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Cores e contradições : a luta pela diversidade sexual e de gênero sob o neoliberalismo brasileiro

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

RAFAEL DIAS TOITIO

CORES E CONTRADIÇÕES

A luta pela diversidade sexual e de gênero sob o neoliberalismo brasileiro

Campinas 2016

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2013/16665-1; CNPq,

141063/2012-2

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Colors and contradictions: the struggle for sexual and gender

diversity under Brazilian neoliberalism

Palavras-chave em inglês:

Social movements Neoliberalism

Área de concentração: Ciências Sociais Titulação: Doutor em Ciências Sociais Banca examinadora:

Andréia Galvão Rafael de la Dehesa Isadora Lins França

Gustavo Gomes da Costa Santos

Data de defesa: 01-11-2016

Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais

Toitio, Rafael Dias, 1983-

T573c Cores e contradições: a luta pela diversidade sexual e de gênero sob o neoliberalismo brasileiro / Rafael Dias Toitio – Campinas, SP: [s.n.], 2016.

Orientador: Angela Maria Carneiro Araújo.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

i1. Movimentos sociais. 2. Neoliberalismo. I. Araújo, Angela Maria Carneiro,1952-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelas/os Professoras/es Doutoras/es a seguir descritas/os, em sessão pública realizada em 1º de novembro, considerou o candidato Rafael Dias Toitio aprovado.

Profa. Dra. Angela Maria Carneiro Araújo (orientadora)

Profa. Dra. Andréia Galvão (Unicamp)

Prof. Dr. Gustavo Gomes da Costa Santos (UFPE)

Profa. Dra. Isadora Lins França (Unicamp)

Prof. Dr. Rafael de la Dehesa (CUNY)

(Suplentes)

Profa. Dra. Karla Adriana Martins Bessa (Unicamp)

Profa. Dra. Renata Gonçalves (Unifesp)

Prof. Dr. Sávio Cavalcante (Unicamp)

A Ata de Defesa, assinada pelos Membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

(5)

A

GRADECIMENTOS

O texto a seguir, ainda que escrito a duas mãos, não deixa de carregar vozes, ideias e interpretações de muitas e muitos. Agradecer aqui é uma tarefa ingrata, já que essa caminhada não se iniciou em março de 2012, quando ingressei no doutorado, envolvendo assim um sem número de pessoas e coletivos. Por isso, aqui expresso minha gratidão apenas àquelas/es que mais diretamente contribuíram para a realização dessa pesquisa.

À Angela, minha orientadora, por esses anos de convivência e pela orientação incisiva. Pela leitura cuidadosa do meu texto, os comentários críticos, as indicações de bibliografia e de caminhos de análise e pesquisa.

Às/aos colegas do Cemarx e, mais especificamente, do Grupo de Estudo do Neoliberalismo e Classes Sociais (Geneo) e do MOB, por me acolherem em suas reuniões. À Andreia Galvão, pelas discussões na disciplina ―Tópicos Especiais em Trabalho, Movimentos Sociais, Cultura e Política‖ e pelas importantes e decisivas contribuições para a construção da minha pesquisa feitas no exame de qualificação e na defesa da tese. À Armando Boito Jr., pelo diálogo, a atenção e por as contribuições. À Sávio Cavalcante, por ter sido o primeiro com quem discuti o projeto dessa pesquisa, me apoiando desde o início; pelo interesse permanente e pela leitura e comentário de partes da tese. E às/aos colegas dos Cadernos Cemarx, pelo trabalho em conjunto e sempre respeitoso.

Às/aos colegas do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, aos encontros do Seminário de Tese, sempre instigantes no desenvolvimento de nossas análises. Particularmente, à Isadora Lins França e à Regina Facchini, pelos debates e contribuições durante a disciplina ―Tópicos Avançados em Estudos de Gênero‖.

Às/aos trabalhadoras/es da Unicamp, sobretudo do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). E à Tereza, em especial, pelo café sempre quentinho e pela amizade carinhosa. A Reginaldo Alves e Beatriz Tiemi, da Secretaria do Doutorado em Ciências Sociais, pelas ajudas constantes e o diálogo amistoso.

Ao CNPq, pelos primeiros meses de bolsa. À FAPESP, pelos demais meses de bolsa e pelo financiamento (da maior parte) dessa pesquisa (FAPESP PROCESSO 2013/16665-1).

A Rafael de la Dehesa e a Gustavo Gomes da Costa Santos, pelas discussões e contribuições sempre generosas. Ao Rafael e à Luciana Aliaga, agradeço pela leitura inicial de parte do texto e os importantes comentários críticos.

