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HOMOPARENTALIDADES: GÊNERO E REPRODUÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE.

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HOMOPARENTALIDADES: GÊNERO E REPRODUÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE.

Bianca Alfano Psicóloga, Mestranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social/UERJ alfanob@hotmail.com

Resumo enviado e aprovado anteriormente.

O modelo de família nuclear (monogâmica e heterossexual), adotado a partir do século XVIII pelas sociedades ocidentais, e que ainda hoje alimenta os ideais de família, vem sendo confrontado por diversas mudanças sociais nas últimas décadas. O paradigma de que homem e mulher se complementam sexualmente pela função reprodutiva, seguindo papéis de gênero naturalizados, e que juntos oferecem o lugar mais propício para a socialização de crianças tem sido confrontado por outros arranjos e questionado enquanto padrão de normalidade.

As famílias brasileiras têm passado por processos de reorganização e diversificação, em seus tamanhos, formas de vivência e significados. Diferentes configurações ganham visibilidade a partir de mudanças como a conquista da autonomia econômica e social das mulheres, a adoção de uma política afirmativa da homossexualidade, os avanços de novas tecnologias reprodutivas, por exemplo. Coexistem famílias monoparentais, recompostas, sem filhos, de uniões estáveis, homoparentais, adotivas, entre tantas outras.

Este trabalho tem por objetivo conhecer e dar visibilidade às famílias homoparentais, motivado pela atuação profissional da autora como psicóloga em um grupo de direitos homossexuais do Rio de Janeiro. Pretende-se dialogar com pesquisas já realizadas sobre a temática, as reverberações da legitimidade ou não legitimidade dessas famílias, o próprio conceito de família e as especificidades e desafios das vivências de pais e mães homossexuais em seus arranjos parentais.

A literatura da área aponta quatro formas principais de filiação em famílias homoparentais, caracterizadas pela pluralidade: 1) filhos de relações heterossexuais anteriores do pai ou da mãe; 2) adoção legal ou informal por um dos parceiros; 3) uso de novas tecnologias reprodutivas, como a inseminação artificial ou fertilização medicamente assistida, ou a “barriga de aluguel” (proibida no Brasil); 4)

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co-parentalidade entre os(as) parceiros(as), sendo a co-parentalidade exercida igualmente pelos dois, incluindo os casos em que dois casais homossexuais, um feminino e um masculino, decidem usar as novas tecnologias para a procriação biológica.

No Brasil, a alternativa para ter um filho que mais se destaca nas pesquisas é a adoção, tanto entre homens (homossexuais, travestis e transexuais), segundo pesquisa realizada em Porto Alegre por Elizabeth Zambrano (“Parentalidades ‘impensáveis’: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais”, 2006), quanto entre mulheres e homens de lideranças gays e lésbicas, segundo pesquisa realizada pela psicóloga Anna Paula Uziel, no Rio de Janeiro, em conjunto com outros pesquisadores (“Parentalidade e conjugalidade: aparições no movimento homossexual”, 2006). A utilização ou planejamento para utilizar tecnologias reprodutivas no Brasil é pouco citado nas entrevistas realizadas. No país, o acesso a essas técnicas é restrito pelo alto custo financeiro, além de não existir uma legislação sobre o tema, ficando as decisões sobre quem poderia ou não se utilizar delas nas mãos dos médicos, regidos por uma resolução do Conselho Federal de Medicina. No caso dos homens, não é permitida a “barriga de aluguel”, diminuindo ainda mais sua autonomia corporal para chegar à paternidade (já que necessitam de um corpo feminino para a gestação).

