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O papel das humanidades na educação para a democracia

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul

Departamento de Humanidades e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências

ADRIANA TOSO KEMP

O PAPEL DAS HUMANIDADES

NA EDUCAÇÃO PARA A DEMOCRACIA

Ijuí – RS 2018

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UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul

Departamento de Humanidades e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências

ADRIANA TOSO KEMP

O PAPEL DAS HUMANIDADES

NA EDUCAÇÃO PARA A DEMOCRACIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, vinculado ao Departamento de Humanidades e Educação da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de doutora em Educação nas Ciências.

Linha de pesquisa: Teorias pedagógicas e dimensões éticas e políticas da educação

Área de concentração: Letras

Orientador: Professor Doutor José Pedro Boufleuer

Ijuí – RS 2018

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K32

Kemp, Adriana Toso.

O papel das humanidades na educação para a democracia / Adriana Toso

Kemp. – Ijuí, 2018. 123 f. : il. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Educação nas Ciências.

“Orientador: Professor Doutor José Pedro Boufleuer”.

1. Sociabilidade democrática. 2. Formação humana. 3. Intersubjetividade. I. Boufleuer, José Pedro. II. Título.

CDU: 37.011

Catalogação na Publicação

Ginamara de Oliveira Lima CRB10/1204

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DEDICATÓRIA

À Graciana e à Joana, filhas amadas, que nasceram sob a égide, ainda que frágil, da democracia no Brasil, e agora lutam junto comigo para evitar sua extinção. Somos resistência.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor José Pedro Boufleuer, por compartilhar generosamente seu conhecimento, instigando-me sempre à reflexão e à crítica durante todo o percurso de orientação para a elaboração desta tese.

À professora Vânia Cossetin e aos professores Paulo Fensterseifer, Sidinei Phitan, Amarildo Trevisan, Fábio Junges e Jayme Paviani, pela leitura atenta e pelas contribuições à qualificação do texto.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, em especial aos da Linha 2, com os quais tive o privilégio de dialogar nas disciplinas que cursei e nos grupos de estudos dos quais participei.

Aos colegas do Programa, com os quais tive a oportunidade de interagir durante o curso, especialmente à Sabrina Corrêa, à Franciele dos Anjos e à Cláudia Ilgenfritz, também pela amizade que transcende o espaço-tempo da Universidade.

Às secretárias do PPPGEC, pelo atendimento sempre atencioso e cordial. Ao Instituto Federal Farroupilha, pela concessão da licença integral para qualificação durante os dois últimos anos.

A todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para que esta tese pudesse ser escrita, em especial àquelas que me indicaram e/ou emprestaram livros.

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MODOS DE DIZER O povo que não lê nem sabe escrever cultiva pensamentos nos quintais do poder. Por certo ele entoará com sua voz porosa um hino à justiça no seu modo de falar. Se tudo é prático e prática desmedida a fadiga dos dias será justificada. A voz do povo no ritmo do verso sabe os detalhes conhece a vida.

Quando o rosto reflete o grito do existir já é hora do barco buscar outro rio.

(Jayme Paviani, 1982)

“Tento juntar palavras para dizer às pessoas quais são os problemas, de onde eles vêm, onde se escondem, como encontrar ajuda para resolvê-los se for possível. Mas são palavras. E não nego que são poderosas, porque a nossa realidade, o que nós pensamos que é o mundo, esta sala, nossa vida, nossas lembranças, são palavras.”

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RESUMO

A centralidade da argumentação desenvolvida ao longo desta tese parte do pressuposto de que os princípios da universalidade, da igualdade, da individualidade, da autonomia do sujeito e da laicidade do estado, conquistados na Modernidade, constituem os melhores traços norteadores da vida em sociedade que a humanidade conseguiu até então inventar. Nesse sentido, os esforços empreendidos na educação das novas gerações precisam ser pautados pelo entendimento de que a saúde e a qualidade da vida democrática são diretamente proporcionais à capacidade de seus cidadãos construírem critérios de validade para o funcionamento dessa forma de sociabilidade. A investigação, desenvolvida numa perspectiva crítico-hermenêutica, traz reflexões sobre os aspectos educacionais formativos mais amplos do ser humano para a vida republicana e democrática e o papel das áreas de conhecimento compreendidas como humanidades nesse processo. A tese defendida é de que o processo formativo escolar não pode prescindir das humanidades. A proposição, a partir da interpretação do corpus teórico estudado, aponta para a necessidade de assegurar lugar de abertura à reflexão e à crítica no processo formativo escolar. Nesse sentido, é imprescindível assegurar espaço-tempo para as humanidades no currículo escolar, mas também encarar o desafio de reconsiderar, reexaminar e reformular a relevância e os fundamentos da própria concepção de humanismo capaz de inspirar as áreas do conhecimento a se reconhecerem como produções humanas situadas no tempo e no espaço, passíveis, portanto, de questionamentos, de revisão e de renovação, e não como verdades absolutas a serem transmitidas e consumidas. A despeito do retrocesso no qual consiste a perda de espaço das disciplinas compreendidas como humanidades no currículo do ensino médio brasileiro a partir da recente reforma desse nível de ensino, aponta-se, também, a possibilidade de que, colateralmente, se produza a necessária mobilização dos educadores para o aprofundamento do debate e do levantamento de razões que justifiquem a importância dessas áreas de conhecimento na formação dos jovens. A presença por si só dessas disciplinas no currículo não assegura sua efetividade na dinâmica formativa dos sujeitos. É indispensável o amplo e profundo debate quanto ao possível papel dessas disciplinas no processo formativo das novas gerações. A retirada das humanidades do currículo escolar desdobra-se num movimento mais abrangente de alijamento da formação humana para um mundo humano. Mas esse alijamento também pode acontecer a partir do modo como se concebem e são trabalhados na prática escolar os conhecimentos das disciplinas humanísticas. Uma saída possível pode ser buscada com o reconhecimento do trabalho docente como tarefa do pensamento, como busca dos fundamentos de cada área de conhecimento, para além do saber-fazer. Aponta-se como alternativa a recuperação da dimensão narrativa da educação, em todas as áreas, como um modo de “desesclerosar” o conhecimento e recuperar o protagonismo dos sujeitos em sua produção. As humanidades, abordadas criticamente, carregam o potencial de proporcionar aos sujeitos do processo educativo os elementos necessários para a produção de subjetividades capazes de pensamento crítico e de empatia, virtudes indispensáveis para a convivência humana democrática, condição de possibilidade de se produzir mundo comum.