Às/aos colegas do Grupo de Estudos de Política da América Latina (GEPAL), pelos debates sobre movimentos sociais e neoliberalismo. Em particular, à Eliel Machado e à Renata

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Gonçalves, pela importante ajuda e contribuições na elaboração do projeto de pesquisa. E à Martha Ramirez, por me apresentar o debate das feministas pós-estruturalistas.

Às/aos militantes e gestoras/es entrevistadas/os, por terem cedido parte de seus tempos e por terem fornecido informações adicionais a esta pesquisa.

Ao Identidade – Grupo de Luta pela Diversidade Sexual, de Campinas, pela oportunidade de viver a construção do movimento LGBT e por me deixar ―beber‖ de sua experiência e de sua combatividade. Ao Coletivo Babado da Unicamp, por ter me deixado experimentar a confluência entre movimento LGBT e estudantil. Ao Coletivo da Diversidade Sexual da Consulta Popular, por ter me dado o privilégio de fazer luta LGBT a partir de um partido. Ao Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), pela possibilidade de contribuir para uma luta urbana e popular. E, a todos esses movimentos, agradeço por me um darem um ―chão‖ sobre o qual meus ―pés‖ pudessem caminhar e minha ―cabeça‖ pensar. Em especial, às/aos companheiras/os do Identidade dos quais tive a oportunidade de conviver mais: Amara Moira, André, Biscoito, Gustavo, Janaína Lima, Julia, Kátia, Luiz Felipe, Lola, Morgana, Nara Malta, Paulo Afonso, Paulo Mariante, Rafael, Rodrigo Rosa, Veridiana e Way.

Às/aos companheiras/os Elaine Bezerra, Octávio Oti, Roberto Efrem, Julia Gomes, Galvão, Tatiana Bretas, Larisse Rodrigues, Mariana Oliveira, Alexandre Boing, Leonardo Santana (da Consulta Popular), pela convivência militante, o aprendizado e o carinho.

À Carla Ferreira, Ludmila Helena, Marcílio Rodrigues, Victor Kanashiro, Priscila Souza, João Augusto, Ana Flávia, Renata Sanchez e Júlio César, por tantas vezes terem me dado nesse período um teto e um aconchego em suas casas, sempre me propiciando discussões instigantes.

Às/aos amigas/os do peito, de hoje e sempre, tão imprescindíveis para que a minha vida se torne inteligível para mim mesmo. Agradeço, sobretudo, àquelas/es que nunca se afastaram de mim, apesar de mim.

A minha mãe, ao pai e ao meu irmão. Às minhas avós e meus avôs e a toda a minha família.

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Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia Quem brincava de princesa

acostumou na fantasia

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RESUMO

A preocupação de fundo dessa pesquisa é investigar se o neoliberalismo causou alguma influência sobre a atuação do movimento LGBT no Brasil. Para tanto, foi analisada a trajetória da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), entre 1995 e 2015, bem como a relação da associação com os governos FHC, Lula e Dilma na construção de políticas sociais. Além disso, o estudo se voltou também para a análise das principais bandeiras de luta, as formas de organização, as ações coletivas e as formas de mobilização de recursos; as estratégias traçadas diante os limites e desafios de cada contexto; os principais aliados, como o governo federal e outros movimentos sociais, e inimigos, como o neoconservadorismo evangélico; bem como os discursos, concepções e posicionamentos da ABGLT. Esse caminho permitiu pensar se o fortalecimento (ou mesmo o enfraquecimento) da racionalidade e das politicas neoliberais trouxe alguma consequência sobre a trajetória da associação, processo que não pôde ser compreendido sem discutir (também) o caráter de classe do Estado e as articulações entre classe, sexualidade e gênero. Na fundamentação teórica, a análise envolveu um diálogo entre os elementos teórico-metodológicos do marxismo com os de outros referenciais, como o feminismo materialista e o feminismo pós-estruturalista, as contribuições de Michel Foucault e a teoria dos ―novos movimentos sociais‖. Além da pesquisa bibliográfica, também houve pesquisa documental, a realização de entrevista com militantes e gestores/as e a observação participante em eventos do movimento LGBT.

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ABSTRACT

This thesis investigates if neoliberalism had any influence on the collective action of the LGBT movement in Brazil. For that, the trajectory of the Brazilian Association of Lesbian, Gay, Bisexual, Trasvesti and Transsexual (ABGLT) between 1995 and 2015 was analyzed, as well as the associative relationship with the governments FHC, Lula and Dilma in the construction of social policies. In addition, the study also analyzed the main demands, forms of organization, collective actions and ways of mobilizing resources; the strategies outlined in each context; the main allies, such as the federal government and other social movements, and main enemies, such as evangelical neoconservatism; as well as the discourses, conceptions and positions of ABGLT. The analysis involved a dialogue between the theoretical-methodological elements of Marxism and those of other references, such as the contributions of Michel Foucault, feminism and studies on "democratic construction".