Uma das questões a serem abordadas pelo presente trabalho é como são vivenciados os papéis de gênero nas famílias, assim como os papéis parentais. Na prática clínica de atendimento à população GLBTT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais) e na execução de atividades voltadas para a garantia de sua cidadania, a autora observou o quanto ainda permanece o esforço para desfazer idéias dicotômicas e naturalizantes que envolvem a sexualidade, como homem/mulher, sexo/gênero, ativo/passivo, reprodução/sexualidade, natureza/cultura, inclusive entre famílias homoparentais, apesar dos avanços nas discussões sobre gênero, masculinidades e feminilidades, identidades sexuais, ou depois do surgimento de teorias queer e políticas pós-identitárias.

No campo do Poder Legislativo e Judiciário nacional, especificamente com relação a conjugalidade e parentalidade homossexual, transformações positivas do ponto de vista dos Direitos Humanos têm sido alcançadas nos últimos anos, principalmente no sul do país. O debate em torno de alguns direitos como o patrimonial, principalmente após o advento da AIDS, nos anos 80, colocou em destaque a questão da conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo. E a reivindicação ao direito de ter filhos passou a ganhar

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força desde então, evidenciando algumas lutas relativas à homossexualidade, como o direito à união civil. Refletir sobre a pertinência, significados e conseqüências de se legalizar as famílias homoparentais, nas quais pelo menos um dos pais se autodesigna homossexual, reacende a discussão do quanto o parentesco ainda nos remete à idéia de “casamento” e de “família”, na nossa sociedade ocidental contemporânea.

Segundo Uziel (2006), alguns autores acreditam que pleitear esta legalização seria o mesmo que homossexuais se submeterem a um padrão heterossexual de normalidade; já outros defendem que esta seria uma possibilidade de reconhecimento e valorização de uma situação que já existe. A filósofa Judith Butler também discute esta temática, defendendo em seu artigo “O parentesco é sempre tido como heterossexual?” (2003) que essa questão não se resume apenas a tomar uma posição favorável ou contrária ao “casamento” homossexual; cada um terá uma razão pessoal, política, solidária ou até mesmo conservadora para defender ou se opor a ele. O que deve ser mantida é uma postura crítica frente ao binarismo “legítimo” e “ilegítimo”, “família” e “não família”. Não nega a existência de uma dupla fronteira na legitimação da união homossexual: politicamente, é crucial a reivindicação por inteligibilidade e reconhecimento, a garantia de direitos que, sem eles, a própria condição de “pessoa” é questionada; mas esta busca por “legitimidade” pode levar a novas formas de hierarquia social, de apoio e ampliação do poder do Estado, deslegitimando as práticas sexuais estruturadas fora dos vínculos do casamento e das pressuposições de monogamia; pode transformar uma deslegitimação coletiva em deslegitimação seletiva. A autora critica uma postura inaceitável de tornar o casamento/união a única maneira de sancionar ou legitimar a sexualidade e/ou a parentalidade; ou até mesmo pensar em direitos apenas a partir da existência de contratos legais, da legitimação do Estado.

Para a psicóloga Márcia Arán, em seu artigo “Políticas do desejo na atualidade: o reconhecimento social e jurídico do casal homossexual” (2005), é justamente essa reivindicação por igualdade de direitos que possibilita uma subversão dos pilares da normatividade ancorada na “diferença sexual”, suposta fundadora da cultura e da subjetividade. Este reconhecimento traz legitimidade e conseqüências práticas no plano do direito civil, mas ressalta, mais uma vez, a visão de Butler sobre o fato do “legítimo” ou “ilegítimo” não esgotarem as possibilidades imanentes no campo sexual.

Não podemos ignorar que as famílias homossexuais existem há muito tempo na realidade social. Atualmente, ganham maior visibilidade através da mídia e de ações da

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militância GLBTT, além dos estudos acadêmicos. Especificamente na Psicologia, são encontrados desde estudos que se contrapõem à legitimidade dessas famílias, reforçando a expectativa de que se parta, para a constituição de uma “família”, de uma biparentalidade, de sexos diferentes, para a garantia da formação “normal” de identidade de gênero da criança, até estudos criticando as próprias teorias e atuações psicológicas que continuariam a servir de embasamento para o que Michel Foucault denominou de "biopoder" no seu livro “História da sexualidade” (2003).

