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A TRANSIÇÃO POLÍTICA DE MIANMAR: DISPUTAS INTERNAS E

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A

TRANSIÇÃO POLÍTICA DE

M

IANMAR

:

DISPUTAS INTERNAS E

INTERESSES EXTERNOS

Erik Herejk Ribeiro1 e Maria Gabriela Vieira2

As eleições de 2015 em Mianmar trouxeram elites civis ao governo

central após cinco décadas de regimes controlados por elites militares.

O processo de abertura democrática gradual buscou normalizar as

relações exteriores, acelerar a modernização econômica e preservar os

interesses das elites militares.

A ascensão das elites civis pode resultar em instabilidade e

retrocessos no processo de abertura devido às disputas entre elites e aos

interesses externos de China e EUA.

Apresentação

Em novembro de 2015, as eleições em Mianmar (antiga Birmânia) chamaram a atenção global sob manchetes de renovação da esperança e da democracia no país. Nas eleições anteriores, em 2010, o Partido da União, Solidariedade e Desenvolvimento (USDP3), que representa as elites

militares, conquistou ampla maioria no Parlamento. Em contraste, as eleições de 2015 deram vitória à Liga Nacional pela

1 Doutorando e Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande

do Sul (UFRGS). Contato: erik_ribeiro@yahoo.com.br

2 Graduanda em Relações Internacionais pela UFRGS. Contato: maria.g.vieira95@gmail.com

3 Do inglês, USDP - Union Solidarity and Development Party.

4 Do inglês, NLD - National League for Democracy.

Democracia (NLD4), que conquistou 60%

de participação parlamentar.

Até o momento, observa-se o respeito aos resultados das urnas pelas antigas elites. Por outro lado, permanecem tensões históricas entre as tradicionais elites militares, as novas elites civis e os grupos insurgentes locais. Embora as perspectivas de reconciliação nacional sejam positivas, o caminho para a democratização é complexo e envolve

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diversos grupos de interesse no país e no exterior.

Breve histórico

Mianmar localiza-se numa verdadeira encruzilhada da Ásia, rodeada pelo subcontinente indiano, pela China e pelo Sudeste Asiático. País de história e cultura ricas, foi colonizado pelo Império Britânico no Século XIX, conquistando sua independência em 1948. A antiga Birmânia sofreu com ameaças externas5,

pressões separatistas e cisões entre as elites governantes. Após a primeira década de um regime democrático, o país teve um governo militar transitório (1958-1960) e a instabilidade culminou num golpe de Estado organizado pelas elites militares em 1962. O novo regime buscava uma síntese entre as tradições nacionais e o socialismo reformista, rejeitando qualquer via revolucionária (Taylor, 2009).

Após diversas dificuldades econômicas e políticas, o regime socialista ruiu em 1988. Analogamente aos eventos da Praça de Tiananmen (na China), protestos de estudantes foram reprimidos e resultaram em intensa pressão internacional. O governo militar provisório aceitou realizar eleições em 1990, onde acabou previsivelmente derrotado pela NLD.

A Liga surgiu de movimentos estudantis e de entidades civis, liderada pela surpreendente figura de Aung San

5 Podemos citar, especialmente, a postura revolucionária da China nas décadas de 1950 e 1960 e o apoio

da CIA estadunidense ao Exército do Kuomintang, estacionado na Birmânia desde a derrota na Guerra Civil Chinesa. Posteriormente, os líderes destas forças nacionalistas chinesas passaram a gerir um lucrativo negócio de tráfico de heroína no norte do país.

Suu Kyi. A líder da NLD é filha de Aung San, o principal articulador do movimento anticolonial e ainda maior expoente da nação, mesmo tendo falecido em 1947. Suu Kyi, que visitava o país durante os protestos de 1988, morava na Inglaterra e decidiu envolver-se na política nacional após o incentivo dos manifestantes, que enxergavam nela o legado de seu pai (Charney, 2009).

