• Nenhum resultado encontrado

The Selkie. Música e letra de Skye Turner, 17 anos

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "The Selkie. Música e letra de Skye Turner, 17 anos"

Copied!
36
0
0

Texto

(1)
(2)

«Os ventos frios emaranham os fios da tua melena, Ela sorri e alicia-te para a sua caverna.

Deixa a tua casa e abandona a vida terrena,

Deixa a costa e as areias de tom pérola e pardacento. Esquece o teu amor e as promessas feitas ao vento, Segue a sua voz para um túmulo aguacento.

(3)

Prólogo

A

minha irmã distingue-se bem nos rochedos. A cabeça está inclinada para trás, os braços abertos. O céu tremeluz com o feixe do farol. O vento açoita-lhe o cabelo, uma auréola dourada com um horizonte escuro ao fundo. Atrás dela, o mar é um caldeirão agitado, as ondas a bater numa cadência terrível. A água ergue-se em arco sobre ela e o cabelo cede ao peso do borrifo das ondas. Os seus olhos brilham com um fogo estranho.

Eu começo a tremer, sinto o sangue a alvoroçar-se nas veias com medo e raiva contida. Já estive aqui no passado, demasiadas vezes. Já estive à beira do abismo, estendi a mão. Ouvi-a sorrir para mim, mas, no final, senti o alívio e o calor da mão dela na minha.

— Vamos! — grito. — Vou levar-te para casa.

Ela ri-se, é verdade, mas, ao mesmo tempo, uma lágrima escorre-lhe pelo rosto. E eu vou quase ao seu encontro. Fico à beira de deixar que a sua órbita indómita me leve. Dou um passo em frente, ultrapasso a barreira. Ela recua um passo em direção ao abismo.

— Não — diz ela.

Tudo isto faz parte do jogo dela. A minha lealdade, a minha dignidade levadas ao limite. É aqui que eu tenho de assumir o controlo, tornar-me a protetora, salvar-nos a ambas da queda.

Uma onda gigante rebenta ao embater nos rochedos com um poder vibrante. A água gelada cai como chuva sobre a minha cabeça e pica-me a pele como uma salva de agulhas.

(4)

Capítulo 1

A

neblina começa a baixar. A descer em espiral dos picos das mon-tanhas áridas e a abater-se sobre os vales estreitos. A luz está a desvanecer-se rapidamente e, com ela, a minha determinação. Isto não está certo. Eu não deveria estar aqui.

Enrolo a alça trabalhada da minha mala em volta da mão até o san-gue deixar de circular. Mas não consigo travar a vaga de memórias, que cresce a cada quilómetro e à medida que o autocarro se dirige para oeste.

Algumas são belas e brilhantes: memórias da minha infância, sobre-tudo nesta altura do ano. O cheiro das bolachas de manteiga no forno, os cães a dormir em cima de uma manta junto à lareira. Os convidados a chegarem para jantar; as canções do Bob Dylan na guitarra; os jogos de tabuleiro e as gargalhadas. Neve a cair em grandes torrentes brancas sobre a areia da praia.

Eu desembrulho e examino cada uma destas memórias da mesma maneira que uma criança abre os presentes na manhã de Natal. O meu pai a estender as luzes na árvore, o Bill, o meu irmão, a ser levantado do chão para colocar a estrela no topo. A minha mãe junto à lareira a acender uma fogueira para afastar o frio que está sempre à procura de uma brecha nos cantos e recantos para entrar. A sensação aconchegante de estarmos juntos. O tempo há muito ido.

O autocarro vira para norte e eu entrevejo o mar. Cinzento com apontamentos de lilás, quase roxo, e o espetro de uma neblina cor de laranja quando o Sol cai no horizonte. Vejo o meu próprio reflexo no

(5)

Lauren Westwood

vidro, uma imagem que se vai tornando mais nítida à medida que a escuridão se instala. Por um instante, é como se estivesse a ver o rosto de outra pessoa, o rosto da Ginny a retribuir o meu olhar no meio da escuridão. A desafiar-me a desembrulhar as velhas memórias, aquelas que estão na caixa sem laço e cuja etiqueta caiu. A retirar o papel crepe, olhar para o interior…

— Eilean Shiel — grita o motorista.

Desenrolo a alça da mão e desaperto o cachecol que me envolve o pescoço e me tolhe a respiração. Deveria ter gritado e pedido ao moto-rista para parar e me deixar sair há muitos quilómetros. Em qualquer lugar menos neste. Contudo, agora é tarde demais. Do outro lado do corredor, uma mulher de meia-idade olha para mim e franze o sobrolho.

— Está bem, minha querida?

— Estou — respondo roucamente, embora provavelmente seja óbvio que não estou. Acho que estou «bem» desde que fugi há 15 anos. Passei bons momentos que não tiveram nada que ver com este lugar. Vi o nascer do sol no Deserto do Mojave, conduzi no Sunset Strip com a capota aberta. Vivi em Las Vegas e em Nashville, com muitos outros lugares de permeio. Tenho boas memórias que posso desembrulhar e reviver quando mais preciso delas: numa noite de insónia numa pensão de beira de estrada, num carro a conduzir quilómetro atrás de quilómetro num longo e solitário trecho de uma autoestrada. O meu pai costumava dizer que sem os maus momentos nunca saberíamos a sorte que tínhamos. O meu pai dizia muitas coisas, a maior parte das quais aprendi da forma mais difícil. Mas, no final, posso olhar para trás e dizer que fiz o melhor que podia. Que fiz o meu melhor para viver uma vida para mim e para a Ginny.

O autocarro encosta numa paragem à frente da Junta de Freguesia. A porta abre-se e a mulher do outro lado do corredor levanta-se e pega na mala que estava no compartimento sobre os bancos. Eu fico sentada, sem me mexer, a olhar para o mar escuro e infindável. A mulher cami-nha até à frente do autocarro e detém-se para olhar na micami-nha direção.

(6)

Receio que possa voltar a tentar falar comigo. Faço um esforço para me levantar e seguir em frente.

Saio para o passeio. As lâmpadas de vapor de sódio cor de laranja não chegam sequer para dissipar a escuridão. Tinha-me esquecido da escuridão, tão carregada e permanente nesta altura do ano. Mas o que impressiona verdadeiramente é o frio. Volto a enrolar o cachecol no pescoço e cerro os dentes para que deixem de bater. O vento fustiga-me o rosto, o meu casaco fino é incapaz de me proteger do ar frio.

O motorista abre a parte de trás do autocarro para descarregar a bagagem. Eu olho para a curva da baía e vejo o promontório escuro do outro lado da aldeia. No meio do nevoeiro, vislumbro com dificuldade o brilho tremeluzente das luzes. A pequena casa de campo onde eu cresci. Daqui a poucos minutos, depois de apanhar o táxi, aquelas luzes serão a minha realidade. E lá, as memórias, por mais brilhantes ou diversas que sejam, não chegarão para iluminar o que está para vir. Vou voltar a ver a minha mãe, vou voltar a casa.

Ao ver o motorista a descarregar a bagagem, os 15 anos parecem ter passado num dia. Tinha acabado de fazer 20 anos e viajava no sentido inverso: de Eilean Shiel para Fort William, de Fort William para Glasgow, e, por fim, de Glasgow para a América num avião. A mim, parece-me que foi ontem. Mas qual será a sensação para a minha mãe?

Mantivemos o contacto, como não poderia deixar de ser. Um postal enviado à pressa, o esporádico e custoso telefonema nos aniversários e nos Natais. O meu irmão, Bill, acaba por ser o mensageiro que, nas trincheiras, me envia regularmente notícias atualizadas por e-mail. Fico feliz por ele fazer o esforço e tenho pena de que tenha de ser assim. Quando ele me contactou em novembro para me dizer que a mãe tinha sofrido uma queda e fraturado o tornozelo, fiquei muito preocupada. Enviei flores, chocolates e um cartão bonito. Quando ele voltou a escre-ver para me contar onde a queda tinha acontecido, chorei. E depois, numa solitária noite de novembro, numa altura em que ansiava arden-temente por uma cidade nova, por um amante novo — por qualquer

(7)

Lauren Westwood

coisa, fosse o que fosse, para voltar a fugir, o Bill ligou-me. A mãe tinha perguntado por mim, disse-me ele.

