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Análise e teoria do discurso

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Academic year: 2021

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Texto

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do discurso

Beth Brait

A memória é uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda o passado em função do presente. (Mario Vargas Llosa)

Ninguém, em sã consciência, poderia dizer que Bakhtin tenha propos-to formalmente uma teoria e/ou análise do discurso, no sentido em que usamos a expressão para fazer referência, por exemplo, à Análise do Discur-so Francesa. Entretanto, também não se pode negar que o pensamento bakhtiniano representa, hoje, uma das maiores contribuições para os estu-dos da linguagem, observada tanto em suas manifestações artísticas como na diversidade de sua riqueza cotidiana. Por essa razão, mesmo consciente de que Bakhtin, Voloshinov, Medvedev e outros participantes do que atual-mente se denomina Círculo de Bakhtin jamais tenham postulado um con-junto de preceitos sistematicamente organizados para funcionar como pers-pectiva teórico-analítica fechada, esse ensaio arrisca-se a sustentar que o conjunto das obras do Círculo motivou o nascimento de uma análise/teoria

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dialógica do discurso, perspectiva cujas influências e conseqüências são vi-síveis nos estudos lingüísticos e literários e, também, nas Ciências Huma-nas de maneira geral.

Sem querer (e sem poder) estabelecer uma definição fechada do que seria essa análise/teoria dialógica do discurso, uma vez que esse fechamento significaria uma contradição em relação aos termos que a postulam, é pos-sível explicitar seu embasamento constitutivo, ou seja, a indissolúvel rela-ção existente entre língua, linguagens, história e sujeitos que instaura os estudos da linguagem como lugares de produção de conhecimento de for-ma comprometida, responsável, e não apenas como procedimento subme-tido a teorias e metodologias dominantes em determinadas épocas. Mais ainda, esse embasamento constitutivo diz respeito a uma concepção de lin-guagem, de construção e produção de sentidos necessariamente apoiadas nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados. Iniciar a apresentação da análise/teoria dialógica do discurso dessa manei-ra significa, de imediato, conceber estudos da linguagem como formulações em que o conhecimento é concebido, produzido e recebido em contextos históricos e culturais específicos e, ao mesmo tempo, reconhecer que essas atividades intelectuais e/ou acadêmicas são atravessadas por idiossincrasias institucionais e, necessariamente, por uma ética que tem na linguagem, e em suas implicações nas atividades humanas, seu objetivo primeiro.

Para perseguir essa hipótese (ou tese), que só pode ser recuperada no conjunto das obras do Círculo, este ensaio escolhe, como ponto de partida, a concepção de Metalingüística, conforme sugerida por Bakhtin na obra

Problemas da poética de Dostoiévski, e à qual Paulo Bezerra, tradutor e

estu-dioso de Bakhtin, se refere da seguinte maneira:

[...] no livro sobre Dostoiévski, a Metalingüística já se esboça como método de análise do discurso e hipótese de uma futura síntese da filologia com a filosofia, que Bakhtin imaginava como uma discipli-na humadiscipli-na nova e específica capaz de reunir em contigüidade a Lingüística, a Filosofia, a Antropologia e a Teoria da Literatura.1

No início do capítulo “O discurso em Dostoiévski”, encontra-se o pri-meiro momento em que uma “análise/teoria dialógica do discurso” é pro-posta. Bakhtin afirma:

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Intitulamos este capítulo “O discurso em Dostoiévski” porque te-mos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade con-creta e viva e não a língua como objeto específico da Lingüística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e ne-cessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela Lingüística, os que têm importância primordial para os nossos fins. Por este motivo as nossas análises subseqüentes não são lingüísticas no sentido rigo-roso do termo. Podem ser situadas na Metalingüística, subenten-dendo-a como um estudo – ainda não-constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da Lingüística. As pesquisas metalingüísticas, evidentemente, não podem ignorar a Lingüística e devem aplicar os seus resultados. A Lingüística e a Metalingüística estudam um mesmo fenômeno con-creto, muito complexo e multifacético – o discurso, mas estudam sob diferentes aspectos e diferentes ângulos de visão. Devem com-pletar-se mutuamente e não fundir-se. Na prática, os limites entre elas são violados com muita freqüência.2

Já nessa primeira referência a uma nova disciplina, intitulada

Metalingüística e considerada necessária a um estudo do discurso que

ultra-passasse os resultados atingidos pela Lingüística, uma coisa deve ser obser-vada: a metodologia proposta para o estudo do objeto, considerado com-plexo e de muitas faces, embora se ofereça como uma ótica diferenciada, não exclui a Lingüística. Ao contrário: recomenda aplicar os seus resultados. O leitor que costuma usar Bakhtin como um petardo para aniquilar a Lin-güística, especialmente a estruturalista de lastro saussureano, pára nesse ponto do texto e pensa que talvez tenha pulado alguma coisa. Volta, vê que é isso que está escrito num texto assinado Bakhtin ele mesmo.

Como entender esse raciocínio, ou seja, o não dispensar a Lingüística, se o pensamento bakhtiniano incide sobre o discurso, a linguagem em uso, e não sobre a língua? Na verdade, essa afirmação tem importância e conse-qüências fundamentais para a análise/teoria dialógica do discurso que está sendo gestada, como se verá mais adiante.

Dando continuidade à idéia, à possibilidade e à necessidade de uma

Metalingüística, Bakhtin, nesse capítulo, vai refinando a definição do

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termo discurso, apresentado como o objeto complexo, pertencente simulta-neamente à Lingüística e à nova disciplina proposta, é substituído por

rela-ções dialógicas:“As relarela-ções dialógicas (inclusive as relarela-ções dialógicas do

fa-lante com sua própria fala) são objetos da Metalingüística”. As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própria fala) são objetos da Metalingüística.”3

Agora o leitor fica mais contente e até esquece o susto da afirmação anterior. Com essa nova definição, Bakhtin reveste o objeto a ser estudado pela Metalingüística com uma dimensão extralingüística, afirmando literal-mente: “[...] As relações dialógicas são extralingüísticas”. Afinal, pergunta-se o leitor, trata-pergunta-se de considerar a materialidade lingüística, aquilo que pode ser considerado interno, como está explicitado anteriormente, ou se trata de tomar como objeto a exterioridade, o extralingüístico?

