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GÊNERO, FAMÍLIA, CAPITAL SOCIAL E MIGRAÇÃO: A DIÁSPORA HAITIANA 1

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GÊNERO, FAMÍLIA, CAPITAL SOCIAL E MIGRAÇÃO: A DIÁSPORA HAITIANA1

Adriano Alves de Aquino Araújo2

O SISTEMA FAMILIAR CRIOULO

Therborn (2006) aponta que a colonização ibérica nas Américas, assentada sobre hierarquias étnico-raciais, gerou um sistema familiar particular denominado crioulo. Tal sistema caracteriza-se por relações sexuais e familiares com presença intermitente por parte do homem, o que se deu devido a uma cultura de classe dominante essencialmente patriarcal (mais forte do que no continente europeu ocidental de origem) e uma cultura popular falocrática3 de informalidade sexual, não-casamento e domicílios matrifocais muito disseminados.

A predominância secular da família crioula na América Latina foi revertida nas últimas décadas do século XX, podendo-se, nesse caso, suspeitar de influências culturais da Europa Ocidental e da América do Norte. Contudo, o patriarcado ainda governa a maior parte dos Andes e o casamento permanece uma prática minoritária na Jamaica e na República Dominicana (THERBORN, 2006).

O reconhecimento igualitário de gênero deu-se de modo tardio na América Latina e no Caribe, apresentando ainda hoje disparidades em meio a avanços e retrocessos. Segunda Rosa (2006), as mulheres haitianas só foram reconhecidas como iguais perante a lei na Constituição do Haiti de 1986.

A estrutura social vigente nas sociedades patriarcais atrela a mulher à figura masculina, havendo pressão para que as mesmas se casem e constituam família. Contudo, o sistema falocrático subverte obrigações e deveres tradicionalmente estabelecidos pelo patriarcalismo, como a honra dos homens perante a família e a sociedade, de modo que, muitas vezes, as mulheres acabam desamparadas pelos companheiros. Therborn (2006) elenca sociedades patriarcais da África e do Oriente

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Trabalho apresentado no XI Encontro Nacional sobre Migrações, realizado no Museu da Imigração do Estado de São Paulo, em São Paulo, SP, entre os dias 9 e 10 de outubro de 2019.

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Doutorando em Ciências Sociais (FFC/UNESP) e membro do Grupo de Estudos Enfoques Antropológicos – UNESP/CNPq. Mestre em Ciências Humanas e Sociais (UFABC) com a dissertação intitulada: “Reve de Brezil: a inserção de um grupo de imigrantes haitianos em Santo André, São Paulo – Brasil”, premiada no I Concurso Nacional de Teses de Doutorado e Dissertações de Mestrado da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (ONU/ACNUR, 2016).

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A falocracia constitui-se em uma ideologia binária que postula que o sexo masculino concede aos homens um protagonismo natural de exercício de poder sob o sexo feminino em diversas esferas.

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Médio que, embora aprovem a poliginia, possuem controles sociais rígidos quanto às responsabilidades masculinas para com cada uma das famílias constituídas.

Já onde impera a falocracia, quando abandonadas, sob o risco de ter a própria existência ameaçada – bem como a dos filhos – as mulheres assumem o protagonismo dos lares. É como se o fim da primeira relação, que havia sido encorajada pela família, lhes autorizasse perante essa a assumir as rédeas de suas vidas e destinos, escolhendo inclusive se vão ou não contrair uma nova união matrimonial.

Os sociólogos haitianos Desrosiers e Seguy (2011) afirmam que a sociedade haitiana é marcada pelo machismo e opressão contra as mulheres; segundo os mesmos, ter vários filhos de pais diferentes é resultado de dois fenômenos que incidem sobre as mulheres provenientes principalmente das camadas mais populares do país: 1) o abandono paterno e 2) a monogamia em série.