«Ela quer saber quando voltas para casa.»

O Bill não sabia que estas eram as únicas palavras que alguma vez poderiam fazer-me voltar cá; as palavras por que esperava ao longo de todos estes anos. Fiz as malas e marquei a viagem de avião…

Dentro do autocarro, a mulher continua a olhar para mim. Pego no telemóvel e finjo que tenho uma mensagem importante para enviar. Não tenho rede. Não há como fingir aqui.

— O que tem aqui dentro, moça? — pergunta o motorista, curvando- -se com o peso do meu trólei. — Pepitas de ouro? — O sotaque dele ressoa nos meus ouvidos. A entoação rica e o ritmo quase monótono das Terras Altas da Escócia Ocidental. Ao longo dos anos, conheci pessoas que achavam que o meu sotaque era «giro», «sensual», «meló-dico», «estranho». Porém, a mim, o sotaque do motorista soa-me a casa.

— Pensava que até tinha sido comedida na bagagem — respondo. Ele pousa a mala no passeio.

— No meu tempo, só precisávamos de uma escova de dentes e de um par de cuecas a mais.

Rio-me ao ouvi-lo, o que me aquece por dentro. Um pouco.

O motorista fecha a porta da bagageira e eu empurro a mala para o lado. Está pesada porque a enchi com alguns livros à última hora, mas é pequena tendo em conta que não sei por quanto tempo vou ficar. Antes de me vir embora, notifiquei o senhorio da minha casa em Las Vegas da minha saída. Quando estava a fazer as malas, descobri que quase não tinha roupa para o frio. Algumas camisolas de algodão, um par de botas, alguns cachecóis e um gorro de malha com lantejoulas e uma bola de pelo sintético. Enfiei tudo o que podia na mala, deixei a minha guitarra com um amigo e dei tudo o resto a uma instituição de solidariedade. Estou habituada a ser uma nómada, uma errante. As minhas raízes secaram e morreram.

(8)

O motorista volta a subir para o autocarro e a porta fecha-se com um silvo hidráulico. O motor vibra e começa a trabalhar. Talvez ainda vá a tempo. Esta é a última paragem, mas se lhe desse 20 libras, de certeza que me deixaria voltar a entrar. Deixar-me-ia noutra aldeia. Numa baía diferente. Talvez me levasse de volta até Fort William.

Tarde demais. O autocarro arranca. A mulher ainda não saiu do lugar. Eu endireito-me, como se soubesse o que vou fazer a seguir. Na ver-dade, não faço ideia. Não vejo nenhum táxi. Dantes, havia um táxi na aldeia que esperava pelo autocarro, tenho a certeza disso.

— Vais precisar de uma boleia, minha querida? — pergunta a mulher. — O meu marido não demora a chegar para me vir buscar. — A mu- lher sorri e, sob o brilho das luzes, há algo nela que me parece familiar. Não estou interessada em nada que seja familiar.

— Não, obrigada — respondo. — Também me vêm buscar. — A men- tira sai sem dificuldade.

— Muito bem — diz ela. Luzes de faróis aproximam-se na nossa dire-ção e encandeiam-me por um segundo. — É para mim. Tem a certeza…? — Tenho. Eu fico bem. Tenha uma boa noite. — Aproveito a muito praticada resposta americana «tenha um bom dia» para tudo.

Quando o carro encosta, ela ergue a cabeça.

— Ainda bem que finalmente voltaste para casa — diz ela. — A tua mãe vai ficar contente por te ver.

Fico a olhar para a mulher a entrar no carro. Se, pelo menos, eu tivesse a certeza de que aquilo fosse verdade… Aquelas palavras ressoam no lugar dentro de mim onde a culpa se esconde e fica à espreita. Ela não sabe nada, não pode saber nada. Não sabe as coisas que nunca podem ser desditas, as feridas que o tempo pode encobrir, mas nunca sarar.

O carro afasta-se e eu fico entregue ao vento e à escuridão. E a sentir- -me tremendamente só.

(9)

Capítulo 2

A

morrinha está a transformar-se em chuva persistente e eu já não consigo ver as luzes no promontório. Respiro fundo e reteso-me. A falta de táxis não é um problema. É fim de tarde, não meio da noite. Não como nada desde que saí do aeroporto de Glasgow há seis horas. Vou caminhar até à aldeia, beber um café, aquecer-me e chamar um táxi. Demoro meia hora no máximo. Será bom rever a terra antes de ir para casa. Já ensaiei o reencontro com a minha mãe vezes sem conta na minha cabeça, mas não faz mal nenhum voltar a fazê-lo. O que é mais meia hora ao fim de 15 anos?

Caminho rapidamente, curvada para a frente, porque o vento empurra a chuva de encontro à minha cara. A aldeia tem apenas algumas ruas e todas elas vão dar ao porto e ao passeio em frente ao mar.

Sigo em direção ao Salão de Chá da Annie. Não tenho memória de um tempo em que esta casa de chá não existia e, no verão antes de par-tir, trabalhei lá a tempo parcial a servir chá e bolos e a limpar as mesas. A dona é uma mulher chamada Annie MacClellan, que toda a gente da aldeia conhecia por «tia Annie», provavelmente porque ela sabia tudo sobre toda a gente e era a melhor amiga de toda a gente — se lhe caís-semos no goto. A tia Annie fazia um cranachan — uma sobremesa de framboesa, mel, whisky e natas — que se derretia na boca e, no inverno, os clootie dumplings — pudins de aveia pesados e cheios de frutos secos e especiarias — que ela confecionava eram o centro das atenções na vés-pera de Ano Novo. Cranachans, clooties, pão preto escocês… todos estes

(10)

sabores e aromas guardados na memória… Os meus sentidos entram em forte estado de alerta.

A minha mala rola pelo passeio irregular atrás de mim, produzindo um ruído surdo e contínuo. Passo por uma fila de casas caiadas e, quando me aproximo da água, calcorreio uma pequena rua ladeada de lojas. A maior parte das lojas está fechada, mas o Spar está aberto, juntamente com uma loja local que vende artigos de pesca, lembranças e o que designam por antiguidades. No exterior da loja, uma tabuleta otimista anuncia gelados e range em conluio com o vento.

O porto está deserto. Passo pela rampa de acesso à água, coberta de armadilhas e redes de pesca. O quebra-mar estende-se escuridão adentro e alguns barcos sacudidos pelo vento estão ancorados junto ao passeio marítimo. Os meus olhos enchem-se de lágrimas com o sal e as intensas rajadas de vento. Viro-me para o passeio à procura do Salão de Chá da Annie no meio do casario. Onde é que fica? Não pode ter… desaparecido.

Chego ao lugar onde sei que tem de ficar. A casa de chá está escura e há um letreiro na montra. Fechado. Cerro os olhos até que a sensação irracional de desespero se desvanece. Recomponho-me, começo de novo. Sou muito forte em novos começos. Não muito boa a deixar que durem. Seja como for, não preciso de um café e de um bolo.

Continuo a caminhar. Um pouco mais abaixo no passeio marítimo há um letreiro aceso: The Fisherman’s Arms.

Fish and chips. Ora aí está uma ideia. Peixe e batatas como deve ser, envoltos em folha de jornal, tão mergulhados em sal e vinagre que os sabores ficam marcados na língua e ficamos com sede durante horas. No verão, o meu pai costumava levar-nos a comer este petisco ao sábado à noite. Encontrávamos um banco no passeio marítimo e as gaivotas desciam em grande vertigem e mergulhavam à desgarrada em busca das batatas fritas caídas. O Bill corria atrás delas, deixando as suas bata-tas fribata-tas no banco à mercê de outras aves. O polme era crocante e o peixe era tão húmido que se lascava facilmente. Como podia eu ter-me esquecido daquele peixe frito com batatas fritas?

