminológicos ao longo dos 1940’s. Em seus estudos iniciais, sua preocupação era muito mais confrontar as teorias criminológicas hegemônicas que associavam crime à pobreza3. No entanto, como salienta Vincenzo. 2. Não traduzo o termo white-collar crime porque a expressão usada, crime do colarinho branco, não é seu equivalente. Tratam-se de categorias distintas e para evitar equívocos optei pelo uso do original. 3. “As estatísticas criminais mostram sem equívocos que o crime, como popularmente concebido e oficialmente medido, tem uma alta incidência nas classes mais baixas e uma baixa incidência nas classes mais altas (...). Delas, se derivaram teorias gerais sobre o comportamento criminal. Estas teorias consideram que uma vez que o crime está concentrado nas classes mais baixas classe, ele é causado pela pobreza ou por de características pessoais e sociais que acreditam ser estatisticamente associadas a ela, incluindo desvios psicopáticos de debilidade mental, vizinhanças favelizadas, e ‘famílias deterioradas’. (...) As explicações convencionais são inválidas principalmente porque elas são derivadas de amostras enviesadas.” (Sutherland, 1940, p. 1-2)C. 21.

(22) Ruggiero, Sutherland foi muito otimista neste sentido4; apesar de suas contundentes criticas, seus escritos fizeram bodas de ouro ao som de “janelas quebradas” ecoando pelos cantos. Mas o fato é que para questionar o par crime/pobreza ele precisou trazer para os estudos sobre comportamento criminal certos eventos que até então eram deixados de lado. Da iluminação desta zona cinzenta vem à tona o conceito de whitecollar crime, trilhando o caminho para esta área de pesquisa. “White-collar crime é mesmo crime. Ele é chamado de crime aqui no sentido de trazê-lo para dentro do escopo da criminologia, o que é justificado porque se trata de uma violação à lei criminal. A questão crucial nesta análise é o critério da violação à lei criminal. A condenação penal, que é por vezes sugerida como o critério, não é adequada porque uma grande parcela daqueles que cometem crimes não são condenadas pela justiça criminal” (Sutherland, 1940, p. 5). E “Um white-collar crime é definido como uma violação à lei criminal por uma pessoa de classe socioeconômica alta em curso de suas atividades ocupacionais. A classe socioeconômica alta é definida não só por sua riqueza, mas também por sua respeitabilidade e prestígio na sociedade em geral. (...) Esta definição é arbitrária e não muito precisa. Não há necessidade de ser precisa (...). O propósito do conceito de whitecollar crime é chamar atenção para uma vasta área do comportamento criminal que geralmente é negligenciada como comportamento criminal.” (Sutherland, 1941, p. 112)F. Além da crítica às teorias hegemônicas, a idéia de white-collar crime traz consigo algumas contribuições bastante interessantes. Primeiro, ele chama a atenção para as diferentes manifestações que este tipo de criminalidade pode apresentar, associando-a a violações a leis penais que ocorrem a partir de práticas espúrias em diversas áreas profissionais, sobretudo: negócios, política, e medicina (Sutherland, 1940, p. 2 e ss.). Segundo, o fenômeno da relativa invisibilidade dos registros, principalmente nas estatísticas criminais5, associada a uma espécie de vitimização difusa não percebida – por exemplo, fraudes no mercado de ações. E finalmente, o mais genial dele nisto tudo: “A mais geral, entretanto não universal, característica do whitecollar crime é a violação da confiança.” (Sutherland, 1941, p. 1)G Bingo! Sutherland foi bastante perspicaz em perceber as condições e implicações institucionais na qual este tipo de criminalidade se manifesta: 4 “Sutherland (1940: 4) conseguiu, como ele esperava, ‘trazer os white-collar crimes para dentro do escopo da criminologia’, mas talvez ele tenha sido um pouco otimista sobre a dissolução da correlação entre crime e ‘as condições psicopáticas e sociopáticas associadas à pobreza’. Ele subestimou a poderosa pulsão que conduz a maioria dos criminológos para as classes mais baixas, as quais eles adotam, um pouco filantropicamente e paternalisticamente, como as únicas classes que merecem atenção.” (Ruggiero, 2002, p.177)D. 22.