Segundo os autores, a monogamia em série configura-se num ciclo em que a mulher, mãe de um filho abandonado, une-se a outro homem monogamicamente para criar seu filho. Dessa relação pode nascer outro filho, que pode também acabar sendo abandonado por seu progenitor. A mãe pode então reiniciar com um terceiro homem uma nova relação monogâmica na intenção de que os filhos das relações anteriores não cresçam “sem pai”. Dessa maneira, essas mulheres podem acabar tendo vários filhos de pais diferentes em um ciclo imprevisível de relações.

A despeito de tantas adversidades, as mulheres são consideradas a “espinha dorsal” da sociedade haitiana. A teorização de Göran Therborn (2006) acerca da falocracia elucida esse aparente paradoxo, ou seja: “como esta, de tal modo estigmatizada pelo sistema social, pode ser a „espinha dorsal‟ da sociedade?”. Dentre tantas assertivas, pode-se apontar que seria pelo fato de as mulheres assumirem responsabilidades atribuídas aos homens pelo sistema patriarcal, mas que não são cobradas desses em virtude do sistema falocrático. Desse modo, sem a agência das mulheres, a sobrevivência dos indivíduos seria posta em risco em tais sociedades; sobre elas recaem a responsabilidade de dar a luz e de prover a subsistência dos filhos e agregados.

A partir de suas experiências no Haiti, N´Zengou-Tayo (1998) e Thomaz (2010; 2011) dão conta de que são as mulheres que movimentam todo o comércio nas ruas do país. Essas mulheres, conhecidas como “Madanm Sara”, caminham por longos trechos e trabalham por longas horas sob o sol escaldante, sendo que

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algumas estabelecem inclusive circuitos internacionais de compra e venda. Seria algo próximo às tradicionais figuras das “sacoleiras” no Brasil.

O HAITI E A EMIGRAÇÃO

As difíceis condições de sobrevivência impostas aos haitianos pelo colonialismo e seus corolários têm levado a fluxos históricos de emigração; o povo haitiano não se contenta em assistir passivamente a destruição de seus meios de sobrevivência, buscando outras realidades, ainda que, o mundo ocidental os estigmatize desde os mínimos detalhes do seu ser (SCARAMAL, 2006). O ser haitiano representa uma desobediência político-epistêmica frente ao Ocidente, nos termos de Mignolo (2008); esse espírito de desobediência decolonial, que teima em não ocidentalizar-se, incomoda o Ocidente por onde quer que passe.

As primeiras emigrações em massa de haitianos que se têm registro ocorreram rumo a Cuba para o trabalho no corte de cana no início do século XX, sendo que parte foi deportada em decorrência da crise que afetou a indústria do açúcar (COUTO, 2009). A emigração para a vizinha República Dominicana também é histórica e cheia de tensões; nos anos 1930, por exemplo, havia um considerável número de haitianos vivendo no país, quando o ditador Rafael Trujillo ordenou a matança de 17 a 30 mil cidadãos dessa nacionalidade (MARTIN; MIDGLEY; TEITELBAUM, 2002; ROSA, 2006).

Nos anos 1960, Bahamas, Estados Unidos (Miami), Guadalupe e Guiana Francesa passaram a receber imigrantes haitianos para o trabalho na construção civil e na agricultura. A ditadura Duvalier (1957 – 1986) também foi responsável por uma expressiva saída de haitianos do país, sendo esse fluxo composto principalmente por políticos, intelectuais e estudantes que se opunham ao regime e buscavam asilo em países como Canadá, França e Estados Unidos (JACKSON, 2011).

Outro fluxo que ganhou muito destaque foi o dos “boat people”, jovens em sua maioria que, sem esperanças de um futuro melhor no país, lançavam-se ao mar em embarcações improvisadas rumo à Flórida.Stepick (1982) realizou um detalhado trabalho etnográfico junto a haitianos que chegaram aos EUA solicitando asilo político. Em suas conclusões, os Estados Unidos discriminavam os cidadãos haitianos negando-os o direito de asilo – concedendo-o preferencialmente a cidadãos provenientes de países governados por regimes de esquerda, como Cuba.