(11)

Lauren Westwood

Acelero o passo em direção ao letreiro ligado. O pub está caiado com esmero e há uma fiada de luzes de Natal pendurada na janela saliente. Mal abro a porta, os meus sentidos são acometidos por aromas bem conhecidos: fritos, cerveja e fumo de lenha. O calor atrai-me. Tremo de um prazer puro ao senti-lo.

O pub não está cheio. Algumas mesas estão ocupadas por casais e famílias a comer fish and chips e, junto à porta, um homem mais velho está a jogar numa slot machine. A sala está iluminada por lanternas e candeeiros de parede feitos de velhas boias de vidro usadas na pesca. No canto, ao fundo, vê-se o busto esculpido de uma mulher com cabelo esvoaçante enfeitado com grinaldas de rosas. Lembro-me do estranho formigueiro que senti quando tinha cerca de 12 anos e reparei pela pri-meira vez nos seios nus do busto. Ainda agora a mulher esculpida me parece extravagante e indecente.

Dirijo-me ao balcão. A maior parte dos bancos está ocupada. O empregado está virado de costas para mim a preparar um copo de whisky. Mas ainda antes de ele se virar, conheço-o. Não fazia ideia de que ele trabalhava aqui, porque, se fizesse, não teria entrado. Deveria ter chamado um táxi ou, melhor ainda, alugado um carro em Glasgow. Agora é demasiado tarde. Ele vira-se e vê-me. Byron.

Ele olha fixamente para mim. Passam longos segundos. Não sei o que é pior: que ele me reconheça ou que ele não me reconheça. Certamente não terei mudado assim tanto…

Abre-se um sorriso no rosto dele. Ele começa a caminhar na minha direção. O cabelo louro está mais comprido do que no passado; a pele mais morena, como se tivesse estado algures a apanhar sol de in- verno. Continua grande e, embora esteja a usar uma camisola de lã cinzenta de pescador, parece estar em forma. Tem feições marcadas e é bem-parecido, os anos definiram melhor os seus traços e os ângulos. O Byron…

Houve um tempo em que teria feito tudo pelo Byron. — Skye! Skye Turner? És tu, não és?

(12)

— A própria — respondo, e arrependo-me de imediato.

O Byron acolhe-me nos seus braços fortes. Cheira a cerveja e a homem e é uma sensação tão familiar que os meus joelhos balançam.

— Ora, ora… Deixa-me olhar para ti. — Agarra-me com os bra- ços estendidos. — Tu estás com ótimo aspeto! Quando tempo passou? Dez anos?

— Quinze — digo roucamente. — Quinze! Ouviste isto, Lachie?

Um homem de cabelo ruivo com uma barba esparsa vira-se num dos bancos do bar. Também o conheço. Lachlan McCray.

— Sim — diz o Lachlan. Não sorri nem se mostra de todo amigável. — E agora és uma celebridade! — A voz do Byron é suficientemente alta para as pessoas começarem a olhar para mim. Continua agarrado aos meus ombros.

— Não. — Dou um passo atrás desajeitadamente. — Não, nada disso. — Oh, vá lá — insiste o Byron —, não sejas modesta. O pequeno Bill vai-nos pondo a par. Todos nós te vimos no YouTube.

Isto está a ficar cada vez pior. Quando saí daqui, toda a gente sabia que eu tinha sonhos de grandeza. Ia cantar as minhas canções, de acordo com as minhas regras, e conquistar o mundo com poesia elegante e melodias de encantar. Em vez disso, passei a maior parte do tempo enfeitada com ganga e diamantes a cantar clássicos de música country em espetáculos pirosos e discotecas baratas. Creio que era demasiado otimista esperar que eles não soubessem de nada.

— Ótimo. — Consigo não estremecer.

— A rapariga cá da terra a singrar lá fora — diz o Byron. — Meu Deus, 15 anos! Não acredito que passou tanto tempo desde que…

Eu contraio-me. Ele detém-se. Os olhos do Lachlan fixam-se nos meus. Dá-se um momento de reconhecimento: que esta conversa não tem para onde ir a não ser para caminhos que é melhor não percorrer e deixar ao deus-dará.

(13)

Lauren Westwood

— Olha, vais ficar para a festa de Ano Novo? — O Byron muda habil-mente de assunto. — Serias uma boa ajuda. Lembras-te do Festival da Fogueira, não lembras?

Como se alguma vez eu me pudesse esquecer. O Festival da Fogueira é um evento local de monta que junta cinco aldeias na noite de Ano Novo. Acendem uma grande fogueira na praia, há bancas de comida ao longo do passeio marítimo, um parque de diversões no campo de desporto e um desfile de barcos enfeitados com luzes no porto. Os barcos são abençoados para o inverno pelo vigário e uma adolescente felizarda é coroada a Rainha da Frota. No ano em que fizemos 18 anos, a rainha foi a Ginny. Lembro-me de como estava bonita quando se sentou na proa do barco da frente, o cabelo louro a esvoaçar com a brisa. Não era o meu tipo de evento, mas acho que tive alguma inveja por não ter sido eu. E depois, ainda naquela noite, o Byron deu-me a mão junto à fogueira. Beijou-me e disse-me que, para ele, eu era a Rainha do Universo. E, embora eu soubesse que não podíamos ficar juntos para sempre, era suficiente. Pergunto-me se ele se lembrará dessa noite.

— Estou a ajudar a organizar as bancas e o entretenimento — diz ele. — Temos uma banda de cèilidh alinhavada. Seria espetacular se pudesses atuar com eles. Só uma canção ou duas. A nossa própria celebridade!

Duvido que ele se lembre e gostava muito que ele deixasse de se armar em groupie. O Byron sempre teve tendência a dizer o que os outros queriam ouvir exatamente no momento em que o queriam ouvir. Não posso deixar que ele me faça baixar a guarda e me volte a reduzir à adolescente carente que já fui. A adolescente que queria aplausos e reconhecimento, e não ser iluminada apenas pela luz que refletia da sua irmã gémea. A adolescente que se orgulhava de ser a que ele mais amava.

— Estou a fazer uma pausa nas atuações neste momento. — Sorrio despretenciosamente. — A recarregar baterias. — Agora sou eu que pareço falsa, como se isto fosse algum tipo de viagem de regeneração antes de me dedicar a algo novo e importante. Mas o que deverei fazer?

(14)

Anunciar que deixaram de contar comigo há alguns meses no espetáculo em Las Vegas? Será que isso constitui conversa de circunstância entre velhos amigos — primeiros amores — que não se viam há muitos anos?

— Certo. Bem, por falar em recarregar, o que é que queres beber? Ele recua e fita-me de cima a baixo. — Vejamos, qual é o teu veneno…? Ah, sim: whisky e cola.

Começo a sentir o sabor de fel na garganta, embora saiba que ele só está a ser hospitaleiro. Gosto de beber um copo ou dois, talvez mais do que deveria. Mas não bebi nem uma gota de whisky desde que saí daqui.

— Só uma cerveja, por favor. Uma imperial.

O Byron franze o sobrolho como se estivesse à espera de que eu ficasse ali a tarde inteira a beber copos em vez de ir para casa da minha mãe. Ou talvez desconfie de que estou aqui no pub para adiar o inevi-tável. E talvez esteja.

— Na verdade, vim à procura de um táxi — digo. — Não havia nenhum na paragem do autocarro.

Ele vai para trás do balcão, pega num copo de imperial e enche-o de cerveja espessa cor de âmbar. Eu pego no meu cartão para pagar, mas ele faz um gesto de recusa.

— O Lachie pode dar-te uma boleia — diz o Byron. — Quando quiseres.

Eu olho de relance para o Lachlan. Ele está a falar com um homem mais velho com um chapéu de caçador sentado no banco ao lado dele. Não interrompe a conversa.

— Não quero incomodar — respondo. — Não há ninguém a quem eu possa ligar?

— Mas o Lachie é o taxista — diz uma mulher sentada ao fundo do bar. — Oficialmente.

