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Apresentamos os Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial, realizado em Belém do Pará, de 3 a 6 de Setembro de 2012.

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Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial. A escravidão moderna no Atlântico sul português / Rafael Chambouleyron & Karl-Heinz Arenz (orgs.). Belém: Editora Açaí, volume 16, 2014.

234 p.

ISBN 978-85-61586-64-5

1. História – Escravismo moderno. 2. Tráfico negreiro – Relações escravistas - História. 3. Resistência Escrava – Alforrias – Escravismo. 4. História.

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Apresentamos os Anais do IV Encontro Internacional de História Colonial, realizado em Belém do Pará, de 3 a 6 de Setembro de 2012. O evento contou com a participação de aproximadamente 750 pessoas, entre apresentadores de trabalhos em mesas redondas e simpósios temáticos, ouvintes e participantes de minicursos. O total de pessoas inscritas para apresentação de trabalho em alguma das modalidades chegou quase às 390 pessoas, entre professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação. Ao todo estiveram presentes 75 instituições nacionais (8 da região Centro-Oeste, 5 da região Norte, 26 da região Nordeste, 29 da região Sudeste e 7 da região Sul) e 26 instituições internacionais (9 de Portugal, 8 da Espanha, 3 da Itália, 2 da França, 2 da Holanda, 1 da Argentina e 1 da Colômbia). O evento só foi possível graças ao apoio da Universidade Federal do Pará, da FADESP, do CNPq e da CAPES, instituições às quais aproveitamos para agradecer. Os volumes destes Anais correspondem basicamente aos Simpósios Temáticos mais um volume com alguns dos textos apresentados nas Mesas Redondas.

Boa leitura.

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Sumário

Escravidão e liberdade entre espaços e negociações

Aldinízia de Medeiros Souza...1 Práticas de micro economia de escravos e

quilombolas no sul da Bahia entre 1800-1850

Alex Andrade Costa...14 Da Costa africana ao litoral amazônico: tráfico negreiro para

o Estado do Maranhão e Grão-Pará (1707-1750)

Benedito Carlos Costa Barbosa...27 Escravidão e mundos do trabalho: escravos e libertos

enquanto exploradores do ouro - Minas Gerais, século XVIII

Dejanira Ferreira de Rezende ...42 Revisitando o tráfico interno de escravos para o

Maranhão no último quartel do século XVIII

Diego Pereira Santos...55 Diálogos atlânticos: mulheres escravizadas na

São Paulo colonial (século XVIII)

Fabiana Schleumer ...68 Aspectos sobre escravidão e famílias de cor

no Recife colonial (séculos XVIII-XIX)

Gian Carlo de Melo Silva...79 Do Engenho da Ponta à Prefeitura de Maragogipe: aspecto de

superação social de uma família negra no Recôncavo Baiano

Itamar da Silva Santos...91 Um olhar sobre os Angolas na capitania de Sergipe Del Rei setecentista Joceneide Cunha... 100 Identidades em movimento: “senhores” e “escravos”

no cotidiano escravista brasileiro

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de compadrio: São Tomé das Letras – Minas Gerais (1840-1860)

Juliano Tiago Viana de Paula... 125 Embriaguez, religião e patriarcalismo

Lucas Endrigo Brunozi Avelar ... 131 Ser Senhor de Escravos no Recôncavo do Rio de Janeiro:

estratégias de legitimação do poder senhorial na Freguesia de São Gonçalo do Amarante, século XVIII

Marcelo Inácio de Oliveira Alves ... 141 Escravidão e Antigo Regime em tempos de mudanças: o conflito

entre a Irmandade de São Crispim e São Crispiniano e a Câmara; Rio de Janeiro, segunda metade do século XVIII e início do XIX

Mariana Nastari Siqueira... 159 O tráfico transatlântico de escravos para o Maranhão:

organização e distinções (séculos XVII – XVIII) Patricia Kauffmann Fidalgo Cardoso da Silveira

Tarantini Pereira Freire... 170 A posse de escravos e seu cotidiano na capitânia de Goiás - (1808-1888) Pedro Luiz do Nascimento Neto... 186 Negros na sociedade colonial Acarauense

Raimundo Nonato Rodrigues de Souza... 198 No caminho das mulas (tropas): a instituição da escravidão

no planalto da província de Santa Catarina, 1778 - 1788

Renilda Vicenzi ... 213 O Atlântico e a escravidão entre o XVII e o XVIII

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Escravidão e liberdade entre espaços e neçociações

Aldinízia de Medeiros Souza1 Desembarcados no Brasil como escravos, os africanos tiveram que construir novas formas de organização social e cultural. Embora a historiografia, durante muitos anos, tenha abordado prioritariamente o escravo como mão-de-obra, diversos estudos acerca da cultura desenvolvida pelos escravos e libertos de origem africana têm sido realizados e, com isso promoveram uma maior visibilidade à participação africana na sociedade brasileira, na medida em que enfatizaram o hibridismo da cultura e a ação dos escravos atribuindo-lhes o papel de sujeito da própria história.

Tanto os estudos econômicos quanto os culturais são de grande importância para uma melhor compreensão da sociedade brasileira e de como esta foi formada. Nesse sentido, a história social da escravidão tem trazido à luz novos olhares sobre os escravos enquanto atores sociais. Além disso, os estudos de africanistas também têm colaborado para uma visão mais positiva dos africanos, contrária à ideia de povos atrasados, revelando, desse modo, a multiplicidade e variedade existente na África tanto no que diz respeito à economia quanto à cultura. Destarte, John Thornton2 expõe que a África exerceu um papel ativo no comércio de escravos uma vez que “o processo de compra, transferência e venda de escravos estava sob o controle de estados e elites africanos” de maneira que o papel exercido pela África neste comércio foi voluntário e sob o controle dos detentores de poderes locais, pois entre os africanos existia um comércio de escravos decorrente da dinâmica interna,3 o que o autor expõe é a autonomia de governantes e elites locais neste comércio, fato que contesta a percepção de passividade da África no processo histórico. Igualmente, aborda a autonomia dos escravos para participar da vida cultural nas regiões onde se estabeleceram, demonstrando ainda, que a dinâmica de troca cultural com os europeus já existia na África, portanto não era algo exclusivo da diáspora.

Os africanos, ao chegarem ao continente americano, utilizaram a cultura para adaptar-se, sendo assim, “recriaram uma cultura africana na América, embora essa nunca fosse idêntica à que eles haviam deixado na África.”4 A adaptação envolve também a capacidade desses africanos e de seus descendentes de negociarem com seus senhores para as práticas de atividades culturais próprias. Logo, no contexto do cativeiro e em meio ao cumprimento de obrigações para com os seus senhores, os cativos desenvolveram uma dinâmica própria no mundo escravista.

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História e espaço, UFRN. Bolsista capes. 2 THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 49.

3 Ibidem, p. 182. 4 Ibidem, p. 413.

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A historiografia recente da escravidão tem enfatizado o papel desempenhado por escravos, considerando-os pessoas ativas do processo histórico, capazes de realizar estratégias com a finalidade de conseguir melhores condições de vida. As estratégias poderiam ser de resistência ou mesmo de acomodação no intuito de obter algum benefício do senhor.

Essa linha de pensamento tem uma base teórica nas concepções de Thompson sobre a consciência de classe. Este autor não considera a consciência de classe como efeito do modo de produção, mas sim como uma consciência construída pela classe no próprio processo histórico, ou seja, a classe se auto reconhece como classe.5 Essa percepção permite uma abordagem dos sujeitos enquanto atores sociais conscientes de suas condições na sociedade, diminuindo o peso das estruturas sobre as ações humanas. Embora Thompson reconheça a dificuldade do termo classe para as sociedades anteriores ao capitalismo industrial, do século XIX, ele observa que o uso dessa categoria deve-se ao sentido de luta de classes.6 Para este autor, o conceito universal é o de luta de classes, as relações sociais perpassam pelos antagonismos existentes nas sociedades.