Antes mesmo que se possa respirar, a resposta aparece no texto de Bakhtin:

Assim, as relações dialógicas são extralingüísticas. Ao mesmo tem-po, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A lingua-gem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verda-deiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a práti-ca, a científipráti-ca, a artístipráti-ca, etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a Lingüística estuda a “linguagem” propriamente dita com sua lógica específica na sua generalidade, como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai conseqüen-temente as relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico e, por isto, tais relações devem ser estudadas pela Metalingüística, que ultrapassa os limites da Lingüística e possui objeto autônomo e metas próprias.4

Mesmo que não se recupere integralmente essa primeira e básica semente de uma análise/teoria dialógica do discurso (e que o leitor poderá fazê-lo dedicando-se à leitura integral de Problemas da poética de Dostoiévski), é pos-sível distinguir aí um traço que caracterizará todo o pensamento do Círculo e sua forma de conceber a linguagem e de enfrentar a complexidade do discur-so. Esse traço fundante diz respeito ao fato de que a abordagem do discurso

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não pode se dar somente a partir de um ponto de vista interno ou, ao contrá-rio, de uma perspectiva exclusivamente externa. Excluir um dos pólos é des-truir o ponto de vista dialógico, proposto e explicitado pela teoria e pela análise, e dado como constitutivo da linguagem. É a bivocalidade de “dialógico”, situado no objeto e na maneira de enfrentá-lo, que caracteriza a novidade da

Metalingüística e de suas conseqüências para os estudos da linguagem.

A idéia de uma Metalingüística que tem nas relações dialógicas o seu objeto é várias vezes recolocada nesse capítulo, confirmando, de diferentes maneiras, a especificidade da abordagem bakhtiniana do discurso, ou seja, sua proposta de encontrar caminhos teóricos, metodológicos e analíticos para desvendar a arti-culação constitutiva do que há de interno/externo na linguagem:

As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às con-creto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, con-verter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na lingua-gem para que entre eles possam surgir relações dialógicas. [...] As relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem rela-ções lógicas e concreto-semânticas, mas são irredutíveis a estas e têm especificidade própria.

Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semân-ticas devem, como já dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa.5

O enfrentamento bakhtiniano da linguagem leva em conta, portanto, as particularidades discursivas que apontam para contextos mais amplos, para um extralingüístico aí incluído. O trabalho metodológico, analítico e interpretativo com textos/discursos se dá – como se pode observar nessa proposta de criação de uma nova disciplina, ou conjunto de disciplinas –, herdando da Lingüística a possibilidade de esmiuçar campos semânticos, descrever e analisar micro e macroorganizações sintáticas, reconhecer, recu-perar e interpretar marcas e articulações enunciativas que caracterizam o(s) discurso(s) e indiciam sua heterogeneidade constitutiva, assim como a dos sujeitos aí instalados. E mais ainda: ultrapassando a necessária análise dessa “materialidade lingüística”, reconhecer o gênero a que pertencem os textos

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e os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades em que esses discursos se inserem e, a partir desse diálogo com o objeto de análise, chegar ao inusitado de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar ativamente de esferas de produção, circulação e re-cepção, encontrando sua identidade nas relações dialógicas estabelecidas com outros discursos, com outros sujeitos.

Não há categorias a priori, aplicáveis de forma mecânica a textos e dis-cursos, com a finalidade de compreender formas de produção de sentido num dado discurso, numa dada obra, num dado texto.

A prova disto está justamente em Problemas da poética de Dostoiéviski. O capítulo utilizado neste ensaio a fim de discutir um primeiro mo-mento da proposta de uma Metalingüística, aqui interpretada como teoria/ análise dialógica do discurso, faz parte das estratégias utilizadas por Bakhtin para, a partir da minuciosa leitura e análise do conjunto da obra de Dostoiévski, configurar o gênero polifônico, apresentar o conceito de polifonia. E não o contrário. Não se tem um conceito de polifonia e depois se constata sua presença numa obra ou num conjunto de obras. Nesse sen-tido, é possível compreender as objeções que alguns estudiosos do pensa-mento bakhtiniano fazem do uso indiscriminado do conceito de polifonia, como se fosse um conceito abstrato, criado para ser aplicado a qualquer discurso, e não uma marca de identidade do discurso de Dostoiévski, reco-nhecida a partir da análise bakhtiniana. Esse é o caso, por exemplo, de Cristovão Tezza que, num texto recente, afirma de maneira certeira:

O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) criou uma das categorias mais atraentes da Teoria Literária das últimas décadas do século 20: polifonia. Tomando a palavra de empréstimo da arte musical, isto é, o efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas independentes mas harmonicamente relacionadas, Bakhtin em-prega-a no seu livro sobre Dostoiévski, publicado pela primeira vez em 1929, para definir especificamente tanto a obra de Dostoiévski quanto o que ele chama de “um novo gênero roma-nesco”, o “romance polifônico”. Essa expressão teve uma carreira tão errática quanto a do próprio Bakhtin.