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De 1990 em diante, a pobreza aumentou no Haiti, sobretudo após o declínio da agricultura familiar. Com isso, as migrações de haitianos à República Dominicana, que eram costumeiramente sazonais – para o corte da cana-de-açúcar – passaram a ter um caráter mais definitivo, com a permanência de haitianos em lavouras de longa temporada. Outros se mudaram para zonas urbanas, empregando-se na construção civil e no setor de serviços “principalmente informal”. O Banco Mundial estimou em 800 mil o número de haitianos na República Dominicana, enquanto políticos dominicanos divulgam a cifra de cerca de 1 milhão e meio (MARTIN; MIDGLEY; TEITELBAUM, 2002).

Até a primeira década do século XXI, as maiores comunidades de imigrantes haitianos estavam presentes nos Estados Unidos, no Canadá, na República Dominicana, em Cuba e na França. Contudo, a partir do terremoto que assolou o Haiti em 2010, o Brasil passou a figurar dentre os destinos migratórios haitianos, num fluxo que permaneceu intenso até meados de 2015, quando a crise político-econômica agudizou-se no país e um novo fluxo migratório começou a ganhar impulso em direção ao Chile. Atualmente, Brasil e Chile figuram entre os seis mais importantes destinos da diáspora, superando a França, país com o qual o Haiti possui laços históricos que remontam ao período colonial.

O Haiti é considerado um dos países menos resistentes a desastres naturais no mundo, cuja vulnerabilidade está relacionada a aspectos socioeconômicos, o que inclui taxa de pobreza, insegurança alimentar e instituições públicas fracas, bem como a avançada degradação ambiental em curso no país (PNUD, 2014). Tal vulnerabilidade abre margem para acontecimentos catastróficos impulsionados por variações climáticas e fenômenos naturais. Télémaque (2012) aponta que mais de 3 mil pessoas morreram em desastres naturais ocorridos entre 2004 e 2008 no Haiti.

A importância dos emigrados e da emigração aumenta ao passo que as crises sucedem-se e as condições de vida se deterioram. “No Haiti, as pessoas costumam dizer ser quase impossível encontrar uma kay (casa) ou uma família haitiana não tendo algum membro aletranje/lòt bò dlo, isto é, no exterior” (HANDERSON, 2010, p. 184). A migração haitiana é um fenômeno sazonal, podendo envolver migrações por toda uma vida através de estadas temporárias em outros países. As comunidades no exterior ganharam tanta importância que são conhecidas como o “departamento onze” (o Haiti é dividido geopoliticamente em dez

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departamentos: Artibonite, Centre, Grand'Anse, Nippes, Nord, Nord-Est, Nord-Ouest, Ouest, Sud, Sud-Est).

Segundo informações do IHSI (Institut Haïtien de Statistique et d´Informátique) (2014), a população estimada do Haiti seria de 10. 413. 211 pessoas, sendo que as estimativas acerca do número de haitianos emigrados variam entre 2 e 4 milhões e meio de pessoas (VALLER FILHO, 2007; TÉLÉMAQUE, 2012).

CAPITAL SOCIAL E MIGRAÇÃO

Bourdieu (2001) aponta que a teoria econômica comumente reduz o universo das relações sociais a simples trocas comerciais, definindo implicitamente todas as demais formas de intercâmbio social como relações não econômicas. Contudo, a troca comercial é uma dentre diversas formas possíveis de intercâmbio social; coisas aparentemente não venais possuem seu preço e a dificuldade em convertê-las em dinheiro reside no fato de que são fabricadas a partir da expressa negação do econômico.

O capital apresenta-se fundamentalmente de três modos: econômico, cultural e social. O capital social é constituído pelos recursos associados à posse de uma rede duradoura de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento e reconhecimento mútuo. O capital total que os membros individuais do grupo possuem serve a todos conjuntamente, fazendo-os “merecedores de crédito” (BOURDIEU, 2001).

Do pertencimento aos grupos, derivam-se ganhos materiais, como por exemplo, favores e benefícios simbólicos. Tal pertencimento mostra-se basilar no projeto migratório tanto dos argelinos estudados por Bourdieu, como dos haitianos. Os benefícios possibilitados pelas redes são diversos e extremamente importantes para a viabilidade da migração no contexto da precariedade estrutural que acomete o Haiti. Poder contar com alguém no Haiti – via-de-regra uma mulher – que fique com as crianças e se encarregue da educação das mesmas, por exemplo, é uma das estratégias mais comuns de pais e mães que se lançam à emigração.