(23) “O prejuízo financeiro dos white-collar crimes, grande como ele é, é menos importante do que os danos às relações sociais. Os white-collar crimes violam confiança e , com isso, criam desconfiança. Outros crimes produzem relativamente poucos efeitos em instituições sociais ou na organização social.” (Sutherland, 1940, p. 5)I. Este tipo de criminalidade se fundamenta essencialmente na confiança, e isto não é pouca coisa. Ao contrário da criminalidade de rua, aqui o grande “q” da questão se localiza nas relações impessoais (faceless commitments). Os white-collar crimes possuem a capacidade de colocar em cheque as cadeias de confiança mútua, tão essenciais para a manutenção dos chamados sistemas peritos (Giddens, 1991, p. 84 e ss; p. 91). Os recentes casos de fraudes na Enron e na WorldCom ilustram bem esta situação. Por mais estranho que possa parecer, isto também se relaciona com a escravidão contemporânea – fundada no aliciamento de trabalhadores a partir de falsas promessas e ‘aprisionamento’ por dívida, retenção de documentos etc. Em contexto correlato, Margarida Maria de Moura, fala sobre o sentimento de traição do trabalhador rural no Vale do Jequitinhonha, quando vê as antigas relações de agrado, trato e favor serem substituídas pela mediação escrita dos contratos de trabalho. E destaca: “A invasão e a expulsão da terra são atos separadores dos vínculos com a terra e o trabalho entre lavradores e fazendeiros, capazes de pagar e fazer evaporar uma etiqueta de convivência sertaneja que pode incluir: fazer a mesma festa, ir à mesma igreja, entrar em relações de compadrio e amizade.” (Molina et alli., 2002, p. 138). A lógica do conceito de white-collar crime e do embate frente às teorias crime/pobreza é a base do famoso dark number, a “cifra negra”, que em resumo afirma que os crimes registrados são sempre em menor número do que os eventos crimináveis ocorridos (Sutherland: 1985); sendo isto ainda ressaltado pelo tipo do registro, e inserção, que tais eventos possuem nos sistemas de controle6. Apesar da construção interessante, há dois problemas nestas considerações, e que são justamente as principais críticas às abordagens de Sutherland. 5. “O predomínio do white-collar crime pode ser prontamente apreciado por qualquer um que leia alguns dos atuais relatórios anuais da Comissão Federal de Comércio e outras comissões que têm responsabilidade na regulação de negócios.” (Sutherland, 1941, p. 113) H 6. “Eles diferem principalmente na implementação das leis criminais que se aplicam a eles. Os crimes das classes baixas são manejados por policiais, promotores, e juízes, com sanções penais na forma de multas, aprisionamento e morte. Os crimes das classes mais altas não resultam em nenhuma ação oficial em geral, ou então resultam em processos por danos em tribunais civis ou são manejados por inspetores, e por conselhos administrativos ou comissões com sanções penais na forma de advertências, ordens de suspensão e renúncia, ocasionalmente na perda de uma licença, e somente em casos extremos através de multas ou sentenças de aprisionamento.” (Sutherland, 1940, p. 7-8)J. 23.

