OLHAR PRELIMINAR SOBRE VULNERABILIDADE E VIOLÊNCIA NO BRASIL A PARTIR DAS TAXAS DE MORTES1
Adalberto de Salles Lima2
RESUMO
Observa-se na América Latina certo grau de violência não presenciada em outras regiões. Há uma possível relação entre economia e produção de mortes em periferias do mercado internacional que é histórica. Para o presente trabalho, as reflexões preliminares apontam a necessidade de compreender a complexidade da violência para além das taxas de mortes, possibilitando abrir outras perspectivas sobre as condições de vida em contextos de violência. Se por um lado, a morte e sofrimentos são oriundos da relação entre formas de violência, por outro, a experiência da violência possibilita construir organização política pelos familiares de vítimas, demonstrando a capacidade de busca pela reparação e justiça. A construção da memória da dor constrói redes de afetos, solidariedades e organizações sociais, contribuindo para verificar que o modelo econômico vigente, as moralidades que orientam os comportamentos sociais e as respostas do Estado são algumas das condições impares para a manutenção da violência estrutural na América Latina, em especial no Brasil.
Palavras-chave: Violência. Periferias. Mortes. Famílias das vítimas. Organização política.
INTRODUÇÃO
As formas de violências na América Latina são modeladas por distintos processos históricos, políticos, econômicos e culturais, mas também guardam vinculações entre si. A naturalização social e como política da vulnerabilidade social a determinados grupos sociais marginalizados é secular e evidencia um projeto institucional moderno de exclusão e genocídio. A condição de periferia do mercado internacional constitui ambiente que torna a América Latina um dos territórios da violência sistêmica. Pesquisas internacional e nacional sobre homicídio no mundo mostram a América latina e Caribe os territórios mais perigosos para o jovem viver e acrescento: jovens pobres, indígenas e negros.
O Mapa da Violência de 2016 contém dados acerca das taxas de homicídio por armas de fogo no mundo. Os 31 países latino-americanos e caribenhos
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Trabalho apresentado no IV Seminário Nacional sobre População, Espaço e Ambiente, realizado nos dias 23 e 24 de Outubro de 2017, em Limeira, SP, nas dependências da FCA/UNICAMP.
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Doutorando do Departamento de Estudos Latino-Americanos (ELA) pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas, vinculado ao Instituto de Ciências Sociais
pesquisados ocupam praticamente as primeiras posições numa relação de 100 países. Há alguns anos o documento “Mapa da Violência Juvenil 2008: os jovens da América Latina” já indica uma percepção da espacialidade da violência no mundo, ao expor que as Américas representam 80,2% do total de taxas de homicídio juvenil no mundo (o Norte com 12%; Caribe com 31,6% e Latina com 36,6%), seguidos pela África com 16,1%, Ásia (2,4%), Europa (1,2%) e Oceania (1,6%). (WAISELFISZ, 2008, p. 15).
MATERIAIS E MÉTODOS
O presente trabalho é uma reflexão inicial acerca da relação entre as taxas de mortes e sofrimento nas famílias das vítimas diretas. A princípio, foi realizado levantamento bibliográfico de dados dobre homicídio no país e no mundo e discussão de alguns autores. Para uma pesquisa futura, pretende-se adotar o método comparado entre dois países latino-americanos para compreender as semelhanças e diferenças dos efeitos das taxas de mortes nas famílias das vítimas diretas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Segundo o “Mapa da Violência 2015 – Mortes Matadas por Armas de Fogo”, entre os jovens de 15 a 29 anos, o número de mortes por armas de fogo chegou a 24.882 em 2012. Entre 2003 e 2012, enquanto o número entre jovens brancos mortos por armas de fogo caiu de 23%, entre os jovens negros aumentou 14,1%. Conforme o Atlas da Violência de 2016, o país atingiu números inéditos de 59.627 mil homicídios em 2014. O foco da violência está na região do Nordeste com destaque para os estados do Maranhão, com crescimento de 209,4%, Ceará (166,5%), Bahia (132,6%), Paraíba (114,4%) e Sergipe (107,7%). O mesmo documento ainda aponta que no mundo os homicídios representam cerca de 10% de todas as mortes e, em termos absolutos, o Brasil lidera a lista desse tipo de crime.
O jovem negro e pardo ao chegar aos 21 anos de idade possuem 147% a mais de chances de serem vítimas por homicídios, em relação a sujeitos brancos, amarelos e indígenas (CERQUEIRA et al., 2016). Essa comparação revela que o homicídio juvenil tem um alvo e esse tem cor, idade, local e sexo, sendo jovens negros e pobres de periferias.
Os dados sobre mortes por armas de fogo no Brasil direcionam para os conflitos entre segurança pública e populações negras e pobres. O direito do Estado ao recurso da violência legítima como forma de mediação de conflitos nas relações interpessoais e/ou nas relações entre cidadãos e o Estado não necessariamente garante o estado de tranquilidade social e em alguns casos geram tensões sociais entre sujeitos e na relação do sujeito com a Instituição (ADORNO, 2002). A maioria das pesquisas sobre taxas de morte indicam que por traz dos dados está o exercício do abuso da força legítima, através de seus mecanismos de controle institucional e valores sociais que validam algumas práticas abusivas.