O caminho para a

democratização

A situação internacional em 1990 passava por intensas transformações sistêmicas, decorrentes da normalização das relações EUA-URSS e da queda progressiva dos socialismos no Leste Europeu. A “Terceira Onda” de democratizações também já atingia boa parte do Terceiro Mundo e desmantelava os antigos arranjos políticos locais (Huntington, 1991). Gene Sharp (1993), professor de Dartmouth, prontamente elaborou um manual de derrubada não violenta de regimes “ditatoriais” tendo a Birmânia como modelo e inspiração. Posteriormente, esta mesma obra influenciaria as Revoluções Coloridas no antigo espaço soviético e as revoltas árabes de 2011.

O governo provisório militar, embora pressionado por elementos internos e externos, decidiu progressivamente boicotar os resultados da eleição e instituir um regime de

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exceção sob seu comando. Em sua visão, Mianmar estava sendo alvo de um movimento internacional organizado, que tinha Suu Kyi e a NLD como parceiros para forçar simultaneamente uma abertura econômica radical e a instauração de uma democracia liberal.

Os sucessivos governos socialistas e militares sempre tiveram a autonomia nacional e o não alinhamento como prioridades (Egreteau e Jagan, 2013). No plano econômico, ao contrário da maioria das experiências terceiro-mundistas nos anos 1990, os militares em Mianmar realizaram um processo de transição ao capitalismo onde as privatizações foram abertas apenas às elites locais, impedindo maior inserção do capital internacional.

Ao longo das décadas de 1990 e 2000, Mianmar sofreu intensas pressões internacionais pela abertura política e econômica. Suu Kyi foi colocada sob prisão domiciliar, sendo solta e novamente presa algumas vezes no período. O país continuava fechado a influências externas, ao passo em que seus vizinhos, notadamente a Indonésia e a Tailândia, passavam por processos acelerados de liberalização econômica com resultados instáveis, a exemplo da queda de Suharto na Indonésia e da crise financeira asiática de 1997. Mesmo assim, os países do Sudeste Asiático alcançaram altos níveis de crescimento econômico, enquanto Mianmar sofria embargo econômico dos países ocidentais.

A nova ordem unipolar dos EUA não sustentava ou tolerava mais regimes militares, com raras exceções de antigos

aliados chave. Mianmar se colocava, portanto, como um empecilho ao triunfo do liberalismo global, impassível a influências externas. Em situação diplomática e econômica ameaçada, os generais mianmarenses recorreram à proteção chinesa e da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), que desejava avançar uma comunidade política, econômica e cultural regional (Charney, 2009).

Embora relativamente isolado no Sistema Internacional, Mianmar passou por um processo de modernização desde 1988. Devido às ameaças internas e externas a sua segurança, a parceria com a China foi importante para importação de sistemas militares modernos, incluindo a absorção de tecnologia para produção de blindados e fragatas stealth, por exemplo.

Além disso, a construção da nova capital Naypyidaw, no centro geográfico e civilizacional do país buscou acelerar a integração econômica entre as regiões e retornar às origens culturais locais. A antiga capital Yangon remetia ao período da colonização inglesa e ainda representa o grande centro econômico e demográfico nacional. Sua localização litorânea facilitaria um eventual cenário de intervenção militar estrangeira, apoiada por protestos das camadas sociais urbanas.

Em 2003, o regime militar iniciou um processo controlado de sete passos para a transição democrática, chamado “Mapa para a Democracia”. No entanto, os protestos da Revolução do Açafrão (2007) foram uma nova tentativa de impor a abertura política acelerada de

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Mianmar, baseados nas experiências das Revoluções Coloridas do antigo espaço soviético. Desta vez, a dura repressão das forças policiais teve cobertura dos meios de comunicação internacionais e de mídias alternativas. As decorrentes propostas de sanções no Conselho de Segurança das Nações Unidas foram barradas pelo voto conjunto de China e Rússia.

Conforme aponta Steinberg (2010), os EUA basearam largamente sua política externa para Mianmar na figura de Suu Kyi nas últimas décadas. O episódio da Revolução do Açafrão evidenciou o interesse, principalmente de setores políticos dos Estados Unidos, em cooptar as elites civis locais para o projeto liberal americano. Por outro lado, a China apostou numa transição controlada e limitada, para impedir a ascensão imediata de novas elites e evitando o colapso do Estado e da ordem social.