Assim, este trabalho também pretende contribuir para uma reflexão crítica sobre homoparentalidade na área da Psicologia. Vale ressaltar que a Psicologia tem se organizado para entender questões relativas à orientação sexual sob uma perspectiva de Direitos Humanos. No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia, além de adotar a Resolução n°01/99, pela qual os psicólogos deveriam atuar segundo princípios não discriminatórios, contribuindo para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas, também integra uma Rede Internacional de reflexão sobre orientação sexual na Psicologia, fundada em agosto de 2001 na Reunião Internacional sobre questões lésbicas, gays e bissexuais, realizada em São Francisco/EUA. Também fazem parte desta rede, por exemplo, a Associação Americana de Psicologia; a Associação Européia de Gays, Lésbicas e Bissexuais; a Sociedade Britânica de Psicologia; a Sociedade de Psicologia da Colômbia; o Instituto Holandês de Psicologia; a Sociedade Australiana de Psicologia e a Associação Canadense de Psicologia.

Seguindo este referencial da Psicologia, o de Direitos Humanos, o trabalho se propõe a apresentar as reflexões e dados pesquisados de maneira contextualizada, identificando e entendendo as variáveis culturais, econômicas e sociais envolvidas.

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XIV Encontro Nacional da Abrapso: Diálogos em Psicologia Social Sessões Temáticas – Eixo Temático: Gênero, sexualidade, etnia e geração

1. Introdução

As famílias brasileiras têm passado por processos de reorganização e diversificação nas últimas décadas, em seus tamanhos, formas de vivência e de significados. O modelo de família nuclear (monogâmica e heterossexual)1, adotado como parâmetro de normalidade a partir do século XIX pelas sociedades ocidentais, no qual homem e mulher se complementam sexualmente pela função reprodutiva, seguindo papéis de gênero naturalizados, e que juntos oferecem o contexto mais propício para a socialização de crianças, tem sido confrontado por diferentes arranjos familiares. Hoje coexistem famílias monoparentais, recompostas, sem filhos, de uniões estáveis, homoparentais, adotivas, entre tantas outras possibilidades que ganharam visibilidade a partir de mudanças sociais e econômicas conquistadas desde os anos 60 e 70 do século XX.

Nesse contexto, o debate sobre o reconhecimento social e jurídico de casais homossexuais no Brasil, nos últimos anos, tem se destacado como um dos pontos principais de embate ou mesmo de subversão da normalidade imposta à vida familiar. Segundo Arán & Corrêa (2004), este debate coloca em cheque a cultura da scientia sexualis (Foucault 1988, p.57), permitindo-nos repensar os dispositivos de parentesco, de filiação e de definição de diferença entre os sexos. E esta é a proposta deste trabalho, repensar tais conceitos e as reverberações da legitimidade ou não das famílias homoparentais.

2. O parentesco é sempre tido como heterossexual?

Poucas pessoas questionam a tríade heterossexualidade-casamento-filiação como uma construção histórica e social. Pelo contrário, estes conceitos são tão naturalizados que qualquer constituição diferente desta é caracterizada de maneira conservadora, por romper radicalmente com a manutenção de uma invisibilidade tolerada à não-heterossexualidade e colocar em risco o status quo desta tríade.

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Em 2003, Judith Butlerousou intitular um artigo justamente com esta pergunta, discutindo como o conceito de parentesco permanece, na sociedade contemporânea ocidental, atrelado à instituição “casamento”, por sua vez, legitimadora da instituição “família”. Segundo a autora, o casamento confere estatuto legal à forma de família e reforça, então, a idéia de que sexualidade deve se prestar às relações reprodutivas. É como se “família” equivalesse apenas à união entre um homem e uma mulher, que desejam procriar e constituir uma instituição “natural” a priori e organizadora da cultura, uma instituição “universal”, encontrada em “todas” as sociedades.