[...] Transformada em moda, a polifonia bakhtiniana perde o seu sentido de origem e se torna exatamente aquilo que negava: uma instância narrativa estrutural da Literatura ou da Lingüística,

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con-fundindo-se, muitas vezes, com simples intertextualidade; tornada um conceito reiterável, passa a ser um modelo a se aplicar em qual-quer narrativa com dois ou três pontos de vista gramaticais distin-tos. Mas a complexidade do conceito para aqueles que se debruça-vam com mais cuidado sobre ele não era mesmo fácil de resolver. [...] Para colocar de novo a bola ao chão, digamos desse modo, é preciso voltar ao próprio Bakhtin, agora com a visão do conjunto de sua obra (incluindo os manuscritos filosóficos da década de 1920), e retomar seus pressupostos. A primeira tarefa será tentar recolocar nos trilhos originais a polifonia bakhtiniana.6

Dando continuidade à idéia de que o pensamento bakhtiniano produziu uma teoria/análise dialógica do discurso, é possível situar a questão de uma outra maneira, lançando um olhar sobre o fato de que grande parte das leitu-ras e das releituleitu-ras iniciadas no final da década de 1970 e intensificadas a partir dos anos 1990, tem como um de seus mais significativos produtos a existência de novos “Círculos”, mais ou menos bakhtinianos. O ponto de articulação entre eles parece ser justamente a tentativa de enfrentamento dialógico da linguagem, da teoria e análise do discurso, a partir do conjunto do pensamento bakhtiniano ou mesmo da seleção de alguns de seus pontos específicos. As diferentes formas de conceber “enfrentamento dialógico da linguagem” constituem, por sua vez, movimentos teóricos e metodológicos que se desenvolvem em diferentes direções.

Uma dessas direções pode ser caracterizada pelos trabalhos de intérpre-tes cujo objetivo central é o aprofundamento da compreensão das propos-tas do primeiro Círculo bakhtiniano e de suas conseqüências radicais para os estudos da linguagem, quer na perspectiva das teorias lingüísticas, quer das teorias literárias ou de seu alcance dentro das demais Ciências Huma-nas. O que diferencia esse Círculo contemporâneo, radicalmente bakhtiniano, dos demais, é o empenho em ressaltar a origem filosófica, ética e estética que constitui a gênese do pensamento bakhtiniano como um todo.

Os trabalhos desses pesquisadores, nacionais e estrangeiros, resultam em leituras e interpretações que situam as categorias, os conceitos e as noções advindas do pensamento bakhtiniano dentro do contexto epistemológico e cultural que os originou. Isso ajuda a diferenciar a perspectiva bakhtiniana de outras impor-tantes teorias sobre a linguagem e, especialmente, estabelecer fronteiras bem

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nítidas entre designações idênticas para conceitos completamente diferentes, quando não contraditórios. Esse é o caso de polifonia, como aponta Cristóvão Tezza, mas poderia ser também o de carnavalização e de gêneros.7

Como avaliar, por outro lado, o diversificado conjunto de trabalhos que, mesmo parecendo distanciar-se das origens, contribui para o reconhe-cimento do constitutivo papel da linguagem nas atividades humanas e, por-tanto, nas diferentes ciências que têm o sujeito e sua alteridade como objeto de estudos?

Na tentativa de ao menos enfrentar essas questões, é necessário situar os anos 1970, no que diz respeito aos estudos da linguagem. Eram tempos de transição e afirmação, especialmente em relação a novos caminhos teóricos, considerando-se as construções, as polêmicas e as heranças positivas e nega-tivas produzidas pelo Estruturalismo e pelo Formalismo. Como não é obje-tivo deste ensaio fazer história, a referência a dois artistas da palavra que situaram criticamente os estudos lingüísticos pode servir de metonímia para a compreensão daquele momento. Trata-se de do peruano Mario Vargas Llosa e do brasileiro Carlos Drummond de Andrade.

Em 1987, Vargas Llosa lançou um romance intitulado El falador, lança-do no Brasil no ano seguinte pela Francisco Alves, com o título O falalança-dor. Nessa obra, o narrador principal evoca recordações de um companheiro de sua juventude passada em Lima, apelidado Mascarita, fascinado por uma pequena cultura primitiva denominada machiguengas. Paralelamente, um anônimo contador ambulante de histórias, justamente o “falador” que dá título à obra, uma espécie de testemunha da memória coletiva dos índios

machiguengas da Amazônia peruana, conta a própria existência, a história e

os mitos de seu povo.

No quarto capítulo dessa obra, há uma curiosa discussão sobre o Insti-tuto Lingüístico de Verão, uma famosa e real instituição, que durou quatro décadas e que, segundo o narrador, foi objeto de virulentas controvérsias nesses quarenta anos em que existiu no Peru. O que interessa, aqui, é ver como a imagem da Lingüística e dos lingüistas aparece em alguns trechos da obra, fortemente ligada ao Instituto de Verão e a seu papel junto a dife-rentes comunidades. Os trechos escolhidos, um tanto longos é verdade, dão a dimensão dessa imagem da Lingüística naquele momento e do dis-curso politizado que o produz.

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Em que consiste a missão do Instituto? Segundo seus inimigos, é um braço do imperialismo norte-americano que, sob o pretexto da pesquisa científica, realiza trabalhos de inteligência e uma ação de penetração cultural neocolonialista entre os indígenas amazô-nicos. Essas acusações procedem, sobretudo, da esquerda. Mas tam-bém são seus adversários alguns setores da Igreja Católica – princi-palmente os missionários da selva –, que o acusam de ser nada mais que uma falange de evangelizadores protestantes disfarçados de lingüistas. Entre os antropólogos, há quem lhe reprove o fato de perverter as culturas aborígenes, tratar de ocidentalizá-las e incorporá-las a uma economia de mercado. Alguns conservadores criticavam a presença do Instituto no Peru alegando razões nacio-nalistas e hispânicas.8

Segundo o mesmo narrador, havia também os defensores, que o faziam com argumentos pragmáticos, afirmando:

A ação dos lingüistas – estudar as línguas e os dialetos da Amazô-nia, estabelecer vocabulários e gramáticas das diferentes tribos – servia ao país e, além disso, pelo menos em teoria, estava controla-da pelo Ministério controla-da Educação, que devia aprovar seus projetos e recebia cópias de todo material recolhido pelo Instituto.9

Nessa mesma obra, um pouco mais adiante e a respeito do mesmo ins-tituto, o narrador refere-se a um jovem casal de lingüistas, os Schneil:

Tinham recebido o diploma, assim como os demais lingüistas, na Universidade de Oklahoma, mas eram, acima de tudo, como seus colegas, seres animados por um projeto espiritual: a difusão da Bíblia. [...] A intenção que os induzia a estudar as culturas primi-tivas era religiosa: traduzir a Bíblia para aquelas línguas a fim de que esses povos pudessem ouvir a palavra de Deus nos compassos e inflexões de sua própria música. Esse foi o desígnio que levou o Doutor Peter Towsend – um interessante personagem, mistura de missionário, amigo do Presidente Mexicano Lázaro Cárdenas e autor de um livro sobre ele – a fundar o Instituto, e o incentivo que move ainda os lingüistas a realizarem o paciente trabalho que realizam.10

E ainda, a palavra feroz de Mascarita, sempre tão ponderado, dirigindo-se ao personagem narrador, contra os lingüistas:

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– Eles são os piores de todos, esses seus apostólicos lingüistas. Eles se incrustam nas tribos para destruí-las de dentro, igualzinho que os bichos de pé. Em seus espíritos, em suas crenças, em seu sub-consciente, nas raízes de seu modo de ser. Os outros tiram deles o espaço vital e os exploram ou empurram para o interior. No pior dos casos, eles os matam fisicamente. Esses seus lingüistas são mais refinados, querem matá-los de outro modo. Traduzindo a Bíblia para o machiguenga: o que é que você acha [...].11

E, para finalizar, um outro trecho em que se lê:

Os lingüistas eram alguma coisa muito diferente. Tinham, atrás de si, um poder econômico e uma engrenagem eficientíssima, que lhes permitia talvez implantar seu progresso, sua religião, sua cul-tura. Aprender as línguas aborígenes, ora que logro! Para quê? Para fazer dos índios amazônicos bons ocidentais, bons homens mo-dernos, bons capitalistas, bons cristãos reformados? Nem mesmo isso. Só para apagar do mapa das culturas, seus deuses, suas insti-tuições e adulterar-lhes até seus sonhos. Como tinham feito com os peles-vermelhas e os outros, lá no país deles. Isso é o que eu queria para nossos compatriotas da selva? Que se convertessem no que eram, agora, os aborígenes da América do Norte?12

Se essa perspectiva insere uma certa Lingüística dos anos 1940, 50 e 60 numa dimensão política e crítica, o fato de a obra ser dos anos 1980 sugere que a circulação de uma consciência a respeito dos estudos lingüísticos e de seus efeitos acontecia, por assim dizer, para um público não especializado. Essa perspectiva crítica, com a qual todos os lingüistas “politicamente cor-retos” concordam hoje, diz respeito unicamente às atividades do famoso Instituto de Verão. Entretanto, é também dessa mesma época um poema intitulado “Exorcismo”, em que Carlos Drummond de Andrade constrói uma imagem dos estudos da linguagem que, tanto quanto os trechos de O

falador, revela uma percepção pouco simpática da Lingüística e, mais

espe-cificamente, da parafernália terminológica, do jargão propagado pelos tex-tos teóricos e conhecidos por público externo à academia.

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E

XORCISMO

Das relações entre topos e macrotopos Do elemento suprassegmental, Libera nos, Domine.

Da semia

Do sema, do semema, do semantema, Do lexema,

Do classema, do mema, do sentema, Libera nos, Domine.

Da estruturação semêmica,

Do idioleto e da pancronia científica, Da realibilidade dos testes psicolingüísticos,

Da análise computacional da estruturação silábica dos falares regionais, Libera nos, Domine.

Do vocóide,

Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal, Do vocóide baixo e do semivocóide homorgâmico, Libera nos, Domine.

Da leitura sintagmática,

Da leitura paradigmática do enunciado Da linguagem fática,

Da fatividade e da não-fatividade na oração principal, Libera nos, Domine.

Da organização categorial da língua,

Da principalidade da língua no conjunto dos sistemas semiológicos, Da concretez das unidades no estatuto que dialetaliza a língua, Libera nos, Domine.

Do programa epistemológico da obra, Do corte epistemológico e do corte dialógico, Do substrato acústico do culminador,

Dos sistemas genitivamente afins, Libera nos, Domine.

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Da camada imagética Do estado heterotópico Do glide vocálico Libera nos, Domine.

Da lingüística frástica e transfrástica,

Do signo cinésico, do signo icônico e do signo gestual Da clitização pronomial obrigatória

Da glossemática, Libera nos, Domine.

Da estrutura exossemântica da linguagem musical Da totalidade sincrética do emissor,

Da lingüística gerativo-transformacional Do movimento transformacionalista, Libera nos, Domine.

Das aparições de Chomsky, de Mehler, de Perchonock De Saussure, Cassirer, Troubetzkoy, Althusser

De Zolkiewsky, Jakobson, Barthes, Derrida, Todorov De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et caterva

Libera nos, Domine.13

Carlos Drummond de Andrade

O que há de comum entre essas duas posturas diante da Lingüística e do fazer dos lingüistas, cobrindo uma grande faixa desse fazer no século XX?

Há uma percepção nada lisonjeira da Lingüística, dos lingüistas e mesmo do aparato teórico utilizado. Essas críticas, situadas no passado, são locali-zadas e parecem distantes do momento atual em que os estudos da lingua-gem reencontraram o sujeito, suas relações com a história, a partir da ob-servação da linguagem em uso, de maneira a redefinir paradigmas e repen-sar o papel do pesquisador. Como afirma François Dosse:

O reprimido do estruturalismo, o sujeito, teve um regresso tanto mais ruidoso visto que se acreditou poder passar sem ele durante uma vintena de anos. Apanhado numa tensão constante entre divinização e dissolução, o sujeito experimentou não poucas difi-culdades para reintegrar-se no campo do pensamento, dada a com-plexidade que lhe é própria, dividido entre a autonomia do poder