Sendo assim, a transição política foi acelerada sob a tácita aprovação da China e com apoio da ASEAN. O governo Barack Obama, percebendo que o regime se sustentava mesmo sem apoio ocidental, iniciou a aproximação com as autoridades de Mianmar ainda em 2009 (Haacke, 2012). A progressiva normalização das relações com os Estados Unidos possibilitou o diálogo posterior das elites militares com Suu Kyi, que não tinha mais apoio incondicional do Ocidente.

A nova constituição de Mianmar foi redigida em 2008 e as eleições foram realizadas em 2010. Devido ao papel central das Forças Armadas (Tatmadaw) na política nacional, foram previstos

artigos na Constituição que lhes favoreciam. Podemos citar dois pontos importantes: Reserva de 25% dos assentos nas câmaras alta e baixa; nomeação de um dos vice-presidentes e dos ministros do Interior, da Defesa e dos Assuntos de Fronteira. Em suma, os assuntos de segurança nacional, incluindo aqueles tratados pelo gabinete da presidência, continuarão dominados pelas Forças Armadas.

A NLD, sem a liderança de Suu Kyi (que havia retornado à prisão domiciliar), decidiu não participar inicialmente do processo de democratização. O partido ainda demandava o reconhecimento dos resultados obtidos nas eleições de 1990. Somente em 2012 a Liga decidiu retornar ao cenário nacional em eleições parciais de meio de mandato.

Transição política e os interesses

em jogo

Inicialmente, é importante afastar-se de análises maniqueístas, geralmente jornalísticas, acerca dos interesses em jogo na transição política de Mianmar. Não se trata simplesmente de uma elite militar repressora versus novas elites civis democratas. No plano interno, há correntes conservadoras (linha dura) e pragmáticas entre os militares. Da mesma forma, as elites civis se dividem entre aquelas reformistas e outras liberais radicais associadas a interesses externos. Ainda, existem dezenas de partidos políticos representantes de grupos étnicos minoritários de Mianmar, que somam um terço da população. Em alguns casos,

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estes partidos são a face política de grupos guerrilheiros fortemente armados.

O novo governo, eleito em 2010, ainda continha fortes traços do antigo regime militar, agora nominalmente uma “Democracia Disciplinada”. Mesmo assim, já era possível identificar a transição política de um poder unitário, centralizado e autoritário para a difusão de poder entre as elites militares e o governo eleito “quase civil” (Callahan e Steinberg, 2012). O governo do presidente Thein Sein deu passos importantes em direção à abertura gradual da economia e à reconciliação dos grupos políticos nacionais.

Inclusive, a última grande

iniciativa de Thein Sein foi buscar um cessar-fogo nacional entre o governo e todos os grupos armados do país. O acordo foi barrado pelo grupo da etnia Wa, residente na fronteira com a China e principal força insurgente de Mianmar. Os Was são os principais controladores do tráfico de drogas do “Triângulo Dourado” (Laos, Mianmar, Tailândia), considerada a maior região produtora de heroína do mundo.

Por trás de sua intransigência há um apoio tácito da China, que não deseja perder um elemento importante de barganha com o governo mianmarense. Ao mesmo tempo em que os chineses desejam e apoiam explicitamente a abertura política e a reconciliação nacional, há o temor de que um novo governo autônomo e consolidado possa se sentir seguro o suficiente para aproximar-se do Ocidente.

Assim, os interesses econômicos e políticos da China estariam em risco, pois o país possui investimentos críticos de infraestrutura que poderão transformar seu vizinho na “Califórnia Chinesa” (Thant Myint-U, 2011). Em outras palavras, Mianmar é a saída geoeconômica da China para o Oceano Índico e uma rota complementar à segurança energética chinesa, que hoje depende essencialmente do chokepoint do Estreito de Malaca. Do ponto de vista militar e estratégico, o país pode ser uma via de escape para a China em caso de conflito no Pacífico Ocidental (a exemplo do que ocorreu na Segunda Guerra Mundial). Por outro lado, a utilização de seu território contra a China colocaria em cheque a segurança de todo o seu interior (Ribeiro, 2015).