(24) Primeiro, Sutherland propõe a extensão da categoria crime a outras agências judiciais que não a justiça criminal, o que de fato existe nos EUA7, além de ser uma posição que ele defende muito bem por sinal. E não devemos nos esquecer que sua preocupação é com o par crime e pobreza. Neste sentido, ele afirma exatamente o seguinte: “Outras agências além dos tribunais criminais devem ser incluídas, porque o tribunal criminal não é a única agência que toma decisões oficiais em relação às violações da lei penal.” (Sutherland, 1940, p. 6)K. Ele argumenta que o mesmo ocorre nas análises sobre delinqüência juvenil (‘crimes’ que também são administrados fora da justiça criminal)8, leia-se “teorias crime/pobreza”, e que no caso do white-collar crime tais agências responsáveis são administrativas e civis9. Se, por um lado, já nos 1940’s ele menciona claramente a gestão diferencial de ilegalismos, como é possível perceber na supracitada epígrafe e em seu trabalho empírico10; por outro lado, praticamente tudo vira crime: é violação a lei penal, tem pena, então é crime. Este é o problema dele, ele mistura as categorias. Sutherland acha que mariola e bananada são a mesma coisa, mas se esquece que nem sempre a mariola é de banana e que muitas vezes a bananada não é mariola. Ele sabia muito bem que tal ponto era controverso, tanto que se defendia acusando seus adversários de fazerem o mesmo (delinqüência juvenil) e afirmando que em alguns estados dos EUA a justiça criminal funcionava sem a aplicação de regras processuais associadas ao penal (Sutherland, 1945, p.135 e ss.). Enfim, o fato é que existe nos escritos de Sutherland 7. Vide os trabalhos de Jack Katz (1979) e Susan Shapiro (1985, 1987 e 1990). Ambos lidam com determinadas situações de fraudes onde a lei penal é administrada fora da justiça criminal. No contexto dos casos estudados no Brasil há um movimento análogo por parte das associações de juízes e promotores do trabalho que defendem a posição de que os crimes associados ao trabalho escravo devem ser administrados pela Justiça do Trabalho – o que não ocorre hoje. 8. “White-collar crime é semelhante à delinqüência juvenil no que diz respeito à implementação diferencial da lei. Em ambos os casos os procedimentos da justiça criminal são modificados na forma de que o estigma de crime não seja atribuído aos ofensores.” (Sutherland, 1945, p. 138) L. 9. “White-collar crimes são mesmo crime. Se não é uma violação da lei criminal, ele não é white-collar crime ou qualquer outro tipo de crime. Mas diferenças em procedimentos administrativos não justificam a designação deste comportamento como algo diferente de crime.” (Sutherland, 1941, p. 115) M. 10. Em resumo: “(...)foi feita uma análise das decisões de tribunais e comissões contra as setenta maiores corporações industriais e mercantis dos Estados Unidos a partir de quatro tipos de leis, a saber: antitruste, propaganda enganosa, relações trabalhistas nacionais, infração de patentes, direito autorais e marcas registradas [todas violações criminais]. Isto resultou no descobrimento de que tinham sido tomadas 547 decisões adversas com uma média de 7,8 decisões por corporação e com cada corporação tendo pelo menos uma delas. Embora todos estas fossem decisões onde o comportamento era ilegal, só 49 ou 9 por cento do total foram tomadas através de justiça criminal e eram ipso facto decisões onde o comportamento era criminal.” (Sutherland, 1945, p. 132)N No entanto, após ele estender a análise do tal comportamento criminal, trabalhando como crime os casos de violações à lei penal administrados em outros sistemas. 24.