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Centros de Referência – ano a ano (Governo Federal) ... 169

Tabela 2 – Execução orçamentária entre 2004 e 2015 – Temática LGBT (Governo Federal) ... ... 170

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids.

ABL – Articulação Brasileira de Lésbicas. AEL – Arquivo Edgard Leuenroth.

ALCA – Área de Livre Comércio das Américas. ANS – Agência Nacional de Saúde.

Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

APOLGBT – Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. APP – Área de Preservação Permanente.

ASICAL – Associação de Saúde Integral e Cidadania para América Latina. BNDS – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

BSH – Brasil Sem Homofobia.

CGT – Central Geral dos Trabalhadores.

CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil.

CNCD - Conselho Nacional de Combate à Discriminação. CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas.

CRAS – Centro de Referência da Assistência Social.

CREAS – Centro de Referência Especializado em Assistência Social. CUT – Central Única dos Trabalhadores.

DEM – (Partido) Democratas.

DST – Doença Sexualmente Transmissível. EAD – Ensino à Distância.

EBGL – Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas.

EBGL-Aids – Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas que Trabalham com Aids EBGLT – Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Ebho – Encontro Brasileiro de Homossexuais.

EUA – Estados Unidos da América. FHC – Fernando Henrique Cardoso. FMI – Fundo Monetário Internacional. FPE – Frente Parlamentar Evangélica. FSM – Fórum Social Mundial.

GALF – Grupo de Ação Lésbico-Feminista. GAPA – Grupo de Apoio à Prevenção à Aids.

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GT – Grupo de Trabalho.

HIV – ―Vírus da Imunodeficiência Humana‖. HSH – Homens que fazem Sexo com Homens. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IES – Instituições de Ensino Superior.

ILGA – International Lesbian and Gay Association. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. ISER – Instituto de Estudos da Religião.

IURD – Igreja Universal do Reino de Deus. LBL – Liga Brasileira de Lésbicas.

LDO – Lei de Diretrizes Orçamentárias.

LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. LOA – Lei Orçamentária Anual.

MEC – Ministério da Educação. Mercosul – Mercado Comum do Sul.

MHB – Movimento Homossexual Brasileiro. MinC – Ministério da Cultura.

MST – Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. MTE – Ministério do Trabalho e Emprego.

OIT – Organização Internacional do Trabalho. OMS – Organização Mundial da Saúde. ONG – Organização Não Governamental. ONU – Organização das Nações Unidas.

OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. PAC – Programa de Aceleração do Crescimento.

PCdoB – Partido Comunista do Brasil. PDT – Partido Democrático Socialista. PFL – Partido da Frente Liberal.

PGT – Partido Geral dos Trabalhadores. PIB – Produto Interno Bruto.

PL – Projeto de Lei.

PLC – Projeto de Lei da Câmara.

PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro. PNDH – Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH).

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. PPA – Plano Plurianual.

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PRB – Partido Republicano Brasileiro.

PROS – Partido Republicano da Ordem Social. PRTB – Partido Renovador Trabalhista Brasileiro. PSB – Partido Socialista Brasileiro.

PSC – Partido Social Cristão. PSD – Partido Social Democrático.

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira. PSOL – Partido Socialismo e Liberdade.

PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado. PT – Partido dos Trabalhadores.

PTB – Partido Trabalhista Brasileiro. PTC – Partido Trabalhista Cristão. PTN – Partido Trabalhista Nacional. PV – Partido Verde.

SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. SD – (Partido) Solidariedade.

SDH/PR – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial.

SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial.

SEPPIR – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. SES – Secretaria de Estado de Saúde.

SESI – Serviço Social da Indústria. SINE – Site Nacional de Empregos. SRT – Secretaria de Relações do Trabalho. STF – Supremo Tribunal Federal.

SUAS – Sistema Único de Assistência Social. SUS – Sistema Único de Saúde.

UFBA – Universidade Federal da Bahia.

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.

UNAIDS – Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS.

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Unicamp – Universidade Estadual de Campinas.