Os Estados Unidos, por sua vez, adotaram uma postura pragmática para satisfazer seus interesses geopolíticos maiores, deixando em segundo plano a exportação de democracias e do liberalismo. Imersos em suas guerras no Afeganistão e Iraque, os EUA agiram tardiamente na Ásia, observando quase passivamente a ascensão econômica, política e militar da China. A nova política para Mianmar se insere numa nova ofensiva estratégica dos EUA denominada “Pivô para a Ásia”. Para retomar suas relações com os países do Sudeste Asiático, era necessário também ter uma postura de engajamento, não de confrontação, com Mianmar (Haacke, 2012). Além disso, num contexto de rápidas mudanças geopolíticas, Washington evita descartar qualquer país como potencial aliado, especialmente

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após o estremecimento de suas relações com a Tailândia devido ao golpe militar em 2014. Cabe mencionar que, ainda em 2013, os EUA retomaram parcialmente seu programa de treinamento de oficiais militares para Mianmar, suspenso desde 1988.

Numa posição mais conciliadora, a Índia e os países da ASEAN podem ter papel estabilizador no plano internacional. O Nordeste Indiano é uma região afastada de Nova Delhi e tem sofrido por décadas com insurgências armadas, que mantêm conexões e fluxos de armas com os grupos em Mianmar (Lintner, 2012). Isto torna a Índia no principal interessado em alcançar a reconciliação nacional do país vizinho. A ASEAN, por sua vez, é um projeto de integração regional que preza a não interferência em assuntos internos e mecanismos informais de diplomacia, conhecidos como ASEAN Way (Beukel, 2008). Para que o Sudeste Asiático continue prosperando e avançando na integração, é essencial que todos os países atinjam níveis de crescimento e desenvolvimento econômico compatíveis, embora em estágios naturalmente distintos. O Japão observa de perto os acontecimentos em Mianmar e também tem fornecido ajuda econômica e investimentos no setor manufatureiro.

Ao realizar a transição política, os militares em Mianmar buscaram rebalancear suas relações exteriores, de

6 Quaisquer reformas profundas na Constituição de 2008 só podem ser feitas com a aprovação de 75% do

Parlamento. Como os militares possuem 25% dos assentos, bastaria apenas mais um voto entre os parlamentares eleitos para barrar mudanças não desejadas.

modo também a legitimar sua influência política e econômica nacional. Com a chegada das revoltas árabes em 2011, as lideranças mianmarenses temiam que um novo governo civil pudesse confiscar seus bens e condena-las à prisão por crimes cometidos durante o regime militar. Neste sentido, a transição controlada serviu como instrumento para legalizar o novo papel dos militares da ativa e aposentados, que controlam boa parte da economia nacional e têm poder de veto constitucional6.

No ponto de vista econômico, as antigas elites tiveram consciência de que não era possível manter indefinidamente um regime boicotado internacionalmente e fechado a investimentos externos. A China tem papel fundamental em termos de infraestrutura, com projetos de rodovias, ferrovias e dutos ao longo da via Kyaukpyu-Kunming. Por outro lado, os principais investimentos produtivos no país ocorrem apenas em negócios extrativistas (mineração, extração vegetal, gás e petróleo) (Steinberg e Fan, 2012). A normalização das relações exteriores pode cumprir a estratégia nacional de barganha pela modernização econômica e pela atração de investimentos que gerem valor agregado e renda.

Analisar as elites civis é uma tarefa bem mais complexa. Embora Suu Kyi tenha grande controle sobre as atividades da NLD, existe uma série de grupos de interesse apoiadores da Liga

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cujos projetos são menos publicizados. Mesmo assim, pode-se esperar uma postura reformista moderada do novo governo eleito, que tomou posse em 30 de março de 2016. Devido a restrições legais, Aung San Suu Kyi não pode ser presidente do país, pois seus filhos possuem nacionalidade britânica. O novo presidente, Htin Kyaw, foi apontado pessoalmente por ela e funcionará num papel majoritariamente decorativo. Suu Kyi ficou incumbida oficialmente do Ministério das Relações Exteriores.