No entanto, alguns antropólogos e historiadores já demonstraram que existem variações temporais, espaciais e em uma mesma época e local do que chamamos de família. O formato “pai-mãe-filhos”, mais comum nas sociedades ocidentais, no qual os pais são, ao mesmo tempo, os responsáveis biológicos pela procriação, pelo parentesco, pela filiação e pelo cuidado afetivo e social de seus filhos, é um modelo de família adotado apenas a partir do século XIX (Ariés, 1981, apud Zambrano, 2006, p.3).

Segundo Lenoir (2005), na nossa sociedade as definições de família e as representações às quais elas estão ligadas são construções sociais consagradas pelo Estado que, graças ao controle dos instrumentos jurídicos, tem o poder de transformá-las em “fatos”. A visão de família “normal” do Estado é compartilhada tanto por suas agências controladoras, por exemplo as estruturas sociais de direito, de educação e de saúde, como pelas próprias concepções e subjetividades dos indivíduos, a partir de um “Estado incorporado” (p.157). Ficam camuflados com esta capa de “normalidade” todo o processo de construção social dessa família, a inserção controlada dos corpos no aparelho de produção estatal, o ajustamento e regulação populacional aos processos econômicos, o dispositivo de sexualidade e o biopoder discutidos por Foucault (1988). É imposta, assim, uma definição de família através da consolidação de uma moral familiar de determinada camada social dominante, que exerce seu poder, qualquer que seja sua natureza, para garantir a sua manutenção e perpetuação. Denominado de “familismo” por Lenoir (2005), apesar de este processo vir se transformando diante dos deslocamentos nas esferas pública e privada provocados pelas mudanças sociais de gênero nas últimas décadas, ele se atualiza nos discursos conservadores sobre a “crise da família” ou a defesa da legitimidade de uma “ordem simbólica” cultural.

Mesmo em países onde já existe o reconhecimento jurídico de casais homossexuais, a importância de uma “ordem simbólica” nas configurações familiares é

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um dos argumentos usados por especialistas e acadêmicos, principalmente lacanianos e outros psicanalistas, como justificativa de suas posições contrárias à filiação homoparental. A heterossexualidade seria um imperativo para se pensar filiação e constituição da identidade sexual da criança, tendo como base o estruturalismo de Lévi-Strauss sobre parentesco. Segundo estes opositores, as relações homossexuais negariam a diferença dos sexos; a própria cultura exigiria que uma criança fosse gerada por um homem e uma mulher, garantindo uma referência dual para sua própria iniciação na “ordem simbólica”, a partir da qual ela poderia criar sua identidade e inteligibilidade cultural (Butler, 2003, p.244).

O argumento contra o parentesco homossexual é de que ele não é “natural” e põe em risco a “cultura”, na medida em que criaria crianças artificialmente, não pelo intercurso sexual. Não se poderia abolir, neste argumento, a “dupla origem” das crianças: um homem ocuparia o lugar de pai e uma mulher o lugar de mãe. Mas, para a autora, “ressuscitar” este discurso estruturalista das diferenças sexuais neste debate, mesmo após reformulações antropológicas e revisões do próprio Lévi-Strauss, serviria para camuflar (ou, na verdade, escancarar) um racismo europeu, baseado na existência de uma unidade cultural a ser preservada, a partir da reprodução da criança. Esta concepção de cultura possibilita visões cada vez mais estreitas sobre a formação de gênero e de arranjos sexuais, apesar de ser cotidianamente desafiada pela existência de diferentes configurações sociais de família.

Historicamente, a instituição do casamento vem perdendo sua hegemonia. As fronteiras entre relações de parentesco e práticas comunais e afiliativas estão cada vez mais tênues: filiação não depende mais da biologia com a inseminação artificial; as políticas internacionais de adoção reforçam a desvinculação entre parentesco e consangüinidade. O ponto em destaque aqui é a “‘ruptura’ do parentesco tradicional que não somente desloca o lugar central das relações biológicas e sexuais de sua definição, mas confere à sexualidade um domínio separado daquele do parentesco” (Butler, 2003, p.256).

