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DO CORPO DA CIDADE AO CORPO DO POEMA: DIÁLOGOS ENTRE MANUEL BANDEIRA E DUARTE GALVÃO

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Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, V.13, n. 2, pp. 143-155, agosto/dez. 2015. ISSN: 2176-381X DO CORPO DA CIDADE AO CORPO DO POEMA:

DIÁLOGOS ENTRE MANUEL BANDEIRA E DUARTE GALVÃO

FROM THE BODY OF THE CITY TO THE BODY OF THE POEM: DIALOGUES BETWEEN MANUEL BANDEIRA AND DUARTE GALVÃO

Marlon Augusto Barbosa

Mestrando F. Letras da UFRJ, CAPES

http://dx.doi.org/10.17074/2176-381X.2015v13n2p143

RESUMO: Neste ensaio, buscaremos estabelecer uma leitura cerrada dos poemas “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, datado de 1925 e publicado em Libertinagem, e o “Poema à cidade”, de Duarte Galvão – heterônimo guerrilheiro do poeta moçambicano Virgílio de Lemos –, datado de 1954 e publicado na breve antologia Eroticus Moçambicanus. A partir do diálogo entre esses dois poemas, investigaremos os processos de escrita que evocam as cidades e os procedimentos de linguagem presentes nos dois textos.

PALAVRAS-CHAVE:Manuel Bandeira; Duarte Galvão; cidade; memória.

ABSTRACT: In this essay, we aim at establishing a close reading of the poems "Evocação do Recife", written in 1925 by Manuel Bandeira and published in Libertinagem, and “Poema à cidade”, written by Duarte Galvão – heteronym used by the Mozambican poet Virgílio de Lemos while he was in the guerrilla – in 1954 and published in the brief anthology Eroticus Moçambicanus. From the dialogue between these two poems, we’ll scrutinize both how they evoke the cities and the linguistic procedures they put in practice.

KEYWORDS: Manuel Bandeira; Duarte Galvão; city; memory.

Evocar uma cidade no corpo do poema, ou, desentranhar o poema do corpo da cidade. Este talvez seja o projeto ao qual se lançaram e ainda se lançam inúmeros poetas como se a eles fosse dado o papel de testemunho: aquele testemunho que compreende as coisas como uma espécie de exercício crítico de ler e escrever as cidades imaginadas e até mesmo as cidades

imaginárias. É o testemunho poético desses escritores – que interrogam e

evocam as cidades, sobretudo, através das inúmeras narrativas que as habitam– que nos mostrará uma cidade diferente daquela que já conhecemos.

Será a partir da construção ou reconstrução arruinada de duas cidades, Recife e Lourenço Marques, que Manuel Bandeira e Duarte Galvão, heterônimo guerrilheiro do poeta moçambicano Virgílio de Lemos, vão explorar uma espécie de exigência comunitária, que, se quisermos,pode abranger qualquer domínio – social, político, filosófico, literário. Uma exigência comunitária que supera o domínio do que convencionalmente chamamos de comunidade para,

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barthesianamente, se tornar um estivemos juntos, vivemos junto sou estaremos juntos. Viver que ultrapassa tempo e espaço e se articula através de uma escrita mergulhada no lembrar, escrever, esquecer. É a partir deste processo de escrita que as cidades emergirão através de um mergulho na memória, e deste mergulho, o mar se fará em palavras, a cidade em corpo revisitado ou corpo a ser encontrado. Entre a inquietação e a nostalgia de uma cidade da infância e uma cidade metáfora do desejo ecoará a voz das cidades esquecidas.

Os poemas “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, datado de 1925

e publicado em Libertinagem, e “Poema à cidade”, de Duarte Galvão –

heterônimo de Virgílio de Lemos –, datado de 1954 e publicado na breve

antologia Eroticus moçambicanus, se tornam poemas chaves para o entendimento de alguns procedimentos poéticos. Sendo assim, este ensaio pretende ser uma travessia dos versos dos dois poemas, que também não deixa de ser uma travessia das cidades, uma tentativa de reler, rearticular, caminhar, atravessar os poemas para entender como esses dois autores constroem e desconstroem as cidades de Recife e Lourenço Marques e elaboram uma espécie de crônica da cidade, recriando-as ou arquitetando-as, cada um à sua maneira.