Eu olho na direção dela e depois volto a olhar com mais atenção. É uma mulher com cerca de 60 anos, o rosto enrugado e copiosamente maquilhado e o cabelo pintado de cor de laranja solto e despenteado à volta do rosto. Traz um grande colar ao pescoço com contas de

(15)

Lauren Westwood

macramé e todos os dedos estão enfeitados com anéis volumosos. Não destoaria num bar de camionistas no Tennessee ou no Arizona ou numa tasca de beira de estrada onde quem passa pode comprar quase tudo com uma nota de 10 dólares. Sinto-me culpada por pensar isto, porque também a reconheço.

— Tia Annie? — pergunto. O Byron dá-me a cerveja. A mulher lança-me um sorriso fleumático.

— Mais avó agora. — Abana uma mão anelada na minha direção. Vê-se uma grande lacuna na parte da frente da boca por ter perdido um dente. — Já passaram muitos anos, minha querida.

— Eu sei! — Sinto uma pequena lágrima formar-se no canto do olho. De alguma forma, ver a Annie MacClellan faz com que a minha chegada a este lugar pareça mais real. Ainda mais do que ver o Byron.

Ela levanta a cabeça para olhar para mim.

— Tiveste sempre tanta vontade de partir. O que é que te fez voltar agora?

Há uma farpa na voz dela que me espevita os sentidos. É verdade que, quando eu trabalhava para ela, estava sempre a falar sobre a vida que ia ter quando deixasse as cortinas de nuvens de Eilean Shiel. Sobre como eu e a Ginny íamos ser grandes estrelas nalgum lugar melhor do que este. Mas isso foi há tanto tempo…

Lanço-lhe um sorriso afável para quebrar a tensão.

— Senti falta do seu clootie e do pão preto, tia Annie. Estavam a cha-mar por mim, apesar da distância.

Ela volta a sorrir, mas os olhos pintados com kohl denotam cautela. Eu levanto o copo de cerveja até ao nariz e sinto o aroma rico de leve-dura. Não me apetece muito, mas bebo na mesma. Devia ter passado despercebida e evitado o pub. Adaptar-me às coisas mais gradualmente. O Byron, a Annie, o Lachlan — todos aqui, todos diferentes. Como estará a minha mãe ao fim de 15 anos?

Engulo os sedimentos da cerveja com dificuldade e pouso o copo vazio no balcão.

(16)

— Preciso de ir à casa de banho — digo. — E depois, lamento muito, Lachlan, mas podes dar-me uma boleia até casa?

O Lachlan vira-se para trás e estuda-me de uma forma que me deixa um pouco desconfortável. Costumávamos pensar nele como o rapaz do «quase». Quase jogou futebol no campeonato regional, conseguiu boas notas num par de exames e quase entrou na faculdade. Nunca foi tão popular como o Byron, nem tão rico como o James. Nunca foi tão divertido, espirituoso ou sagaz como o resto de nós, nem tão vaidoso e arrogante. No entanto, esteve sempre lá. À distância. A observar. A julgar. Não tenho vontade nenhuma de ir de boleia com ele.

— Com certeza — responde.

— Obrigada. — Dirijo-me para o outro lado do bar onde uma porta conduz aos lavabos e à mesa de bilhar no andar de cima. O corredor não tem aquecimento e o frio sobressalta-me depois do calor do bar. Na casa de banho, fico longos momentos a olhar para o meu reflexo no espelho. Quando saí daqui, tinha acabado de fazer 20 anos. Agora tenho 35. O meu rosto está mais estreito, o meu cabelo preto está mais comprido. Os meus olhos são o meu melhor traço: verdes com laivos cor de avelã. Mas sob esta luz, parecem quase azuis. Mais parecidos com os da Ginny.

De resto, eu e a Ginny nunca fomos assim tão parecidas. Ela era loura, branquinha e incrivelmente bonita. A maior parte das pessoas ficava surpreendida quando descobria que éramos irmãs, e ainda mais quando percebia que éramos gémeas. No entanto, na sua maioria, as pessoas não ficam surpreendidas por eu ser a mais velha, ainda que por meros minutos. O meu pai costumava dizer que eu tinha «alma de velha». A Ginny, por seu lado, era como uma menina que não queria crescer. Um espírito livre; indisciplinado e indomável.

Passo água pelo rosto e aplico batom brilhante nos lábios. Está na hora de ir. Não posso adiar mais. Preciso de ver a minha mãe. Enfrentar a minha mãe. Descobrir se é realmente possível voltar a casa ao fim de tantos anos.

(17)

Lauren Westwood

Quando volto a entrar no bar barulhento, imagino que, apenas por um segundo, há uma acalmia. Ouço uma voz, a tia Annie a falar com um homem ao seu lado:

— … irmã morta.

Preciso de sair daqui. O pânico começa a crescer dentro de mim, tal como aconteceu no autocarro. Pânico combinado com resignação. Aqui, serei sempre aquela rapariga, mesmo quando já tiver a idade da Annie MacClellan. Há coisas de que nunca podemos fugir. Já o devia saber. Tenho andado a fugir há 15 anos. Agora estou de volta ao ponto de partida.

(18)

Capítulo 3

F

ora do pub, o vento não dá tréguas e empurra a chuva na diagonal. Os barcos ancorados rangem e chiam e as ondas embatem no pare-dão de pedra ao longo da margem. Quase imediatamente depois de eu sair, o meu casaco fica encharcado pela chuva e pelo borrifo das ondas. O bom deste tempo é que não há a possibilidade de ficar em amena cavaqueira com o Lachlan. Ambos baixamos a cabeça e desatamos a caminhar o mais rapidamente possível.

O carro do Lachlan, um Nissan Qashqai, está estacionado junto à paragem do autocarro. Ele destranca as portas com um apito e eu levanto a minha mala e coloco-a na bagageira. O Nissan está gelado, mas pelo menos está seco. Logo que fecho a porta, tenho uma estranha sensação de vertigem. Detesto sentar-me no lugar do passageiro de um carro e ter outra pessoa a conduzir. Dá-me uma sensação de pânico e de falta de controlo. Ainda bem que a viagem é curta.

Quando o Lachlan liga o carro, o rádio começa a soar em altos berros. Reconheço o CD: Capernaum de Tannahill Weavers, uma banda tradi- cional escocesa. Sinto um assomo inesperado de nostalgia. Quando éramos adolescentes, a Ginny sabia a letra de todas as canções da banda e eu tinha identificado todos os acordes à guitarra.

O Lachlan desliga a música abruptamente.

— Então, quanto tempo vais ficar por cá, Skye? — pergunta. Liga o limpa-para-brisas na velocidade máxima, o que não impede que um muro de água se continue a formar à nossa frente.

(19)

Lauren Westwood

— Ainda não sei.

Ele assente com a cabeça. Saímos do parque de estacionamento e entramos na estrada que abraça a costa em direção a norte. Não preciso de olhar para os sinais na estrada, escritos em inglês e gaélico. Conheço o caminho de olhos fechados.

— Já passou muito tempo desde que ela desapareceu — diz ele. Demoro um segundo a assimilar que ele disse «ela desapareceu» em vez de «tu desapareceste».

— Desapareceu? — pergunto. — Estás a falar da Ginny? A Ginny morreu. A palavra ecoa pelo carro e abafa o som da chuva. Agarro a pega da porta com força e tenho vontade de sair e ir a pé.

— Sim. É isso que eu quero dizer. — O Lachlan suspira. — Há uns dias ouvi na rádio aquela canção que costumavas cantar. The Bonny Swans, lembras-te? Caramba, que cena da pesada. — Dá uma gargalhada estranha. — Aquela parte sobre a harpa?

Eu também me rio, porque a alternativa seria entrar em pânico. The Bonny Swans tem por base uma balada de morte chamada The Cruel Sister. Na canção, uma rapariga de cabelo preto afoga a irmã mais nova porque quer o amante dela, um príncipe, para si. Um moleiro faz uma harpa com o esterno da rapariga e usa os fios louros do seu cabelo para fazer as vezes das cordas. O moleiro leva a harpa para o castelo e coloca-a à frente do rei e da irmã de cabelo preto, que entretanto se fez rainha. A harpa começa a tocar sozinha, entoando uma canção segundo a qual a rainha assassinou a irmã.