(25) uma certa confusão sobre o que é crime; o que pode ser resolvido com a utilização do termo ilegalismo11 (Foucault: 1999a; Acosta: 2005; e outros autores) para caracterizar as violações em geral e com os operadores analíticos propostos por Misse (1999; 2004) – tema que é abordado com maiores detalhes no Capítulo 4. O segundo problema é a sua explicação para este fenômeno: a diferença entre as posições sociais dos transgressores (vide nota 6). Consideração esta que além de ser simplista e reducionista demais, focaliza a rotulação de criminal nos criminosos e não nos ‘crimes’ – ou melhor, nos eventos, nos atos. Susan Shapiro corrobora esta posição12 brincando com o termo collar, “Collaring the crime, not the criminals”, e sugerindo a liberação do conceito a partir da retomada de um ponto presente no próprio trabalho de Sutherland que já foi salientado acima: a noção de “white-collar crime como uma violação de confiança” (Shapiro, 1990, p.137) Q. Em relação aos estudos mais contemporâneos, devem ser ressaltados os trabalhos de Susan Shapiro sobre fraude acionária (stock fraud) nos EUA, e de Vincenzo Ruggiero em relação às diversas associações entre mercado e criminalidade na Europa de hoje, incluindo o tráfico de seres humanos. Alguns dos trabalhos são mais próximos da linha que buscamos adotar sobre as administrações dos conflitos associados à escravidão contemporânea no Brasil, como é o caso de Ruggiero. Outros, apesar de lidarem com temas completamente distintos, abordam objetos com o mesmo problema: como se dá a gestão jurídica de ilegalismos econômicos que em geral são polissêmicos a luz do Direito? Shapiro retoma a problemática dos white-collar crimes em fins dos anos 70 em sua pesquisa sobre a atuação das Comissões de Câmbio e Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC)13 na regulação do mercado de capitais. “A agência pode utilizar mecanismos de execução da lei (enforcement) civis e criminais ao mesmo tempo, assim como, os administrativos também. Enquanto as disposições criminais são geralmente apropriadas, elas raramente são prosseguidas até às fases de sentença. De cada 100 suspeitos investigados pela SEC, 93 cometeram violações de disposições sobre valores mobiliários que levam a penalidades criminais. A ação judiciária é iniciada contra 46 deles, mas só 11 são selecionados para tratamento criminal. Seis destes são indiciados; 5 serão condenados 5 e 3 sentenciados à prisão. normativos ele chega a seguinte conclusão: “Esta conclusão, nesta parte semântica da discussão, é que 473 das 547 decisões são decisões onde crimes estavam sendo cometidos.” (Sutherland, 1945, p. 135)O. 11. Em algumas traduções o termo de Foucault aparece como ilegalidade, opto pela fidelidade ao original.. 12. “(...)eles confundem atos com atores, normas com transgressores, o modus operandi com o operador.” (Shapiro 1990, p. 347)P. 13. United States Securities and Exchange Commissions. 25.

(26) Assim, na execução da lei (enforcement) pela Comissão de Câmbio e Valores Mobiliários, a persecução criminal representa freqüentemente um caminho não utilizado.” (Shapiro, 1985, p. 182)R. Em resumo ocorre que quando existe uma suspeita de fraude, é realizada uma breve averiguação, seguida de uma investigação formal, se for o caso. Concluída a investigação, é preparado um memorando com o detalhamento do caso e encaminham para os agentes responsáveis pela decisão de ajuizar ações ou não. São quatro as opções a partir de então: 1) não promover ações, 2) ações administrativas, 3) ações civis, e 4) ações criminais, sendo que no caso desta última é obrigatório passar antes pelos US Attorneys – instituição responsável pelo ajuizamento de denúncias (Shapiro, 1985, p. 184 e ss.). E no que diz respeito à administração diferencial dos ilegalismos, ela elaborou uma tabela e um gráfico que são muito ilustrativos sobre a prioridade para o não penal quando há outras possibilidades de controle.. (Shapiro, 1985, p. 191). 26.

(27) (Shapiro, 1985, p. 206). Já Ruggiero desenvolve os seus estudos no contexto da globalização, fazendo associações entre crime e mercado que se desdobram em subtemas relacionados ao crime organizado, mercado informal, crimes transnacionais14, economias sujas etc., com o diferencial de se preocupar com as vinculações do lícito com o ilícito e institucionalidades em jogo15. Mas sem dúvida onde Ruggiero mais auxilia a. 14. “Este termo, que abraçou todos os empreendimentos ilegais trans-fronteiriços, foi, contudo, ligeiramente inclinado, como sendo principalmente aplicado às práticas ilícitas adotadas por companhias multinacionais. Em resumo, crime transnacional sugere a conduta ilegítima de atores e grupos poderosos, cujos recursos políticos e econômicos os protegeram do monitoramento público e da regulamentação institucional.” (Ruggiero, 2002, p.178-179)S. 15. “White-collar crime é caracterizado através dos laços fracos com a sociedade civil e da alta integração com as instituições. A inabilidade dos criminosos de white-collar em ‘compartilhar’ os benefícios de sua ilegalidade com as comunidades ou seções de clientes deixam-nos distante da sociedade, enquanto a proximidade deles com os empregadores institucionais torna a conduta deles quase não detectável. Na variante conhecida como crime corporativo, é freqüentemente o envolvimento sobreposto entre a economia e. 27.