Bourdieu (2001) ainda sinaliza que a existência de uma rede de relações é o produto de estratégias individuais ou coletivas de inversão, consciente ou inconscientemente direcionadas a estabelecer e manter relações sociais que prometam, cedo ou tarde, um proveito. Nesse sentido, as relações casuais e incluso as de parentesco são transformadas em relações especialmente eleitas e

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necessárias, que acarretam obrigações. Deste modo, aqueles que partem também possuem obrigações com aqueles que ficam, seja através de remessas financeiras, presentes, notícias e/ou mesmo da possibilidade de “mandar buscar” outros candidatos elegíveis à migração.

Cada grupo possui formas mais ou menos institucionalizadas de delegação que lhe permite concentrar a totalidade do capital social nas mãos de um indivíduo ou de uns poucos. Ao representante em questão lhe é encomendada a tarefa de representar o grupo, de falar e atuar em seu nome e assim exercer um poder que transcende em muito sua capacidade individual. Por exemplo, no nível mais elementar de institucionalização, o cabeça da família (o pater familias, o primogênito ou o ancião) é reconhecido tacitamente como a única pessoa autorizada a falar em nome do grupo familiar em todas as ocasiões oficiais (BOURDIEU, 2001, p. 154).

Nas sociedades onde a falocracia domina a ordem social, a figura do pater familias é frequentemente assumida por mulheres, haja vista a disseminação dos domicílios matrifocais na América Latina e no Caribe, como apontado por Therborn (2006). No Haiti, utiliza-se a expressão “Poto Mitan” para referir-se às mulheres – “Pilar Central” em crioulo haitiano – e alude à importância da figura feminina na família e na sociedade (N'ZENGOU-TAYO, 1998).

A FAMÍLIA COMO CAPITAL SOCIAL PRIMORDIAL DOS HAITIANOS

O antropólogo haitiano Joseph Handerson realizou etnografia multilocal como parte de sua tese de doutorado defendida no Museu Nacional no ano de 2015. Seu trabalho buscou apreender os sentidos da diáspora na vida dos haitianos. Em trabalho de campo realizado em 2012 na cidade amazonense de Tabatinga, Handerson entrou em contato com Reginald, cuja fala expressa o aspecto essencialmente comunitário-familiar do projeto migratório haitiano:

Cada haitiano é um mundo, cada haitiano não é simplesmente um haitiano [...]. Para enfrentar a situação atual do Haiti, da maneira que enfrentamos, não é para qualquer um, precisa refletir muito, refletir exige muita dinâmica. Não é uma coisa de um dia para outro, cada dia enfrenta [sic] a dificuldade de uma maneira, enfrenta [sic] a vida de um modo diferente. Mas, isso exige o [sic] otimismo, exige muita racionalidade, muitas análises de como deve [sic] enfrentar a vida. Para o haitiano chegar aqui [...] não somente arriscou, mas também, fez sacrifícios. Ele deixa mulher para trás, deixa filhos para trás, por isso, não pode vir para cá para passar miséria também. Ele deve achar uma porta de saída independente da circunstância, porque ele deixou o Haiti para trás sofrendo. Ele tem o seu lar, tem mãe, tem irmão, tem irmã, eles podem ter parado um ano de colégio para juntar dinheiro e mandar ele

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[sic] viajar, para ele chegar, trabalhar e ajudar-lhes [sic]. Se sou [sic] eu que devo morrer para os outros viverem bem, então, devo morrer, porque a morte não será em vão (HANDERSON, 2015, p. 182).

Handerson (2015, p. 182) afirma ainda que as expressões: “chèche lavi miyò (tentar uma vida melhor), chèche lavi lòt bò dlo (tentar a vida além-mar) e chèche lavi aletranje (tentar a vida no exterior)”, são corriqueiras no vocabulário haitiano e estão sempre relacionadas ao grupo. Os indivíduos que emigram são considerados porta-vozes do grupo, estabelecendo uma relação de compromisso e reciprocidade entre os que ficam e os que partem, de modo que a construção de um patrimônio no Haiti apresenta-se como meio de melhoria da condição familiar, sendo este objetivo quase sempre presente nos projetos migratórios dos haitianos.