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ABSTRACT

The centrality of the argumentation developed throughout this thesis is based on the assumption that the principles of universality, equality, individuality, the autonomy of the subject and the laity of the state conquered in Modernity are the best guiding aspects of life in society that humanity has managed so far. In this way, the efforts undertaken in the education of the new generations need to be guided by the understanding that health and the quality of democratic life are directly proportional to the capacity of its citizens to construct criteria of validity for the functioning of this form of sociability. The research, developed in a critical-hermeneutic perspective, reflects on the broader formative educational aspects of the human being for republican and democratic life and the role of the areas of knowledge understood as humanities in this process. The thesis defended is that the educational formation process cannot do without the humanities. The proposition, based on the interpretation of the theoretical corpus studied, points to the need to ensure a place of openness to reflection and criticism in the school formative process. In this perspective, it is imperative to ensure space-time for the humanities in the school curriculum, but also to face the challenge of reconsidering, reexamining, and reformulating the relevance and foundations of very conception of humanism, able to inspire the areas of knowledge to recognize themselves as human productions situated in time and space, therefore able to question, review and renewal, and not as absolute truths to be transmitted and consumed. In spite of the regression in which consists of the loss of space of the subjects understood as humanities in the curriculum of Brazilian High School since the recent reform of this level of education, it is also pointed out the possibility that, in a collateral manner, the necessary mobilization of educators to deepen debate to raise reasons that justify the importance of these areas of knowledge in the training of young people. The presence of these subjects alone in the curriculum does not ensure their effectiveness in the subjects' training dynamics. A wide and deep debate about the possible role of these disciplines in the formative process of the new generations is indispensable. The elimination of the humanities from the school curriculum unfolds into a more comprehensive movement to dump human formation into a human world. But this can also occur from the way in which knowledge of humanistic disciplines is conceived and practiced in school practice. A possible exit can be sought with the recognition of the teaching work as a task of thought, as a search of the fundamentals of each area of knowledge, beyond the know-how. An alternative is the recovery the narrative dimension of education, in all areas, as a way to "lose physical and mental abilities" the knowledge and recover the protagonism of the subjects in their production. The humanities, critically approached, carry the potential of providing the subjects of the educational process elements necessary to the production of subjectivities in order to critical thinking and empathy, indispensable virtues for democratic human coexistence, a condition for the possibility of producing a common world.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...10

1 DA SOLIDEZ À LIQUIDEZ: DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO NA MODERNIDADE...19

1.1 Formação ou instrumentalização?...19

1.2 O projeto educacional da Modernidade Sólida à Modernidade Líquida...24

2 LINGUAGEM, SUBJETIVIDADE E EXPERIÊNCIA...35

2.1 A linguagem na tradição filosófica...36

2.2 A educação como prática discursiva de subjetivação...45

2.3 O empobrecimento da experiência na modernidade líquida...49

3 EDUCAÇÃO ESCOLAR: SUPREMACIA DO MÉTODO OU POSSIBILIDADE DA EXPERIÊNCIA? ...56

3.1 O logos pedagógico como a produção de humanos em humanos...59

3.2 A escola no banco dos réus...62

3.3 As tentativas de domação da escola e do professor...65

3.4 Em defesa da escola republicana...73

4 AS HUMANIDADES NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS PARA A VIDA DEMOCRÁTICA...81

4.1 Educação para o desenvolvimento humano...82

4.2 O cultivo do pensamento crítico...90

4.3 A cidadania planetária...93

4.4 O cultivo da imaginação...99

CONSIDERAÇÕES FINAIS...109

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INTRODUÇÃO

Diante da crise da Modernidade, que é a crise do paradigma da racionalidade que nela se estabeleceu e, com ele, a crise do ideal universal de humanidade, corremos o risco de abandono da razão como esforço no sentido de construção de critérios de razoabilidade para a manutenção de um mundo humano comum.

Ao discorrer sobre o esforço de autocertificação, ou autofundamentação, empreendido na Modernidade, Fensterseifer (1999), em sua tese de doutorado, destaca nesse movimento a “busca de afirmação da razão”, e continua: “mas se há necessidade de um esforço neste sentido é porque a razão não se afirma sem embates, o que evidencia que razão e crise são ‘velhas conhecidas’” (FENSTERSEIFER, 1999, p. 48). Ainda de acordo com o autor, a crise da Modernidade pode ser compreendida como uma crise que atinge seu cerne “[...] enquanto forma da razão humana, abalando com isso os fundamentos desta em seu próprio exercício” (FENSTERSEIFER, 1999, p. 50). Nesse sentido, também Marques argumenta:

Culminou a modernidade numa exasperação da subjetividade, do individualismo, que teve início na opção do mundo ocidental pelo dualismo de sujeito e objeto que se acentuou no paradigma cartesiano da consciência fundadora das ideias claras e distintas. É esse paradigma que está em crise (MARQUES, 1993, p. 56).

Da pretensão de construir um mundo humano comum e ordenado, limpo e belo1, pautado pelo conhecimento científico, na Modernidade Sólida2, passamos à individualização exacerbada e à consequente descrença na busca de soluções coletivas, na Modernidade Líquida3. Da percepção dos limites e malefícios da

1 Bauman discorre sobre isso na introdução da obra Modernidade Líquida (2001). O autor lembra a

pretensão moderna de “derreter os sólidos”, expressa pelos autores do Manifesto Comunista, a qual se referia, segundo ele, “[...] ao tratamento que o autoconfiante e exuberante espírito moderno dava à sociedade, que considerava estagnada demais para seu gosto e resistente demais para mudar e amoldar-se a suas ambições” (BAUMAN, 2001, p. 9). E acrescenta: “essa intenção clamava, por sua vez, pela ‘profanação do sagrado’: pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da ‘tradição’” (BAUMAN, 2001, p. 9).

2 Expressão empregada por Bauman (2001) para se referir à Modernidade em sua primeira fase, uma

vez que o autor compreende que seria um equívoco considerar a ideia de Pós-Modernidade, pois entende que a Modernidade é um projeto que não se esgotou, e sim se transmutou de sólida para líquida.

3 No prefácio à edição brasileira do livro Legisladores e Intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais, cuja primeira edição, em língua inglesa, data de 1987, traduzida para a

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racionalidade técnica4, especialmente a partir dos horrores sistematicamente produzidos com base nesse paradigma no Século XX5, passamos à descrença, ao desprestígio da própria razão.

Entretanto, a pergunta “como podemos ser razoáveis?” não perdeu sua atualidade e importância. Talvez, ao contrário, seja mais relevante do que nunca no contexto contemporâneo. E refletir acerca dessa pergunta aponta para a função social da educação escolar, uma vez que esta constitui o espaço-tempo por excelência destinado à formação das novas gerações. Nesse sentido, é pertinente recorrer ao que afirma Paviani (2009, p. 25): “A educação efetiva-se na sociedade, em diferentes instituições, desde a família até a igreja ou o local de trabalho, mas a raiz profunda da educação formal é a que ocorre na sala de aula”.

Contudo, no Brasil, a desqualificação da escola pública é um problema histórico. O modelo em vigência não atende as demandas nem de formação como pessoa nem de produção do conhecimento. Corroboram essa afirmação os apontamentos feitos por Bongiovani, bem como por Houaiss, na obra Ensino das

Humanidades: a Modernidade em Questão, publicada em 1991. Bongiovani já

apontava, na época, a falta de professores em determinadas disciplinas e a desorganização das redes públicas como resultado da lei 5.692/71, criada para implantar o ensino profissionalizante, que na prática não conseguiu fazer a profissionalização competente e nem assegurou o ensino de formação geral de língua portuguesa em 2010, Bauman explica o emprego do termo “pós-modernidade” feito ao longo do livro, o qual foi escrito antes de o autor se dedicar a escrever Modernidade Líquida e representa um estágio anterior de seus esforços em compreender a realidade social de seu tempo. Desse modo, os leitores brasileiros tiveram acesso a suas obras na ordem inversa. Em 2001, no livro Bauman

sobre Bauman (publicado em língua portuguesa em 2011), o autor esclarece: “[...] a palavra

‘pós-modernidade’ implica o fim da modernidade, deixa-la para trás, estar na margem oposta. Mas isso é gritantemente falso. Somos tão modernos como nunca, ‘modernizando’ de modo obsessivo tudo aquilo que tocamos. [...] Daí minha proposta: modernidade líquida, que aponta ao mesmo tempo para o que é contínuo (a fusão, o desencaixe) e para o que é descontínuo (a impossibilidade de solidificação do fundido, de reencaixe). [...] e me parece que esse conceito ajuda a entender tanto as mudanças quanto as continuidades” (BAUMAN, 2011b, p. 112).