(28) contextualizar esta dissertação é em sua pesquisa sobre escravidão contemporânea na Europa. Geralmente os dados apresentados internacionalmente sobre o escravismo atual classificam este fenômeno como algo associado aos países em desenvolvimento. No entanto, Ruggiero chama a atenção para o quadro europeu pós-cortina de ferro16, mostrando que isto também ocorre em países desenvolvidos. “Exemplos são achados pela Europa, onde a indústria têxtil e a construção civil se beneficiam do trafico de seres humanos. Os empresários não são cobrados pelo serviço de contrabando provido a eles pelos traficantes, pois normalmente são esses contrabandeados que pagam. Refugiados do Irã, Iraque, Paquistão e Afeganistão freqüentemente chegam na ilha de Gotland, na Suécia, e a viagem custa mais do que US$ 1000. Eles embarcam em barcos oriundos da Estônia ou Latvia, onde os traficantes agem como recrutadores em nome de empresários.” (Ruggiero, 1997a, p. 235)V 17. É muito curiosa a maneira na qual é descrito o tráfico de seres humanos na Europa, pois é exatamente da mesma forma que ocorre no Brasil – guardada as devidas proporções, é claro. O primeiro caso se refere a fluxos internacionais e o segundo a migrações regionais, porém em um país de dimensão continental e com peculiaridades regionais extremas. Pessoas são aliciadas com propostas de trabalho no exterior ou procuram agências com esta finalidade18, a partir de então segue uma dinâmica de escravidão por dívida que tem no início já no transporte. Além do cativeiro por dívida, há um outro dado que não ocorre na migração interna (o caso estudado no Brasil): o tornar-se ilegal e/ou por ser ilegal ser refém do medo de deportação19 – o controle também é feito através destas ameaças e da retenção de documentos como passaporte e permissão de trabalho (Ruggiero, 1997a, p. 238). as instituições políticas que geram um ambiente criminogênico. Criminosos de white-collar e corporativo normalmente operam em mercados legítimos com meios e técnicas ilegítimos.” (Ruggiero, 2002, p.187)T 16. “O tráfico de seres humanos deveria ser analisado levando-se em conta um pano de fundo caracterizado pelo crescimento de setores ocultos dentro das economias Ocidentais. Estes setores incluem uma variedade de atividades legais, semi-legais e francamente ilegais que requerem os esforços empresariais de vários atores, incluindo algumas formas de crime organizado.” (Ruggiero, 1997b, p. 29)U. 17. Na seqüência ele menciona casos de chineses na Itália e Inglaterra, albaneses na Itália etc.. 18. “Embora legalmente registradas, estas agências de recrutamento administram valores oriundos de uma escravidão por dívida daqueles que buscam trabalho em países desenvolvidos. A ilegalidade do negócio deles também se estende da taxa de recrutamento, que é de longe mais alta do que o oficialmente declarado.” (Ruggiero, 1997a, p. 236)W. 19. “Antes que eles possam começar a enviar dinheiro às suas famílias, o que é o propósito principal do trabalho deles no exterior, eles têm que amortizar estas dívidas. Na Inglaterra, a condição de escravo destes trabalhadores domésticos também é aparente na decisão que indica que, na entrada deles no país, o nome do empregador deve ser estampado em seus passaportes. Um folheto emitido pela British Home Office [a imigração inglesa] assinala: ‘O selo colocado em seu passaporte pelo Oficial de Imigração registrará o nome de seu empregador. Você não pode trabalhar para ninguém além dele’.” (Ruggiero, 1997a, p. 236-237)X. 28.