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S

UMÁRIO

Introdução ... 15

Considerações teóricas e metodológicas preliminares ... 23

Hegemonia(s) e a perspectiva relacional de poder ... 26

Sobre a pesquisa empírica ... 47

Divisão dos capítulos ... 49

Capítulo 1 Aids, neoliberalismo e movimento homossexual no governo FHC ... 51

1. O surgimento da ABGLT e o movimento antiaids ... 53

2. O financiamento (e a economia política) do projeto Aids I ... 63

3. Reforma do Estado, sociedade civil e ―profissionalização‖ do movimento ... 74

4. Projeto Somos e os reflexos políticos da conjuntura ... 86

5. Contradições de um tempo ... 99

Capítulo 2 A assimilação da questão LGBT como política social no governo Lula ... 108

1. Os primeiros anos de governo e a construção do Brasil Sem Homofobia ... 112

2. A confluência de projetos na relação partido e movimento ... 128

3. A questão LGBT na mudança de ―projeto hegemônico‖ ... 148

4. Limitados avanços ... 163

Capítulo 3 Dilemas e retrocessos no governo Dilma ... 174

1. Movimento, governo e ofensiva conservadora ... 175

2. Sobre o neoconservadorismo evangélico ... 196

3. Movimento, governo e Estado ... 209

Capítulo 4 ABGLT – passado e presente ... 224

1. Bandeiras de luta ... 225

2. Ação coletiva, mobilização de recursos e autonomia ... 246

3. Gênero e classe ... 269

4. Movimento LGBT e luta de classes ... 292

Conclusão ... 299

Referências ... 319

(15)

I

NTRODUÇÃO

Como numa insistência da história, o processo brasileiro de democratização sofreu no dia 17 de abril de 2016 um profundo abalo. Nesse dia, que seria o prenúncio de um golpe institucional, a Câmara dos Deputados votou pelo afastamento da presidenta Dilma Rousselff (PT), que havia sido reeleita em 2014. O complexo contexto que envolvia a disputa política entre uma multiplicidade de forças e agentes sociais ganhou um ar de tragicomédia devido a um elemento inusitado: os argumentos dados pela maioria dos parlamentares que votavam a favor do afastamento. Desde o fim das eleições, já se apontava para o fato de que aquela era considerada a composição mais conservadora do Congresso Nacional desde 1985. Mas, isso não sugeria necessariamente que a discussão política fugisse tão escancaradamente dos termos do regime democrático formal para se fundamentar em crenças conservadoras, religiosas e pessoais. ―Por Deus‖ e ―pela família‖ foram as justificativas mais utilizadas. Foram proferidas outras como ―pelos militares de 64‖, ―pela República de Curitiba‖, ―pelos evangélicos‖, ―pelos fundamentos do cristianismo‖. E, ao menos, dois parlamentares argumentaram contra as políticas e os direitos sexuais e reprodutivos.

Para o deputado Delegado Eder Mauro (PSD), membro da denominada ―bancada da bala‖, o governo Dilma deveria ser afastado porque este (supostamente) pretendia destruir a família tradicional ―com propostas de que criança troque de sexo e aprenda sexo nas escolas, com seis anos de idade‖. Já o deputado Jair Bolsonaro, que havia acabado de migrar para o Partido Social Cristão (PSC), ligado à Igreja Assembleia de Deus, afirmou:

Nesse dia de glória para o povo tem um homem que entrará para a história. Parabéns presidente Eduardo Cunha. Perderam em 1964 e agora em 2016. Pela família e a inocência das crianças que o PT nunca respeitou, contra o comunismo, [contra] o Foro de São Paulo e em memória do coronel Brilhante Ustra. O meu voto é sim1.

O deputado, evocando o que tinha de mais conservador naquele debate, não só exaltou a ditadura militar – afirmando as semelhanças com o golpe de 1964 –, como fez alusão a um antigo discurso que relacionava o comunismo com a pederastia e a pedofilia. E ambos os

1

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/04/1762082-veja-frases-dos-deputados-durante-a-votacao-do-impeachment.shtml. Acesso junho de 2016.

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parlamentares faziam referências a uma das políticas governamentais voltadas para acabar com a discriminação e a violência contra as expressões sexuais e de gênero não-heterossexistas (o ―kit‖ do programa Escola Sem Homofobia, material pedagógico que seria distribuído para escolas públicas) e que era uma conquista do movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). Além disso, os argumentos também se referiam à disputa de parlamentares para tentar desaprovar a inclusão dos conteúdos sobre gênero e sexualidade nos planos (nacional, estadual e municipal) de educação. Graças à pressão dos deputados conservadores, sobretudo aqueles concentrados na ―bancada evangélica‖, o governo vetara o ―kit anti-homofobia‖ em 2011, um pouco antes do seu lançamento pelo Ministério da Educação. Eles também foram os responsáveis pela retirada, em 2014, dos termos ―igualdade de gênero‖ e ―orientação sexual‖ do Plano Nacional da Educação, que era reivindicação do movimento LGBT e do movimento feminista (colocada por meio da Conferência Nacional de Educação).