Outro interlocutor de Handerson (2015) foi Benjamin, que em uma das falas expressou uma vez mais o profundo caráter comunitário do projeto migratório entre os haitianos:

“Espri ki voye‟l la, se yon espri kolektif, yon fraternite ki reflete pou nou ale pou ede fanmi an” (O espírito que o envia é um espírito de colaboração, uma fraternidade que consiste para nós em ir e ajudar a família) [...] “chèche yon lavi miyò, pa sèlman pou moun lan, men se pou tout fanmi an” (tentar uma vida melhor, não só para o indivíduo, mas sim, para toda a família) (HANDERSON 2010, p. 183).

Em se tratando da dinâmica do empreendimento migratório entre os haitianos, diversas variáveis são levadas em consideração no tocante à escolha do membro do grupo que irá partir. Handerson (2010) aponta que tais variáveis incluem o grau de parentesco do candidato, bem como o capital social e intelectual deste, sua conduta, honestidade, caráter e etc. O grupo procura assegurar-se de que o candidato à emigração não irá esquecer-se daqueles que ficaram (saldando dívidas morais e econômicas), que irá manter os mecanismos da migração (mandando buscar outros integrantes do grupo), mas que, sobretudo, tenha capacidade de estabelecer-se no destino, tendo êxito na empreitada.

Se, de um lado, o viajante se beneficia de vários apoios materiais, emocionais e espirituais, do outro, tais apoios tornam-se uma pressão social sem precedente. A ele, é negado imperativamente o fracasso financeiro da empreitada. Voltar, sem bens materiais ou ficar muito tempo sem mandar nada, passa a ser sinônimo de desonra e de fracasso individual e coletivo (família). Ao voltar, aquele viajante seria um morto social; em suma, ele torna-se um morto-vivo no seu bairro, na sua comunidade, para os seus familiares (HANDERSON, 2010, pp. 186-187).

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O excerto acima alude ao controle social baseado em valores morais. “Mandar buscar” outro membro do grupo faz parte da estratégia grupal de maximização dos ganhos com a emigração, pois, um novo emigrado, diminui a carga de responsabilidade sobre o emigrado pioneiro, uma vez que, tende a se responsabilizar pela própria manutenção e a ajudar o primeiro a enviar mais recursos para a origem. Na origem, além de diminuir o número de dependentes, aumentará o valor das remessas monetárias que chegam.

Tal dinâmica pôde ser apreendida a partir da situação de Pierre, um imigrante haitiano que vive na Região Metropolitana de São Paulo e foi por nós entrevistado em 2014:

[...] apesar das dificuldades enfrentadas no Brasil [...] encorajaria familiares interessados em migrar a virem, pois [...] ajudaria a melhorar as condições financeiras da família como um todo, já que no Haiti muitos estão desempregados. [...] sua situação financeira atual no Brasil não é boa, no Haiti as condições dos que ficaram também não, mas se ele continuar sozinho a mandar dinheiro para os seus familiares que lá estão, nem a situação dele irá melhorar, nem a dos que estão no Haiti, uma vez que para ambas as realidades o dinheiro ganho é insuficiente. [...] vindo mais gente, mais gente trabalhará para que as condições melhorem tanto para os que estarão no Brasil, como para os que seguirão no Haiti (ARAÚJO, 2015, p. 103-104).

Ter um emigrado no grupo garante a dinamização das relações de reciprocidade deste, bem como o considerável aumento das oportunidades de vida para os diversos indivíduos que dele fazem parte. A ideia da gestão transmigratória é a de possuir membros do grupo em diversas partes do mundo trabalhando em conjunto para o fortalecimento e estabelecimento deste grupo na origem comum; para tal, sempre haverá um cabeça que permanecerá na origem fazendo a gestão dos recursos provenientes dos emigrados, deste modo, “a viagem reforça e reorganiza as redes sociais e familiares” (HANDERSON, 2010, p. 186).