(29) As áreas de atuação destes imigrantes, legais ou não, são as mais diversas: “Em muitos países europeus os imigrantes ilegais são empregados em fábricas ou empresas noturnas relativamente grandes que operam em uma variedade de setores econômicos. Estes setores incluem em particular o alimentício, o têxtil e a construção civil. Os traficantes podem se limitar à provisão de serviços de contrabando ou podem também providenciar endereços de prováveis empregadores nestas indústrias.” (Ruggiero, 1997b, p. 29)Y “Alguns destes negócios fazem parte do mercado paralelo, da economia informal, e são subsidiárias de companhias industriais maiores que operam no setor industrial. Outros fazem parte do setor de agricultura, que necessita de trabalhadores sazonais não registrados.” (Ruggiero, 1997a, p. 236)Z. Estes trabalhadores estão presentes no urbano, no rural, nas casas (vide nota 19), nas fábricas, nas ruas, em todo lugar, vivendo em condições precárias20 e sem qualquer reconhecimento senão pelos seus próprios, reproduzindo um círculo vicioso que muitas vezes fazem com eles se encapsulem ainda mais em pequenas redes de sociabilidade. Apesar de Ruggiero descrever esta situação a partir da Europa, não é nenhum exagero supor que isto também ocorre em diversos locais do mundo. Recentemente foi noticiada em vários jornais a situação de imigrantes bolivianos ilegais na cidade de São Paulo. No entanto, nem sempre isto é percebido; estas novas velhas dinâmicas do trabalho21 são caracterizadas, sobretudo, pela invisibilidade22 – o que requer técnicas de investigação mais elaboradas, seja por parte das instituições de controle ou por pesquisadores; e que. 20. “Em algumas fábricas invadidas pela polícia foram encontrados trabalhadores alojados nos mesmos locais onde eles trabalhavam com uma vigilância quase militar. Com o objetivo de pagar a soma pelo transporte deles para a Europa, muitos destes imigrantes foram mantidos em condições coercitivas, e eram castigados caso atrasassem com os pagamentos.” (Ruggiero, 1997b, p. 29-30)AA. 21. Há uma controvérsia nos estudos sobre escravidão contemporânea que se relaciona com uma discussão de base marxista ortodoxa sobre modos de produção. O nó da questão é se trabalho escravo é um instrumento para o desenvolvimento econômico ou se é com a sua abolição que o capitalismo vai prosperar etc. Isto é algo bastante equivocado, até mesmo em termos de Marx. Uma abordagem da escravidão contemporânea a partir de um paradigma marxiano apontaria o seguinte quadro: é uma relação de produção pautada na superexploração da força de trabalho (FT), esta exploração é de tal ordem que a remuneração da força de trabalho não é suficiente nem para sua manutenção (vide o sistema da escravidão por dívida, onde o endividamento é sucessivo e se dá indefinidamente), quem dirá para sua reprodução. Certamente há uma confusão entre um regime essencialmente escravista e a escravidão contemporânea, este se trata de uma relação de produção capitalista tão nefasta que aniquila completamente a força de trabalho – tal ciclo do capital só se mantém devido à reposição da força de trabalho via exército industrial de reserva: sempre há novos trabalhadores vindos da África e Oeste Europeu. É uma dinâmica muito parecida com a descrita por Engels em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. 22. “Em resumo, o tráfico de seres humanos dever ser analisado dentro de uma estrutura de oferta e demanda. Enquanto que os migrantes ilegais são empregados na economia oculta, inclusive na indústria do sexo, eles respondem a uma demanda específica de países economicamente desenvolvidos. A invisibilidade caracteriza a condição destes migrantes, uma invisibilidade que informa ao mesmo tempo o modo no qual eles migram e a maneira na qual eles são obrigados a trabalhar e a morar no país de destino.” (Ruggiero, 2000, p.194)AB. 29.