4 Fensterseifer (1999) contribui para a compreensão do paradigma da racionalidade técnica, ao

observar, a partir de Horkheimer, que a racionalidade exaltada inicialmente na Modernidade, “[...] quando se reconhecia nela o poder de ‘supremo arbítrio’, bem como a origem da força criativa de ideias e coisas”, transformou-se em “[...] mera regulação entre meios e fins (ajustamento à realidade)”. Nesse movimento, o projeto inicial da Modernidade, em que a razão era um instrumento do ‘eu’, transforma-se e converte o “‘eu’ em instrumento da razão” (FENSTERSEIFER, 1999, p. 53). Alicerçada na separação sujeito/objeto, a racionalidade técnica dissocia meios e fins e enaltece o método acima da ciência, assumindo uma dimensão totalizante.

5 Matos (1993), com base em Heidegger, afirma: “Guerras mundiais e genocídios são o resultado do

pleno desenvolvimento da racionalidade tecnológica que domina homens reduzidos à ‘plena solidão de um objeto sem defesa’” (MATOS, 1993, p. 35).

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qualidade. Houaiss, por sua vez, destacava, com amarga ironia, a baixa carga horária destinada a determinadas áreas de conhecimento nos sistemas públicos de ensino. Nas palavras do autor, “[...] não é com este currículo de base, que o Brasil caricaturalmente está oferecendo a sua população, que vamos poder ter um ensino secundário decoroso, e sobre ele um ensino superior decoroso” (HOUAISS, 1991, p. 145).

Os problemas apontados por esses autores continuam atuais. Os resultados do Brasil no último teste do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) mostram uma queda no desempenho dos alunos de ensino médio: o país ficou na 63ª posição em Ciências, na 59ª em Leitura e na 66ª colocação em Matemática (BRASIL/INEP, 2016)6. E, mais recentemente, a aprovação da Reforma do Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular, com alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, reduzindo-se a obrigatoriedade de oferta de disciplinas do ensino médio a apenas Língua Portuguesa e Matemática, com itinerários formativos a serem “escolhidos” pelos estudantes a partir das “condições de oferta” pelos sistemas de ensino, são fatos que reforçam a percepção de que há, no Brasil, uma incompreensão e, até mesmo, um desinvestimento do sentido público da educação7.

É inegável a necessidade de “[...] revisar as diretrizes políticas, os procedimentos pedagógicos, os recursos didáticos, todas as ações estratégicas

6 Um dado curioso, entretanto, se refere ao desempenho dos estudantes dos Institutos Federais

nesse mesmo teste. Em Ciências, a rede federal alcançou 517 pontos, bem acima da média brasileira de 401 pontos, que soma as notas obtidas pelos estudantes das redes federal, estaduais e particular. Esse desempenho coloca a rede federal brasileira na 11ª posição no ranking mundial, à frente de países como Coreia do Sul, Estados Unidos e Alemanha. Já em Leitura, a pontuação alcançada pelos estudantes da rede federal (528 pontos) seria suficiente para colocar o Brasil em 2º lugar entre os 71 países e territórios analisados, ficando atrás apenas de Singapura (BRASIL, INEP, 2016). Claro que esses dados não impactam na estatística total, uma vez que a rede federal é responsável por apenas pouco mais de 1% das matrículas de Ensino Médio no país. Mas o desempenho dos estudantes da rede federal abre espaço para alguns questionamentos acerca dos fatores que caracterizam esse ensino (desde a organização curricular, passando pela infraestrutura dos Campi, bem como a qualificação, o regime de trabalho e a remuneração dos docentes) e certamente são determinantes para o êxito dos estudantes na avaliação. Entretanto, também chama a atenção o modo como o MEC ignora esses números e insiste na tese de que é necessário implantar a Reforma do Ensino Médio (na contramão do que é feito nos Institutos Federais), usando como argumento os baixos índices de desempenho dos estudantes brasileiros nos testes internacionais, especialmente o promovido pelo PISA.

7 Reforçam essa afirmação os seguintes dados: o Brasil é o terceiro país com os menores salários

pagos aos professores, conforme a média da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico; o país não resolveu satisfatoriamente sequer a demanda de universalidade do acesso à educação básica (conforme o Censo 2016, há três milhões de pessoas que deveriam estar frequentando a escola e não estão); entretanto, a Emenda Constitucional 95/2016 congela por vinte anos os investimentos, inclusive em educação.

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usadas nas práticas escolares”, como destaca Paviani (2009, p. 22). O autor aponta esses aspectos como problemas essenciais da educação e enfatiza a importância de se voltar a atenção para a questão dos fins e dos objetivos. Isso porque, como salienta,

[...] sem clareza sobre os objetivos do ensino, sem saber o que se quer e o que se pretende alcançar em termos de metas, é impossível falar de qualidade de ensino, pois a qualidade depende dos objetivos e não apenas dos meios utilizados (PAVIANI, 2009, p. 24).

Quando se trata de avaliar um sistema educativo, cabe perguntar como ele prepara as pessoas para a vida na forma de organização social e política complexa e diversa que caracteriza o republicanismo democrático. Nenhuma democracia pode ser estável se não conta com uma adequada formação de cidadãos para esse fim.

No contexto das sociedades republicanas democráticas, a tarefa precípua da escola é a formação de sujeitos para a sociabilidade republicana. Isso porque “a república não precisa somente das leis, mas também dos costumes republicanos” (RANCIÈRE, 2014, p. 82). Ainda conforme Rancière, República não significa simplesmente o reino da lei igual para todos, e sim “[...] uma comunidade cujas leis não sejam fórmulas mortas, mas a própria respiração da sociedade” (RANCIÈRE, 2014, p. 83). A ideia republicana, portanto, “[...] implica sempre o trabalho de uma educação que harmonize ou rearmonize as leis e os costumes, o sistema das formas institucionais e a disposição do corpo social” (RANCIÈRE, 2014, p. 84), isto é, uma educação capaz de preparar as pessoas para o exercício da cidadania balizada pelos princípios republicanos e democráticos. Por isso, as perguntas feitas sobre educação não podem se reduzir ao aspecto utilitário e instrumental dessa prática. É imprescindível pensar a educação e sua relação com o futuro da democracia. Este é o foco sobre o qual recai a investigação teórica realizada no percurso de pesquisa que deu origem a esta tese.

Mobilizada pelo desejo, que norteia minha trajetória como professora, de investigar os aspectos educacionais formativos mais amplos do ser humano para a vida republicana e democrática e o papel das áreas de conhecimento compreendidas como humanidades nesse processo, busquei estudar autores que oferecem um embasamento teórico-filosófico para essa temática. O desafio a que me proponho é o de estudar os textos abrindo-me para aquilo que eles têm a me dizer, tomando-os como inauguradores de possibilidades de significação. E, nesse

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sentido, meu empenho consiste em apreender os argumentos apresentados e, interpretativamente, lançá-los como fachos de luz sobre a temática da formação humana para o mundo humano.

Minha investigação desenvolve-se numa perspectiva crítico-hermenêutica, em que me reconheço, portanto, ontologicamente inserida no contexto temático investigado, no qual, por um esforço interpretativo dos textos estudados, busco produzir a crítica com vistas a lançar pontes entre as concepções dos autores, muitos dos quais são herdeiros de diferentes tradições filosóficas. Assumo, desse modo, o risco inerente ao gesto interpretativo que faço dos textos desses autores, num esforço de compreender suas proposições e seus argumentos naquilo que se assemelham e, também, naquilo que porventura divergem.