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e as redes de dependência que o condicionam. Diante da falsa alternativa, por largo tempo apresentada como inelutável, entre o sujeito onipotente e a morte do sujeito, toda uma corrente da reflexão contemporânea se desenvolveu em torno do paradigma da dialógica, do agir comunicacional, e pode representar um ca-minho real de emancipação social, bem como um paradigma fe-cundo no domínio das ciências sociais.14

Dentre as grandes tendências que possibilitam “o regresso do sujeito” estão, sem dúvida, a Análise do Discurso Francesa e o pensamento bakhtiniano, o qual chega ao Brasil, e ao resto do Ocidente, aos poucos e não como um bloco coeso. Postular a existência de uma teoria/análise do discurso exige, por assim dizer, uma reconstituição do percurso desse pen-samento e dos aspectos que vão sendo iluminados e tidos como nucleares, segundo a maneira como vai se instalando. Olhar esse percurso é também entrar em contato com as conseqüências que vai provocando em termos dos estudos da linguagem, em termos dos estudos da enunciação, em ter-mos de estudos do discurso que, centralizados na Lingüística e também na Teoria Literária, alçam vôo e ganham espaço nas diferentes Ciências Hu-manas e Sociais.

Embora Bakhtin e seu Círculo tenham produzido seus trabalhos sobre a linguagem desde a segunda década do século XX, os lingüistas entraram em

contato com esse pensamento no final da década de 1970, por meio de

Mar-xismo e filosofia da linguagem. A versão brasileira, como as demais, tem um

subtítulo bastante significativo: Problemas fundamentais do método sociológico

na ciência da linguagem. Esse subtítulo indicia a linguagem e seu estudo de

uma forma ampla que, sem excluir a Lingüística ou Teoria Literária, antecipa a importância da linguagem na perspectiva das Ciências Humanas.

Um outro aspecto que chama a atenção nas versões da obra para o Oci-dente é que as diferentes versões trazem assinatura de Valentin Voloshinov – M. Bakhtin (Voloshinov)15 –, indicando ao menos uma duplicidade de

auto-ria. A questão da autoria é importante para se pensar não apenas as origens desse pensamento, o círculo de intelectuais que lhe dá origem, as possíveis causas das diferentes assinaturas, mas também os elementos que, estando sob diferentes assinaturas, contribuem para a construção de uma teoria/análise do discurso. Esses aspectos devem ser considerados a fim de que sejam

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enten-didas não apenas as razões da multiplicidade de assinaturas, mas especialmen-te a dimensão assumida pela autoria num pensamento em que o outro é condição sine qua non para a existência do “eu”.

Exatamente o que desta primeira obra conhecida pelos lingüistas mar-cou uma nova postura diante da linguagem? O que interferiu na forma de enfrentar a linguagem e constituir diferentemente os estudos lingüísticos e também, de certa maneira, os estudos literários?

O aspecto nuclear dessa obra, que atingiu os lingüistas de imediato, foi precisamente a forma de conceber a linguagem e seus estudos. Naquele mo-mento, final da década de 1970, havia claramente duas opções: de um lado, a vertente estruturalista, voltada para as questões do sistema, que muito ensinou a todos e à qual se deve o aprofundamento dos diferentes níveis da análise lingüística, caso da fonética, da fonologia, da sintaxe, e que na Teoria Literária poderia ser traduzida, grosso modo, pelo formalismo e seus estudos estruturais da narrativa e da poesia, por exemplo. De outro lado, uma poética sociológica, uma vertente múltipla, voltada, por assim dizer, para os estudos do “conteúdo”.

O aparecimento de Marxismo e filosofia da linguagem se dá como uma espécie de “terceira margem dos estudos da linguagem”. Tanto as duas gran-des correntes do pensamento lingüístico, o estruturalismo e a estilística clás-sica, são colocadas na berlinda, mais diretamente no capítulo intitulado “Duas orientações do pensamento filosófico lingüístico”, como um avanço na direção dos estudos enunciativos e discursivos é colocado em andamen-to, a partir de discussões instaladas pelos capítulos mais lidos da obra: “Lín-gua fala e enunciação”, “Interação verbal” e “O ‘discurso de outrem’”.

A percepção da linguagem e da possibilidade de estudá-la levando-se em conta a historicidade, os sujeitos, o social, sem dúvida, provocaram profundas mudanças, que podem ser simbolizadas na idéia de signo

ideoló-gico. Nenhuma ideologia pode aparecer fora dos signos, e nenhum signo

está despido de ideologia, como a obra vai mostrando ao longo de seus capítulos. Partindo da tradição dos estudos da linguagem, sem apagar os ganhos trazidos pelos estudos saussureanos e pelos estudos estilísticos, o pensamento bakhtiniano presente nessa obra ofereceu a ocasião de um salto qualitativo no sentido de observar a linguagem não apenas no que ela tem de sistemático, abstrato, invariável, ou, por outro lado, no que de fato tem de individual e absolutamente variável e criativo, mas de observá-la em uso,

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na combinatória dessas duas dimensões, como uma forma de conhecer o ser humano, suas atividades, sua condição de sujeito múltiplo, sua inserção na história, no social, no cultural pela linguagem, pelas linguagens.

Evidentemente que as demais partes da obra, de excepcional importân-cia para a concepção histórica e soimportân-cial da linguagem, só foram retomadas mais tarde, como é o caso, por exemplo, de “Tema e significação na língua” – sem a qual não se pode entender o conceito de gênero discursivo (noção que aparecerá como tal na obra Estética da criação verbal, datada de 1979) – ou “Teoria da Enunciação e problemas sintáticos” e “Discurso indireto, direto e suas variantes”, capítulos fundamentais para uma compreensão aprofundada das formas e graus de assimilação e circulação do “discurso de outrem”, ou seja, da constituição dos sentidos, da possibilidade do que chamamos de interdiscurso, de alteridade constitutiva.16

Além disso, é preciso lembrar que a compreensão e mobilização do pensamento bakhtiniano implica, necessariamente, como acontece nas Ciên-cias Humanas em geral, o conhecimento dos interlocutores com quem esse pensamento dialoga.17 No caso de Marxismo e filosofia da linguagem, por

exemplo, há muitos interlocutores. Assim sendo, não apenas uma leitura cuidadosa do capítulo “Duas orientações do pensamento filosófico lingüístico” leva à compreensão de que ele não está destruindo Saussure e sua obra, ou a estilística como vertente do conhecimento, mas aponta para uma leitura mais cuidadosa do próprio Saussure e do que ele representou no século XX. Não fosse ele o criador da Lingüística, o pensamento

bakhtiniano não necessitaria colocá-lo como interlocutor polêmico. Para o pensamento bakhtiniano, o outro nunca é abstrato.