As concepções de Thompson sobre a consciência da própria condição de classe têm sido adequadas aos estudos sobre escravidão no Brasil, na medida em que o escravo é percebido enquanto sujeito, consciente de sua própria condição. Nessa linha de pensamento, Silvia Hunold Lara,7 bem como Sidney Chalhoub,8 procuraram observar na documentação analisada, tais como processos crime e ações civis de liberdade, a “voz” do escravo, de maneira que ambos opõem-se à ideia de coisificação do escravo enquanto ser incapaz de ação autônoma, muito difundida pelo que ficou conhecida como a Escola Sociológica Paulista.9 Na concepção daqueles autores, os escravos agiam de acordo com uma lógica própria e aproveitaram as oportunidades para agirem com mais autonomia.

As vilas e cidades no período colonial, enquanto espaços públicos, favoreciam a sociabilidade dos escravos. A circulação pela cidade possibilitava o contato com homens livres e libertos nas mercearias, praças, mercados e outras áreas públicas. Igualmente, nas vilas e cidades havia maiores possibilidades de desempenhar atividades que permitissem ao escravo a formação de um pecúlio, uma vez que a existência de escravos de ganho nesses espaços era bastante comum. A atuação de

5 SILVA, Sergio. Thompson, Marx, os marxistas e outros. In: THOMPSON. E. P; NEGRO, Antônio Luigi, SILVA, Sergio (org). A peculiaridade dos ingleses. Campinas: Ed da Unicamp, 2001. p. 66.

6 Ibidem, p. 273.

7 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

8 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

9 A Escola Sociológica Paulista tem entre seus representantes Florestan Fernandes; Fernando Henrique Cardoso; Otávio Ianni.

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negras vendendo doces, frutas e quitutes, as chamadas negras de tabuleiro é uma referência presente na historiografia. Outras atividades, como as artesanais, eram realizadas por escravos urbanos. Estes escravos de ganho trabalhavam ao longo do dia muitas vezes sem estar sob os olhos do senhor, mas tinham como obrigação pagar-lhe um jornal, uma parte do que era arrecadado com a realização do seu trabalho, o que ficava para si era, muitas vezes, acumulado para comprar a carta de liberdade.

Existiam, mesmo, redes de comunicação e informação – no meio das quais, não raras vezes integravam-se indivíduos brancos – que se encarregavam de vulgarizar as maneiras mais usuais e eficazes de sensibilizar os senhores, bem como de negociar acordos de diferentes tipos com eles. Além disso, divulgavam as possibilidades tanto de existirem possíveis legados materiais, deixados pelos defuntos proprietários, quanto do escravo procurar a justiça para requerer seus direitos, por vezes negados por herdeiros, em alguns casos.10

Outro aspecto favorável aos escravos nessa condição de ganho era a mobilidade pela cidade e maior autonomia que possuíam em relação aos demais escravos, pois com o pecúlio que acumulavam poderiam “viver sobre si”, o que significava uma certa liberdade de circular pela cidade, ou mesmo de morar em lugar distinto dos senhores, e se auto sustentar.11 Além disso, na cidade, muitos escravos fugidos poderiam se passar por livres, usar outros nomes o que lhes permitia fazer da cidade esconderijo, pois a própria dinâmica da cidade tornava difícil distinguir escravos de libertos.12

Como se percebe, a rede de sociabilidades entre libertos e escravos se formava nos estabelecimentos comerciais, públicos, bem como nos espaços festivos. Apesar da desconfiança das autoridades, esses espaços, além de integrar o negro nas atividades das vilas e cidades, serviam também para a integração social entre libertos e escravos no sentido de cooperação para resolução de conflitos ou conquista de liberdade de cativos. Os proprietários e autoridades eram obrigados a reconhecer uma certa autonomia dos escravos, o que pode ser observado na permissão para que eles realizassem suas festas e praticassem seus cultos. “Instituições como essas são, claramente frutos de uma enorme negociação política por autonomia e

10 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 35.

11 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade… 12 Ibidem.

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reconhecimento social. É nessa micropolítica que o escravo tenta fazer a vida e, portanto, a história.”13

As concepções historiográficas recentes sobre as alforrias também procuram ver a atuação do escravo no processo de obtenção da carta de liberdade, logo, estas são vistas como conquistas dos escravos e não como concessão dos senhores. Por essa percepção, observa-se a ação centrada no escravo, de maneira a reconhecer o esforço realizado por eles para obter a sua carta de liberdade, ao contrário de uma concepção centrada no senhor, na qual a alforria é dada por um senhor benevolente. O que se enfatiza nessa historiografia recente é o papel do escravo como negociador de sua liberdade, o que muitas vezes era realizado com o auxílio de intermediários, daí a importância das redes de sociabilidades estabelecidas por eles nas vilas e cidades. Os escravos procuravam aproveitar situações que lhes favorecessem conseguir a alforria. A obtenção da carta de alforria poderia ocorrer por meio da compra, por meio de realização de condições impostas ao escravo por um determinado tempo, ou ainda poderiam ser conseguidas gratuitamente. Assim, as alforrias poderiam ser onerosas, ou gratuitas. Contudo, conseguir uma carta de alforria gratuitamente era mais difícil. Na maioria das vezes, como os estudos sobre alforria têm demonstrado, os escravos para tornarem-se libertos teriam que pagar com dinheiro ou trabalho ao longo de vários anos ou obtinham a liberdade mediante cláusulas de prestação de serviços, em caso de cartas de alforria condicional.

Autores como Stuart Schwartz14 e Mary Karasch15 deram grande contribuição ao estudo das alforrias ao percebê-las como uma conquista dos escravos, resultante do esforço dos cativos, com base em negociações muitas vezes difíceis, pois não havia lei que garantisse aos escravos a compra da liberdade, mesmo que estes possuíssem o recurso para o pagamento. No silêncio da lei, havia a prática da obtenção da alforria enquanto costume, contudo, a inexistência de uma garantia legal implicava necessariamente em uma negociação para a compra da alforria, pois somente em 1871, com a Lei do Ventre Livre,16 o direito ao pecúlio e à compra da alforria mediante indenização de preço tornaram-se garantias legais.

13 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 21.

14 SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684-1745. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001.

15 KARASCH, Mary C. A carta de alforria. In: A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 439-479.

16 A lei 2040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, garantiu o direito do escravo acumular um pecúlio, transferível por herança aos filhos, garantiu o valor da alforria estabelecido pela justiça caso não houvesse acordo entre o senhor e o escravo, e ainda, limitou o tempo de prestação de serviços para sete anos nos casos das alforrias condicionais.

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Até pelo menos 1871, era preciso que o escravo não contrariasse o proprietário para que o seu reconhecimento viesse pela via espontânea. Mas isso não bastava. Era necessário ter meios de ganho, além de boas relações com os demais libertos, com outros escravos e, principalmente com alguém melhor relacionado junto à classe proprietária. Com sorte, este poderia indenizar o senhor, negociar sua liberdade, ou ainda orientá-lo na melhor estratégia para a alforria […]. O fato de as alforrias terem se restringido ao campo costumeiro até a década de 1870, baseada em acordos orais, obrigava que os escravos tivessem bom relacionamento com seus proprietários para intentarem a liberdade. Mostrar-se merecedor da carta de alforria era uma estratégia usada largamente pelos escravos.17

O costume da prática da alforria sob indenização de preço nem sempre era reconhecido pelos herdeiros, como mencionou Bertin. Nesse caso pode-se perceber o costume como um lugar de conflito de interesses entre senhores e escravos.18 Embora a constituição do pecúlio e a compra da alforria fosse uma prática existente na sociedade escravista antes de 1871, muitas vezes os escravos poderiam encontrar barreiras na realização da compra de sua liberdade, caso isso contrariasse os interesses dos senhores. O reconhecimento do costume pela lei de 1871 para Chalhoub representa o reconhecimento legal de direitos conquistados pelos escravos.19

Percebe-se claramente na explanação de Bertin, anteriormente citada, o reconhecimento da ação consciente do escravo para que seu senhor o considere merecedor da alforria. Desse modo podemos supor que havia uma tensão velada entre ambas as partes envolvidas na negociação da liberdade.