No entanto, o conservadorismo evangélico era apenas uma das forças que protagonizaram esse episódio. De acordo com o filósofo Vladimir Safatle, pelo menos cinco grupos tomaram frente do processo de impeachment do governo Dilma: a ―casta política‖ (as principais lideranças e partidos políticos), o poder Judiciário, setores hegemônicos da imprensa, a ―oligarquia‖ financeira e ―a igreja evangélica conservadora, cuja influência na política brasileira é fruto de trabalho ideológico de longo fôlego no interior da dita ‗nova classe média‘‖2

. Se cada uma dessas forças tinha agendas e estratégias próprias, havia naquele momento um objetivo comum: dar cabo do prosseguimento dos governos petistas.

Não se pode desconsiderar, por outro lado, que a votação na Câmara dos Deputados foi um dos momentos auge da crise política e econômica, que havia se tornado mais evidente no começo de 2015. O resultado dessa crise resultaria não apenas no golpe institucional. No que tange ao conteúdo e à forma das políticas sociais e econômicas, bem como à relação entre Estado e sociedade civil, resultou no retorno do projeto neoliberal ortodoxo, e na eliminação (progressiva) do projeto neodesenvolvimentista3, representado pelos governos do PT. Ao se esfacelar a correlação de forças que sustentava este projeto, as concepções neoliberais ganharam ―fôlego‖ renovado para se legitimarem na condução da política estatal. O próprio Jair Bolsonaro, ao gritar contra o Foro de São Paulo, reagiu contra um espaço de articulação

2

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2016/06/1777555-apertem-os-cintos-o-piloto-sumiu.shtml. Acesso em junho de 2016. O debate sobre o golpe institucional de 2016 e a crise política ainda está no início, mas já há reflexões importantes em Gentili et. al. (2016), Boito (2016), Jinkings et. al. (2016) e Proner (2016).

3

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de partidos e movimentos sociais latino-americanos, que havia sido proposto pelo PT em 1990, e formado para fazer resistência ao neoliberalismo. Contudo, isso tinha alguma ligação com a luta LGBT da qual esse deputado era um dos principais adversários?

Cabe lembrar que o processo de transição do regime da ditadura militar para o regime democrático formal, dentro da dinâmica do capitalismo monopolista, marcou o contexto de surgimento do movimento de defesa da diversidade sexual e da transgressão das normas de gênero no Brasil. Quando as primeiras organizações foram fundadas, no final dos anos 1970, outro processo – aparentemente sem nenhuma relação – era conformado em âmbito internacional: o fortalecimento do neoliberalismo na disputa pela construção de projetos políticos. A difusão do neoliberalismo – concebido como uma concepção de mundo que compreende o mercado como a instância reguladora universal da política e da economia – dava-se em detrimento das concepções socialdemocratas e das socialistas na construção de políticas estatais, das formas de participação política, da organização do trabalho e da legitimidade de direitos sociais.

Após um boom no surgimento dos primeiros grupos do (então denominado) movimento homossexual, houve um enfraquecimento no número de organizações nos anos 1980, voltando a crescer nos anos 1990. Isso, sobretudo, a partir de meados desta década, quando o neoliberalismo se tornou hegemônico na construção de políticas econômicas e sociais no Brasil. Nos anos 2000, houve um alargamento substantivo dos espaços e frentes de atuação do movimento LGBT. Grupos e coletivos independentes, organizações não governamentais, setores formados no interior de partidos ou sindicatos, coletivos do movimento estudantil ou de juventude, associações, fóruns, redes etc. tornaram-se presentes por todo o país e cada vez mais visíveis. Nesse período, ainda, o Brasil se tornou o país que mais realizava paradas do orgulho, além de passar a abrigar a maior do mundo (em São Paulo), ao mesmo tempo em que passou a investir em políticas sociais voltadas para a população LGBT. O alargamento substantivo da assimilação de demandas LGBT nas ações governamentais se deu ao mesmo tempo em que o PT à frente do governo federal alterou alguns aspectos do modelo de crescimento econômico e da forma de conduzir as políticas econômicas e sociais próprios da ―ortodoxia‖ neoliberal.

Diante de dois processos tão distintos, a disputa do neoliberalismo na construção de projetos hegemônicos e a disputa do movimento LGBT no embate com a hegemonia heterossexista, faz sentido indagar se existe alguma relação entre ambos? É possível encontrar nexos que vinculam as políticas neoliberais, assentadas nos conflitos de classes, com a construção de políticas sociais LGBT? O fortalecimento do neoliberalismo na construção de

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políticas econômicas e sociais, a partir dos anos 1990, contribuiu ou prejudicou a luta pela diversidade sexual e de gênero? E qual o papel do Estado e dos governos? Essas indagações de fundo se ligam à preocupação que instigou a presente pesquisa: as políticas e as concepções neoliberais tiveram alguma influência sobre a atuação e trajetória do movimento LGBT no Brasil? Essa questão mais geral demandaria, evidentemente, uma série de outras pesquisas e estudos de caso sendo, até o momento, raras as investigações sobre o movimento que trazem o neoliberalismo como uma das categorias centrais da análise4.