No que tange ao conceito de democracia, noção central para a articulação de todos os argumentos apresentados ao longo da tese, uma vez que assumo a perspectiva da formação humana para a sociabilidade republicana democrática como a centralidade do processo educativo escolar, cabe explicitar que estou tomando a democracia na perspectiva apresentada por Chauí (2014a). Não se trata de conceber a democracia meramente como um regime no qual o Estado responde às demandas da cidadania, tampouco como a forma de organização social em que partidos políticos disputam o poder numa sistemática de livre concorrência ao modo de operar segundo as leis do mercado e em que os cidadãos simplesmente elegem seus representantes dentre o rol de ofertas apresentadas pelos partidos. Nesse sentido, a democracia acaba “[...] reduzida à esfera estritamente político-institucional [...] a uma discussão que se concentra, em última instância, nas transformações do aparelho do Estado, isto é, discutida ‘pelo alto’ e com as lentes dos dominantes” (CHAUÍ, 2014a, p. 155).

A noção de democracia, que constitui a base sobre a qual estou empreendendo esse esforço argumentativo de construção da tese de que o processo formativo escolar não pode prescindir das humanidades, centra-se no entendimento de que “[...] a sociedade não nasce da razão nem da natureza, mas de condições históricas determinadas que levam os homens a se agregar cada vez de modo diverso” (CHAUÍ, 2014a, p. 159). Também Rancière (2014, p. 80) corrobora esse entendimento ao afirmar que o processo democrático implica “[...] a ação de sujeitos que, trabalhando no intervalo das identidades, reconfiguram as distribuições do privado e do público, do universal e do particular. A democracia não pode jamais

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se identificar com a simples dominação do universal sobre o particular”. Nesse sentido, a saúde da vida democrática depende diretamente da qualidade da formação humana promovida na sociedade, uma vez que “o que distingue uma forma política da outra é a proporcionalidade que se estabelece entre o poder da potência soberana e o poder das potências individuais, isto é, entre o poder coletivo e o poder dos cidadãos” (CHAUÍ, 2014a, p. 159).

A argumentação desenvolvida ao longo da tese consiste, portanto, numa defesa da escola republicana e do lugar das humanidades em seu currículo. Trata-se de uma defesa não só das humanidades no currículo, mas de uma perspectiva humanista atravessando todo o processo formativo. Essa concepção está embasada no entendimento de que o mundo humano é um artifício e de que a educação é o modo por excelência de assegurar a manutenção e a renovação dessa construção, constituindo-se, assim, em formação de sujeitos que produzem a si mesmos e ao mundo intersubjetivamente.

No percurso da pesquisa, o passo inicial, empreendido no primeiro capítulo, se dá ao modo de um diagnóstico do nosso tempo. A partir das contribuições teóricas de Bauman (2001, 2008, 2010 e 2011), Flickinger (2010), Nussbaum (2005 e 2010) e Said (2007), evidencia-se que o consumismo exacerbado e a liquidez das relações humanas, característicos da contemporaneidade, são, em grande parte, resultados de certas falências culturais.

O capitalismo moderno8 nos ensinou que a dominação era melhor que a compreensão mútua e a reciprocidade, que acumular bens e capital deveria ser o projeto de vida de cada um. E para dar conta de transformar esse projeto em realidade, o sujeito, muitas vezes, precisa passar por cima de si mesmo, de seus próprios desejos e sonhos9. Como, fazendo isso, desenvolver respeito pelas necessidades dos outros e capacidade de cooperação, virtudes essenciais à sociabilidade republicana democrática? Que razoabilidade pode haver nisso?

8 A partir dos anos 1930, com a difusão do modelo conhecido como fordismo, introduziu-se também

uma nova prática das relações sociais, a racionalidade administrativa, que “[...] consiste em sustentar que não é necessário discutir os fins de uma ação ou de uma prática, e sim estabelecer meios eficazes para a obtenção de um objetivo determinado” (CHAUÍ, 2014b, p. 55). Tomam corpo a partir de então dois aspectos indissociáveis do modo de produção capitalista: o discurso empresarial e o discurso especializado. O primeiro assegura que “[...] só existe racionalidade nas leis do mercado”, o segundo “[...] afirma que só há felicidade na competição e no sucesso de quem a vence” (CHAUÍ, 2014b, p. 58).

9 Nas palavras de Flickinger (2010, p. 187), “Não é o homem cujas vontade e aspirações condicionam

o processo de sua formação; muito pelo contrário, ele vê-se tratado como que um apêndice de um mundo regido pela lógica meramente material”.

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Ensinamos que a escola é lugar para instrumentalizar-se para o trabalho, numa sistemática marcada pela meritocracia. Valorizamos o acúmulo de bens e capital como razão e finalidade da existência e, paradoxalmente, nos espantamos com o individualismo e o consumismo de nossos jovens.

A questão que se impõe à reflexão a partir disso diz respeito a como passar desse diagnóstico para uma ação de efetiva contraposição à tendência instaurada. Faz sentido propor ou fazer algo que possa ser mais do que uma instrumentalização das novas gerações para as demandas momentâneas?

O desafio de refletir sobre essa questão conduziu-me à discussão em torno de três conceitos-chave: linguagem, subjetividade e experiência, com vistas a buscar aporte teórico-conceitual para sustentar o entendimento de que, embora seja imprescindível reconhecer a pertinência de uma dimensão do processo formativo escolar que é instrumentalizadora, a educação está para além dessa dimensão. Assim, o segundo capítulo é dedicado a explicitar um entendimento acerca dessas noções teóricas, tendo como principais autores de referência Bakhtin (1981), Benjamin (1983), Foucault (1976, 1984, 1995 e 2004), Gadamer (1999) e Larrosa (1994, 1996, 2004 e 2005).

Reconhecer o caráter constitutivamente dialógico da linguagem e esta como condição de possibilidade do humano e, portanto, do conhecimento humano, aponta para a necessidade de alargamento da concepção de racionalidade, para além da racionalidade técnica. E com o propósito de pensar o papel da escola na formação de pessoas dotadas dessa racionalidade alargada, o terceiro capítulo consiste numa reflexão sobre o que é próprio do escolar, sua função nas sociedades republicanas democráticas e os ataques dos quais tem sido alvo desde sua criação, mas principalmente na contemporaneidade.

A perspectiva que assumo, com base nas concepções teóricas apresentadas e refletidas, segue na direção de argumentar em prol da escola como tempo livre das pressões produtivas. Trata-se de uma defesa da escola republicana cuja responsabilidade pedagógica é dar aos sujeitos base epistemológica, mas que também precisa se constituir experiência, na acepção explicitada no segundo capítulo, espaço-tempo para a formação de subjetividades com capacidade crítica, ética e estética.

Nessa perspectiva, o quarto capítulo tem como foco o papel das humanidades no processo formativo escolar. A partir do aporte teórico apresentado

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por Nussbaum (2005 e 2010) e corroborado por Said (2007), são levantadas e discutidas as características que, a partir desses autores, compreendo e assumo como imprescindíveis à formação de sujeitos para a sociabilidade republicana democrática. Uma vez que são discursos que se abrem ao questionamento e “funcionam” incitando perguntas, as humanidades potencializam a interrogação da realidade, daquilo que temos tomado como realidade. Não se constituem como forma de transmissão não problemática de um corpus doutrinário (valores morais) ou de saberes; têm a ver com o próprio jogo da verdade e da justiça.

É importante esclarecer que são denominadas, na perspectiva desta tese, como “humanidades” as disciplinas que:

[...] contribuam para a formação (Bildung) do homem, independentemente de qualquer finalidade utilitária imediata, isto é, que não tenham necessariamente como objetivo transmitir um saber científico ou uma competência prática, mas estruturar uma personalidade segundo uma certa

paidea, vale dizer, um ideal civilizatório e uma normatividade inscrita na

tradição (ROUANET, 1987, p. 309).