3. Homoparentalidade e alguns desafios na sociedade contemporânea

Não há como ignorar que as famílias homoparentais existem há muito tempo na realidade social. Atualmente, ganham maior visibilidade através da mídia e de ações da

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militância GLBTT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais), além dos estudos acadêmicos. A literatura da área aponta quatro formas principais de filiação em famílias homoparentais: 1) filhos de relações heterossexuais anteriores do pai ou da mãe; 2) adoção legal ou informal por um dos parceiros; 3) uso de novas tecnologias reprodutivas, como a inseminação artificial ou fertilização medicamente assistida, ou a “barriga de aluguel”; 4) co-parentalidade entre os(as) parceiros(as), sendo a parentalidade exercida igualmente pelos dois, incluindo os casos em que dois casais homossexuais, um feminino e um masculino, decidem usar as novas tecnologias para a procriação biológica (Grossi, 2003).

No Brasil, a alternativa para ter um filho que mais se destaca é a adoção, tanto entre homens (homossexuais, travestis e transexuais), segundo pesquisa realizada em Porto Alegre por Zambrano (2006), quanto entre mulheres e homens de lideranças gays e lésbicas, segundo pesquisa realizada por Uziel et al (2006), no Rio de Janeiro. A utilização ou planejamento para utilizar tecnologias reprodutivas no Brasil são pouco citados nas entrevistas realizadas. No país, o acesso a essas técnicas é restrito pelo alto custo financeiro, além de não existir uma legislação sobre o tema, ficando as decisões sobre quem poderia ou não se utilizar delas nas mãos dos médicos, regidos por uma resolução do Conselho Federal de Medicina. No caso dos homens, não é permitida a “barriga de aluguel”, diminuindo sua autonomia corporal para chegar à paternidade (já que necessitam de um corpo feminino para a gestação).

As possibilidades de filiação homoparental legal no Brasil se restringem ainda mais se pensarmos que, no processo de adoção, a instância jurídica é acionada, e o constrangimento frente a posições homofóbicas por parte de juízes e psicólogos pode ser acentuado. Mais uma vez, Uziel (2004) traz diversos exemplos, em discursos de psicólogos do judiciário envolvidos em casos de adoção, do uso de algumas teorias psicanalíticas e de modelação social que justificariam ressalvas em relação às famílias monoparentais e/ou de casais homossexuais. “A naturalização da família composta por pai, mãe e filhos, defendida inclusive em suas raízes biológicas, não abre espaço para

outras configurações” (p.96-97). No caso da família monoparental2, apesar de ser

reconhecida juridicamente, aceita enquanto “normalidade” e de ser uma realidade cada

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Conforme apontado por Uziel (2004), a família monoparental está sendo citada neste texto justamente por ser uma das configurações mais usuais para famílias cujos pais são homossexuais. No Brasil, casais homossexuais não podem adotar juridicamente uma criança nem têm direito à reprodução assistida enquanto par parental, já que o status de “família” permanece vinculado ao “matrimônio”, não concedido legalmente a essas uniões.

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vez mais freqüente, segundo a autora permanecem discursos reticentes quanto à sua adequação para a educação e convívio de uma criança, por parte de psicólogos, juízes, assistentes sociais e defensores públicos. Em geral, são argumentos que reforçam a expectativa de que se parta, para a constituição de uma família, de uma biparentalidade, de sexos diferentes, entendendo a monoparentalidade com um fracasso, uma falta, uma estrutura problemática do ponto de vista psicológico.