A partir dos aspectos destacados em Marxismo e filosofia da linguagem, portanto, também aí, mesmo considerando a assinatura Voloshinov, há im-portantes contribuições para uma teoria/análise dialógica do discurso, har-monizadas com a proposta de uma Metalingüística. As relações dialógicas são trabalhadas na perspectiva de uma teoria da enunciação em que as ques-tões do sentido, de sua construção e de seus efeitos são apresentadas por meio da discussão dos conceitos de tema e de significação e, também, das formas de presença do outro na linguagem e no fio do discurso.

O acesso a Problemas da poética de Dostoiévski, cuja primeira tradução para o português data de 1981, parecendo, pelo título, estar mais voltada aos estudos

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literários que aos estudos lingüísticos, teve, por isso mesmo, mais influência nos estudos da literatura, escapando, até bem pouco tempo, à atenção dos lingüis-tas. Entretanto, é por intermédio dela que se pode reconhecer um procedimen-to analítico essencial para uma teoria/análise dialógica do discurso: chegar a uma categoria, a um conceito, a uma noção, a partir da análise de um corpus discursivo, dos sujeitos e das relações que ele instaura. Para definir o gênero polifônico do romance, e situar sua inovação e seu alcance, Bakhtin analisa, como se observou, a obra toda de Dostoiévski. Ele não tinha um conceito ad

hoc de polifonia para testar nos escritos de Dostoiévski. É a partir dos textos de

Dostoiévski que o conceito é formulado, constituído. Portanto, essa é sem dú-vida uma das características de uma teoria/ análise dialógica do discurso: não aplicar conceitos a fim de compreender um discurso, mas deixar que os discur-sos revelem sua forma de produzir sentido, a partir de ponto de vista dialógico, num embate. E que Marilia Amorim define da seguinte maneira:

[...] A produção de conhecimento e o texto em que se dá esse co-nhecimento são uma arena onde se confrontam múltiplos discur-sos. Por exemplo, entre o discurso do sujeito analisado e conhecido e o discurso do próprio pesquisador que pretende analisar e conhe-cer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxais vai emergir. Assumir esse caráter conflitual e problemático das Ciên-cias Humanas implica renunciar a toda ilusão de transparência: tanto do discurso do outro quanto de seu próprio discurso. E é portanto trabalhando a opacidade dos discursos e dos textos, que a pesquisa contemporânea pode fazer da diversidade um elemento constituinte do pensamento e não um aspecto secundário.18

Somente essas duas obras já seriam suficientes para extrair dos aspectos nucleares do pensamento bakhtiniano uma teoria/análise dialógica do dis-curso, gesto que, ao enfrentar a linguagem, se reveste necessariamente da ética proposta pelo Círculo e da possibilidade e necessidade de lidar com vários campos do conhecimento a partir do reconhecimento do papel fun-damental da linguagem na constituição dos sujeitos históricos.

Entretanto, seguindo essa espécie de percurso que tem a ver com a forma como o pensamento bakhtiniano foi se instalando nos estudos da linguagem, interferindo na concepção de pesquisa e de conhecimento de práticas sociais, culturais e históricas, outros dois trabalhos, assinados por

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Bakhtin, devem ser mencionados: A obra de François Rabelais e a cultura

popular na Idade Média, que aparece em 1965 e tem sua primeira tradução

para o português em 1987, e Questões de literatura e de estética – a teoria do

romance, datada de 1975 e traduzida para o português em 1988. Como Problemas da poética de Dostoiévski, eles parecem, pelo título, interessar

ape-nas aos literatos e, por essa razão, durante algum tempo, foram lidos so-mente por estudiosos da linguagem literária.

O que contêm essas duas obras para interessar outras áreas do conheci-mento que não a teoria da literatura? Que noções fundamentais trazem que se articulam ao restante do pensamento bakhtiniano, impedindo os interes-sados na teoria/análise dialógica do discurso de ignorá-las?

Em A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média, com o propósito de estudar esse autor e mostrar aspectos ainda não desvendados de sua obra, Bakhtin faz um estudo original sobre o riso, sobre a cultura popular, sobre o Carnaval, fenômenos que, pela tradição e pelas particula-ridades, propiciam uma visão inusitada, criativa e irreverente do mundo. O vocabulário da praça pública, as formas e imagens da festa popular, a ima-gem grotesca do corpo, as imagens de um autor e a realidade de seu tempo são alguns dos aspectos cujo estudo aprofundado resultou em conceitos que, mais tarde, foram mobilizados pela Lingüística, pela literatura, pela antropologia ou por outras Ciências Humanas.

Mais uma vez, um conceito fundante do pensamento bakhtiniano é construído a partir da leitura do conjunto da obra de um autor, apontando para a análise das especificidades de um discurso e para a maneira como ele indicia o contexto extralingüístico que o constitui. Sem dúvida, aí estão praticados alguns princípios observados teórica e praticamente em

Proble-mas da poética de Dostoiévski e que, na observação da obra de Rabelais,

resultam no conceito de carnavalização, tão importante quanto o conceito de polifonia. É verdade que o destino de carnavalização é muito parecido com o de polifonia...