O referido autor reconhece a dificuldade de se chegar a um consenso absoluto acerca das disciplinas que deveriam ser denominadas sob o termo “humanidades”, devido ao caráter amplo dessa definição, mas considera razoável, a partir dela, afirmar que pertencem às humanidades disciplinas como línguas e culturas clássicas; língua e literatura vernáculas; principais línguas estrangeiras e respectivas literaturas; história; filosofia e artes (ROUANET, 1987).

Também a abordagem feita por Edward Said, no livro Humanismo e Crítica

Democrática (2007), em que trata da relevância e do futuro do humanismo na vida

contemporânea, contribui para a explicitação da concepção humanista que quero defender nesta tese. O autor se posiciona em favor das humanidades no ensino e assim se expressa ao definir que “[...] as humanidades dizem respeito à história secular, aos produtos do trabalho humano, à capacidade humana de articular a expressão” (SAID, 2007, p. 34). Said delimita já nas primeiras páginas do livro o conceito de humanismo sobre o qual versam os ensaios que compõem a obra. Em suas palavras:

[...] não é o humanismo tout court, que é um tema demasiado grande e vago [...] mas antes o humanismo e a prática crítica, o humanismo que informa o que alguém faz como intelectual e professor erudito das humanidades no

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mundo turbulento de nossos dias, transbordante de beligerância, guerras reais e todo tipo de terrorismo (SAID, 2007, p. 20).

O humanismo que interessa ao autor supracitado e que estou me propondo a defender argumentativamente é o humanismo como uma práxis educativa para os que desejam saber o que estão fazendo, com o que estão comprometidos como educadores, e que também desejam conectar esses princípios ao mundo em que vivem como cidadãos. Nesse sentido, Said escreve:

Na minha compreensão de sua relevância atual, o humanismo não é um meio de consolidar e afirmar o que “nós” sempre conhecemos e sentimos, mas antes um meio de questionar, agitar e reformular muito do que nos é apresentado como certezas transformadas em produtos do mercado, empacotadas, incontroversas e codificadas de modo acrítico, inclusive aquelas contidas nas obras-primas agrupadas sob a rubrica de “os clássicos” (SAID, 2007, p. 49).

Said (2007) se posiciona clara e militantemente em favor das humanidades no ensino. Entretanto, ele também faz a crítica ao humanismo que acabou por congelar, cristalizar um modelo de humano. O autor afirma acreditar que

[...] é possível ser crítico ao humanismo em nome do humanismo e que, escolados nos seus abusos pela experiência do eurocentrismo e do império, poderíamos dar forma a um tipo diferente de humanismo que fosse cosmopolita e preso-ao-texto-e-linguagem, de maneira que absorvesse as grandes lições do passado [...] e ainda continuasse afinado com as correntes e vozes emergentes no presente, muitas delas exiladas, extraterritoriais e desabrigadas, bem como unicamente americanas (SAID, 2007, p. 29).

A proposição que defendo, a partir da interpretação do corpus teórico estudado, aponta para a necessidade de assegurar lugar de abertura à reflexão e à crítica no processo formativo escolar. Nesse sentido, é imprescindível assegurar espaço-tempo para as humanidades no currículo escolar, mas também encarar o desafio de reconsiderar, reexaminar e reformular a relevância e os fundamentos da própria concepção de humanismo capaz de inspirar as áreas do conhecimento a se reconhecerem como produções humanas situadas no tempo e no espaço, passíveis, portanto, de questionamentos, de revisão e de renovação, e não como verdades absolutas a serem transmitidas e consumidas.

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CAPÍTULO I

DA SOLIDEZ À LIQUIDEZ: DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO NA MODERNIDADE

Às vezes me pergunto se a vida moderna não tem mais de moderna do que de vida (Mafalda10).

A investigação do papel das áreas de conhecimento compreendidas como humanidades no processo formativo do ser humano para a vida republicana e democrática, que constitui a centralidade desta pesquisa, demanda, no meu entendimento, um esforço em compreender o contexto contemporâneo e seus desdobramentos no âmbito da educação.

Com esse intuito, este capítulo consiste num panorama do contexto sociocultural e educacional contemporâneo, a partir das contribuições teóricas de Bauman (2001, 2008, 2010 e 2011), Flickinger (2010) e Nussbaum (2005 e 2010), passando também pela análise feita por Jaeger (2013) acerca do conceito de formação humana no mundo grego. A análise dos pressupostos balizadores da educação nas sociedades líquido-modernas desvela seu distanciamento do ideal clássico de formação e sua cooptação pelas demandas de mercado.

Sem perder de vista a defesa da ideia de que a centralidade da educação é a formação de sujeitos para a sociabilidade republicana democrática, são tecidas neste capítulo reflexões sobre o projeto educacional moderno, em suas fases sólida e líquida, conforme conceitua Bauman. O caminho percorrido constitui um levantamento de aspectos marcantes da organização social contemporânea e aponta desafios a serem enfrentados no campo da educação com vistas a passar desse diagnóstico para uma ação de efetiva contraposição à tendência instaurada.

1.1 Formação ou instrumentalização?

O conceito de formação que permeia os processos educativos atuais parece bastante distanciado do conceito clássico. Entre os gregos da Antiguidade, a noção de formação (Paideia) tinha forte conotação ética, pouco presente na concepção contemporânea de educação. Por sua vez, também não se identifica como norteador

10 Personagem criada pelo cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón, conhecido como Quino.

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dos processos educacionais o conceito de formação integral plena do homem para a autonomia e a autodeterminação, a Bildung originária do pensamento Iluminista alemão, cujas condições deveriam ser asseguradas pelo Estado e demais instituições da sociedade, com vistas à conquista da liberdade social e cultural pelo pleno desenvolvimento interior do homem.

O ideal de formação humana no mundo grego baseava-se num entendimento da totalidade da existência humana, cuja dignidade se realizava na polis, isto é, no exercício da participação política. Jaeger destaca que os gregos da Antiguidade “[...] consideravam as coisas do mundo numa perspectiva tal que nenhuma delas lhes aparecia como isolada do resto, mas sempre como um todo ordenado em conexão viva, na e pela qual tudo ganhava posição e sentido” (JAEGER, 2013, p. 9).

O legado científico, filosófico e artístico construído pelos gregos foi atravessado por uma compreensão profundamente orgânica da vida, da natureza e do homem. Nas palavras de Jaeger:

Não é uma simples soma de observações particulares e abstrações metódicas, mas algo que chega mais longe, uma interpretação dos fatos particulares a partir de uma imagem que lhes dá uma posição e um sentido como partes de um todo (JAEGER, 2013, p. 10).

O que o autor destaca é justamente o sentido filosófico do universal, compreendido como o comum na essência do espírito, o qual atravessou toda a produção de conhecimentos e compreensão de mundo elaboradas pelos gregos e cujo legado continua importante para nossa civilização contemporaneamente.

Havia, entretanto, limites significativos, uma vez que a cidadania era restrita aos homens livres, deixando de fora, portanto, as mulheres e os escravos. Na Modernidade, especialmente com o Iluminismo alemão, o conceito de formação (Bildung) toma o indivíduo como o centro. A autonomia do sujeito, com foco na ética kantiana, passa a ser um conceito balizador do processo formativo.

Conquista-se, portanto, na e com a Modernidade a noção de indivíduo, o que acaba por inaugurar condições para a ampliação da cidadania a outras camadas sociais e às mulheres. Mas também se perde, aos poucos, aquela noção de totalidade orgânica que se tinha na Antiguidade Grega.