Com relação às famílias homoparentais reconhecidas socialmente, o discurso dos psicólogos se contradiz. O risco maior, nestes casos, é justamente a presença de um/a parceiro/a, da antes defendida biparentalidade. A autora detectou uma facilidade maior em aceitar a adoção por homossexuais solteiros. Os temores mais comuns são dos filhos se tornarem homossexuais, de serem estigmatizados ou rejeitados em função de seus pais serem homossexuais, do possível desenvolvimento de patologias e de abuso sexual por parte, principalmente, de pais homossexuais do sexo masculino, sem contar o de extermínio da espécie, caso a homossexualidade seja adotada por um número significativo de pessoas.

4. A polêmica da legimitidade.

Apesar dessas dificuldades apresentadas, no campo dos Poderes Legislativo e Judiciário nacionais, especificamente com relação à conjugalidade e parentalidade homossexual, transformações positivas do ponto de vista dos Direitos Humanos têm sido alcançadas nos últimos anos, principalmente no sul do país. O debate em torno de alguns direitos como o patrimonial, principalmente após freqüentes injustiças cometidas com parceiros(as) daqueles(as) que faleceram de AIDS, nos anos 80, colocou em destaque a questão da conjugalidade entre pessoas do mesmo sexo. E a reivindicação ao direito de ter filhos passou a ganhar força desde então, evidenciando algumas lutas relativas à homossexualidade, como o direito à união civil. Refletir sobre a pertinência, significados e conseqüências de se legalizar as famílias homoparentais, nas quais pelo menos um dos pais se autodesigna homossexual, reacende a discussão do quanto o parentesco ainda remete à idéia de “casamento” e de “família”, na sociedade ocidental contemporânea.

Enquanto alguns autores acreditam que pleitear esta legalização seria o mesmo que homossexuais se submeterem a um padrão heterossexual de normalidade, outros

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defendem que esta seria uma possibilidade de reconhecimento e valorização de uma situação já existente (Uziel et al, 2006). É instigante o debate entre estas duas fronteiras da legitimação da união homossexual: politicamente, é crucial a reivindicação por inteligibilidade e reconhecimento, por garantia de direitos que, sem eles, a própria condição de “pessoa” é questionada; mas esta busca por “legitimidade” pode levar a novas formas de hierarquia social, de apoio e ampliação do poder do Estado, deslegitimando as práticas sexuais estruturadas fora dos vínculos do casamento e das pressuposições de monogamia; pode transformar uma deslegitimação coletiva em deslegitimação seletiva (Butler, 2003). Para a autora, toda esta discussão não pode prescindir de uma visão crítica, auto-reflexiva e não-dogmática. Seria um conservadorismo inaceitável tornar o casamento a única maneira de sancionar ou legitimar a sexualidade e/ou a parentalidade, independente de orientação sexual, ou até mesmo pensar em direitos apenas a partir da existência de contratos legais, da legitimação do Estado. A autora atenta para o quanto permanecemos presos à uma normatização, ao discurso de “legitimidade” ou, no caso, de “quase legitimidade”. E isto, inevitavelmente, implicaria uma hierarquização das vidas homossexuais como legítimas ou ilegítimas, já que a delimitação da legitimação, segundo ela, ocorre somente através de uma exclusão, do que Agamben (2004) chamou de um estado de exceção.

“Dada a urgência de se defender uma posição política, naturalizamos as opções legíveis dentro do campo sexual. (...) Quanto ao casamento gay, é cada vez mais importante manter a tensão viva entre guardar uma perspectiva crítica e fazer uma reivindicação politicamente legível”. (Butler, 2003, p.230)

Assim como Butler, Vianna (2004) também defende uma reflexão crítica sobre os sujeitos morais que são positivados, legitimados, nos discursos em defesa dos direitos sexuais. A autora atenta para o perigo de se construir uma “política de sujeitos” ao invés de uma “política de princípios” ao se buscar legitimação e “especificação” dos sujeitos de direitos minoritários, atrelando discussões mais amplas ao interesse de grupos específicos. Segundo a autora, no caso do debate em torno da parceria civil, por exemplo, o foco permanece na homossexualidade, em vez de questionar as possibilidades de composição de novos arranjos conjugais. “Desse modo, a dinâmica das políticas de reconhecimento, embora fundamentais para garantir novos direitos ou

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estender direitos já existentes a indivíduos e grupos que deles não podiam desfrutar, carrega o perigo de substancializar “problemas” em “personagens” (p.115).