***

Na “Evocação do Recife” não há um comportamento rítmico constante e nem um procedimento continuo. Ao invés disso, o poema, fragmentado, desencaixado, cheio de cortes, se constrói a partir de uma alternância de ritmos e de vozes. No poema, há inúmeros fragmentos ligados unicamente por uma ideia que se refere a cidade de Recife. Cada estrofe é uma cena independente. Os versos são cortados, as cenas não são articuladas. Juntar os fragmentos não constrói uma totalidade. A partir de uma evocação se tenta reconstruir uma cidade que já não existe, uma cidade que sobrevive apenas na memória.

No “Poema à cidade”, de Duarte Galvão, por outro lado, não encontramos de forma imediata os mesmos processos utilizados por Manuel Bandeira. Se o primeiro poema evoca uma cidade que já não existe, o segundo dedica um poema a uma cidade que por existir da maneira que existe precisa ser reconstruída e repensada. Construído quase como um manifesto, o poema de Duarte Galvão será fragmentado, cortado e interrompido à sua maneira. E

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embora apresente apenas uma voz poética, através dessa voz outras vozes ecoaram. Por uma questão unicamente temporal, permitirei que o poema de Manuel Bandeira de 1925 evoque o poema de Duarte Galvão de 1954.

Eis o primeiro fragmento do poema “Evocação do Recife”: Recife

Não a Veneza americana

Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais Não o Recife dos Mascates

Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois – Recife das revoluções libertárias

Mas o Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada

Recife da minha infância

(BANDEIRA, 2007, p.132)

O poema se inicia com o verso “Recife” – verso de apenas uma palavra. Um retrato que cada leitor pode preencher da maneira que quiser.Tal como o poema de Bandeira, o de Duarte Galvão se inicia de modo semelhante.

Lourenço Marques! A tradição

Virá amanhã

No sangue das crianças.

(LEMOS, 1999, p. 93)

Nos poemas, duas cidades entram em cena: “Recife” e “Lourenço

Marques!”, dois versos, dois retratos.No “Prefácio interessantíssimo” de Paulicéia desvairada, Mário de Andrade afirma que esse tipo de construção se trata de um verso harmônico, isto é, sem sintaxe. O autor escreve:

(...), a palavra chama a atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e que não vem. (...) a primeira palavra, fica vibrando (...). Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia - o verso harmônico.

(ANDRADE, 1986, p. 27) Para Mario de Andrade, o verso harmônico seria contrário ao verso melódico – que, segundo o autor, apresentaria uma continuidade sintática. Os primeiros versos de “Evocação do Recife” e “Poema à cidade” são harmônicos: fragmentos à espera de uma frase que lhe façam adquirir uma característica. No poema de Bandeira, essa característica é dada a partir de uma sequência de negativas que nos aparece através de um processo anafórico: “Não a Veneza americana / Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais / Não o

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Recife dos Mascates / Nem mesmo o Recife que aprende a amar depois”(BANDEIRA, 2007, p.132).

A ideia de evocar uma imagem isentando-a de sua significação prévia

nos faz lembrar um processo fotográfico ou cinematográfico –isto é, a feitura a

partir de um processo de negativos. A imagem do Recife que ele quer evocar é trazida a partir de imagens “negativas”. O “Recife da minha infância” surge como um retrato a partir de um não retrato. Não se trata da cidade de Recife lembrada historicamente pela revolução dos mascates, por exemplo, mas de seu próprio Recife. O poema provoca assim uma tensão entre o lírico e o épico nesse fragmento. O evocar é épico, é coletivo. No entanto, retira-se a imagem histórica (coletiva) e a substitui pela imagem individual da cidade.