Embora a carta de alforria fosse uma prerrogativa do senhor, esse documento dependia do esforço do escravo. Nesse sentido, os estudos sobre a manumissão, tendo como fonte as cartas de alforria, buscam nas entrelinhas destes documentos identificar a participação do escravo no processo de obtenção da liberdade. Maria Helena Machado também aborda a carta de alforria como um elemento de negociação entre senhores e escravos, “sendo a aquisição da liberdade pelo cativo, resultado de um jogo de perdas e ganhos, a depender da cobiça, mesquinhez e

17 BERTIN, Enidelce. Alforrias em São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004, p. 105-106.

18 A percepção do costume como lugar de conflito tem em Thompson um referencial teórico, uma vez que este historiador analisa os conflitos em torno de diferentes norma e valores. Ver THOMPSON, Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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hipocrisia senhoriais.”20 Para essa autora, “as cartas denunciam situações muito menos enobrecedoras do comportamento senhorial, situações na qual a escravidão/alforria foi duramente negociada.”21 As relações entre senhores e escravos são então percebidas como fruto de uma complexa rede de relações em que “escravos e senhores manipulam e transigem no sentido de obter a colaboração um do outro.”22 Em meio a complexidade das relações entre senhores e escravos, a alforria pode representar tanto uma promessa, enquanto elemento de dominação do senhor, como a ação do escravo que busca por sua liberdade; tanto a afinidade como o controle presentes nas relações entre senhores e escravos se entrelaçam no jogo de palavras das cartas.

A negociação é considerada por Sheila Faria23 um elemento importante mesmo nas cartas de alforria onerosas, e não apenas nas alforrias gratuitas. Aquelas também dependiam de uma negociação, pois não havia obrigação para o senhor aceitar a alforria mesmo sob indenização de preço. Silvia Hunold Lara interpreta essa negociação como forma de resistência. Não se trata de um conceito de resistência restrito a fugas, rebeliões e atos violentos. Para a autora, essa resistência não está moldada

pelo binômio ação-reação, nem por uma classificação baseada na violência […], são ações de resistência e ao mesmo tempo de acomodação, recursos e estratégias variados de homens e mulheres que, em situações adversas, procuravam salvar suas vidas, criar alternativas, defender seus interesses.24

A luta dos escravos pela liberdade não se configura apenas com revoltas ou fugas, mas também como uma luta travada diariamente por meio das atitudes, de modo que “no Brasil como em outras partes, os escravos negociaram mais do que lutaram abertamente sobre o sistema.”25 As negociações e outras formas de resistências cotidianas surgem como forma de melhorar a situação do escravo dentro do sistema e, ocorreu em diversas sociedades. Para John Thornton26 esse tipo de resistência é

20 MACHADO, Maria Helena P. T. Sendo escravo nas ruas: a escravidão urbana na cidade de São Paulo. In: PORTA, Paula. História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 43.

21 Ibidem, p. 43.

22 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito…, p. 16.

23 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna, família e cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1998, p. 110.

24 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência…, p. 345.

25 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito…, p. 14.

26 THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico…, p. 364.

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resultante de um sistema de exploração e não uma forma de resistência exclusiva da África. Não se trata pois, de uma “herança” africana, mas de uma atitude autônoma do sujeito em meio à exploração do cativeiro.

É a partir das negociações estabelecidas com o senhor nessa complexa rede de relações que o escravo encontrava oportunidade de adquirir um pecúlio. A aquisição do pecúlio deixa clara a participação do escravo em atividades econômicas variadas e atesta que “a população cativa foi capaz de operar com êxito dentro da economia de mercado.”27 À custa do empenho pessoal, os escravos puderam juntar algum dinheiro e comprar sua alforria. Pelo menos é o que se pode perceber nos estudos aqui citados, seja nos de Kátia Mattoso28 e Stuart Schwartz29 para os séculos XVII e XVIII na Bahia, ou no de Mary Karasch30 para o século XIX no Rio de Janeiro. Estes historiadores têm demonstrado a existência de uma maior possibilidade de compra de alforria nas cidades, onde as atividades de ganho praticadas pelos escravos possibilitavam o acúmulo do pecúlio. Entre as principais atividades de ganho destacadas por estes autores encontram-se a venda de frutas e verduras pelas negras, conhecidas como negras de tabuleiro, além das lavagens de roupa. Entre os espaços ocupados por negros e mulatos, estavam as tabernas e lojas comerciais como mercearias que vendiam roupas, comidas, bebidas, utensílios domésticos além de ferramentas agrícolas e armas de fogo, e eram pontos de encontros de escravos e locais de circulação dos escravos de ganho. Além disso, serviam muitas vezes, nas vilas e cidades próximas aos quilombos, à atividades ilícitas como esconder escravos fugidos ou vender mercadorias para quilombos.31 Outras atividades, como as artesanais, também possibilitavam a formação de um pecúlio. Entretanto, a compra de alforria de um escravo artesão era mais cara, em razão dos rendimentos que estes proporcionavam ao senhor, mesmo assim, os estudos sobre alforria têm demonstrado um grande número de alforrias pagas.

Embora a historiografia enfatize os aspectos urbanos favoráveis à obtenção de alforria mediante indenização de preço, pode-se observar que mesmo em vilas de pouca expressividade econômica que favorecesses atividades de ganho pelos escravos há também uma predominância pagamentos pela aquisição da carta de liberdade. Na pesquisa com base nas cartas de alforria da Vila de Arez, no período de

27 SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito…, p. 17.

28 MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 3 ed., 1990. 29 SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia, 1684-1745. In: Escravos, roceiros e rebeldes… 30 KARASCH, Mary C. A carta de alforria. In: A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850…, p. 439-479.

31 RUSSELL-WOOD. A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 89-90.

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1775-179632, no Rio Grande do Norte colonial, também foi encontrada uma maioria de manumissões onerosas, pagas em moeda. A despeito do esforço realizado pelos escravos para acumular um pecúlio em um lugar, possivelmente com poucas possibilidades para isso, os textos das cartas costumam trazer as expressões do tipo: “pelo amor que lhe tenho”, ou, “pelo haver cercado com amor de filho”. Em um dos documentos, de 1775, registrado no livro de notas por Dona Francisca Barbosa Leitão, a alforria do “cabrinha” Ponciano é concedida mediante o pagamento de cinquenta mil réis em dinheiro e “pelo haver cercado com amor de filho”.33

A mesma senhora também liberta de forma onerosa a escrava Ana Maria, de 22 anos, irmã de Ponciano, de 20 anos. Contudo, a dita senhora faz questão de declarar que aprecia os escravos como filhos e que lhes tem muito amor, enfatizando assim o aspecto da afetividade.

Dona Tereza de Oliveira Freitas alforriou uma criança, o “mulatinho” Agostinho, com idade aproximada de dois anos. A carta menciona um pagamento de 25 mil reis, e expõem ainda que a criança é aleijada, mas o motivo alegado para a alforria é que a senhora o faz “por esmola, pelo amor de Deus, pelo haver criado e lhe ter amor”.34

Nos exemplos acima, observa-se a ênfase dos proprietários no aspecto afetivo, muito embora as alforrias tenham sido pagas, o que corrobora com as afirmações de Enidelce Bertin,35 já mencionadas, sobre a necessidade do escravo manter um bom relacionamento com seu senhor.