Em primeiro lugar, Suu Kyi encontrou-se nos últimos anos com praticamente todos os grandes atores interessados na transição política de Mianmar. Estes incluem tanto autoridades estadunidenses e chinesas, como lideranças conservadoras e pragmáticas entre os militares. Os episódios mais emblemáticos foram sua visita ao primeiro ministro Xi Jinping, na China (junho de 2015) e seu encontro com o ex-comandante da junta militar Than Shwe (dezembro de 2015).

A China procurou o diálogo para tentar retomar alguns de seus projetos de infraestrutura em Mianmar e na região como um todo, além de estabelecer pontes diplomáticas com a possível nova liderança nacional. Contudo, o manifesto eleitoral da NLD aponta que a construção de grandes hidrelétricas causa grande impacto ambiental, referindo-se indiretamente ao projeto chinês de Myitsone, que se encontra paralisado. Por isso, o manifesto prossegue, é necessário procurar outras fontes de energia e apenas manter as estruturas

hidrelétricas existentes. É importante ressaltar que o governo Thein Sein já havia paralisado as obras em 2011 por apelo de organizações não governamentais e de outros setores da sociedade.

O encontro com o ex-general Than Shwe marca, por parte de Suu Kyi, o respeito às Forças Armadas e, mais do que isso, a aceitação do status quo vigente. Ao menos num primeiro momento, ela parece cautelosa em atender demandas de sua base aliada por reformas que possam ameaçar o status nacional dos militares. Um dos assuntos mais sensíveis, que parece estar fora de questão no momento atual, é qualquer espécie de controle civil sobre as organizações militares ou sobre assuntos de segurança nacional.

O manifesto eleitoral da NLD também nos fornece pistas sobre possíveis mudanças. No plano econômico internacional, defende-se relações fortes e próximas com o Banco Mundial e com o Fundo Monetário Internacional, sinalizando maior abertura a influências externas. Em termos de política econômica e tributária, parece haver uma tendência de descentralização de recursos.

Uma das questões mais sensíveis da economia política da transição em Mianmar é o papel do empresariado militar, que atualmente domina os setores industrial e extrativista. Até o momento, a abertura econômica tem sido gradual e negociada. A comissão para investimento estrangeiro, baseada na Constituição de 2008, tem priorizado concessões a joint ventures com grande

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participação do capital nacional. A abertura gradual e a proteção das empresas nacionais visa evitar “doutrinas de choque” adotadas como solução por diversos países nos anos 1990. Na maioria dos casos, o resultado era a dependência exacerbada de capital estrangeiro e a destruição da base produtiva local.

Apesar de seu papel importante para a economia nacional, as empresas militares também se envolvem em negócios de exploração à margem da lei, a exemplo da mineração de jade no norte do país (estado Kachin), feita em conjunto com empresas chinesas. Caso haja sinais de maior interferência do governo civil no sentido de abertura acelerada ou de maior fiscalização, provavelmente haverá reação por parte de elites militares e risco de crise política e socioeconômica.

Outro resultado importante das eleições de 2015 foi a perda de influência dos grupos representantes das minorias étnicas. Na maioria destas regiões, o NLD também conquistou maioria, mostrando força política também entre as minorias. Do ponto de vista da reconciliação nacional, a vitória massiva do NLD em todas as regiões indica legitimidade para conduzir o processo de cessar-fogo frente a boa parte dos grupos tradicionais, que perderam representatividade no parlamento nacional.

Por outro lado, as relações do governo central com os grupos paramilitares são essencialmente conduzidas pelas Forças Armadas, que comandam os ministérios chave da

segurança nacional e possuem uma abordagem muitas vezes antagônica à NLD. Ainda, o assunto pode servir como elemento de barganha para os militares, que perderam grande parte da representação parlamentar e não desejam perder ainda mais influência na política nacional.