Quando considerarmos que também há uma evocação no poema de Duarte Galvão, podemos dizer que ela se dá de forma invertida: o hoje evoca a tradição (o passado) no amanhã (futuro). Será a partir de uma voz individual que o coletivo surgirá diante dos nossos olhos. Só se evoca a cidade que foi para que uma outra cidade, no futuro, nasça. Já não se trata também de um evocar épico grandioso, mas de um passado, assombrado pela perda, que precisa ser superado e ultrapassado, mas que, de maneira alguma, pode ser esquecido.

“Lourenço Marques!” – Não podemos esquecer que, embora possamos ler esse primeiro verso como uma evocação, ele é, antes disso, o nome da cidade para quem o poema está sendo dedicado. Os primeiros versos do poema nascem como uma promessa: a tradição que violentamente foi apagada vai renascer no sangue das crianças. Aqui não são apenas os homens que sofrem as perdas, mas as cidades também. Como evocada ou como destinatária, ela é aquela que não pode esquecer o seu passado. A cidade ganhará estatuto de “menina-mãe”, de corpo e de carne e será sobre este corpo que a violência, a exclusão do Regime Colonial e a negritude aparecerão nos versos de Duarte Galvão.

No livro Negritude: usos e sentidos, Kabengele Munanga afirma que os

objetivos do movimento conhecido como Negritude eram: “buscar o desafio

cultural do mundo negro (a identidade negra africana), protestar contra a ordem colonial, lutar pela emancipação de seus povos” (MUNANGA, 1988, p. 43). O autor explica que poetas, romancistas e intelectuais buscavam restituir o orgulho de ser negro, em uma tentativa de afirmar os valores de suas culturas, que

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estavam sendo sufocadas pela assimilação dos valores do colonizador. Essa explicação de Munanga nos ajuda a pensar na presença deste movimento no poema de Duarte Galvão; poeta guerrilheiro que denuncia o sistema colonial, suas formas de sustentação e suas marcas nas cidades, no corpo, e na alma do negro. Embora os primeiros versos do “Poema à cidade” não apresentem uma sequência de palavras em negativo como no poema de Manuel Bandeira, todo o sistema de negação da cultura do outro, do ser do outro está implicitamente sendo evocado.

Voltemos ao poema de Manuel Bandeira. Após a enumeração regida

pelas conjunções de negação, encontramos um “mas” adversativo: “Mas o

Recife sem história nem literatura”. Essa conjunção separa dois momentos no primeiro fragmento do poema: a imagem é evocada e isentada do que poderíamos chamar de “contaminação simbólica” até chegar ao Recife que se quer, “sem história nem literatura”. A conjunção marca a separação entre a cidade que se conhece e a cidade que se quer: a cidade da sua infância. É justamente aí que os dois poemas se entrecruzam, porque no “Poema à cidade”, também se almeja o fim de uma contaminação simbólica, seja ela política, social, racial. Ao contrário de “Evocação do Recife”, que faz um retrato a partir de um não retrato, o “Poema à cidade” constrói a sua cidade a partir dos retratos que não se deseja.

A passagem do primeiro fragmento do poema de Bandeira para o segundo marca uma mudança, um corte brusco: a apresentação/ abertura começa a dar lugar a um processo mnemônico de evocação da cidade. Percebemos,tanto no poema de Bandeira como no poema de Duarte Galvão – que inclusive é numerado em 6 fragmentos –, que a ideia do verso harmônico não se limita apenas à construção dos versos, mas também a construção de suas estrofes. Assim, os dois poemas apresentam uma estrutura extremamente harmônica, pois as estrofes não apresentam uma continuidade sintática.

Vejamos essa passagem no poema de Bandeira:

A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as [vidraças da casa de dona Aninha Viegas Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do

[nariz Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas

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Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, V.13, n. 2, pp. 143-155, agosto/dez. 2015. ISSN: 2176-381X Os meninos gritavam:

Coelho sai! Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam: Roseira dá-me uma rosa

Craveiro dá-me um botão (Dessas rosas muita rosa Terá morrido em botão...)