No intuito de contribuir para essa discussão, este trabalho se propõe a investigar se houve influência do neoliberalismo sobre o movimento LGBT a partir da atuação de uma organização e um caso concreto: a trajetória da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Mais especificamente, será analisada a relação da associação com os governos FHC, Lula e Dilma e sua participação na construção de políticas sociais5 e de espaços de participação institucional. Ao mesmo tempo, serão estudadas as formas de ação coletiva e de mobilização de recursos utilizadas pela associação, suas demandas e reivindicações, seus discursos, estratégias, concepções e projetos políticos. A opção por esse caminho permitiu investigar se e como o fortalecimento (ou mesmo o enfraquecimento) da racionalidade neoliberal na construção das políticas econômicas e sociais gerou efeitos sobre a prática militante dos agentes individuais e coletivos que estavam imersos na relação com os agentes e os aparelhos do Estado.

Cabe apontar que a construção histórica dos direitos LGBT tem relação direta com a ascensão dos partidos (e das ideias) socialdemocratas, mostrando, por um lado, como a luta do movimento proletário influenciou indiretamente a luta do movimento LGBT, na medida em que o primeiro teve papel central na construção dos Estados de bem-estar social (HETLAND; GOODWIN, 2013, p. 95). Por outro lado, esse fato leva a questionar se o contexto de fortalecimento do neoliberalismo, e de consequente ataque às concepções e políticas socialdemocratas, gerou algum impacto sobre a luta do movimento LGBT. Ainda mais em país da ―periferia‖ do capitalismo como o Brasil, que mal conseguiu construir um sistema de bem-estar social. Assim, a proposta desta tese é analisar a trajetória da ABGLT sem desconsiderar o contexto político no qual essa trajetória é construída. Como ficou claro na investigação, as demandas e as formas de atuação e de organização de uma associação

4

Ver por exemplo Irineu (2014).

5

O que geralmente se entende por políticas públicas pode ser concebido como o conjunto das políticas econômicas, voltadas para o desenvolvimento da economia capitalista, e as políticas sociais, que na bibliografia dominante diz respeito às ações governamentais na saúde, previdência, educação, assistência, cultura etc. Nesta pesquisa, eu amplio a noção de políticas sociais para abarcar outras questões, como as políticas sexuais reivindicadas pelo movimento LGBT.

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nacional do movimento, que logrou estabelecer relação com o Estado, não podem ser compreendidas sem discutir (também) o caráter de classe do Estado e as articulações entre classe, sexualidade e gênero.

Além disso, refletir sobre a relação entre o movimento e governos federais permitiu fazer uma investigação a partir de meados dos anos 1990, quando as políticas neoliberais passaram a ser implementadas com mais força e sistematicidade no país. A ABGLT foi fundada em janeiro de 1995 justamente no momento em que se iniciava o governo de Fernando Henrique Cardoso, que é considerado o governo que mais se alinhou ao ―programa‖ neoliberal. Esse enfoque permitiu, também, examinar as primeiras relações de algumas organizações do movimento com o Estado, até a construção de políticas voltadas para a população LGBT, nos anos 2000, momento que coincide com a continuidade das medidas neoliberais, mas com diferenças importantes no que tange ao modelo de desenvolvimento econômico e à forma de relação entre Estado e sociedade civil, se comparado com os anos 1990. O recorte temporal da pesquisa se concentrou, nesse sentido, entre 1995 e 2015. Mesmo correndo o risco de passar por cima de detalhes importantes por conta do amplo período selecionado, esse recorte possibilitou analisar a relação do movimento com o Estado em momentos distintos da hegemonia neoliberal no Brasil.

Já em relação aos motivos que pesaram para a escolha de estudar a trajetória da ABGLT, é importante informar que esta (desde a sua criação) é a maior associação nacional do movimento na América Latina que, atualmente, tem 308 organizações afiliadas e, desde os fins dos anos 1990, tem posição privilegiada na interlocução com o Estado e o governo federal. Entre outros feitos, teve papel fundamental nas primeiras relações com o governo Fernando Henrique Cardoso; na construção de políticas de prevenção ao HIV/aids voltadas para gays e ―homens que fazem sexo com homens‖ (HSH); no crescimento do número de organizações do movimento, no final dos 1990 e início dos 2000; na aprovação do Programa Brasil Sem Homofobia, em 2004, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva; na construção das duas edições da Conferência Nacional LGBT, em 2008 e 2011; na aprovação do casamento civil homossexual pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011; para a luta pela criminalização da homofobia no Congresso Nacional, sobretudo com o PLC 122/2006; além de ter representantes no Conselho Nacional LGBT, no Fórum Nacional de Educação, no Conselho Nacional de Saúde e Conselho Nacional de Segurança Pública e outros espaços.