A versão que costumávamos cantar era da cantora de folk cana-diana Loreena McKennitt. A Ginny tinha uma voz pura e cristalina como a dela, era uma voz especial que estava destinada a voos mais altos. Cantávamos a canção e ríamo-nos e era engraçado e estúpido. Adorávamos cantar canções macabras. Eram tempos em que não conhe-cíamos a morte de perto.

— É uma canção muito antiga — digo eu. — Muitas delas eram bastante sombrias.

(20)

— É verdade — diz o Lachlan. — Talvez eu seja demasiado sentimen-tal, mas gosto das canções antigas. Gostava que fizessem uma sessão de música tradicional aqui. Estou sempre a dizer ao Byron que ele devia começar a fazer uma no Arms. Mas ele não tem ouvido para a música. Não está interessado.

— É uma pena — digo. Na verdade, fico aliviada por saber que não existe uma sessão local. Quando o meu pai era vivo, íamos a uma quase todas as semanas num pub próximo ou na Junta de Freguesia. Os músicos vinham das terras mais próximas, às vezes a muitos quiló-metros de distância, para tocar, falar gaélico e passar um bom bocado. As pessoas tocavam e cantarolavam as canções. Não havia música escrita. Quem não conhecia a canção improvisava. Dependendo de quem aparecia, as mesmas canções podiam parecer completamente diferentes de uma semana para a outra. À medida que a noite ia avan-çando e as canecas de cerveja iam rodando livremente, as canções iam começando. Lembro-me das lágrimas a escorrer pelo rosto do meu pai quando ele cantava Aí Fond Kiss ou Ye Banks and Braes com uma voz áspera, enquanto todos os outros homens, igualmente encorpados e viris, se juntavam a ele. Foram noites mágicas. As melhores da minha vida, provavelmente.

Graças ao Lachlan, The Bonny Swans fica presa e bem presa na minha cabeça e repete-se vezes sem conta num ciclo interminável. Fico sentada em silêncio à medida que continuamos o caminho. A estrada serpenteia por vales estreitos pontuados por casas e depois transforma-se numa faixa única quando vira em direção ao promontório. Com a chuva a cair em torrentes à frente dos faróis, é como se estivéssemos a andar de carro em direção ao fim do mundo.

— Pensei muito sobre aquela noite — diz o Lachlan. — Creio que me mudou. Foi algo tão terrível. Tão… inesperado.

Não respondo. Fico a pensar que tenho de aceitar que faz tudo parte do meu castigo. Por me ter mantido longe… e por ter voltado. De certa forma, é um alívio que venha tudo à tona. Que, ao contrário do Byron,

(21)

Lauren Westwood

ele não se limite a fazer de conta que somos todos velhos amigos, juntos e felizes de novo.

— Quer dizer, provavelmente não queres falar sobre isso — acres-centa. — Mas, às vezes, pergunto-me o que terá realmente aconte- cido, sabes?

— Não — respondo rotundamente —, não sei. Todos nós sabemos o que aconteceu.

Todos menos eu, não acrescento. Não tenho nenhuma memória daquela noite.

— Sim, tens razão… — Hesita por um segundo. — É só porque houve algum falatório na aldeia, já há algum tempo…

— Por favor, Lachlan — interrompo. — Podemos falar de outra coisa?

— Claro, desculpa. — O Lachlan semicerra os olhos para ver a estrada escura à nossa frente.

— Não há problema. — Engulo em seco com dificuldade. — É só porque voltei para ver a minha mãe. Não para desenterrar o que acon- teceu no passado. Tenho saudades da Ginny todos os segundos de todos os dias. Ela era minha irmã gémea. E, não sei, pode parecer cruel, mas tentei seguir em frente. Percebes?

— Sim, eu percebo. — Ele olha de relance para mim com um sorriso quase melancólico. O Byron costumava provocar-me dizendo que ele tinha um fraquinho por mim. Nunca acreditei que fosse verdade no passado, e agora é completamente irrelevante. — Seja como for, é bom voltar a ver-te.

— Obrigada — respondo. Mas fico por aí, pois não consigo devolver--lhe a amabilidade.

— Estou certo de que a tua mãe vai ficar feliz por estares de volta — acrescenta. — Não a temos visto muito nos últimos tempos. Desde a queda, pelo menos.

A referência à queda da minha mãe apanha-me um pouco despre- venida. Eu sei que não deveria ter ficado surpreendida. Num lugar como

(22)

este não há segredos. Na verdade, ele deve saber muito mais do que eu sobre o «estado» geral da minha mãe, ao qual o meu irmão fez alusão nos e-mails que me enviou e em que não dizia muito.

— Sim. Bem, espero poder ajudá-la enquanto estou cá.

— Sim. Creio que ela se mantém ocupada com os arrendamentos de férias — diz ele, num sinal claro de que pretende mudar de assunto. — Foi uma boa decisão que ela tomou nesse aspeto.

Eu sei alguma coisa sobre a renovação que a mãe fez há alguns anos nos dois edifícios rurais de pedra da quinta. Pelo que sei, hipotecou a casa de campo (o que, por si só, já é algo digo de nota: os meus pais sempre desprezaram coisas como os bancos e as dívidas) e contratou um construtor local para deitar tudo abaixo exceto as paredes exteriores. Conseguiu uma autorização de planeamento e as licenças necessárias sozinha. Na altura, pensei que, se ela tinha feito aquilo tudo, deveria estar bem. Queria acreditar nisso…

— Ela arrendou-as o verão inteiro — acrescenta o Lachlan. — Uma delas ainda está ocupada agora.

— A sério? — Consigo soltar um pequeno sorriso. — Quem havia de querer vir para aqui em dezembro?

— Um artista qualquer do sul. — Franze o nariz com desprezo. — Não o vi muito por cá.

— Provavelmente está congelado. — Sim.

O Lachlan vira para uma estrada de gravilha que atravessa um pedaço de terra que se estende mar adentro. Mais além, as colinas escuras do promontório aparecem à nossa frente. Tecnicamente, no passado, o promontório onde fica a casa da minha mãe era uma ilha, mas, no século xix, um caseiro atolou o recesso estreito com rochas e cascalho

e construiu um caminho. Do outro lado do recesso, há uma peque- na extensão de floresta: carvalhos cobertos de musgo e rododendros. O caminho desce para uma pequena zona abrigada onde ficam as casas. Chegamos a um portão. Preparo-me para enfrentar a chuva

(23)

Lauren Westwood

e subir para o abrir, algo que fiz milhares de vezes no passado. No entanto, desta vez, o Lachlan antecipa-se.

Ele sai para abrir o portão, volta a entrar no carro, encharcado, e segue em frente. Deixo-me ficar sentada quando ele volta a sair para o fechar. Não vale a pena ficarmos ambos molhados. Alguns minutos depois, paramos no pátio da Casa Croft. Do interior, jorra um brilho amarelo de luz. Um vulto na janela da cozinha. Sinto nós no estômago. Mãe.

(24)

Capítulo 4

O

Lachlan estaciona em frente à casa e pousa a minha mala na gravilha molhada. Eu fico sentada no carro a olhar para a chuva a embater violentamente no para-brisas. Agora que fiz todo este caminho, começa a parecer-me impossível percorrer estes últimos metros que me levarão de volta ao lugar onde cresci e me conduzirão ao encontro da pessoa mais importante da minha vida. A minha própria mãe, que convenien-temente deixei esquecida nas brumas do passado como as memórias de infância… porque era isso que ela queria.

As palavras que foram proferidas há tanto tempo abrem caminho pelos meandros da memória e chegam até à minha cabeça:

Eu sei que está errado, mas é verdade que a culpo…

A minha mão está presa à pega da porta como uma garra. O Lachlan franze o sobrolho e volta ao carro.