(BANDEIRA, 2007, p.132,133)

Nesse segundo fragmento, inicia-se um processo de rememoração: retratos da infância são trazidos à tona. Um Recife que não existe mais. Há uma mudança de ritmo do primeiro fragmento para o segundo. O trecho é extremamente narrativo. Há um recurso de montagem/ intertextualidade: “Coelho sai! / Não sai!”. Trechos de brincadeiras são transcritos para o poema. Vozes do passado são resgatadas. O poema se constrói em vários tons, com várias vozes. “Os meninos gritavam”, “as vozes das meninas politonavam”. As meninas e os meninos, sempre no plural. O poema é polifônico. As vozes do hoje e do ontem se entrecruzam. O processo de rememoração se inicia.Além desse trecho, o sujeito-lírico assume a posição/voz de criança e “narra”: “Uma pessoa grande dizia: / Fogo em Santo Antônio! / Outra contrariava: São José!”(BANDEIRA, 2007, p.133). Nesses versos, encontramos também a presença de outras vozes. A voz da pessoa grande que dizia “Fogo em Santo Antônio!” e a voz que contrariava “São José!”. As vozes são acopladas ao texto. Assim, ocorre uma mudança na voz do sujeito-lírico e no ritmo do poema. Outras vozes aparecem em cena.

No “Poema à cidade” outras vozes se politonam. Não são necessariamente as vozes do passado que o sujeito-lírico tenha escutado diretamente através de uma presença física, mas as vozes que ecoaram durante a sua vida: de poetas, de intelectuais, de políticos, de centenas de anônimos.

Êxtase do “coração” e prazer do corpo: como traduzir ou sentir o que essas palavras significaram em seu próprio tempo e o que elas podem ainda nos dizer?Na ressonância e no brado dessas vozes antigas – como encontramos no poema de José Craveirinha, “Quero ser Tambor” (CRAVEIRINHA, 1982, p.123-124), por exemplo – ou até mesmo nas vozes recentes, ouvimos os sons do

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poema. Ele não representa uma única voz, mas uma sanção de várias vozes. O poeta concede sua voz a uma voz que não é só a sua. Sua voz é a voz de uma nação ferida que está por renascer “no sangue das crianças”. Porque só assim, os poetas não voltarão a cantar em seus versos a mesma “canção de desespero, de humilhação e desalento”.

No verso “A distância as vozes macias das meninas politonavam” do poema de Bandeira, o “A distância” se torna duplo: podemos considerar que a cena das meninas acontece ao mesmo tempo que a cena dos meninos, mas distante espacialmente; ou que, simplesmente, a cena das meninas ocorre em outro tempo, mas que, através do processo de rememoração, ela rapidamente corta a cena dos meninos e se torna mais uma cena distante no tempo do eu-lírico. Podemos notar também que a distância temporal está marcada na resposta que o eu-lírico dá as vozes das meninas: (Dessas rosas muita rosa / Terá morrido em botão...). O de-agora conversa, responde e questiona o eu-de-outrora. O sujeito-lírico está “narrando” um Recife da infância. A evocação une no mínimo dois tempos: passados e presente. Distanciado dos fatos, ele pode criticar o ontem, conversar com o ontem, questionar o ontem.

Tanto em “Evocação do Recife” como em “Poema à cidade”, perpassa a morte, mas também o nascimento. Morte porque encontramos a imagem do que foi, do que não é mais e do que não há mais.Nascimento porque os poemas trazem à tona duas cidades: uma cidade nova resgatada pela memória e uma cidade que ainda está por se gerar. Lembrar, escrever, esquecer é uma promessa de ressurreição. Ressurgir uma nova cidade, construída, sobretudo, sobre o túmulo daqueles que já se foram seja pelas lutas ou pelo tempo: “João Albasini”, “Estácio Dias”, “José Albasini”, “Rui de Noronha”, “Aninha Viegas”, “Totônio Rodrigues”,“Meu avô”. Assim, a memória sempre tecerá um “véu cheio de nós” e as cidades e os seus habitantes sempre serão “carne do pensamento” – labirintos intermináveis de lutas, vitórias e travessias. As vozes anônimas que um dia disseram algo retornam, os mortos retornam. “O sangue dos que morrem / será no tempo / força de almas novas / de sensações mais puras / gentes mais nobres / onde distantes paralelos / se fundam / e exprimam só Amor” (LEMOS, 1999, p. 94).