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E foram os gregos a perceber, pela primeira vez na história humana, que a educação tem de ser um processo de construção consciente. Jaeger afirma que a palavra alemã

Bildung (formação, configuração) é a que designa de modo mais intuitivo a

essência da educação no sentido grego e platônico [...] e aparece sempre que o espírito humano abandona a ideia de um adestramento em função de fins exteriores e reflete na essência própria da educação (JAEGER, 2013, p. 11).

A dedicação incomparável dos gregos a essa tarefa – a formação humana – não se explica, conforme Jaeger, nem por sua visão artística nem pelo seu espírito “teórico”, mas sim pelo fato de terem sempre colocado o homem no centro do seu pensamento. Até mesmo a formação do Estado grego só pode ser compreendida sob o ponto de vista da formação do homem grego e da sua vida inteira. Nas palavras do autor:

A forma humana dos seus deuses, o predomínio evidente do problema da forma humana na sua escultura e na sua pintura, o movimento consequente da filosofia desde o problema do cosmo até o problema do homem [...] e finalmente o Estado grego [...], tudo são raios de uma única e mesma luz, expressões de um sentimento vital antropocêntrico que não pode ser explicado nem derivado de nenhuma outra coisa e que penetra todas as formas do espírito grego (JAEGER, 2013, p. 12).

O autor define, portanto, o povo grego como antropoplástico. E reitera que “[...] a descoberta do Homem não é a do eu subjetivo, mas a consciência gradual das leis gerais que determinam a essência humana” (JAEGER, 2013, p. 12). Assim, o que marca a concepção e a prática gregas de formação humana não é o individualismo, mas o “humanismo”, em seu sentido clássico e originário. O autor afirma:

Tal é a genuína paideia grega, considerada modelo por um homem de Estado romano. Não brota do individual, mas da ideia. Acima do Homem como ser gregário ou como suposto eu autônomo, ergue–se o Homem como ideia. A ela aspiram os educadores gregos, bem como os poetas, artistas e filósofos. Ora, o Homem, considerado na sua ideia, significa a imagem do Homem genérico na sua validade universal e normativa (JAEGER, 2013, p. 12).

Desse modo, a essência da educação grega consistia na modelagem dos indivíduos pela norma da comunidade. É importante frisar, também, que esse ideal

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de Homem não constituía para os gregos um esquema vazio, independente do espaço e do tempo. Isto é, a desconsideração do caráter histórico e a tendência à exclusão de determinadas dimensões da existência humana (o reducionismo a uma racionalidade técnica) não estavam presentes nas concepções gregas.

O conceito contemporâneo de formação já não carrega as marcas nem da

Paideia nem da Bildung. Hoje, à educação atribui-se papel diferente. Conforme

ressalta Flickinger (2010), a educação está presa à dinâmica socioeconômica e, desse modo, a concepção de formação é profundamente afetada e transformada por essa dinâmica. De acordo com o autor, as sociedades capitalistas giram em torno do trabalho. Logo, a integração do indivíduo no mercado de trabalho é meio para sua sobrevivência, mas principalmente meio de obter reconhecimento como membro valioso da comunidade. O valor do indivíduo estaria, portanto, em ser ele um trabalhador. Nessa lógica, o esforço maior do homem estaria voltado ao aperfeiçoamento das condições exigidas pelo mercado de trabalho, para o seu acesso e permanência nesse mercado. Não é mais o homem, portanto, que se realiza por meio de seu trabalho, e sim a sociedade de trabalho que se efetua por meio da economização abrangente do homem.

Assim, o ideal de formação visa à eficiência técnica, distancia-se cada vez mais da noção de Bildung e volta-se à qualificação do indivíduo segundo as necessidades econômicas. O processo formativo é guiado pelas diretrizes da racionalidade econômica, as quais servem também de critério para a avaliação dos resultados obtidos em educação.

Bauman (2001, 2008, 2010, 2011), por sua vez, destaca que, nas sociedades líquido-modernas, o valor do indivíduo estaria em ser ele um consumidor. Bauman e Flickinger convergem no entendimento de que o modelo social hoje vigente não é orientado pelas necessidades humanas e sim pelas exigências do mercado financeiro, do capital. O ser humano está submetido à lógica coisificadora da mercadoria. Se, na visão de Flickinger, o ser humano tem valor na sociedade à medida que trabalha, que é produtivo, portanto; na análise sociológica das economias capitalistas globais feita por Bauman, o que se evidencia é o aniquilamento do ser pela supremacia do consumo. O valor do indivíduo consiste em seu potencial como consumidor.

Nesse sentido, também a obra filosófica de Martha Nussbaum (2005 e 2010) adverte para o fato de que, tendo como objetivo o crescimento econômico, buscado

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tão ansiosamente por todas as nações, estas têm feito poucas perguntas sobre o rumo da educação e, com ela, da sociedade democrática. No afã de crescer economicamente, tanto as nações desenvolvidas como em desenvolvimento vêm promovendo adaptações na educação com vistas à formação para o mercado.

Assim também Said adverte que:

[...] está em andamento em nossa sociedade um ataque ao próprio pensamento, sem falar no assalto à democracia, à igualdade e ao meio ambiente, pelas forças desumanizadoras da globalização, valores neoliberais, ganância econômica (eufemisticamente chamada de livre mercado), bem como ambição imperialista (SAID, 2007, p, 95).

O consumismo está para além do ato de consumir produtos ou serviços; já afeta, inclusive, o nosso sistema de compreensão; o modo como compreendemos as coisas do mundo tem se dado ao modo de consumo. Nossa linguagem está impregnada de consumismo compreensivo.

Tanto Bauman quanto Flickinger desvelam uma lógica perversa, na qual as exigências impostas pelas transformações no mundo do trabalho criam inseguranças e riscos com os quais o indivíduo tem de se ocupar sempre de novo tentando manejá-los. Nesse contexto de desvalorização rápida dos conhecimentos, de insegurança do indivíduo na projeção de sua biografia futura, de permanente impulso reformador que provém das inovações socioeconômicas e de precariedade das instituições tradicionais (família e escola) quanto à sua competência educativa, pode-se ver nos dois autores a denúncia da educação que é colocada a serviço dessa lógica de mercado, constantemente forçada a sucumbir ao instituído11 fora dela e cujos objetivos são questionáveis do ponto de vista de seus critérios de validade.

Também confluem nessa direção os argumentos apresentados por Said em defesa da prática humanista no exercício intelectual. O autor lembra que

[...] somos bombardeados por representações pré-fabricadas e reificadas do mundo que usurpam a consciência e previnem a crítica democrática, e é à derrubada e desmantelamento desses objetos alienantes que [...] o trabalho do humanista deve ser dedicado (SAID, 2007, p. 95).

11 O instituído é essencial em educação, conforme concebeu Mario Osorio Marques, na obra Aprendizagem na Mediação Social do Aprendido e da Docência (2000). Consiste, na concepção de

Marques, em objetivos universalizantes e, em certa medida, permanentes impostos à escola gestados fora dela e, muitas vezes, alheios aos sujeitos que a fazem no seu dia-a-dia.

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Nos textos estudados, tanto de Bauman e Flickinger quanto de Nussbaum e Said, está presente a sugestão e posto o desafio de a educação oferecer resistência e ser instituinte12 de outra lógica, de uma cultura capaz de fazer frente à coisificação do humano.

1.2 O projeto educacional da modernidade sólida à modernidade líquida

Que educação se faz necessária no contexto da Modernidade Líquida? É pertinente perguntar pela finalidade da educação, pois se pode argumentar em prol de um ou de outro tipo de educação dependendo do horizonte de perspectiva em que nos situamos quanto aos fins a que ela deve servir. Se entendermos que a educação tem por finalidade a preparação de mão-de-obra para o mercado de trabalho, por exemplo, responderemos à questão inicial de uma maneira; se, por outro lado, concebermos a finalidade da educação como formação integral de pessoas para a cidadania plena13, adotaremos outro horizonte, desde o qual inevitavelmente elencaremos outros argumentos para responder à mesma pergunta.