— Estás bem? — pergunta.

— Estou ótima. — Solto a pega, faço um esforço para sorrir. — Estou só a preparar-me para ficar encharcada. Quanto é que te devo?

— Não é nada. — Sinto que ele não se deixa enganar pela minha máscara de coragem. Estou apavorada. Tenho a certeza de que ele se apercebeu disso. — Pagas-nos uma rodada no pub quando estiveres instalada.

— Fica combinado — respondo. — Muito obrigada pela boleia. — De nada.

(25)

Lauren Westwood

Saio do Nissan, agarro na mala e corro até ao alpendre. Fico aliviada ao ver que ele não se deixa ficar até eu entrar. Os feixes amarelos dos faróis passam por mim quando o carro recua e arranca, revolvendo a gravilha.

A casa está diferente em relação à última vez que tinha cá estado. A porta está pintada num bonito tom de azul-violáceo e, no degrau, está um par de galochas com um estampado floral e um cesto com conchas e seixos da praia. Dantes, havia sempre pares de botas cheias de lama, patins velhos, rochas fósseis e bicicletas deixadas ao acaso no alpen- dre. Até a água vinda do algeroz parece ordenada. Suponho que é assim que a minha mãe gosta da casa, agora que vive sozinha. Há tantos anos. A onda de culpa volta a levantar-se e eu fecho os olhos até que passe. Fiz o que fiz e não faço ideia do tipo de receção que vou ter. Será que vou ver juízos de valor nos seus olhos? Recriminações? Irá ela olhar para mim e pensar imediatamente na Ginny? Ou não me reconhecerá de todo?

Está na hora de enfrentar a resposta. Centro-me no único facto real e inimitável e agarro-me a ele como uma pequena planta na beira de um penhasco.

Ela é a minha mãe e eu amo-a.

Bato à porta. As gotas da chuva marcam o tempo enquanto eu espero. Não ouço nenhum som lá dentro. Mais uma mudança em relação à minha infância, em que tínhamos, pelo menos, um cão, às vezes três, que costumavam ladrar quando as pessoas se aproximavam da porta.

Agora, o silêncio começa a ser perturbador. A minha mãe estava na cozinha. Decerto, viu o carro a parar. A cada longo segundo que passa, o meu coração bate mais depressa. Nos primeiros anos, os e-mails do Bill eram, habitualmente, algo como: «Sei que estás ocupada, mas seria ótimo se pudesses ligar à mãe» ou «Só para te lembrar de que na pró-xima semana é o aniversário da mãe». Mas nos últimos anos, a escolha de palavras passou a ser mais cuidada. «A mãe tem tido mais dificul-dade em lembrar-se das coisas.» «Às vezes, a mãe fica desorientada.»

(26)

E, nos últimos meses, mais incisivos. «Olha, temos de falar. Não posso fazer isto sozinho.» Nunca soube como responder a estas mensagens. Dói saber que provavelmente o meu irmão pensou o pior e me achou insensível e indiferente. E talvez eu devesse ter-lhe contado a razão por que me mantive longe ao longo de todos estes anos. Talvez não seja demasiado tarde…

Volto a bater à porta, desta vez com mais força. Começo a tremer e não apenas devido ao frio.

E, por fim, ouço qualquer coisa: um som vindo do interior. Passos lentos a aproximarem-se da porta. Uma pancada seca entre cada passo. Ouço o chocalhar da corrente. A porta abre-se.

— Mãe — digo com a voz rouca.

Está mais pequena e mais magra do que eu me lembro, com o cabelo até às orelhas já completamente branco. Mas o aroma quente a lavanda e maçã não mudou. O rosto está enrugado, mas os olhos verde-avelã são os mesmos.

— Skye…? — Ela levanta a mão quase até ao meu rosto, e eu vejo que está a tremer. E depois deixo-me levar por completo. Abro os bra-ços e esmago-a dentro deles. As minhas lágrimas caem-lhe no cabelo e ela treme enquanto eu a abraço. Mas também estou a sorrir, e, algures dentro de mim, o sol está a tentar romper por entre o que pareciam nuvens impenetráveis.

Ela recupera antes de mim, afastando-se para olhar para mim enquanto me agarra com os braços estendidos.

— És mesmo tu — diz ela, com um tremor na voz.

O que quer que eu pretendesse dizer neste momento, o que quer que tivesse ensaiado… vai tudo por água abaixo. Neste momento, não há espaço para todas as desculpas que será necessário apresentar, pelo menos da minha parte. É como se uma bolha se tivesse fechado à nossa volta, duas pessoas cujas vidas estão inapelavelmente ligadas. Neste momento, estou feliz por estar viva.

(27)

Lauren Westwood

— Estás encharcada. — A minha mãe assume o papel de cuidadora. — Vou pôr a chaleira a aquecer.

Ela começa a dirigir-se para a cozinha e eu percebo porque demo-rou tanto a atender à porta. Apoia-se numa bengala de madeira, o pé esquerdo numa meia preta de nylon, mas sem sapato. O andar é lento e rígido, as costas estão curvadas. Fico ligeiramente chocada. A minha mãe foi sempre tão robusta. Um pilar a sustentar a família, quase assus-tadoramente forte. No entanto, agora parece estar… velha.

Eu tiro o casaco molhado, penduro-o no cabide ao lado da porta e acrescento as minhas botas à fila ordenada de sapatos sob as roupas penduradas. A casa também parece menor, o teto mais baixo do que me lembrava. E a verdade é que não costumava estar tão arrumada. Quando eu tinha 19 anos e o Bill 16, as nossas coisas estavam espalha- das por todo o lado. O Bill gostava de corridas de bicicletas e queria participar na Volta à França, um objetivo que se esfumou logo que tirou a carta de condução. Lembro-me da enorme bicicleta estacionada no quarto dele ao lado do taco de shinty1, dos patins de gelo e do

equi-pamento de rugby. Havia também o equiequi-pamento musical: guitarras e estantes, amplificadores e estojos. É difícil imaginar que ainda tenha sobrado espaço para a mobília e para as pessoas.

Agora tudo isso desapareceu. Há um sofá encostado à parede ao fundo e duas poltronas em frente à lareira. Podem ser as poltronas e o sofá de antigamente, mas, se assim for, foram recuperados com um veludo azul, complementado pelas almofadas com motivos florais azuis e brancos. O meu lado nostálgico esperava ver uma árvore algures. Durante a nossa infância, a mãe não se poupava a nada no Natal. Porém, agora, poderia ser qualquer altura do ano.

Por um lado, estou aliviada por ver que mudaram tantas coisas. Talvez a minha mãe tivesse sentido a necessidade de se afastar e livrar das

1 Jogo originário das Terras Altas da Escócia em que duas equipas de 12 jogadores usam

(28)

memórias de dor daquele tempo, tal como eu. Ela não pôde dar-se ao luxo de fugir para o outro lado do mundo para o fazer. Teve de se con-tentar com uma nova capa no sofá e nas almofadas.

Os meus olhos são atraídos para as fotografias na cornija da lareira. Independentemente do tempo que decida ficar aqui, haverá muitas coisas que terei de enfrentar. Esta é uma delas.

Olho para cada fotografia e tento manter-me impassível. Se fôssemos uma família normal, eu poderia sentir-me um pouco enfadada por a maior parte das fotografias ser do Bill, da mulher, Fiona, e dos três filhos. Há uma fotografia do casamento, uma fotografia dos cinco na praia com um enorme peixe nas mãos; do Bill com um bebé nos braços; de dois bebés e uma menina juntos numa banheira a fazer caretas; da mesma menina sentada ao piano. À medida que vou olhando para a fila e chego às últimas três fotografias, a minha garganta vai-se contraindo. Vejo uma fotografia minha e da Ginny num palco a cantar com microfones à nossa frente e as nossas fotografias do último ano de escola.