O fragmento seguinte do poema de Bandeira é outra cena. “De repente”, o grito dos meninos e a voz macia das meninas é substituído por um sino ao

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longe. A construção desse verso é propositada. A representação gráfica é também uma representação do conteúdo:

De repente

nos longes da noite um sino

(BANDEIRA, 2007, p.133) O tempo e o espaço da página se fundem. Mallarmé foi um dos poetas que difundiu a relação entre o poema e a página e desenvolveu uma espécie de “partitura literária”, em que as palavras adquirem novo sentido conforme seu tamanho e sua topologia no papel. No poema de Bandeira, as palavras se distanciam como as lembranças que surgem e logo se desaparecem.

Rua da União...

Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância Rua do Sol

(Tenho medo que hoje se chame de Dr. Fulano de Tal) Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...

...onde se ia fumar escondido Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...

...onde se ia pescar escondido

(BANDEIRA, 2007, p. 133) O poeta revisita as ruas da cidade: “Rua da União...”, “Rua do Sol”, “Rua da Saudade”, “Rua da Aurora”. Todos esses versos são harmônicos assim como o primeiro verso do poema: “Recife”. As ruas são evocadas assim como a cidade. Nesse fragmento, o eu-lírico utiliza pela segunda vez o recurso dos parênteses. Percebe-se que quando encontramos os parênteses, há uma voz crítica/irônica. A partir do presente é possível criticar o passado. Nesse sentido, vemos que entre a infância e o hoje houve uma transformação urbana. “União”, “Sol”, “Saudade”, “Aurora” hoje podem, ou não, ter nomes de algum doutor. É engraçado pensar no nome dessas ruas. Nomes “felizes” que ilustram um tempo saudosista. É importante notar ainda que nos versos “...onde se ia fumar escondido” e “...onde se ia pescar escondido”, a infância e a adolescência são vistas como transgressoras da norma.Transgressão que ultrapassa a infância e desemboca em um discurso transgressor sobre a própria língua.

Capiberibe – Capibaribe

Lá longe o sertãozinho de Caxangá Banheiros de palha

Um dia eu vi uma moça nuinha no banho Fiquei parado o coração batendo

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Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, V.13, n. 2, pp. 143-155, agosto/dez. 2015. ISSN: 2176-381X Ela se riu

Foi o meu primeiro alumbramento (BANDEIRA, 2007, p. 133 e 134)

É interessante observar que esse poema dialoga com outro poema de Bandeira: “Evocação do Recife”, de 1925, traz em seus versos a mesma ideia que há no poema “Alumbramento” de 1913. Nesse sentido, Roland Barthes escreve em O prazer do Texto que

(...) qualquer texto é um novo tecido de citações passadas. Pedaços e códigos, modelos rítmicos, fragmentos de linguagem sociais, etc, passam através do texto e são redistribuídos dentro dele visto que sempre existe linguagem antes e em torno do texto” (BARTHES, 1987, p.49).

Dizer isso significa que o processo de intertextualidade não está apenas na citação do outro texto, mas também no ritmo que se adota do outro texto. O alumbramento é como uma iluminação, inspiração, epifania, compreensão: lugar onde a visão desentranha aos poucos o conhecimento. Em “Evocação do Recife”, o alumbramento é um senso iniciático: o primeiro ato consciente de erotismo do sujeito-lírico.