O maior número de manumissões pagas em Arez faz crer que nesta vila, os escravos também realizavam atividades que lhes garantissem um pecúlio, mas vale salientar que as alforrias são também de povoações do termo que se utilizavam do aparato jurídico.

Além das possibilidades econômicas e das redes de sociabilidades existentes nas vilas e cidades, havia também nestes locais uma estrutura jurídica e administrativa, dotada de juiz ordinário, a quem os escravos poderiam recorrer para conseguir comprar a liberdade, tendo em vista que o senhor não tinha obrigação em fornecer a carta de alforria, ou ainda em situações em que a alforria obtida era contestada por herdeiros, ou em casos de excesso de maus tratos. “A alegação de crueldade do senhor, conforme previam Cartas Régias do final do século XVII, podia dar origem a uma troca de Senhor ou a uma ação de liberdade.”36

32 O levantamento dos livros de notas da Vila de Arez identificou até o momento 43 cartas de alforrias, sendo 25 pagas; 13 condicionais e 5 gratuitas. IHGRN. Livro de notas de Arez, cx 75 e 77.

33 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 75. 34 Ibidem.

35 BERTIN, Enidelce. Alforrias em São Paulo do século XIX… 36 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência…, p. 263.

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Estas são algumas situações diante das quais os escravos poderiam recorrer às autoridades locais. No caso da carta de alforria já conquistada, poderiam registrá-la no cartório, como forma de garantir a liberdade adquirida, pois o risco de perda ou extravio do documento, bem como a mesquinhez de herdeiros que não reconheciam a liberdade obtida podia por em risco uma aquisição que na maioria das vezes levava anos para se concretizar. Assim, o registro da carta de alforria em cartório era essencial para a comprovação da liberdade.

A historiografia demonstra que nas vilas e cidades havia mais oportunidades de trabalhos que garantissem o pecúlio, além do maior número de escravos domésticos e de pequenos planteis favoreceram a proximidade entre senhores e escravos, no sentido de concessão das alforrias.37 Deste modo, era mais provável que um escravo que vivesse próximo ao seu senhor recebesse a alforria em testamento.

A escrava Antônia e seus quatro filhos, em Arez, no ano de 1793, obtiveram a liberdade em testamento, mas a cativa teve ainda que cumprir com a obrigação de mandar rezar missas para sua senhora falecida, D. Floriana Guedes de São Miguel.38 Certamente a proximidade da escrava com sua senhora favoreceu a obtenção da alforria dela e dos filhos, impedindo que algum deles entrasse na partilha dos bens e gerasse uma desagregação da família, o que certamente era algo temido pelas famílias escravas.

Chalhoub39 percebe a morte do senhor com uma possibilidade de mudança para o escravo, um momento de tensão, que pode representar uma esperança, mas também uma incerteza, pois o escravo poderia ser separado dos familiares ou ser obrigado a se adaptar a um novo senhor. Felizmente, para a escrava Antônia, foi possível conquistar a liberdade e manter a família.

Tanto os testamentos como as cartas de liberdade revelam alguns aspectos das relações entre senhores e escravos. Muitas vezes essa relação se estendia para o pós- morte. Analisando testamentos do século XIX, Reis identificou uma acentuada encomenda de missas destinada a diversos beneficiários. Os ex-escravos testamenteiros também costumavam encomendar missas para familiares, padrinhos, parceiros comerciais e antigos senhores, o que demonstra os laços de sociabilidades estabelecidos pelos escravos. O autor observa que os libertos ofereciam mais missas para seus ex-senhores, chamados de patronos, do que para parentes e infere que isso “reflete um compromisso ideológico com o paternalismo senhorial e com novas regras (católicas) de descendência, impostas pela escravidão […]”.40 Acrescenta ainda que a historiadora Inês Oliveira considera que essas missas podem estar relacionadas

37 EISENBERG, Peter. Homens esquecidos. Campinas: Ed. Unicamp, 1989, p. 278. 38 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 77.

39 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade…, p. 111.

40 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 211-212.

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ao cumprimento de cláusulas de cartas de alforria41, mas para o autor a quantidade de missas encomendadas pelos libertos não equivalem ao valor da alforria e insiste na tese de que a encomenda de missas reflete a sujeição da ex-escrava ao ex-senhor. Embora uma razão não exclua necessariamente a outra, a hipótese de cumprimento de cláusula de carta de alforria é bem plausível, mesmo porque a encomenda de missas é acompanhada de outras condições que o escravo deve cumprir, portanto não são somente as encomendas de missas que pagam as alforrias e sim um conjunto de obrigações, as quais os escravos devem realizar enquanto o senhor estiver vivo, ou que também se estendem para além da vida do senhor. Quanto à hipótese da sujeição, pode-se concluir que esta se estende, do mesmo modo, para o pós-morte do senhor.

Seja por meio de testamento ou de cláusulas condicionais de cartas de alforrias, muitos escravos viam-se obrigados a aliviar a possível passagem de seus senhores pelo purgatório. Dona Catharina Barbosa registrou no Livro de Notas de Arez, em 1781, quatro cartas de alforria, todas sob condição: à crioula Maria do Rosário foi concedida a alforria:

por criá-la em meus braços […] por lhe ter muito amor […] a forro de hoje para todo o sempre de toda escravidão e cativeiro como se do ventre de sua mãe forra nascesse porém com a obrigação de me acompanhar e me servir enquanto eu for viva e morrendo eu mandar-me dizer uma capela de missas pela minha alma e cumprindo com as tais obrigações poderá gozar de sua liberdade.42

Percebem-se nas demais cartas, presentes na mesma nota, descrição semelhante. A crioula Maria Lourença foi liberta:

por ter dado bom serviço e me ter acompanhado com fidelidade […] como de fato forra tenho de hoje para todo o sempre de minha livre vontade sem constrangimento de pessoa alguma com obrigação porém de me servir e acompanhar […] e morrendo eu mandar rezar-me uma capela de missas.43

41A carta de alforria condicional concede a liberdade ao escravo mediante o prestação de serviço, ou outras obrigações por um tempo determinado. É muito comum encontrarmos documentos em que o escravo recebe a alforria desde que acompanhe o senhor até a sua morte. Ou seja, o escravo permanece trabalhando para o senhor e fica livre de fato quando o senhor falece.

42 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 75. 43 Ibidem.

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Já o escravo Antônio “crioulinho” foi liberto, “por lhe ter amor e ter criado em meus braços”, com a obrigação de

me servir e acompanhar enquanto eu for viva e depois de eu morta poderá o dito crioulinho tratar de sua vida e usar de sua liberdade como as mais pessoas forras e libertas como se do ventre de sua mãe forro nascesse porém com a obrigação de mandar dizer por minha alma uma capela de missas.44

Finalmente, as mesmas obrigações de servir e acompanhar até a morte da senhora também foram impostas à “crioulinha” Januária, afilhada da senhora e filha de Maria Lourença, a mesma também foi liberta condicionalmente. A afilhada foi a única que não recebeu a obrigação de mandar rezar as missas.

Pode-se notar então, que nas cartas de alforria os senhores demonstravam uma preocupação com o lugar da sua alma, com isso, atribui aos escravos a tarefa de mandar rezar as missas como condição de liberdade. Pela somatória das missas mencionadas nas cartas supracitadas, uma vez que uma capela de missas equivale a 50 missas,45 somente nessas cartas, D. Catharina garantiu 150 missas para sua alma, uma quantia razoável, supondo-se que as missas em favor dessa senhora não tenham ficado à cargo apenas dos escravos.