Olho fixamente para a fotografia da Ginny na escola. Talvez seja o facto de nunca ninguém ficar bem numa fotografia escolar, mas ela parece algo menos do que a rapariga que eu tenho na memória. Menos bonita, menos talentosa. É como se a máquina fotográfica não tivesse sido capaz de captar a sua essência: o seu espírito maravilhoso, a luz dos seus olhos. Sinto um tremendo assomo de dor. A verdadeira Ginny, a minha Ginny, desapareceu.

— Tenho bolachas de manteiga e de gengibre. Quais preferes? A minha mãe voltou à sala. Debruça-se sobre a bengala e vê-me a olhar para as fotografias. A ruga entre os seus olhos fica um pouco mais car-regada. Mas bolachas é um assunto com que sou capaz de lidar.

— Prefiro as de manteiga — respondo. — Mas eu vou buscá-las. Ele recusa a minha oferta de ajuda com um gesto. Eu sigo-a até à cozinha. Ao longo dos anos, comprei bolachas de manteiga escocesas esporadicamente no supermercado, e recebi alguns pacotes como pre-sente no Natal de pessoas que pensavam que eu iria gostar de provar

(29)

Lauren Westwood

os «sabores da terra natal». Mas nunca eram como as bolachas de man-teiga da minha mãe, tão ricas e amanman-teigadas que se desfaziam na boca. A minha mãe encosta a bengala ao lava-loiça, pega na chaleira e enche o bule com água quente. É a mesma chaleira com rosas cor-de--rosa numa treliça dourada de que eu me lembro da minha infância. Parece não pertencer aqui, distante do seu tempo. Tudo o resto mudou enormemente. As paredes, em tempos amarelas, foram pintadas num tom neutro de creme. A bancada é nova e a enorme mesa de madeira que ocupava quase toda a cozinha foi substituída por uma mesa mais pequena feita de madeira mais leve. A porta do frigorífico, que costu-mava estar coberta de certificados, lembretes e cartas da escola, está agora vazia, à exceção de um pano de cozinha com uma faixa vermelha pendurado num gancho magnético. Junto à porta das traseiras, há um caixote de reciclagem. Em cima do caixote está um pacote com o xadrez escocês: bolachas de manteiga Walkers. Será que as bolachas de man-teiga da minha mãe foram sempre de pacote? Terei apenas assumido que eram caseiras?

Vagueio constrangida pela cozinha.

— Adoro o que fizeste com a casa — digo, numa tentativa de fazer conversa de circunstância. A minha mãe pousa a chaleira numa bandeja, juntamente com duas chávenas e um prato de bolachas. Eu inclino-me para pegar na bandeja, mas ela trava-me as intenções. A loiça chocalha de instabilidade quando ela dá um passo hesitante em direção à mesa sem a bengala. Contenho a respiração, pronta para a amparar…

Ela leva a bandeja até à mesa sem mais sobressaltos. — Senta-te, por favor — diz.

Eu sento-me. Ela puxa uma cadeira e baixa-se até se sentar. Vejo os ossos salientes dos ombros por baixo da blusa de algodão azul.

— A casa precisava de obras. — A minha mãe dispõe as chávenas brancas com bordas douradas, não as canecas de barro azuis que tínha-mos no passado, e enche-as de chá. — A Annie, da aldeia, ajudou-me. Ela voltou a casar-se, com um carpinteiro, o Greg.

(30)

— Eu vi-a no pub quando fui à procura de um táxi. — Bebo um trago de chá: uma mistura de baga de rosa e Earl Grey. — Ela pareceu-me, hum… diferente.

— Bem, acho que estamos todos diferentes. — A minha mãe estremece quando bebe um trago de chá, como se tivesse queimado a garganta.

— Sim. — Não sei bem como responder a este facto inegável. Mais velhos, mais tristes e provavelmente não muito mais sensatos. No meu caso, pelo menos. — Também vi o Byron, a servir no bar. E o Lachlan é o taxista. Mas tu sabes isso tudo, de certeza.

Ela baixa a cabeça e olha para a chávena de chá como se não soubesse o que dizer. Não muito diferente de mim.

— Sim — diz ela. — E há um homem a viver numa das casas da quinta. A mais pequena, a Skybird.

Skybird… Porque é que a minha mãe escolheu este nome? Skybird foi uma das últimas canções que eu e a Ginny escrevemos juntas. Era a nossa interpretação da lenda de Tristão e Isolda quando tínhamos 18 anos. Isolda está em pé na costa à espera do regresso do seu amor. Vê um barco no horizonte com velas pretas, o que significa que Tristão está morto. Quando Isolda se atira ao mar e morre, um bando de corvos voa dos mastros e destapa as velas brancas. Tristão vê Isolda na água e as aves a rondar o seu corpo.

A maioria das nossas canções daquela altura eram ridiculamente más. Mas tínhamos orgulho da Skybird. Ainda sou capaz de ouvir a minha irmã a cantar o refrão na sua voz aguda e pura: Voa, passarinho, em direção ao céu, traz-me o meu amor para casa. Quando a Ginny man-tinha uma nota, o vibrato soava como se houvesse algo a rodar, como um floco de neve perfeito a virar e a revirar livremente à medida que caía do céu.

Eu estremeço e bebo mais um gole. A minha mãe também parece abalada pela memória. Sub-repticiamente, empurro o meu prato de bolachas de manteiga na sua direção e ela come sem se aperceber.

(31)

Lauren Westwood

— Será bom voltar a ter música na casa agora que a Skye voltou — diz ela. — Estou ansiosa por isso. Tu sabes cantar…

A minha mão detém-se com a chávena de chá a caminho da boca. — Tenho saudades de ouvir a tua voz tão bonita, Ginny.

As palavras do último e-mail do Bill vêm-me à memória.

Na maior parte do tempo, ela está bem. Mas, às vezes, fica desnorteada. A minha mão agita-se e eu pouso a chávena. Gostava de ter respon-dido ao e-mail e perguntado o que fazer. Opto pela abordagem mais severa e informo-a calmamente de que nunca mais voltará a ouvir a bonita voz da Ginny porque a Ginny está morta? Ou mudo de assunto e espero que ela acorde?

Tento esta última abordagem.

— Então, quando é que o Bill vem cá? Estou mesmo ansiosa por ver os miúdos. Já passou algum tempo. — Continuo a divagar. — Vi-os há cerca de 18 meses. Ele chegou a contar-lhe? Foram à Disney World na Florida. Eu tinha um espetáculo em Charlotte, que fica na Carolina do Norte, pelo que decidi ir até lá para os ver no fim de semana.

Olho para a cara dela. Fosse qual fosse a bolha em que se encontrava há um momento, parece ter rebentado. O rosto empalidece e ela tem um ar confuso. Abre a boca e fecha-a de novo sem falar.

— Comprei alguns presentes pelo caminho — continuo. — Só coisas pequenas. E achas que podemos ter uma árvore? Quer dizer, não quero dar-te mais trabalho, nem a mim — rio-me desajeitadamente. — Mas seria bom para os miúdos. Os enfeites ainda estão no sótão? Eu podia ir lá buscá-los…

A minha mãe suspira. Sinto que ela já regressou completamente à realidade, que não é tão boa como o mundo de escape.

— O teu pai batia com a cabeça naquela viga todos os anos quando ia buscar as caixas — diz ela. — Lembras-te?

— Lembro — respondo, com uma sensação aguda de perda. O meu pai era um homem gentil e despretensioso com uma palavra amiga e uma expressão de consolo para cada situação. Percorria cerca

(32)

de 150 quilómetros todos os dias na sua pequena carrinha vermelha para levar o correio às aldeias e quintas junto à costa. Nunca faltara a um dia de trabalho, independentemente do tempo que se fizesse sen-tir. A grande paixão do meu pai era a música. Tocava guitarra e pífaro e passámos alguns verões num desconforto ensurdecedor quando ele tentava, e não conseguia, aprender a tocar gaita de foles. Ele gostava de uma boa e vibrante canção jacobita e cantava com arrebatamento e uma voz terrível as loas de Charles Edward Stuart, conhecido como Bonnie Prince Charlie, enquanto nós batíamos o pé e nos ríamos. Tal como ele, eu tinha jeito para tocar instrumentos. Quando tinha 12 anos, era capaz de tocar guitarra, bandolim, violino, bodhrán2 e teclas. A Ginny tocava

guitarra e aprendeu por si própria a tocar uma harpa celta que alguém da aldeia ia deitar fora. Mas, acima de tudo, a Ginny era a vocalista, a intérprete principal. Formávamos uma grande equipa.