Ainda sobre o alumbramento, Haroldo de Campos em 1966 publicou no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo um texto intitulado "Bandeira, o desconstelizador" (CAMPOS, 1967, p. 99 - 105). Nesse texto, Haroldo de Campos explica que Bandeira desentranha “o ouro da ganga bruta”, isto é, desentranha dos restos, do cotidiano e do trivial o material para a sua poesia. Para Manuel Bandeira “a poesia não está mais no mundo da lua, mas na terra dos homens, no chão do cotidiano” (ARRIGUCCI, 1987, p. 11). E, nesse sentido, a palavra desconstelizar, assim como o desentranhar utilizado por David Arrigucci, recebe um sentido feliz. Desconstelizar, palavra regida pelo prefixo de negação “des”, é conquista do alto no baixo. Segundo Arrigucci “o poeta se afastava (...) da esfera elevada onde tradicionalmente se situava o poético; o nobre e raro produto do espírito de alguma forma, para ele agora, jaz entranhado no chão” (ARRIGUCCI JR, 1990, p. 92). O “Poema à cidade” também é um desentranhar. Do ventre do corpo da cidade sairá a sua própria salvação. O

desentranhar em Duarte Galvão não parte de uma passagem da “esfera

elevada” para o poético “entranhado no chão”, mas de um movimento que

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entranhas, do ventre materno; parir – a sua tradição e sua cultura quase perdida. O alumbramento, se quisermos, também é um nascimento, uma gestação.

Desentranhar é tirar das entranhas, tirar do íntimo ou do coração a “essência / não afetada / mas transfigurada” (LEMOS, 1999, p. 94), como nos diz o poema de Duarte Galvão. Essa ideia nos conduz à concepção da poesia como forma de conhecimento, como revelação ou como denuncia de um sentido oculto, ao qual só se pode chegar através de um movimento de penetração até a entranha do objeto: a emoção alta e sublime ou a gestação de uma ideia surgem em meio às palavras do dia a dia como uma iluminação, um alumbramento.

Esse mesmo diálogo entre “Evocação do Recife” e “Alumbramento”

ocorre entre “Evocação do Recife” e “Boi morto”. O poema “Boi morto” é posterior a “Evocação do Recife”. Portanto, Bandeira utilizou uma parte desse poema para criar outro: “Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu” (BANDEIRA, 2007, p.135). Neste trecho, também encontramos uma relação entre a escrita e a rapidez. “Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu”. A escrita sugere a rapidez na leitura. Não há pontuação no verso. Do primeiro alumbramento para a cheia há mais uma mudança de ritmo. Uma a aceleração se dá com a “Cheia! As cheias” – um acontecimento rápido e destruidor. É interessante observar que em meio à aceleração da cena, imagens começam a aparecer soltas e de repente somem. Após a rapidez desta estrofe, uma outra cena surge.

No poema de Bandeira também está presente a variação linguística: o nome do rio, Capiberibe, mais fechado, e Capibaribe, mais aberto. A variação surge como mais uma mudança de voz e de ritmo. Dois modos de se falar, dois

ritmos diferentes. Outra mini narrativa se inicia nesse fragmento. “Amendoim” e

“midubim”: variações da mesma palavra. A voz dos vendedores é uma voz dissonante: entre a norma e o fora da norma. O verso “Foi há muito tempo...” sugere um passado distante. As reticências indicam um pensamento ou uma ideia que ficou por terminar. O processo de rememoração nunca é completo: não se consegue voltar ao passado em sua completude e o destino é sempre desconhecido, dado o caráter labiríntico do texto, da memória e da existência. A evocação é interrompida com uma reflexão sobre o uso da língua.

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo

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Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, V.13, n. 2, pp. 143-155, agosto/dez. 2015. ISSN: 2176-381X Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós

O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada

A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem Terras que não sabia onde ficavam

(BANDEIRA, 2007, p.134 e135)