João José Reis46 menciona também testadores que, na primeira década do século XIX, beneficiaram escravos falecidos com missas. Embora isso fosse mais raro, tais atitudes eram reflexos do discurso religioso. Segundo o autor, “os religiosos ensinavam aos senhores que beneficiar as almas de seus finados escravos era não só um dever cristão, mas até uma tática de salvação”.47 Logo, as missas cumpriam um relevante papel na economia da salvação, tendo em vista que eram pagas, também cumpriam um importante papel na economia da Igreja.

Ao citar o caso de um africano que, em 1790, inclui em seu testamento as almas do purgatório, João José Reis supõe ser possível “uma associação entre a experiência do purgatório e da escravidão na mente dessa gente que um dia fora escravizada.”48 Se for possível uma associação entre o purgatório e a escravidão, essa associação pode ser mais amiúde em se tratando das cartas de alforria condicionais. Compreendendo o purgatório como um lugar intermediário, um misto de sofrimento e esperança de salvação, é possível uma analogia com a liberdade condicional. As cartas de alforrias condicionais possuem cláusulas a serem cumpridas pelos escravos. São imposições determinadas pelo senhor por um tempo estipulado. Muitas vezes a

44 Ibidem.

45 REIS, João José. A morte é uma festa…, p. 212. 46 Ibidem, p. 214.

47 Ibidem, p. 213. 48 Ibidem, p. 217.

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condição referia-se a cuidar do senhor ou senhora até sua morte, o que significa que a conquista da alforria plena poderia demorar muito tempo.

Sob esse olhar, pode-se entender que, se a alforria condicionada ao exercício de funções até a morte do senhor não representava a liberdade plena, significava pelo menos, a possibilidade de liberdade, uma promessa de liberdade, assim como o purgatório é uma promessa de salvação.

As redes de sociabilidade estabelecidas pelos escravos contribuíam para que alguns conseguissem comprar ou adquirir a alforria por meio das relações de parentesco e compadrio. Sendo assim, as cartas de alforria também evidenciam aspectos das famílias escravas. Cacilda Machado49 observou na historiografia sobre escravidão, a respeito das relações de compadrio, que são poucos os casos em que os escravos procuram como padrinho os seus próprios senhores; análise reforçada pelos casos estudados pela autora, nos quais, em alguns casos os escravos estabelecem compadrio com membros da elite, mas que não eram seus senhores e, em outros casos, com membros da comunidade, livres e pobres. Dessa maneira, segundo Cacilda Machado50, os escravos procuram garantir uma proteção material ou de estreitamento dos laços com a comunidade livre de cor. Vale lembrar que esse estreitamento era favorecido pelas comunicações que mencionadas anteriormente, por Eduardo França Paiva.51

Sobre aspectos como esses, Andréa Lisly Gonçalves52 lembra que os laços de parentesco e compadrio exercem influência sobre as manumissões em outros momentos além do batismo, pois um padrinho poderia comprar a alforria de seu afilhado posteriormente ao batismo, já na idade adulta. Kátia Mattoso também destaca a importância dos vínculos familiares e não consanguíneos na obtenção da liberdade, sobretudo para a contribuição no pagamento da alforria, considerando que esta

nunca é uma aventura solitária. Resulta de todo um tecido de solidariedades múltiplas e entrelaçadas, de mil confabulações, processos de compensações, promessas feitas e mantidas, preceitos, até mesmo de conveniência.53

49 MACHADO. Cacilda. A trama das vontades. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 180-181. 50 Ibidem.

51 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia…

52 GONÇALVES, Andréa Lisly. Práticas de alforria nas Américas: dois estudos de caso em perspectiva comparada. In: PAIVA, Eduardo França (org.). Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da conquista: Edições UESB, 2008.

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Foi justamente a ligação familiar que garantiu a liberdade do pardo Bento Estevão, cuja alforria foi comprada pelo seu irmão Silvestre.54 A mulata Thereza, por sua vez teve a liberdade paga na pia batismal pelo Capitão Francisco Tavares, provavelmente seu padrinho, visto que proporcionou sua liberdade no momento do batismo.55

José Mulatinho,56 de 11 meses, foi alforriado pela senhora Francisca Barbosa de Freitas pelo valor de 28 mil reis, pagos pelo pai, o capitão Antônio Lopes Galvão, apesar do pagamento, a senhora menciona, como em outras cartas, a liberdade concedia como esmola, contudo, podemos perceber aqui dois fatores importantes na obtenção da alforria: a relação de parentesco e o pagamento.

Os estudos sobre alforrias aqui já citados concordam que as alforrias gratuitas são mais raras, como já foi afirmado. Nos livros de notas de Arez somente cinco alforrias eram gratuitas, de um total de quarenta e três para o período de 1775-1796. Embora seja denominada de gratuita, por não implicar em ônus para o cativo, Silvia Hunold Lara57 considera que essa alforria finalizava a relação formal entre senhor e escravo, porém o escravo não recebia nenhuma compensação justa, dessa forma, a alforria gratuita, assim como a onerosa, constituía um tipo de exploração. Ou seja, nada havia de gratuito nessa modalidade de manumissão, pois o escravo muitas vezes, já havia trabalhado anos e investido todo um esforço pessoal para livrar-se do cativeiro, “é necessário considerar nesses casos todo o trabalho e todo o rendimento previamente auferidos do próprio forro ou de seus parentes mais próximos, quando o beneficiado era, por exemplo, muito jovem.”58

O esforço que a historiografia tem feito em mostrar o escravo como agente social é uma forma de atribuir humanidade a quem durante muito tempo foi visto apenas como mercadoria e mão de obra. Muito mais que isso, os africanos e seus descendentes criaram e recriaram identidades próprias. Em se tratando das alforrias, o que era visto como concessão de um senhor benevolente passou a ser visto como uma conquista, resultante de anos de trabalho, de empenho pessoal para que a alforria fosse aceita, mesmo sendo paga com dinheiro ou prestação de serviço. Fossem nas pequenas vilas, como a de Arez, ou nas cidades maiores, os cativos constituíram famílias e redes de sociabilidade, souberam aproveitar as oportunidades para constituir um pecúlio e adquirir a alforria, investindo diariamente em negociações com os seus senhores.

54 IHGRN. Livro de Notas de Arez, cx 77. 55 Ibidem, cx 75.

56 Ibidem.

57 LARA, Silvia Hunold. Campos da violência…

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Práticas de micro economia de escravos e quilombolas no sul da Bahia entre 1800-1850

Alex Andrade Costa1 Diversos estudos, já há muito tempo2, vêm mostrando a existência de uma economia própria por parte dos escravos, também chamada de microeconomia escrava, formada por um campesinato negro - para usar um termo muito utilizado por Flávio Gomes3 - seja em roças ou em quilombos. Também, diversos autores, entre eles João J. Reis4, Stuart Schwartz5, Ciro Cardoso6 e o próprio Flavio Gomes7 já mostraram que esta economia escrava era formada com grande participação de outros segmentos da sociedade, inclusive brancos, que compravam ou negociavam produtos das roças escravas ou acoitavam fugidos para usar da mão-de-obra.

Esta pesquisa vai se amparar na ideia de que a microeconomia escrava não se resumiu à roça, mas se estendeu a uma série de ações praticadas pelos escravos, de forma legal ou não, da qual resultava algum de tipo de ganho financeiro, procurando conhecer os principais destinos destes ganhos, analisando como se deu a formação dessa microeconomia nas comarcas de Valença e Ilhéus, entre 1800 e 1850, onde predominavam pequenas e médias propriedades e onde muitos dos senhores disputavam com os escravos a sobrevivência diária.