Embora fosse a associação mais importante do país, no decorrer da trajetória da ABGLT foram se formando outras associações e redes nacionais do movimento, como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL),

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a Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL), a Rede Afro LGBT, a Associação Brasileira de Homens Trans, a Articulação Brasileira de Gays (ARTGAY), redes e associações estaduais, dentre outras. A necessidade de formar outras associações, que articulam outras questões sociais (de gênero e raça, sobretudo), expressa como o movimento se produz dentro de um complexo conjunto de relações sociais assimétricas, que comporta diversos sujeitos com pauta e reivindicações diferentes.

Com isso, e somado a cada contexto em que o movimento é construído, não se pode resumir em fórmulas simples os motivos pelos quais militantes e organizações LGBT lutaram (e lutam). O enfrentamento à violência e a assassinatos; o preconceito e a discriminação nos diversos espaços da vida social, como trabalho, família, escola e universidade, instituições de saúde etc.; a transgressão das normas de gênero e a possibilidade da autodeterminação da identidade de gênero; a disputa por direitos civis e sociais; a briga pela liberdade e pela igualdade dos diversos grupos sociais divididos em torno da sexualidade; as demandas por políticas sociais no sentido de melhorar as condições (sociais, culturais, políticas e econômicas) de vida das LGBT; a transformação das relações de gênero e de sexualidade etc. Com o seu surgimento, o movimento trouxe novas reivindicações e desafios para o ―político‖, atuando para mudar padrões e valores dominantes, lançando mão de uma série de ações coletivas, como a construção das paradas pela visibilidade, marchas, ―beijaços‖ e outras manifestações de rua; atuação junto a governos e parlamentares; articulação com outros movimentos sociais; entre outras.

Para uma rápida recuperação histórica, o ano 1978 é considerado o marco de nascimento do movimento em terras brasileiras, quando surgiram o jornal Lampião da Esquina6 e o Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, o primeiro jornal e o primeiro grupo a tratar a diversidade sexual – naquele momento, muito centrada na homossexualidade masculina – como questão política. Segundo o historiador James Green, o movimento homossexual provavelmente teria surgido antes se não fosse a onda de repressão deslanchada a partir do AI-5, que foi imposto pelo regime militar, em dezembro de 1968, no sentido de ampliar a censura e a restrição de direitos civis e políticos. Com o discurso oficial de erradicar a ―subversão‖ e de defender a ―moral e os bons costumes‖, a polícia militar passou a efetuar,

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O jornal foi formado por um grupo de escritores, intelectuais e jornalistas – muitos ligados a partidos e grupos de esquerda – que decidiu criar um veículo voltado ao público homossexual. A visão política do Lampião da

Esquina orientava-se para uma alternativa libertária, que desafiava convenções e convicções políticas expressas

na época tanto no campo conservador quanto no da esquerda. Trazia questões relacionadas ao movimento feminista, lésbicas, ―consciência‖ negra, classes sociais, anistia, entre outras. O jornal foi um importante instrumento articulador dos diversos grupos que surgiram na época, sendo o principal meio de comunicação pelo qual faziam circular suas ideias e divulgar suas atividades por todo o país, dentro e fora do movimento (GREEN, 2000a; SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 86).

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por exemplo, blitz frequentes no centro do Rio e de São Paulo, onde concentrava os espaços de sociabilidade homossexual, com direito a abordagens e prisões de ―suspeitos‖. Isso teve um efeito desalentador sobre essa sociabilidade entre 1969 e 1972. Após esse período, alguns espaços voltaram a funcionar com relativa liberdade, como casas noturnas, clubes, saunas e outros. Contudo, as manifestações públicas da diversidade sexual, como nos meios de comunicação de massa, continuaram alvo de controle sistemático, de forma que tais manifestações poderiam até existir, mas deveriam permanecer em espaços fechados e ―semiclandestinos‖ (GREEN, 2000a).