Nussbaum (2010) adverte que estamos em meio a uma crise mundial em matéria de educação, afirmando tratar-se de algo que, com o tempo, pode chegar a ser muito mais prejudicial para o futuro da democracia. A partir do estudo de diferentes sociedades democráticas ocidentais e orientais, a autora chegou à conclusão de que estão se produzindo mudanças drásticas naquilo que as sociedades democráticas ensinam aos jovens, sem que essas mudanças tenham sido submetidas a uma análise profunda. Trata-se da erradicação das matérias e

12 Ao lado do que chamou instituído, Marques (2000) também conceituou o que denominou instituinte,

que consiste no campo de atuação integrada de profissionais da educação e de uma comunidade humana particular em favor de um modelo educativo adequado aos critérios que lhe são caros.

13 A concepção de cidadania que entendo ser objetivo da formação humana na perspectiva que

assumo e defendo diz respeito a uma cidadania cosmopolita, conforme conceitua Adela Cortina na obra Cidadãos do Mundo: Para uma Teoria da Cidadania (2005). Trata-se de uma cidadania que transcende os marcos da cidadania nacional e transnacional, isto é, uma “[...] atitude ética universalista, que tem como horizonte para a tomada de decisões o bem universal, ainda que seja preciso construí-lo a partir de um bem local” (CORTINA, 2005, p. 207). Como enfatiza a autora, é imprescindível educar para a cidadania, pois ela “[...] é o resultado de uma prática, a aquisição de um processo que começa com a educação formal (escola) e informal (família, amigos, meios de comunicação, ambiente social). Porque aprendemos a ser cidadãos, como aprendemos tantas outras coisas, mas não pela repetição da lei de outros ou pelo castigo, e sim chegando a ser mais profundamente nós mesmos” (CORTINA, 2005, p. 30). Na discussão que faço no último capítulo, fica evidente a convergência entre esta concepção de cidadania e a proposição de uma formação humana para a cidadania planetária, apresentada por Martha Nussbaum.

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carreiras relacionadas com as artes e as humanidades14, tanto em nível primário e secundário como em nível universitário, mas também do aniquilamento daquilo que descreve como o aspecto humanístico das ciências, a saber, o aspecto relacionado com a imaginação, a criatividade e o rigor no pensamento crítico. Tudo isso perde espaço à medida que os países optam por fomentar a rentabilidade a curto prazo mediante o desenvolvimento de capacidades utilitárias e práticas, aptas a gerar renda. Nas palavras da autora:

Sedentos por dinheiro, os estados nacionais e seus sistemas de educação estão descartando inadvertidamente certas atitudes que são necessárias para manter viva a democracia. Se esta tendência se prolongar, as nações de todo o mundo em breve produzirão gerações inteiras de máquinas utilitárias, em lugar de cidadãos éticos com capacidade de pensar por si mesmos, analisar criticamente as tradições e compreender a importância dos êxitos e sofrimentos dos outros (NUSSBAUM, 2010, p. 20)15.

Também corrobora esse entendimento a argumentação apresentada por Said (2007). O autor analisa mais especificamente a universidade americana, mas suas observações podem ser consideradas ao lançarmos um olhar crítico sobre o campo educacional brasileiro. O autor afirma que

[...] a universidade americana do final do século XX tornou-se uma corporação e foi em certo grau anexada pelos interesses militares, médicos, biotécnicos e corporativos, muito mais inclinados a financiar projetos nas ciências naturais do que nas humanidades (SAID, 2007, p 33).

Essa é a tendência que se vê perpassando as decisões e práticas no campo da educação brasileira.

Na gênese da Modernidade, Bauman (2010) situa o poder do conhecimento e de seus guardiões. Segundo ele, os povos primitivos caracterizavam-se por dois tipos gerais de temperamento: o do sacerdote-pensador e o do leigo. A distinção

14 No Brasil, recentemente a Medida Provisória 746, regulamentada pela Lei 13.415, instituiu a

Reforma do Ensino Médio, que passa a ser organizado por áreas de aprofundamento, as quais os estudantes supostamente poderão escolher, de acordo com a oferta, que ficará a cargo dos sistemas estaduais de ensino. São obrigatórias nos três anos do Ensino Médio, a partir dessa Reforma, somente as disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa. Trata-se, no meu entendimento, de uma tentativa, disfarçada em escolha dos jovens, de reduzir (e até excluir) as humanidades do processo formativo escolar.

15 Tradução livre da edição em espanhol da obra Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las humanidades. Buenos Aires: Katz Editores, 2010. Todas as citações dessa mesma obra

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estabelecida entre eles no início da Modernidade engendra uma assimetria aguda no desdobramento do poder social. O autor afirma:

Os fazedores tornam-se dependentes dos pensadores, a gente comum não pode conduzir seus assuntos cotidianos sem pedir e receber assistência dos formuladores de religião. Como membros da sociedade, as pessoas comuns passam a ser incompletas, imperfeitas, carentes. Não existe uma maneira clara de reparar de forma permanente suas imperfeições mórbidas. Oneradas para todo sempre por seus defeitos, elas necessitam a presença constante e a intervenção de xamãs, mágicos, sacerdotes, teólogos (BAUMAN, 2010, p. 28).

Com a ascensão do absolutismo, a nobreza perdeu seu papel coletivo como classe política; manteve seu status de ideal de excelência e legitimação de influência, mas isso se dissociou de hereditariedade e linhagem. A partir disso, o conceito de nobreza adquiriu uma nova e íntima conexão com a educação. Bauman emprega as metáforas do “jardim” e do “jardineiro” para se referir a essa nova forma de organização social inaugurada na Modernidade. Segundo ele, essas “culturas cultivadas” ou “jardins” se reproduzem com nutrição especial, isto é, só podem ser sustentados por pessoal letrado e especializado, os “jardineiros”. Ganham relevância, portanto, nesse contexto, os intelectuais, os quais têm, na primeira fase da Modernidade, um papel que Bauman denomina como legislador.

A Modernidade, em sua fase sólida, conforme conceitua o autor, teve como principais características constitutivas a pretensão de colonizar o futuro; o desprezo pelo passado e pela tradição; a obsessão pela ordem (controle do tempo e do território); a universalidade de padrão comportamental que não conhecia limites de incentivo; o vínculo indestrutível entre racionalidade e paixão pela perfeição, por uma vida justa, pelo trabalho duro; a domesticação dos instintos e das emoções; o adiamento da satisfação; a obra de uma vida de virtude, o controle sobre o corpo e sobre o destino humanos. Trata-se, nas palavras de Bauman, de “[...] uma era que acreditava em ciência, progresso, verdade objetiva, controle sempre aprimorado sobre a tecnologia e – por meio da tecnologia – sobre a natureza” (2010, p. 183).

Nesse sentido, a cruzada cultural e seu êxito na destruição da cultura popular pré-moderna

[...] plantou as sementes do padrão futuro: administradores, professores e cientistas sociais dando às pessoas o que elas necessitavam, tanto como empreendedores quanto como secretários de clube de entretenimento, [...] dando às pessoas o que elas queriam (BAUMAN, 2010, p. 98).