O último evento relevante para o momento de transição política de Mianmar foi a votação do projeto de lei para a criação do posto de “Conselheiro do Estado”, o qual seria assumido por Suu Kyi. Apesar de ter sofrido forte oposição dos militares no parlamento, o projeto necessita apenas da aprovação do Presidente Htin Kyaw para ser colocado em prática. Por meio dessa lei, Suu Kyi estaria formalmente no centro da administração do novo governo em Mianmar, com poderes quase equivalentes a de um Primeiro Ministro.

Considerações finais

A política em Mianmar passa por um histórico processo de transição, que deverá produzir novos vencedores e perdedores. Precisamente por sua singularidade, se torna difícil prever resultados com alto grau de certeza. Por um lado, parece claro que as elites militares facilitaram a abertura política, seja por razões de ordem interna ou externa. No entanto, ao iniciar uma transição deste tipo, abriram espaço para processos que não estão mais sob seu controle.

O governo Suu Kyi passará pelos mais variados testes ao longo do tempo. Primeiramente, a NLD nunca governou

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qualquer unidade administrativa do país e carece de experiência na formulação e implementação de políticas públicas. Este desafio já seria de ordem maior e, embora o Parlamento tenha sofrido mudanças radicais, as bases da burocracia permanecem as mesmas.

Em termos de política externa, Mianmar pode retornar a seu histórico de neutralidade internacional. Este princípio basilar da Birmânia independente tem sido suprimido pela necessidade em subordinar-se à China nas últimas duas décadas. Com o engajamento positivo do Ocidente e do Japão, Mianmar tende a barganhar entre antigos e novos parceiros, à semelhança da própria postura dos países da ASEAN em relação às potências atuantes na Ásia (Ciorciari, 2009). Mianmar é um país com baixo nível de desenvolvimento que necessita de maiores reformas e de investimento estrangeiro. Contudo, um cenário negativo de crise política e intervenção militar suscitaria o retorno das políticas de poder externas, numa competição acirrada entre China, Índia e EUA (Ribeiro, 2015).

O maior dos objetivos será a reconciliação nacional, tarefa não cumprida por qualquer governo nacional, seja ele democrático, socialista autárquico, ou militar. O país sempre teve dificuldade em controlar seu próprio território e impedir a proliferação de insurgências armadas em regiões mais remotas. Ainda, esta missão deverá ser

cumprida com o auxílio e a chancela do

Tatmadaw (Forças Armadas), que iniciou

esforços significativos pela conciliação nos últimos anos.

Em contrapartida, há diversos interesses políticos e econômicos permeando a transição. Embora as elites militares tenham grande interesse em manter o processo atual, muitos de seus integrantes podem reagir a reformas que considerem potencialmente danosas à soberania nacional ou ao papel das atuais elites econômicas. Até o momento, Suu Kyi teve uma postura pendular, alternando entre conciliação com os militares e o desafio à ordem política vigente. Cabe à nova liderança civil balancear antagonismos e buscar uma postura mais próxima ao consenso, evitando retrocessos e o retorno da interferência de potências externas.

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Referências

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Egreteau, Renaud and Larry Jagan. Soldiers and diplomacy in Burma: understanding the foreign relations of the Burmese praetorian state. Singapore: IRASEC-NUS Press, 2013.

Haacke, Jürgen. Myanmar: now a site for Sino–US geopolitical competition? IDEAS reports, ed. SR015. London, London School of Economics, 2012.

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Lintner, Bertil. Great Game East: India, China and the Struggle for Asia's Most Volatile Frontier. Harper Collins India, 2012.

Ribeiro, Erik H. A rivalidade e a cooperação nas relações China-Índia: o

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Sharp, Gene. From Dictatorship to Democracy: A Conceptual Framework for Liberation. Boston: Albert Einstein Institution, 1993.

Steinberg, David and Hongwei Fan. Modern China-Myanmar Relations: Dilemmas of Mutual Dependence. Copenhagen: NIAS, 2012.

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Taylor, Robert H. The State in Myanmar. Honolulu: University of Hawaii Press, 2009.

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Referências

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