Handerson segue discorrendo que a mobilidade se impõe como uma realidade social de primeira ordem entre os haitianos, havendo uma relação estrita entre os que partem e os que ficam, de modo que as relações familiares acabam sendo moldadas pela mobilidade e circulação de pessoas. “Desde cedo as crianças convivem com a mobilidade dos seus colegas da escola ou dos seus bairros, partindo ou viajando. A mobilidade é constitutiva do cotidiano haitiano” (HANDERSON, 2010, p. 186).

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A emigração garante também prestígio ao grupo em questões subjetivas; significa estar ligado à economia global, aos presentes importados, ao cosmopolitismo e etc. Como apontado, a essência haitiana mantém-se em tensão permanente com o mundo ocidental, dinamizando as formas de “ser” e “estar” nos termos de Mignolo (2008). Deste modo, as trajetórias dos grupos são trilhadas de modo a não permitir as imaginadas metamorfoses que transformavam um povo em outro, conforme vislumbrado no contexto da colonização e das antigas ideias de aculturação nos contextos migratórios.

AS CASAS NO CONTEXTO DA DIÁSPORA

O cotidiano dos haitianos deve ser compreendido no contexto de redes transnacionais e diásporas. Handerson (2015) estudou as diversas experiências de mobilidade internacional dos haitianos através da dinâmica das casas. Segundo o autor, dentre tantos usos, o adjetivo diaspora é empregado pelos haitianos para qualificar as casas cujos proprietários vivem no exterior. Estas são chamadas de “kay diaspora (casa diáspora)”, enquanto que as casas daqueles que vivem no Haiti – e não passaram pela experiência da emigração – são chamadas de “kay lokal (casa local)”.

O uso da expressão kay diaspora surgiu na década de 1990, quando se popularizou o termo “diáspora” entre os haitianos nos Estados Unidos e no Haiti, referindo-se à pessoa que residia no exterior e passava temporadas de férias no Haiti. Nessa mesma década, o termo passou também a ser associado às casas construídas pelas pessoas da diáspora no Haiti (HANDERSON, 2015).

A construção de uma casa no Haiti é a materialização do sucesso do empreendimento migratório dos indivíduos e grupos. Existem algumas diferenças perceptíveis entre as kay diaspora e as kay local. A arquitetura, o tamanho, o estilo, os cômodos, bem como suas funções e distribuições. Entre as próprias kay diaspora há distinções, sendo subdivididas em “ti kay diaspora (pequena casa diáspora)” e “gwo kay diaspora (grande casa diáspora)” a depender da condição socioeconômica do proprietário e do país no qual reside ou residia no exterior, ou seja, se o proprietário vivia num “ti peyi (pequeno país)” ou “gros peyi (grande país)” (HANDERSON, 2015). “Pequeno” e “grande” nesse contexto referem-se ao nível de desenvolvimento desses países e as condições de inserção socioeconômica que proporcionam aos imigrantes.

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Handerson (2015) aponta que as casas geralmente são edificadas em espaços territoriais com significados partilhados entre a família de origem, sendo o lugar para onde os emigrados voltam para fazer ou mandar fazer as obrigações espirituais da família e dos ancestrais. Tal porção territorial distingue-se no Haiti basicamente entre lakou (quando no meio urbano) e bitasyon (quando no meio rural). Tanto o lakou como a bitasyon representam patrimônios que adquirem sentido além do material, invocando valores ancestrais e espirituais que implicam em compromissos e obrigações entre os antepassados e as gerações posteriores.