Não se pode esquecer que na década de 20 ocorreu a Semana de Arte

Moderna e que Manuel Bandeira fez parte do movimento. Quando lemos “Ao

passo que nós / O que fazemos / É macaquear / A sintaxe lusíada”, vemos que o “nós” se refere a poetas. O poema reflete sobre o próprio fazer poético. Poema é metapoema. Surge a ideia de um quase manifesto. Mesmo que durante todo o poema haja inúmeras menções ao uso da língua, será nesse fragmento que perceberemos isso claramente; principalmente nos versos “Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo”. A língua errada do povo é a língua certa. É preciso deixar de imitar a sintaxe lusíada para se alcançar a

própria linguagem – um problema que não aparece apenas na Literatura

Brasileira, mas, sobretudo, nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Duarte Galvão, nas palavras de Carmen Tindó, “cria uma «antropofagia delirante» que também efetua uma revisão crítica do passado e recria a língua portuguesa” (SECCO, 1999, p.1). Virgílio de Lemos participou da Revista Msaho (1952), “cuja proposta abria a poética moçambicana a uma constante transformação linguística, tecida de metáforas eróticas que fizeram do corpo do poema o lugar do cio e do transe verbal” (SECCO, 1999, p. 1). Vai ser em um dos poemas do livro Negra Azul: retratos antigos de Lourenço Marques de um poeta barraco que o diálogo com o poema de Manuel Bandeira se estabelecerá quase plenamente, se fosse possível:

Mas qual o poeta que não tem, incestuosa

uma relação com a língua qual a língua que não devora o poeta?

(LEMOS, 1999, p. 49)

Talvez esteja presente aí todo o projeto do barroco estético proposto por Virgílio de Lemos. Ideia que, segundo o próprio autor, “perpassa a literatura moçambicana, desde o final dos anos 50”. Uma postura “ante o verbo criador [que] traduz a rebeldia em relação às normas linguísticas impostas pelo domínio

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luso, libertando, desse modo, a língua do jugo da razão colonial que marcou a política assimilacionista empreendida pelos portugueses em África” (SECCO, 1999, p. 1). A produção literária estava contaminada com traços e vestígios de uma cultura na qual ela não se encaixava ou se enquadrava.

Assim, o poema de Duarte Galvão se fundamenta em oposições: a oposição entre elementos tipicamente moçambicanos e elementos trazidos pelos europeus; a oposição entre um passado de colonização e um presente de renovação. Essas oposições continuam sendo essenciais no processo de formação da identidade do negro liberto, dono de sua própria terra. Assim, tanto Manuel Bandeira como Duarte Galvão reclamaram para suas poéticas aquilo que durante muito tempo foi negado e excluído de suas culturas literárias.

Recife e Lourenço Marques são, nos poemas de Manuel Bandeira e Duarte Galvão, cidades que se assemelham a um sonho. Mas não se trata de um sonho “perdido / num espaço irreal / misterioso”, mas de um sonho “fecundo” que, fragmentado e despedaçado precisa passar por um processo de montagem e leitura. As cidades ganharam no corpo do poema um outro corpo. O testemunho poético nos revelou outro mundo dentro deste. Foi com avidez e desejo que os dois poetas laçaram, através de seus poemas, um olhar quase inacessível, que buscou alcançar a compreensão do tempo, da memória e do silêncio. E esse testemunho, sem perder seus poderes, se converteu em um servidor da imaginação e nos fez ouvir o inaudito e ver o imperceptível. As cidades foram evocadas no corpo do poema, o poema foi desentranhado do corpo da cidade.

REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Mário de. “Prefácio Interessantíssimo”. In: _____. De Paulicéia desvairada a

Café (poesias completas). São Paulo: Círculo do Livro, 1986.

ARRIGUCCI JÚNIOR, David. Humildade:paixão e morte: A poesia de Manuel

Bandeira.São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

_______ . O humilde cotidiano de Manuel Bandeira. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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BIAZETTO.Flávia. “O som ressoante dos tambores”. In: Crioula, Revista dos Alunos de Pós-Graduação da USP. N: 2,São Paulo,

2007.http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/53578 Acesso em 28/09/2015. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1967.

CRAVEIRINHA, José. “Quero ser tambor”. In: Karingana ua karingana. Maputo:Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1982.

LEMOS, Virgílio de. Eroticus moçambicanus: breve antologia da poesia escrita em Moçambique (1944-1963).Organização e seleção de Carmen Lucia Tindó Secco. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Faculdade de Letras, Departamento de Letras Vernáculas UFRJ, 1999.

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Referências

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