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Bauman destaca a invenção de um modelo cultural inacessível para as massas populares, mas que elas eram chamadas a imitar. Por meio da cruzada cultural, promoveu-se a destruição da cultura popular e criou-se a condição indispensável da reestruturação geral do poder, marcada pela luta pelo espaço público, como um espaço policiado, ordeiro, um sistema seguro de fossos e barreiras de proteção que guardassem a fortaleza do novo poder social. O autor destaca, dentre os textos de seu corpus de análise, uma publicação no Times, jornal britânico de abrangência nacional, de 1880: “‘Os forasteiros, artesãos, trabalhadores manuais e pessoas importunas deste tipo não devem dispor de lugares. Mantê-los fora é algo desejável em todos os aspectos’” (BAUMAN, 2010, p. 99).

Nessa perspectiva, o Iluminismo consistiu, conforme Bauman, em políticas de Estado esclarecidas com vistas a manter a ordem, a perpetuação da hierarquia e das divisões de classe; não o esclarecimento dos súditos do Estado. Portanto, a educação surge, na Modernidade Sólida, como instrução e adestramento cuidadosamente planejados e dirigidos, voltados para o povo, orientados para a disciplina. Paralelo à educação com finalidade normativa e disciplinar, havia o esclarecimento com vistas à promoção da emancipação intelectual, formação para o pensamento independente e a escolha política, direcionado para a elite destinada a governar.

Na Modernidade Líquida, entretanto, tem-se o fim da estrutura de valor consensual, a supremacia da incerteza e o fim da noção/pretensão de validade universal. Vivemos uma espécie de presente perpétuo; em que tudo se move, mas nada vai para algum lugar em particular; o abandono das ambições universalistas da própria tradição dos intelectuais, cujo papel é mais bem captado pela metáfora de “intérpretes”. O autor observa:

O mundo contemporâneo é impróprio para os intelectuais como legisladores; o que aparece à nossa consciência como uma crise de civilização ou o fracasso de um certo projeto histórico é a crise genuína de um papel particular e a experiência correspondente de redundância coletiva da categoria que se especializou em desempenhar esse papel (BAUMAN, 2010, p. 170).

O mercado emergiu, na Modernidade Líquida, como uma nova meta-autoridade validadora:

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Os discursos sobre verdade, julgamento e gosto, que pareciam ser administrados por intelectuais (e no qual só eles eram participantes legítimos...) agora controlados por forças sobre as quais os intelectuais, os metaespecialistas em validação de verdade, julgamento e gosto, têm pouco controle, se é que têm algum (BAUMAN, 2010, p. 214).

A cultura de consumo funciona como um mecanismo autoperpetuador e autorreprodutor, uma vez que assegura que o mercado de consumo torne o consumidor dependente dele, na medida em que produz novas necessidades praticamente indiscerníveis das “naturais”. Nas palavras do autor, “[...] fazer compras torna-se a capacidade que atua em lugar de todas as outras, agora dispensáveis ou fadadas à extinção” (BAUMAN, 2010, p. 223).

Nesse sentido, também Marques escreveu sobre a Modernidade como a era “[...] industrial e do capitalismo, da explosão demográfica e da luta de classes, da razão abstrata e da aplicação da ciência ao processo produtivo para o mercado sem limites, da precipitação da história no afã de consumir para produzir” (MARQUES, 1993, p. 37).

Nesse contexto de dependência em relação ao mercado, exacerbada pela colonização de um volume crescente de necessidades – inclusive a necessidade de um projeto de vida, agora organizado em torno de uma série temporal de compras pretendidas –, “[...] a cultura tornou-se uma mercadoria comercializável, sujeita, como outras mercadorias, à corte suprema, onde lucros e demanda efetiva têm assento como juízes” (BAUMAN, 2010, p. 217).

Diante dessa expansão da cultura de consumo, “[...] não sobrou espaço para o intelectual como legislador” (BAUMAN, 2010, p. 226). Mas isso não significa que intelectuais/educadores não sejam necessários. Ao abordar diretamente o tema da educação, em três textos aos quais deu o mesmo interrogativo título “O mundo é inóspito à educação?”, Bauman discorre acerca do que denomina desafios aos pressupostos básicos da educação nas sociedades líquido-modernas. O primeiro desafio, conforme o autor, diz respeito à descartabilidade como característica inerente ao estilo de vida propagado e ambicionado em praticamente todas as sociedades.

No mundo líquido-moderno, a solidez das coisas, assim como a solidez das relações humanas, vem sendo interpretadas como ameaça: qualquer compromisso de longo prazo prenuncia um futuro sobrecarregado de obrigações que limitam a liberdade de movimento e a capacidade de agarrar no voo as novas e ainda desconhecidas oportunidades que venham

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a surgir. [...] A alegria de livrar-se de objetos, de dar-lhes fim, descartá-los e jogar fora é a verdadeira paixão de nosso mundo líquido. [...] O consumismo de hoje não visa ao acúmulo de coisas, mas à sua fruição instantânea e imediata (BAUMAN, 2011a, p. 112-113).

Assim, a ideia de educação destinada à apropriação e à conservação do conhecimento acumulado pela humanidade acaba por ser desanimadora. A educação calcada em fundamentos metafísicos, como a premissa de que há uma ordem imutável do mundo subjacente a toda diversidade superficial da experiência humana e a vigência de leis eternas que regem a natureza humana, as quais por séculos justificaram a necessidade de transmissão do conhecimento e sustentaram a insistência na validade atemporal do modelo educativo, não mais constituem argumentos condizentes com a realidade. Essas premissas foram criadas para corresponder a um mundo no qual as coisas eram duráveis e na intenção de preservá-las para que durassem ainda mais; num mundo em que “[...] a memória era um patrimônio” (BAUMAN, 2011a, p. 116). Nesse ponto de sua análise, Bauman radicaliza sua crítica às sociedades líquido-modernas afirmando que “[...] hoje esse tipo de memória firmemente entrincheirada parece ter um potencial incapacitante, em muitos casos; em outros, parece induzir a erros; na maioria das vezes inútil”16 (BAUMAN, 2011a, p. 116).

A afirmação feita por Bauman no final da primeira carta, sob o título interrogativo O Mundo é Inóspito à Educação?, consiste, no meu gesto interpretativo, numa provocação à reflexão e ao dar-se conta de que há interessados em difundir a ideia de que não faz sentido esforçar-se por cultivar memória17. O

16 Quero chamar a atenção, aqui, para o emprego que Bauman faz da forma verbal “parece”. A leitura

desatenta ou apressada dos textos de Bauman pode levar o leitor a ignorar o efeito de sentido produzido por expressões como o verbo “parecer” empregado nessa passagem (e também em inúmeras outras ao longo de sua obra). E ignorar esse efeito de sentido pode comprometer a compreensão das ideias do autor e até mesmo levar o leitor a conclusões equivocadas como, por exemplo, entender que Bauman faz uma apologia à liquidez e a tudo que é inerente a ela, como têm feito alguns leitores da área de marketing, ou concluir que não resta esperança para esse mundo, que somos ou brevemente seremos todos tragados por essa fluidez líquido-moderna, não fazendo sentido, portanto, qualquer resistência ou empenho no sentido de produzir mudanças nesse modo de ser e fazer a sociedade. Como bem afirma Keith Tester, na introdução do livro Bauman sobre

Bauman, a centralidade da análise sociológica de Bauman incide sobre a observação de “[...] como

as ordens sociais são cúmplices na desumanização. Mas, em vez de fazer a opção fácil e se prostrar em desespero diante da desumanidade disso tudo, ele tenta recuperar a possibilidade de humanidade” (BAUMAN, 2011b, p. 21).

17 A memória, tal como a concebo nesta abordagem, não pode ser dissociada dos sentidos e da

linguagem; é atravessada pelo inconsciente, pelas questões que nos afetam; não é da ordem da razão apenas; resulta de uma complexa associação de elementos/forças conscientes e inconscientes (Ver GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago, 1997).

Referências

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