Utilizando documentos judiciais como processos crimes; documentos cíveis como testamentos, inventários e ações de liberdade, correspondências e outros documentos do governo e da polícia pretende-se compreender a origem étnica de alguns escravos que atuavam no mercado local, a estrutura familiar e as condições de vida no cativeiro, bem como a condição social e econômica dos senhores com o

1 Doutorando em História – UFBA.

2 São da década de 1970 os dois principais estudos sobre economia própria de escravos fugidos nas Américas. MINTZ, Sidney. Caribbean Transformations. New York: Columbia University Press, 1974; PRICE, Richard. Maroon Societies. Rebel Slave Communities in the Americas. Baltimore: The Johns Hopkins university Press, 1979. No Brasil, um dos primeiros a abordar o tema através de uma importante fonte foi REIS, João J. Resistência Escrava em Ilhéus: Um documento inédito. Anais da APEB, n. 44, p. 285-291, 1979.

3 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

4 REIS, João José. Escravos e Coiteiros no Quilombo do Oitizeiro-Bahia, 1806. In: REIS, João J. e GOMES, Flávio (org). Liberdade Por Um Fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

5 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, Roceiros e Rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001.

6 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou Camponês – o protocampesinato negro nas américas. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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objetivo de se entender a formação de uma microeconomia escrava a partir das fugas, saques, roubos, formação de roças e outras atividades, bem como a relação com seus senhores.

Obter melhores condições de vida implicava, em alguns casos, em disputar, entre os seus, os recursos que pudessem melhorar a sua vida. É o caso do processo movido pelo crioulo liberto Manuel José do Espírito Santo, que teve a sua casa, localizada no município de Valença, arrombada e saqueada, supostamente por dois escravos da vizinhança, os quais teriam sido vistos carregando uma “trouxa de roupas e uma arquinha contendo moedas”8 que alcançaria trezentos mil réis. Os acusados, Hanibal e Gaspar, escravos de uma fazenda da região, apesar de, a princípio, negarem participação em tal crime, foram reconhecidos por diversas testemunhas que, acorrendo até a senzala onde os acusados moravam encontraram os “mulambos” que foram roubados da casa de Manuel José do Espírito Santo, mas não encontraram o dinheiro. Antes de levar o caso à justiça, o escravo Hanibal teria sido pressionado a entregar o dinheiro, ao que parece numa tentativa de Manuel José do Espírito Santo resolver a situação entre eles mesmos, “mas este longe de fazer nem dizer onde se achava declarou que não dizia nem entregava, porque tanto havia sofrer entregando, como não”.9

Este suposto caso de furto perpetrado pelos escravos Hanibal e Gaspar, traz uma gama de informações importantes que vão além do crime em si. Na qualificação dos acusados, ambos declararam que além do trabalho na lavoura exerciam uma segunda atividade, no caso eram mestres de lancha, o que faziam por conta própria. Exercendo uma segunda atividade a possibilidade de amealhar recursos era maior, inclusive pelo motivo de ampliar as redes de sociabilidades e atuarem com uma relativa autonomia diante de seu senhor.

Já a situação de Manuel José, a vítima, talvez não fosse muito diferente da situação dos escravos Hanibal e Gaspar, com exceção do primeiro ter a posse real da liberdade. Pelos depoimentos das testemunhas e da própria vítima, “a morada era velha e desprovida de cousa alguma”10 a não ser as roupas, chamadas pelo próprio Manuel José de mulambos e da qual não fazia questão, ao contrário dos escravos que lhes tinha roubado. Para esses, os mulambos de Manuel José certamente seriam de grande utilidade. Como eram os únicos escravos de seu senhor, pobre, eles talvez não fossem vestidos e nem alimentados pelo mesmo, daí o fato dos escravos terem uma outra atividade onde pudessem obter pecúlio por conta própria.

A precariedade das condições de vida não estava restrita aos escravos. Muitos libertos e muitos senhores viviam nas margens da pobreza e vivam situações semelhantes de vida. Ao mesmo tempo em que as condições materiais de vida dos

8 APEB – Seção Judiciária: Processo Crime: 22/778/7. 9 Ibidem.

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escravos permitem conhecer mais da escravidão e entendê-la, cada vez mais como uma instituição plural e com muitas variantes, elas também nos falam da liberdade não como ponto de chegada, mas como partida para o enfrentamento de novas lutas. O que aqui tratamos por economia própria dos escravos, ou microeconomia escrava, é chamado também de “brecha camponesa” ou “economia autônoma do cativo”. De fato todos os termos se referem às atividades econômicas que driblavam os limites da plantation, no entanto, possuem divergências conceituais que ainda perduram.

A expressão “brecha camponesa”, ao que parece, foi utilizada pela primeira vez por Tadeusz Lepkowski na década de 1960, para tratar das atividades econômicas dos escravos no Haiti onde ele percebeu dois tipos de brechas: uma originária dos quilombos e outra de terras concedidas pelos senhores. Posteriormente, Sidney Mintz que muito se dedicou aos estudos sobre economia rural nas Antilhas teve como objeto questões parecidas com as de Lepkowski mas aprofundando-as, procurou entender a comercialização dessa produção como um protocampesinato escravo.11

Para Mintz, os cativos com o sistema de roças e os quilombolas organizados em comunidades, ao desenvolverem variadas práticas e relações econômicas (inclusive com acesso aos mercados locais), conquistaram margens de autonomia e acabaram por se transformar em protocamponeses.12

No Brasil o termo “brecha camponesa” foi utilizado por Ciro Cardoso para discutir a economia autônoma do cativo e mostrar como a mesma funcionou na reprodução do sistema escravista.13 Para Cardoso a “brecha” – o tempo e a terra para o trabalho - tinha como objetivo minimizar o custo de manutenção e reprodução da força de trabalho, e poderia ser “usurpada” pelo senhor em momentos que a sazonalidade das culturas exigisse. Gorender foi o maior crítico desta posição de Cardoso. Para ele Cardoso atribui à economia do cativo uma generalidade e estabilidade que ela não teve. Em suma, Gorender nega a existência de uma “brecha”, pois a considera parte integrante do modo de produção escravista colonial.14

Mesmo não discordando de Cardoso, Robert Slenes encontrou incoerências no pensamento do autor. Slenes observou que aquilo que Cardoso tratou “não é mais nem brecha nem, a rigor camponesa”, aproximando-se mais do que os historiadores norte-americanos chamam de “economia interna dos escravos”, isto é, “um termo que abrange todas as atividades desenvolvidas pelos cativos para aumentarem seus

11 MINTZ. Caribbean Transformations…, p. 146-179. 12 Ibidem.

13 Ver mais em CARDOSO, Ciro. Escravo ou Camponês…

14 GORENDER, Jacob. Questionamento sobre a teoria econômica do escravo. Estudos Económicos. Vol. 13, núm. 1, janeiro/abril de 1983.