(30) de forma alguma devem se restringir à justiça criminal23. Nos Estados Unidos há verdadeiros universos paralelos compostos por imigrantes ilegais, comunidades inteiras que ficam invisíveis durante anos, trabalhando aqui e ali na fronteira entre a legalidade e a ilegalidade – as leis atuais de imigração abrem alguma brecha para a legalização destas populações somente após dez anos de residência; o que, aliás, é surreal. Esta gama variada de ilegalismos de ordem econômica é algo cada vez mais manifesto nas sociedades pós-industriais e de modernização tardia. O controle social de elites, ou para ser mais preciso e não cair no mesmo engano de Sutherland, controlar socialmente os ilegalismos do mercado é a tarefa a ser realizada. Não nos enganemos em relação aos conflitos: ainda bem que eles existem e que podem ser administrados; o que não é possível fazer é termos a pretensão de “acabar” com os conflitos, por meio de sanções de um normativismo punitivo e sem efeitos de controle, expropriando-os dos mais diretamente interessados: as partes envolvidas (cf. Christie: 1977).. “Estamos voltando agora à formulação que variações no crime espelham variações no controle social. As formas de controle social alimentadas pela globalização deixam hierarquias centralmente-estruturadas em redundância, como as relações de poder tendem em não mais estarem incrustadas em organizações e instituições centralizadas, mas em redes dispersas nas quais as instruções são processadas. (…) Negócios criminosos respondem às novas formas de controle social e a reorganização da soberania a partir do estabelecimento de suas próprias redes que evitam os regulamentos nacionais.” (Ruggiero, 2002, p.181)AD. Controle social e punição são coisas distintas. E o que todas as pesquisas supracitadas apontam é que o penal nem sempre é a solução mais adequada para a administração dos conflitos associados aos white-collar crimes. Nos capítulos a seguir veremos como é o tratamento jurídico dado ao trabalho escravo, conflitos bradados como crimes e administrados em diferentes sistemas normativos.. 23. “Nestas circunstâncias, parece-nos interessante elaborar estratégias de pesquisa de tentarão abordar a criminalidade dos negócios (e o seu contexto político-econômico) da maneira mais ampla possível, a saber : estudo detalhado de material proveniente de fontes abertas de origem tão variada como possível (dados econômicos, releases de imprensa, trabalhos parlamentares etc.); estudo etnográfico no campo; estudo de decisões judiciárias; estudo dos efeitos do trabalho legislativo; etc.” (Ruggiero in: Mucchielli & Robert, 2002, p. 231).AC. 30.

(31) Capítulo II. Panorama sobre escravidão contemporânea no Brasil Embora a escravidão tenha sido abolida oficialmente em 1888, relações de trabalho análogas à condição de escravo continuaram existindo em nosso país, sobretudo no meio rural. Isto não é nenhuma novidade em dois sentidos: 1) a realidade não necessariamente se adequa às normas e 2) há um consenso na historiografia sobre a substituição da mão de obra escrava por imigrantes e/ou outros trabalhadores livres que relata condições de trabalho tão degradantes quanto a dos escravos. Enfim, sejamos claros, sempre existiram inúmeras formas de trabalho degradante no Brasil, o que não significa que nosso passado colonial e imperial deva ser reproduzido e legitimado nos dias de hoje. Abolido o escravismo no final do Império, restou à República criar os instrumentos jurídicos e políticas públicas necessários para controlar socialmente estes eventos associados à exploração desumana dos trabalhadores. É sempre bom lembrar que somente em 1964, com o “Estatuto da Terra” (regulamentado no governo Castello Branco), que a legislação trabalhista dos anos trinta (Getúlio Vargas) foi juridicamente estendida ao campo. E mais, ocorre que, na campanha de 1950 Getúlio prometera tal feito. Porém, o mesmo não ocorreu de imediato e quando o projeto de estender os direitos trabalhistas ao campo foi votado no governo de JK, em 1957, ele foi rejeitado pelo Congresso terminantemente. O principal instrumento normativo era o artigo 149 do Código Penal de 1940, que dizia “Reduzir alguém à condição análoga a de escravo: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos”; o que provavelmente não era sequer aplicado – vide o estudo clássico de Victor Nunes Leal (1997) sobre a estrutura de poder no meio rural (coronelismo). Ou seja, os instrumentos efetivos de controle são recentes e, portanto, a “ilegalidade” também o é. É a partir de uma ação planejada, então, que passaram a surgir alguns casos e desde de 196924 vêm sendo documentados diferentes formas contemporâneas de trabalho escravo, 24. Segundo o antropólogo Ricardo Rezende Figueira, que integrou o corpo eclesiástico de Conceição do Araguaia (sudeste do Pará) entre 1977 e 1996, o primeiro registro da Comissão Pastoral da Terra (CPT). 31.