Dentro da relação entre polícia e populações negras e pobres, há um caso bastante representativo que serve de exemplo para entender parte do universo homicida no país. O mês de maio de 2006 na cidade de São Paulo ficou conhecido nacionalmente e internacionalmente pelo fato da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) ter deflagrado diversas rebeliões em presídio no estado de São Paulo. Enquanto ocorria a rebelião no sistema carcerário, delegacias e postos de polícia, viaturas, prédios públicos, presídios e outros pontos estratégicos de ataque do PCC era alvos de ataque armado. Alguns pesquisadores como Sério Adorno e Fernando Salla (2007) afirmam que o ataque do PCC teve como motivação a corrupção no sistema carcerário, nas investigações policiais, sequestro de familiar de membros da organização criminosa, descaso com a execução penal no estado de São Paulo, entre outras causas.
Em resposta a onda de ataques do PCC, a polícia, através de agentes
estatais e grupos de extermínio promoveu um ambiente de execuções sumárias3,
chacinas e centenas de homicídios e desaparecimentos, entre os dias 12 e 21 de maio de 2006. Como resultado, houve 564 mortes e 110 feridos. Os perfis da vitima são: 96% são homens, 80% tinham até 35 anos, mais da metade dos assassinatos eram negros e pardos e, somente 6% das vitimas tinham algum antecedente junto à justiça, em outras palavras, 94% não tinha qualquer antecedente criminal (BRASIL, 2006).
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O Relatório sobre os Crimes de Maio de 2006 reúne algumas informações dos resultados dos laudos periciais das mortes, como: 60% das vítimas tiveram disparos na cabeça, 27% na parte de traz da cabeça, 57% com tiros na parte posterior do corpo e 50% recebeu mais de 3 disparos. Uma das conclusões do perito afirmou que diante das características dos assassinatos, em muitos casos
A partir desses assassinatos, caracterizando o uso ilegal da foça e legitimada de algum modo pela sociedade com silenciamento conivente das instituições públicas, as mães das vítimas se organizaram para fundar o Movimento Mães de Maio. No âmbito jurídico, as Mães de Maio propiciou o ajuizamento de ações judiciais relativas aos crimes de maio, com a atuação da Defensoria Pública. Na esfera política o Movimento gira entorno dos direitos humanos, a luta pelo fim dos “autos de resistência” e, sobretudo, pela mudança de comportamento da instituição policial.
Apesar de alguns avanços no âmbito jurídico, onde a justiça de São Paulo determinou indenizações em alguns casos e no âmbito político-social motivou a formação de outras organizações sociais de familiares de vítimas no país, a memória da violência que produz sofrimento, dores e adoecimentos ainda não são capitados pelo Estado através de políticas públicas.
CONCLUSÕES
Uma das críticas feita aqui é que os relatórios e pesquisas internacionais puramente estatísticos sobre mortes e especificamente homicídio são insuficientes para compreender a complexidade por traz dos números e não há preocupação metodológica conhecida internacionalmente que integre dados macros com informações de cada realidade latino-americana, buscando compreender o fenômeno para além das taxas de mortes. As políticas neoliberais têm dificuldades de captar o que não pode virar estatísticas. O sofrimento e dores de familiares pela perda de seus entes queridos constitui algo que deve ser apropriado efetivamente pelas políticas públicas.
No âmbito da contribuição teórica é relevante ampliar o entendimento da categoria “violência” como um fenômeno histórico moderno nas Américas. Para além da interpretação do fenômeno pelas taxas de mortes, ela é uma estrutura de poder que atua sobre diferentes dimensões de opressão e pode contribuir significativamente para analisar os contextos de vulnerabilidades sociais alimentadas pela produção de mortes e sofrimentos.
REFERÊNCIAS
ADORNO, S.; SALLA, F. Organized criminality in prisons and the attacks of the PCC. Estudos Avançados, São Paulo, SP, v. 21, n. 61, p. 7-29, 2007. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/10264/11895. Acesso em: abr. 2017.
ADORNO, S. Monopólio estatal da violência na Sociedade Brasileira Contemporânea. In: MICELLI, S. (org.). O que ler nas ciências sociais brasileiras. 1970-2002. São Paulo, SP: ANPOCS, 2002. p. 267-307.
BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Relatório sobre os crimes de maio 2006. Brasília, DF, 2006. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cndh/relatorios/relatorio-c.e-crimes-de-maio. Acesso em: maio 2016.
CERQUEIRA, D. et al. (org.). Atlas da violência 2016. Brasília, DF: IPEA, 2016.
(Nota Técnica, n. 17). Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160322_nt_17_atla s_da_violencia_2016_finalizado.pdf. Acesso em: out. 2016.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2016: homicídios por armas de fogo no
Brasil. Brasília, DF: FLACSO Brasil, 2016. Disponível em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf. Acesso em: out. 2016.
WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2015: mortes matadas por armas de fogo. Brasília, DF: Secretaria Geral da Presidência da República; Secretaria Nacional de Juventude; Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2015.
Disponível em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em: mar. 2016.