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recursos, desde o cultivo de roças à caça e, inclusive, ao furto”.15 Nesse trabalho seguimos a dica de Slenes no esforço de compreender a microeconomia escrava a partir das roças, roubos, ganhos, e outras ações variadas que davam ao escravo acesso à condições de sobrevivência um pouco melhores. Não é possível, também, concordar inteiramente com Cardoso ou com Gorender, pois as práticas de microeconomia não eram todas pura conquista dos escravos, visto que havia interesse de senhores em algumas das práticas dos escravos, nem simplesmente derivavam do sistema escravista, pois se assim fosse não haveria rebeldias ou rebeliões. Como a bibliografia mais recente, em especial a de Reis e Gomes tem apontado isso consistia num jogo de lutas, interesses, acomodações e resistências de ambos os lados.16

A primeira metade do século XIX é marcada por dois movimentos contraditórios: de um lado a pressão inglesa para que o Brasil adotasse procedimentos para o fim do tráfico atlântico de escravos e, por outro, a intensificação deste negócio que já foi chamado por um importante intelectual da diáspora africana (W. Du Bois) como “o maior drama da história humana nos últimos 2.000 anos”. Nesse período os traficantes do Rio de Janeiro concentraram suas operações na costa oriental, na região que abrange o que são hoje o sul da Tanzânia, o norte de Moçambique, Malauí e o nordeste de Zâmbia. Os escravos da costa oriental da África eram aqui conhecidos como “moçambiques”. Já os traficantes envolvidos no comércio baiano, responsáveis pelo suprimento de escravos para várias regiões nordestinas a partir de meados do século XVIII e até o fim do tráfico em 1850, se concentraram sobretudo no comércio com a região do Golfo do Benim (sudoeste da atual Nigéria). Através do Golfo do Benim, os traficantes baianos importaram escravos aqui denominados dagomés, jejes, haussás, bornus, tapas e nagôs, entre outros. Estes grupos eram embarcados principalmente nos portos de Jaquin, Ajudá, Popo e Apá, e mais tarde Onim (Lagos). Assim, estima-se que dos cerca de 4 milhões de escravos deestima-sembarcados no Brasil ao longo do tempo, cerca de 1 milhão teria chegado nos últimos 20 anos de execução do tráfico. Mesmo a Bahia estando em declínio econômico ela ainda recebia número considerável de escravos que vinham para cá ou para serem redistribuídos para outras províncias. Desta forma temos uma grande população negra, escrava e

15 SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 199. 16 Ver, entre outros, os textos de: SILVA, Eduardo e REIS, João J. Negociação e Conflito - a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; CARVALHO, Marcus. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo, Recife, 1822- 1850. Recife: Editora da UFPE, 1998; BARICKMAN, Bert. Até a véspera: O trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo baiano (1850-1881). Afro-Ásia, n. 21-22, 1998-99.

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africana, circulando pela província que causava medo e, por que não dizer pânico, em parte da população, especialmente por conta das constantes notícias de insurreições e revoltas que pipocavam por todos os cantos da província. A grande maioria destas notícias não passava de boatos e outra parte em tentativas frustradas, reprimidas pelas autoridades. Apenas uma pequena parte dessas revoltas realmente frutificaram na Bahia – em engenhos e localidades específicas. O grande medo, mesmo, vinha daquilo que os escravos conseguiram fazer fora da província da Bahia, em especial no Haiti, isso sim causava medo e arrepios em grandes proprietários de escravos e nas autoridades civis.

Em 1831 o Juiz da Comarca de Valença enviou ofício ao presidente da Província da Bahia solicitando armas, munição e guardas para combater os escravos fugidos que roubavam na região e que se encontravam refugiados em mais de 50 quilombos.17 Esta não foi a primeira vez que tal pleito foi feito. Havia quatro anos, desde 1827, que o pedido era reiterado, ao menos uma vez por ano, apontando para uma situação que já se prolongava há algum tempo. Creio que o espantoso número de quilombos citados pelo juiz, situados em duas localidades: Galeão e Tororó, seja o conjunto de pequenas aglomerações de escravos, fato que pode ser possível por conta de que quando alguns quilombos de Valença foram destruídos o número de escravos presos ou mortos era relativamente pequeno, geralmente entre 10 e 20. Porém o interesse dessa pesquisa sobre os quilombos está na utilidade mais pragmática que o escravo deu a esse instrumento de resistência. Vejamos: no mesmo ofício enviado pelo juiz de Valença ao presidente da Província ele justifica o pedido como forma de impedir os roubos perpetrados pelos aquilombados. Segundo o juiz os fugidos “vagam nas noites de sábado e domingo amedrontando a população”18, roubando gado e “seduzindo escravos pacíficos”.19 Antes disso, em 1830, o Juiz de Paz de Camamu, localizada próximo de Valença, também já havia noticiado ao Presidente da Província que ali existiam escravos fugidos “que se acham aquilombados nas mattas deste termo, roubando e insultando os lavradores”20 e, mais tarde, em 1835, o mesmo juiz em ofício, mostrando-se insatisfeito com a falta de posição tomada pelas autoridades da província disse que “já tendo levado por duas vezes ao [conhecimento do] antecessor […] os sucessivos assassínios, roubos e ataques causados pelos escravos fugidos , aquilombados nas matas desta vila […] motivando que muitos lavradores abandonem suas lavouras a fim de escaparem de

17 APEB, maço 2626.

18 Ibidem. 19 Ibidem.

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tão raivoso bando”21 pedindo providências para acabarem com os quilombos de “lá onde existe toda sorte de crimes”.22

Os dois ofícios dos Juízes de Valença e Camamu apontam para a questão da existência de uma prática econômica por parte dos aquilombados. Os roubos, fossem de gado ou de outros bens sugerem práticas organizadas e que estavam destinadas não apenas à sobrevivência interna do grupo, ou seja, não se roubava apenas para comer, mas, outros destinos se dava aos roubos, como por exemplo a venda para pequenos lavradores do entorno dos quilombos com quem esses se relacionavam cotidianamente e eram, até mesmo, protegidos pelos mesmos. O juiz de Valença chegou a dizer que tais praticas se davam de forma preponderante aos finais de semana, sábados e domingos o que aponta para o fato de que nos outros dias da semana eles se dedicavam às suas roças e plantações. Este fato aponta para um alto nível de planejamento das ações por parte dos quilombolas.

Com a destruição de um importante quilombo, o do borrachudo, localizado na comarca de Ilhéus, vizinha a Valença, acontecido no mesmo ano de 1835 é possível perceber outros traços da economia quilombola.

O quilombo Colégio Novo, um dos que pertenciam ao conjunto do Borrachudo, por exemplo, contabilizava roçado de mandioca, três mil covas de cana, bananeiras, canteiros de alface, de cebolas, de alhos, carás, mangaritos, quiçares, inhames; já o quilombo Colégio Velho apresentava roças de mandioca, bananeiras, cinco mil covas de cana, limoeiros, jaqueiras, laranjeiras, carás, mangaritos, quicares; o quilombo Santo Antonio do Bom Viver tinha sacos de farinha de mandioca, beijus, roçado de mandioca, três mil covas de cana, bananeiras, limoeiros, laranjeiras, jaqueiras, carás, quiçares, inhame da Costa, gengibre, batatas; outro, o quilombo Corisco, tinha roças de mandioca, cinco mil covas de cana, pés de algodoeiros, limoeiros, laranjeiras, limeiras, jaqueiras, pés de café e de cacau, plantações de fumo, gengibre e várias qualidades de inhames.23

Percebemos que nenhum quilombo que fazia parte do conglomerado do Borrachudo possuía gado entre os bens levantados pelas tropas, observando que o gado roubado deve ter servido de alimento, mas também deve ter sido utilizado, sobretudo, para a realização de negócios fora dos quilombos; percebemos, também, que todos, além de produzirem alimento destinado à sobrevivência interna do grupo como inhame, batata, mandioca e seus derivados e outras frutas, possuíam um significativo número de pés de cana de açúcar que, comparando com a quantidade de moradores do quilombo produziria um grande excesso, entendo que tal produção, também, era destinada ao mercado externo dos quilombos. A sobrevivência era o

21 Ibidem. 22 Ibidem.

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objetivo imediato dos aquilombados, porém, pensavam também na sobrevivência à longo prazo.