E depois, quando eu tinha 16 anos, o meu pai morreu. Uma manhã, ao seguir nas suas rondas, parou para ajudar um lavrador no parto de um vitelo em posição pélvica, debaixo de uma violenta tempestade. Naquela noite, contraiu uma constipação que se transformou em pneu-monia. Tentou brincar com o assunto: «Parece que tenho um elefante no peito», e «Levei uma pequena alfinetada, mas vou ficar são como um pero». Nós acreditámos nele: o meu pai nunca mentia e ninguém morre de pneumonia nos dias de hoje. Veio o médico e o meu pai foi levado para o hospital. Penso que a maior tragédia para ele foi ter morrido lá, e não em casa. Acabou por ter a sorte de ser poupado ao que havia de acontecer mais tarde.

A minha mãe aceitou a morte do meu pai com um estoicismo forjado com aço escocês. Lembro-me de a ver junto ao seu caixão durante as exéquias, com a boca fechada e os lábios finos e inertes. Talvez tenha sido a morte do meu pai a dar início à lenta espiral descendente da família. Não sei. Quando o meu pai morreu, perdi a pessoa que mais amava

(33)

Lauren Westwood

no mundo. Mas, quando a Ginny morreu três anos depois, foi como se metade da minha alma se tivesse extinguido para sempre.

E a minha mãe… a morte do meu pai afetou-a mais do que ela nos deu a entender. Tornou-se mais dura, mais rígida — pelo menos, para o exterior. No entanto, à noite, às vezes eu ouvia-a falar com ele, como se ele estivesse no quarto com ela. Às vezes ouvia-a chorar.

Não chorou quando a Ginny morreu. Talvez o tenha feito mais tarde. Não fiquei o tempo suficiente para descobrir.

Sorrio melancolicamente para a minha mãe.

— Lembro, sim. Era a única altura em que ele praguejava.

— Sim, o teu pai não gostava de dizer palavrões. — A minha mãe enche a minha chávena com o chá que resta no bule. — Ele costumava dizer que nós éramos demasiado inteligentes para isso, que temos um vocabulário melhor e não temos de usar esse tipo de linguagem.

— Sim — digo eu com carinho. Era uma coisa muito típica do pai. — Bem… — A minha mãe encolhe os ombros — as caixas ainda estão lá em cima, se quiseres trazê-las para baixo. Como é óbvio, uma vez que estou aqui sozinha na maior parte dos anos, não me dou a esse trabalho.

Analiso os seus modos para ver se é uma indireta ou uma desculpa. No entanto, pelo que consigo perceber, está apenas a apontar um facto.

— Eu compreendo — digo com neutralidade. — Posso fazer mais alguma coisa? Gostaria de ajudar enquanto estiver aqui.

A minha mãe franze o sobrolho e olha-me de lado como se eu fosse uma estranha. É isto que posso esperar? Vou ficar a preocupar-me com cada olhar, cada nuvem que perpasse pelo seu rosto? Receosa de que ela não me conheça; de que não me queira aqui, afinal?

— Quer dizer, assim poderás descansar a tua perna — continuo. — Posso ir às compras ou ajudar-te a arrumar a casa. No entanto, tenho de admitir que continuo a ser uma péssima cozinheira. — Lanço-lhe um sorriso envergonhado. — Por isso, talvez não queiras dar-me essa responsabilidade.

(34)

Começo a arrumar a loiça na bandeja. Esforço-me muito. Demasiado. A minha mãe não responde. Perturba-me vê-la aparentemente tão indiferente. Com uma tão grande falta de centelha, afeto ou sagaci-dade — não tem nada que ver com a mulher de que eu me lembrava. A minha mãe foi sempre a pessoa mais esperta que eu conheci. Ensi- nou Matemática na escola local até à altura em que o meu pai morreu. Eu nunca fui muito boa na escola, mas, comparada com a Ginny, era um génio. Não, na nossa família, a mãe era a mais perspicaz e inteli-gente. Mas o tempo, o sofrimento e a tragédia parecem ter apagado essa centelha, extinguido o fogo.

Levanto-me para levar a bandeja para o lava-loiça. Logo em seguida, a minha mãe também empurra a cadeira para trás, como se estivesse a tentar suplantar-me na tarefa.

— Deixa estar — digo com um sorriso delicado. — Eu posso tra-tar da loiça. — Na minha visão periférica, percebo que ela se levanta apoiando as mãos na mesa e nas costas na cadeira. A cadeira balança precariamente. Forma-se um nó de tensão no meu peito. A bengala dela continua encostada aos armários da cozinha junto a mim. Pego nela e estendo-a na sua direção.

— Toma, mãe —digo-lhe. — Precisas disto?

Ela ignora-me e manqueja até ao lava-loiça, contraindo-se um pouco. Escora-se na extremidade, abre a torneira e espera que a água aqueça.

— Deves estar cansada depois de uma viagem tão longa — diz, sem olhar para mim. — Porque é que não descansas? Eu aqueço um pouco do guisado para o jantar.

— Eu posso fazer… — começo a dizer. Os ombros dela retraem-se. Eu detenho-me e volto a encostar a bengala ao armário. — Parece-me bem, obrigada. — Contenho um suspiro. É claro que a única forma de acabar com esta pequena luta de poder é sendo eu a ceder.

Pela primeira vez desde a minha chegada, vejo um espetro de sorriso no seu rosto. A minha mãe despeja detergente no lava-loiça. Reparo que o seu tornozelo bom está a tremer um pouco devido ao esforço

(35)

Lauren Westwood

de suportar todo o peso do corpo. Desvio os olhos. Não consigo olhar. Preciso de espaço… de ar…

— Ficas no teu antigo quarto — diz a mãe.

O meu antigo quarto. Estava à espera disso e, no entanto, as palavras deixam-me a pele fria e húmida.

— Hum, está bem. — As palavras saem espremidas. — E talvez tome um duche rápido. Viajar faz-me sentir suja.

— Sim — diz ela. — Está bem. — Obrigada.

Tenho tanta pressa de sair da cozinha que tropeço num pequeno sulco na alcatifa quando saio para a sala de estar e tenho de me agarrar à parede para me amparar. Pego na minha mala de viagem e na mala de mão para as levar para o quarto, ao cimo das escadas. Os meus olhos voltam a esbarrar nas fotografias. Na fotografia. Sim, é uma fotografia escolar terrível e sempre detestámos ter de as tirar. Mas, deste ângulo, tenho a sensação de que a Ginny me está a retribuir o olhar… e a sorrir.

(36)

Referências

Documentos relacionados

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

4 Este processo foi discutido de maneira mais detalhada no subtópico 4.2.2... o desvio estequiométrico de lítio provoca mudanças na intensidade, assim como, um pequeno deslocamento

segunda guerra, que ficou marcada pela exigência de um posicionamento político e social diante de dois contextos: a permanência de regimes totalitários, no mundo, e o

A democratização do acesso às tecnologias digitais permitiu uma significativa expansão na educação no Brasil, acontecimento decisivo no percurso de uma nação em

MATRÍCULA nº 4.540 do 1º CRI de Piracicaba/SP: 01 (UMA) GLEBA DE TERRAS, situada no imóvel denominado “Algodoal”, contendo a área de 53.982,00m², desta cidade, que assim

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

Focamos nosso estudo no primeiro termo do ensino médio porque suas turmas recebem tanto os alunos egressos do nono ano do ensino fundamental regular, quanto alunos

No primeiro livro, o público infantojuvenil é rapidamente cativado pela história de um jovem brux- inho que teve seus pais terrivelmente executados pelo personagem antagonista,