Em Questões de literatura e de estética – a teoria do romance, aparecem algumas noções que especialmente os lingüistas utilizam com muita produ-tividade. Esse é o caso de plurilingüismo, palavra autoritária e palavra

inte-riormente persuasiva, por exemplo, dimensões que, a fim de serem

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linguagem em uso, inspirando muitos estudos e possibilitando leituras não preconceituosas em relação às diferentes formas que a língua e a linguagem assumem, necessariamente, do ponto de vista histórico, social, cultural.

Durante muito tempo, e até hoje, muitas pessoas perguntam por que ler e discutir Questões de literatura e de estética – a teoria do romance, se a praia dos lingüistas é a análise do discurso? Em primeiro lugar, porque as manifestações artísticas da linguagem não estão excluídas de uma teoria/ análise dialógica do discurso, uma vez que as artes constituem discursos poderosos sobre a vida, sobre os seres humanos. Deve-se ler tal obra especial-mente porque a teoria do romance no pensamento bakhtiniano ocupa um espaço fundamental para se entender a linguagem em sua multiplicidade, em sua variação, no dialogismo que a constitui e no entrecruzar de discur-sos magistralmente representados nos romances, na prosa de ficção. Se os estudiosos da literatura tiveram acesso a algumas obras antes dos lingüistas, assim como os lingüistas tiveram acesso a Marxismo e filosofia da linguagem antes dos estudiosos da literatura, sabe-se hoje que essa separação não pode ser levada em conta na medida em que o pensamento bakhtiniano, para falar da linguagem em uso e avançar em sua concepção social e histórica de linguagem, não descarta qualquer tipo de discurso.

Quando, em 1979, aparece a obra Estética da criação verbal – reunião de um conjunto de escritos de diferentes épocas, de 1919 a 1974, e a que o autor na verdade não deu acabamento final –, de fato, a idéia de um pensa-mento bakhtiniano se concretizou, assim como o de uma teoria/análise dialógica do discurso. Os conceitos de enunciado, comunicação verbal, gê-neros discursivos, formas e concepções de destinatário, esferas da atividade humana, texto e, ainda, observações sobre a epistemologia das Ciências Humanas dão continuidade e dialogam com conceitos iniciados em obras anteriores, em momentos anteriores, preenchendo aparentes lacunas. O texto “O autor e o herói”, que pelo título novamente poderia parecer volta-do apenas a uma área volta-do conhecimento, demonstra uma forte vocação para discutir, em profundidade, a questão da relação eu/outro, tanto na vida como na arte, aí incluída a pesquisa, especialmente nas Ciências Humanas. A citação de um pequeno trecho ajuda a compreender essa afirmação, esse aspecto nuclear do papel do pensamento bakhtiniano para a pesquisa em Ciências Humanas, transformando o objeto da pesquisa em sujeito:

(19)

Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento.19

Sem dúvida, essas poucas referências dão a indicação do alcance dos escritos contidos nessa obra e da forma como ela atuou e continua atuando sobre os estudos da linguagem.

Indicados esses títulos e um certo caminho percorrido para a instalação do pensamento bakhtiniano, e que sem dúvida podem ser reconhecidos na produtividade representada pelos trabalhos de pesquisadores e grupos de pesquisadores, ainda se deve destacar mais alguns estudos que, assinados por componentes do Círculo, também representam aspectos nucleares do pensamento bakhtiniano e da teoria/análise dialógica do discurso.

Discurso na vida e discurso na arte, escrito em 1926 e assinado Voloshinov,

é um deles.20 Nesse texto de poucas páginas estão contidas algumas das

idéias nucleares do pensamento bakhtiniano, como é o caso de interação. Tal conceito é retomado em Marxismo e filosofia da linguagem, quando o texto apresenta uma série de noções sem as quais seria impossível compreen-der a amplitude e o alcance de interação. É o caso de conceitos como enunciação ou enunciado concreto, comunicação, incluindo a comunica-ção estética, verbal e extraverbal se pressupondo, e as noções de situacomunica-ção e contexto como elementos diferenciados. Também aí aparecem os conceitos de entoação e avaliação, como marcas da participação ativa dos interlocutores no evento social representado pelo discurso. Todos esses aspectos vão sur-gindo a partir de um exemplo que resulta numa idéia muito repetida por nós, ainda que não tenhamos lido diretamente este texto: “O ‘eu’ pode realizar-se verbalmente apenas sobre a base do ‘nós’.” Essas indicações pare-cem suficientes para o reconhecimento de que numa teoria/análise dialógica do discurso os conceitos enunciados acima são imprescindíveis.

Um último texto, que na verdade é certamente um dos primeiros senão o primeiro a ser escrito por Bakhtin, publicado na Rússia em 1986, que confirma a gênese de uma teoria/análise dialógica do discurso. Trata-se de

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apenas por não ter sido finalizado pelo autor, mas justamente por trazer as bases filosóficas do pensamento bakhtiniano. Lá estão as noções de evento, de ato, de acontecimento, aspectos que sem dúvida podem ser reconheci-dos pelos que leram as obras posteriores e que, talvez por isso, podem com-preender de onde partem as idéias, qual é o núcleo gerador do conjunto que identificamos como “pensamento bakhtiniano”.

Com esse texto, a idéia já enunciada de uma concepção de estudos da lin-guagem como lugar de produção de conhecimento de forma comprometida, responsável e, ainda, de uma concepção de linguagem, de construção e produ-ção de sentidos, necessariamente apoiada nas relações discursivas empreendidas por sujeitos historicamente situados, fica confirmada. Como diz Augusto Ponzio, num ensaio intitulado “Para uma filosofia da ação responsável”:

Bakhtin insiste sobretudo no compromisso inevitável com o outro – com um “outro concreto”, e não com um outro eu abstrato, concebido teoricamente como consciência gnoseológica abstrata – que o ser responsavelmente partícipe comporta na unicidade do próprio lugar no mundo.22

Para finalizar, estão enunciadas algumas características dessa teoria/aná-lise dialógica – e que aparecem evidenciadas neste volume – em cada um dos textos que, para situar um conceito-chave, mobiliza o pensamento bakhtiniano, e alguns de seus interlocutores, no que ele tem de original: fazer da análise um processo de diálogo entre sujeitos, no sentido forte assumido pelo termo.