(32) sobretudo da chamada escravidão por dívida. Apesar de prática ilegal sob diversos aspectos (civil, trabalhista, administrativo e criminal)25 e de usualmente denunciada por atores da sociedade civil (sobretudo por integrantes da Comissão Pastoral da Terra), somente a partir de 1995 o Estado procurou intervir de forma mais sistemática sobre este ilegalismo. É evidente que existiam medidas anteriores: fiscalização, grupos de discussão no Legislativo e Executivo federal, programas do governo para erradicação do trabalho forçado (Pefor) e até mesmo ações criminais; mas é consenso entre os diversos atores envolvidos que o “combate” efetivo só ganhou mesmo força com a criação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF, atual Grupo Móvel de Fiscalização) em junho de 1995. Há uma longa discussão sobre as categorias usadas na classificação “deste tipo de trabalho” em um contexto pós-abolicionista – isto inclusive ocasiona algumas implicações jurídicas quando o debate em torno do par trabalho escravo/trabalho degradante ocupou a agenda em parte dos anos noventa. No entanto, de forma alguma é um anacronismo utilizar a categoria trabalho escravo para se remeter a tais situações. Além de ser tratar de uma categoria nativa, ela também é de uso corrente por outros atores em nossa sociedade. Ricardo Rezende faz um levantamento das categorias utilizadas na imprensa nos últimos trinta anos para caracterizar tais relações de trabalho e, como é possível verificar abaixo em seu quadro resumido com as categorias mais incidentes, sua constatação é indubitável: a categoria escravo/escravidão é hegemônica.. Categorias utilizadas na imprensa brasileira, entre 1972 e 2002, para classificar o tipo de trabalho sob coerção Categorias 1972-1998 1999-2002 Escravo/escravidão 83,38% 79,81% Escravidão branca 3,25% — Semi-escravo 2,60% 1,12% Análogo a escravo 1,95% 5,60% Assemelhado a escravo 1,49% 1,49% Trabalho degradante 2,28% — Trabalho forçado 4,88% 4,12% In: FIGUEIRA, 2004, p. 434. (adaptado: categorias com valores médios superiores a 1%). deste tipo de situação remete ao ano de 1969 – mais especificamente ao caso da fazenda “Reunidas Taine-Rekan” de propriedade do Grupo Bradesco e localizada no município de Santana do Araguaia, havendo ainda registros de reincidência nos anos de 73, 74, 86 e 87 (Figueira, 2004, p. 415 e ss.). 25. O chamado crime de trabalho escravo é além de violação ao Código Penal, violações às leis trabalhistas, administrativas e civis, podendo ser gerido, portanto, em diferentes sistemas normativos. O criminólogo Fernando Acosta desenvolve estudos interessantes sobre a gestão diferencial de ilegalismos e a polissemia jurídica presente em certos crimes, são os chamados “ilegalismos privilegiados” (Acosta: 1988, 2005) – o que também pode ser percebido nos trabalhos de Susan Shapiro (vide capítulo 1). Retornarei a este no Capítulo 5.. 32.

Referências

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