Os dados de Uziel et al (2006) reforçam a necessidade de se manter uma prática crítica frente a este dilema. As temidas novas formas de hierarquização, discutidas por Butler, puderam ser encontradas nos próprios discursos das lideranças do movimento homossexual carioca, se não referentes às identidades sexuais de seus participantes3, então em uma hierarquização de “bandeiras” a serem defendidas politicamente. Apesar de a parentalidade não ser ignorada pelos grupos entrevistados, esta não se apresentou como uma bandeira para o movimento, segundo Uziel, pelo menos enquanto a hierarquia prevalecer e outros temas se mostrarem mais básicos ou estratégicos e⁄ou enquanto a parentalidade for vista como reivindicação individual e não coletiva, de igualdade de direitos (p.16).

5. Conclusão

O texto abordou, de maneira crítica, alguns dos argumentos encontrados na discussão proposta, conceitos naturalizados, como os binarismos legítimo⁄ilegítimo, família⁄amizade, heterossexual⁄homossexual. E por mais que se exercite esta visão crítica, algumas ressalvas devem ser apontadas a diversos conceitos adotados neste artigo. Um bom exemplo é o próprio termo “homoparentalidade”, que reforça uma associação que se deseja desconstruir: a "orientação sexual" (homoerótica) dos pais/mães e o cuidado dos filhos (parentalidade). Os estudos sobre homoparentalidade têm demonstrado que não é a orientação sexual dos pais/mães que determina uma boa parentalidade, mas sim suas capacidades de cuidar e ter relacionamentos de qualidade com seus filhos. O termo também não é suficiente quando se trata da parentalidade exercida por travestis e transexuais, já que se refere apenas à orientação sexual, deixando de lado as identidades de gênero e a mudança de sexo (Zambrano, 2006). Outro conceito que deve ser analisado com cautela é o de “família”, levando em consideração as discussões de Lenoir (2005) e os processos de normatização a que o termo se refere.

Porém, embora reconhecendo os limites destes termos, não acredito que a questão principal seja a nomenclatura utilizada para estes arranjos, tampouco a tomada

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de posição favorável ou contrária à legitimação do “casamento” ou “filiação” homossexual. Concordo com Butler (2003) quando diz que cada um terá uma razão pessoal, política, solidária ou até mesmo conservadora para defender ou se opor a eles. Sem dúvida nenhuma, a reivindicação por igualdade de direitos possibilita uma subversão dos pilares da normatividade ancorada na “diferença sexual”, suposta fundadora da cultura e da subjetividade, e este reconhecimento traz legitimidade e conseqüências práticas no plano do direito civil (Arán, 2005). O uso dos termos “homoparentalidade” e “família homoparental” tem contribuído para dar visibilidade social e acadêmica a esses arranjos, sendo encontrados em referências bibliográficas sobre família e parentesco nas sociedades contemporâneas. Mas vale ressaltar, mais uma vez, o fato do “legítimo” ou “ilegítimo” não esgotarem as possibilidades que podemos encontrar no campo sexual, e de não abrirmos mão da construção de uma política sexual crítica.

“Pois tão certo quanto o fato de que os direitos ao casamento e à adoção e, de fato, à tecnologia reprodutiva, devam ser assegurados a indivíduos – bem como sua aliança – fora da moldura de casamento, seria uma drástica privação da política sexual progressiva permitir que o casamento e a família, ou mesmo o parentesco, fossem os parâmetros exclusivos dentro dos quais se pode pensar a vida sexual.”(Butler, 2003, p.260)

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Referências

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