(I) Há conceitos próximos, mas não necessariamente intercambiáveis, caso de

alteridade, dialogismo, polifonia, que constituem, como heterogeneidade, interdiscursividade e intertextualidade, dimensões da noção de “outro” e de sua importância na reflexão sobre linguagem. Nem sempre esses conceitos se fundamentam nos mesmos princípios, ganhando especificidades em diferentes teóricos ou tendências de análise. O conceito de heterogeneidade, cunhado por Jacqueline Authier-Revuz, assim como o de intertextualidade, estabelecido por Kristeva, têm fortes raízes no pensamento bakhtiniano, ainda que ambas tenham recorrido a outros arredores teóricos e deslocado os conceitos para o centro de suas preocupações específicas. De qualquer forma, seja qual for o rumo assumido, a questão da alteridade constitutiva

(21)

ganhará um espaço fundamental nos estudos da linguagem, interferindo na noção de sujeito, de autoria, de texto (verbal e não verbal), de discurso, interlocutor e especialmente de vozes discursivas.

(II) Há formas e graus de representação da dimensão dialógica da linguagem,

trabalhadas especialmente a partir das obras Filosofia do ato (1919), Marxismo

e filosofia da linguagem, Problemas da poética de Dostoiévski, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, que ajudam a entender o conceito de

dialogismo como constitutivo de qualquer discurso, mas que pode ser dimensionado diferentemente em textos e discursos específicos. Essas diferenças produzem diferentes efeitos de sentido, indiciando o projeto de fala aí implicado. Assim sendo, os trabalhos sobre argumentação, persuasão, por exemplo, têm se valido na última década da teoria bakhtiniana e dos elementos que ela oferece em termos de perspectiva enunciativa, explicitação e posicionamento das vozes discursivas.

(III) Há um dimensionamento essencial da interação, ligada à enunciação, às

formas de produção e circulação dos textos e discursos. Em Discurso na arte

e discurso na vida (1926), texto que objetiva “tentar alcançar um

entendimento do enunciado poético, como uma forma desta comunicação estética especial, verbalmente implementada”,23 chama a atenção a maneira

como o conceito de interação, considerado processo verbal e processo social, começa a ganhar singularidade na reflexão bakhtiniana. Mais tarde, ele se revela um esteio da concepção de linguagem do Círculo.

As contribuições bakhtinianas para uma teoria/análise dialógica do dis-curso, sem configurar uma proposta fechada e linearmente organizada, cons-tituem de fato um corpo de conceitos, noções e categorias que especificam a postura dialógica diante do corpus discursivo, da metodologia e do pesqui-sador. A pertinência de uma perspectiva dialógica se dá pela análise das especificidades discursivas constitutivas de situações em que a linguagem e determinadas atividades se interpenetram e se interdefinem, e do compro-misso ético do pesquisador com o objeto, que, dessa perspectiva, é um sujeito histórico.

(22)

N

OTAS

1 Paulo Bezerra, “Prefácio à segunda edição brasileira”, em Mikhail Bakhtin, Problemas da poética

de Dostoiéviski, trad. Paulo Bezerra, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. X.

2 Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiéviski, trad. Paulo Bezerra, 3. ed., Rio de

Janeiro, Forense Universitária, 2002, p. 181.

3 Idem, p. 182. 4 Idem, p. 183. 5 Idem, p. 184.

6 Cristovão Tezza, “A polifonia como categoria ética”, em Cult Especial Biografia, São Paulo,

n. 4, pp. 24-26.

7 A respeito de carnavalização e gêneros, consultar: o texto “Carnavalização”, de Norma Discini,

(nesta obra); Irene Machado, “Gêneros discursivos”, em B. Brait (org.), Bakhtin: conceitos-chave, São Paulo, Contexto, 2005, pp. 151-66; B. Brait e R. Rojo, Gêneros: artimanhas do texto e do discurso, São Paulo, Pueri Domus/Escolas Associadas, 2002.

8 Mario Vargas Llosa, O falador, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, p.65. 9 Idem.

10 Idem, p. 78. 11 Idem, p. 86. 12 Idem, p. 87.

13 Jornal do Brasil, 12/4/1975.

14 François Dosse, História do estruturalismo: o canto do cisne de 1967 aos nossos dias, trad.

Álvaro Cabral, São Paulo/Campinas, Editora Ensaio/Editora da Unicamp, 1994, p. 493.

15 A edição espanhola, traduzida por Tatiana Bubnova e datada de 1992, traz unicamente a

assina-tura de Valentin Nikólaievich Voloshinov.

16 A respeito de interdiscurso, ver nesta obra o texto “Interdiscursividade e intertextualidade”, de

José Luiz Fiorin.

17 Para uma melhor compreensão desse aspecto, ver: Carlos Alberto Faraco, Linguagem e diálogo:

as idéias lingüísticas do Círculo de Bakhtin, Curitiba, Criar, 2003.

18 Marilia Amorim, “A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e

epistemológica”, em M. T. Freitas et al., Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin, São Paulo, Cortez, 2003, p. 12.

19 M. Bakhtin, Estética da comunicação verbal, trad. Paulo Bezerra, 4. ed., São Paulo, Martins

Fontes, 2003, p. 45.

20 “La palabra en la vida y la palabra en la poesia. Hacia una poética sociológica, por Valentin

Voloshinov (M. M. Bajtin)”. In: Mijail M. Bajtin, Hacia una filosofia Del acto ético. De los borradores. Y otros escritos, trad. Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997.

21 Mijail M. Bajtin, Hacia una filosofia del acto ético: De los borradores. Y otros escritos, trad.

Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997.

22 Augusto Ponzio, “Para una filosofía de la acción responsable”, em Mijail M. Bajtin, Hacia una

filosofia del acto ético – De los borradores. Y otros escritos, trad. Tatiana Bubnova, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997, p. 236.

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R

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