Em sua obra “Le barbare imaginaire”, o sociólogo haitiano Laënnec Hurbon trata com riqueza de detalhes a relação dos haitianos com essa terra ancestral. Tal

relação também aponta para o entendimento dos fortes laços mantidos entre os

emigrantes haitianos com o país de origem. As viagens de retorno ao Haiti, além da confraternização com os familiares e amigos, podem ser explicadas a partir da lógica das obrigações para com os ancestrais. Os “diáspora” afluem ao Haiti em épocas festivas diversas, sendo provenientes de diversos países, particularmente, Guiana Francesa, França, Estados Unidos, Canadá, e atualmente Brasil. Segundo informações do Ministério dos Haitianos Residentes no Exterior, aproximadamente 300.000 “diáspora” voltam ao Haiti anualmente (HANDERSON, 2015, p. 289).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se no presente artigo compreender a temática da família e da migração como dimensões indissociáveis na diáspora haitiana. Na abordagem relativa à família haitiana, no primeiro tópico, foi apresentada a teorização de Göran Therborn acerca das origens e tendências da família latino-americana e caribenha. Göran denomina de crioulo o padrão de família desta região, que além do patriarcalismo, é dominado pela falocracia.

O conceito de falocracia auxilia-nos na compreensão da disseminação da matrifocalidade dos lares na América Latina, no Caribe e no Haiti, em particular. Tal sistema legitima a assimetria de poder com base em gênero como valor advindo do patriarcalismo, mas libera os homens das obrigações sociais impostas pelo mesmo patriarcalismo, como garantir a subsistência de sua família, por exemplo.

No Haiti, como apresentado pelos sociólogos Desrosiers e Seguy, pode ser observado um fenômeno relacionado à falocracia e suas dimensões na sociedade local, que seria a monogamia em série. A falocracia e a monogamia em série, como

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possível fator resultante, apontam para a importância vital das mulheres na sociedade haitiana, chegando-se, deste modo, à questão do “Poto Mitan”, como aponta N´Zengou-Tayo e a experiência de campo de Omar Thomaz. A ideia de “Pilar Central” remete a como as mulheres haitianas são conhecidas e reconhecidas no Haiti, sendo elas as protagonistas dos lares e da sociedade, criando os filhos, administrando a economia doméstica e movimentando a economia nacional através da comercialização – sobretudo – dos bens mais essenciais à população.

Como apontado por um dos interlocutores de Joseph Handerson, dificilmente há haitianos que não possuam familiares vivendo no exterior, o que se explica pelas difíceis condições enfrentadas pelo país, fruto de séculos de colonialismo e exploração. As redes sociais são cada vez mais importantes para as migrações, haja vista as múltiplas barreiras impostas pelos países de recepção, bem como as condições nos países de origem, que dificultam a autonomia financeira dos indivíduos. Deste modo, a migração haitiana é essencialmente baseada em projetos familiares, em que, o indivíduo que migra representa e reporta-se ao seu grupo.

Buscou-se em Pierre Bourdieu a Teoria do Capital Social, sendo possível traçar muitos paralelos com as redes haitianas de migração através da detalhada etnografia de Handerson. A partir das exposições de seus interlocutores, fica nítida a importância do capital social para os haitianos e o quão a migração está presente tanto para quem emigra quanto para quem fica, pois o projeto migratório representa um conjunto de atores.

A etnografia de Handerson torna possível a percepção da importância das casas na manutenção dos laços dos emigrados com o Haiti e o quão a manutenção de tais laços transcende o mundo dos vivos, uma vez que existe uma relação de obrigações diversas para com os antepassados e a terra de origem, onde os restos mortais destes encontram-se repousados. Sendo assim, uma série de signos conforma e fomenta a estrita relação entre os haitianos da diáspora e o Haiti, lançando luz à aparente estranheza de querer manter laços com uma terra de onde se saiu por falta de condições.

O presente artigo buscou contribuir para com os estudos migratórios e de gênero com enfoque na diáspora haitiana e algumas de suas especificidades. A revisão bibliográfica e as experiências etnográficas apresentadas contribuíram para compreender o papel atribuído à mulher na cultura forjada no contexto caribenho, bem como a agência de tais mulheres frente o sistema dominante. É evidente a

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importância do tema da migração na sociedade haitiana e o caráter indissociavelmente comunitário-familiar do projeto migratório no Haiti. Tal projeto se dá através das redes, onde o capital social se faz imprescindível e a presença da figura feminina é vital, tanto para proporcionar as condições para a migração, como para a manutenção da mesma.

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Referências

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