A vida nos quilombos estava longe de ser uma vida sem um programa definida, ou marcada exclusivamente pela fuga e pela necessidade de se esconder. Os quilombos estavam longe de serem espaços únicos de refúgio, mas eles se caracterizavam como locais para o exercício de uma economia própria e os quilombolas contavam com objetivos muito claros ao passarem a viver nos quilombos. Quando o Juiz de Valença falou que os escravos roubavam aos sábados e domingos certamente não era por acaso: sendo aquilombados eles poderiam efetuar os roubos a qualquer tempo, mas não era isso que acontecia, segundo o juiz. Os roubos , preferencialmente se davam nas noites dos finais de semana o que talvez tenha a ver com a rotina destes aquilombados no decorrer dos dias de semana, para dar conta das plantações das roças e do beneficiamento da mandioca.24

Esta produção seja fruto de roubos ou do trabalho dos escravos no interior dos quilombos tinha como destino, muitas vezes, os moradores da redondeza com quem os aquilombados se relacionavam, ao que parece, muito bem, visto a crítica que o Juiz de Camamú faz dizendo que “as matas contiguas a esta vila estão há muito contaminadas de negros fugidos e aquilombados que de dia em dia tem aumentado pela comunicação com alguns habitantes que inconsideravelmente lhes dão apoio”.25 Certamente está se referindo a pessoas que se beneficiavam da produção dos quilombos para adquirir produtos por um preço mais baixo, ou mesmo melhor qualidade.

É preciso entender o quilombo dentro do contexto social e econômico onde se situa e mais, entender o quilombo como uma possibilidade do escravo constituir uma economia própria. Assim a noção de resistência escrava se amplia não se concentrando apenas na luta pela liberdade através das fugas para os quilombos, mas na prática do escravo constituir uma economia que garanta o seu sustento ou, quem sabe, a liberdade.

Em 08 de janeiro de 1827 o Juiz de Paz de Valença, João Ferreira Durão encaminhou correspondência ao Presidente da Província da Bahia, Manuel Inácio da Cunha e Meneses, futuro Visconde do Rio Vermelho, no qual o deixa a par da situação em que se encontrava aquela vila. Segundo o juiz, os proprietários de terras estavam impossibilitados de administrarem com suas assistências pessoais os serviços de suas lavouras por hum grande número de negros fugidos que unidos em bandos a outros malvados tem acontecido a cometer nos pacíficos lavradores pelas estradas por onde costumam transitar tomando-lhes suas cargas e alguns dinheiros.26

24 APEB, maço 2298.

25 Ibidem. 26 Ibidem.

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Com tal correspondência o juiz procurava receber do Presidente uma autorização para pôr em execução as medidas que reestabelecessem o sossego para os lavradores e para os viajantes. Tais medidas, segundo o juiz, seriam as mesmas indicadas anteriormente pelo Conselho Interino do Governo da Província quando dos combates com os portugueses por conta da guerra da Independência ocorrida quatro anos antes.

Observa-se que a exposição de motivos do juiz, apesar de muito sucinta, deixa perceber uma série de questões. A primeira delas o fato de que estes negros fugidos, mesmo não especificando o número, aparentemente representarem uma quantidade substancial que por si só já causava temor à população, em especial aos proprietários de terras e escravos da região, porém, outro fator que chama mais atenção é que eles não faziam as investidas sozinhos, ao contrário, é citado pelo juiz a existência de outras pessoas que os acompanhavam, identificados por “malvados”. Esta generalização pode esconder um grupo extremamente multifacetado, composto de libertos, crioulos, brancos e até mesmo índios, cujas ocupações poderiam incluir desde viajantes, aventureiros, ladrões e salteadores. Enfim, pessoas que uniam esforços de forma frequente ou esporádica em torno de um objetivo comum: a sobrevivência diária.

Muito provavelmente estes escravos denunciados pelo juiz de Valença fossem aquilombados, e como tais, mantinham uma estreita relação com gente de todo o tipo que vivia nas proximidades dos quilombos e deles também tirava proveito. Assim se justifica a heterogeneidade desse grupo que espalhava medo nos arredores de Valença.

Região de Valença, entrecortada por diversos rios e ilhas também possuíam muitas matas. Região litorânea, estava relativamente próxima de Salvador e de outros centros econômicos importantes como Nazaré e Cachoeira, que poderiam servir ao mesmo tempo para o desembarque de escravos fugidos ou traficados ilegalmente, quanto para transportar mercadorias ali produzidas para outros centros. Assim, Valença era um espaço ideal para a formação de quilombos que, ao mesmo tempo em que estavam protegidos dava ampla condição de comércio e comunicação.

Em abril de 1829 o Juiz de Paz de Valença, Manoel Joaquim do Espírito Santo, encaminhou correspondência ao Visconde de Camamú, então Presidente da Província da Bahia, comunicado da existência de um grande número de escravos fugidos e que se encontravam aquilombados na localidade do Galeão, naquela Comarca. Ao tempo em que solicitava reforço militar para o combate disse que, mesmo tendo capturado alguns escravos fugidos ainda não pudera destruir o quilombo por completo. Nessa correspondência o juiz aponta entre os fatores que estavam dificultando a tomada de posições mais eficazes contra os quilombolas à precariedade de armas, munições e guardas na vila. Essa precariedade de condições para combater os quilombos ou, ao menos, assegurar a mínima proteção para os habitantes das vilas é uma constante nas reclamações apresentadas pelos juízes de

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diversas vilas da região como Nazaré, Camamú e Cairú no transcorrer da primeira metade do século XIX.

Em 1831 o Juiz de Paz de Valença é surpreendido com uma correspondência do Presidente da Província suspendendo as rondas policiais nas localidades do Galeão e Tororó. Tal suspensão foi em atendimento à solicitação do guarda João José de Souza Macieira que alegou não serem mais necessárias as mesmas, a não ser em caso de manutenção da ordem. Estranho como um guarda encaminha solicitação diretamente ao Presidente da Província e é atendido pelo mesmo sem, sequer, consultar as autoridades locais.27

A localidade do Galeão, cercada de matas e manguezais, era situada na ilha de Tinharé, bem em frente à cidade de Valença no continente, de onde pode ser facilmente alcançada. Ali, habitavam cerca de 20 proprietários, muitos agregados e jornaleiros trabalhadores das onze embarcações utilizadas para a navegação e na construção de outras tantas, provavelmente saveiros responsáveis pelo transporte de mercadorias para os portos vizinhos e o de Salvador. Ainda é citada a existência de 120 escravos destes mesmos proprietários e que ali viviam trabalhando na extração de coquilho, piaçava e madeira.28

Segundo o juiz, em ofício de resposta ao presidente da província, o trabalho realizado pelas patrulhas nas duas localidades, em especial nas noites de sábado e domingo, é que tinham feito arrefecer a atuação dos quilombolas que antes vinham não só negociarem como também roubarem gados e toda criação; violentarem a cidadãos nos caminhos e tomarem armas, estuprarem e como tem sucedido conduzirem as mulheres e crianças para os ranchos e a escravos pacíficos para segui-los, principalmente as fêmeas; e finalmente assassinarem e espancarem aqueles que com eles não capitulam, como aconteceu a um Raimundo Muniz que morreu de um tiro dentro da própria casa na fazenda de seu senhor e outro de dona Maria da Conceição que foi esfaqueado e morreu.

Sem dúvidas essa localidade era uma área de forte atuação de escravos fugidos, nos cálculos do juiz cerca de cinquenta, que se agrupavam em diversos quilombos se utilizando de diferentes estratégias para prover a sobrevivência, entre elas a realização de negócios com habitantes daquelas localidades.

O juiz aponta que, entre os beneficiários das estratégias econômicas dos quilombolas estava o guarda, João José de Souza Macieira, autor do curioso pedido ao Presidente da Província. Segundo acusação do juiz, o guarda seria um dos que tinha escravos que vendiam e compravam produtos dos quilombolas e por isso, muitas vezes, se omitia em cumprir com as suas obrigações de realizar rondas. O que o juiz está querendo dizer, em sínteses, é que o guarda fechava os olhos diante das

27 Ibidem. 28 Ibidem.

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