Contudo, os anos que se seguiram após meados desta década foram de abrandamento da repressão, reflexo do processo de abertura política iniciada pelo governo do General Ernesto Geisel e definida, por este, como ―lenta, gradual e segura‖ (e por isso, cheia de pequenos avanços e recuos)7 (FAUSTO, 2012). Em 1978, um pequeno grupo de gays (em sua maioria) e lésbicas organizaram o Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais, voltada para a ―tomada de consciência gay‖. No fim de 1978, o nome do grupo mudou para Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, homenageando uma publicação que fora editada pela Frente de Liberação Sexual da Argentina (Somos), ao mesmo tempo em que expressava claramente a proposta de organização (GREEN, 2000a). O primeiro grupo político organizado a lutar pela questão da homossexualidade tinha fortes pretensões libertárias que se refletiam, inclusive, na forma de organização interna que incentivava a autogestão e evitava a cristalização de lideranças. As ações se dividiam entre as reuniões dos subgrupos ―de reconhecimento‖, em que a homossexualidade era debatida a partir de relatos autobiográficos, e as atividades mais amplas do grupo, como debates, passeatas, manifestações de repúdio à homofobia e todo tipo de opressão. O ideário do grupo carregava muito da contracultura e do espírito contestatório e antiautoritário da época, produzindo um discurso voltado para uma transformação mais ampla, compreendendo a homossexualidade como estratégica para a transformação cultural e para a corrosão da estrutura social a partir das margens (MACRAE, 1990; SIMÕES; FACCHINI, 2009).

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Ainda de acordo com Green, em 1976, houve em São Paulo a tentativa de criar o primeiro grupo de discussão sobre homossexualidade entre universitários. O grupo foi organizado por João Silvério Trevisan, um escritor que tinha contato com o movimento de liberação gay de São Francisco. Porém, o grupo não conseguiu se manter por muito tempo, em um momento em que os participantes estavam muito reticentes diante a primeira experiência, tendo em vista que se questionavam sobre a prioridade de discutir sobre sexualidade diante da ditadura e de outros problemas sociais. No Rio de Janeiro, no mesmo ano, a distribuição de convites para o encontro da União do Homossexual Brasileiro causou alarde e a repressão da polícia que impediu com um ostensivo contingente. A reação oficial de barrar essa mobilização, voltada para a defesa dos ―direitos do homossexual brasileiro‖ e de ―melhores oportunidades e igualdade de condições‖ (conforme escrito no convite), indicou como o governo ainda via qualquer evento público como potencialmente subversivo (GREEN, 2000a, p. 427-9).

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O aparecimento da aids no início dos anos 1980 afetou profundamente a vida daqueles indivíduos cujas sexualidades não eram conformadas pelo heterossexismo e com o movimento social, que era a expressão política desse grupo, não foi diferente. Conforme será aprofundado no primeiro capítulo, a emergência dos primeiros casos de aids, a partir de 1983, foi entre homens gays. Ao mesmo tempo, o movimento minguava uma vez que o próprio surgimento da aids contribuiu para fragilizá-lo. Segundo os antropólogos Júlio Simões e Regina Facchini (2009, p. 118), inúmeros militantes que atuavam nos primeiros grupos do movimento passaram a se dedicar prioritariamente à luta contra a aids. No auge da ―primeira onda‖ do movimento, em 1981, em torno de 20 grupos existiam no país. Em 1984, somente sete sobreviveram e apenas cinco participaram do II Encontro de Homossexuais Organizados, que se realizou em Salvador (GREEN, 2000b, p. 283). A ―primeira onda‖ se refere ao período que se inicia com o surgimento do Lampião e do Somos, em 1978. Além da aids, Green apontou outros fatores que contribuíram para o declínio do movimento nesse período:

Com algumas exceções, os grupos nunca passaram de várias dezenas de membros em um determinado momento. Faltavam recursos financeiros e infraestrutura. Alguns dos dirigentes iniciais perderam o estímulo quando os grupos não demonstraram um crescimento significativo. Outros ativistas não tinham experiência prévia para sustentar os grupos durante a ―década perdida‖ dos anos 80, quando a crescente dívida externa causou inflação galopante e desemprego maciço. O fim da ditadura em 85 criou a falsa ideia de que a democracia tinha sido restaurada, e os direitos dos homossexuais e outros setores da sociedade iam expandir-se sem dificuldades. A imprensa, o rádio e a televisão disseminavam uma imagem mais positiva da homossexualidade, e ofereciam um veículo para que as poucas figuras públicas do movimento articulassem seu ponto de vista. O crescente consumo gay, que incluía boates, saunas e bares, também sustentou uma ilusão de que a sociedade se tornava cada vez mais livre e que a organização política de gays e lésbicas não era mais necessária (GREEN, 2000b, p. 283-284).

Mesmo que nos anos oitenta, tenha ocorrido diminuição acentuada dos grupos organizados, uma nova geração de militantes se formou nesse período, em torno de algumas poucas organizações, construindo o que se considera a ―segunda onda‖ do movimento. Entre os grupos, destacam-se: o Grupo Gay da Bahia, fundado em 1980, sendo o grupo mais antigo do Brasil; e os grupos Triângulo Rosa e Atobá, ambos do Rio de Janeiro. Esses três grupos obtiveram reconhecimento formal do Estado como organizações civis declaradamente homossexuais, e a atuação deles era estreitamente relacionada (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 188-189). O GGB foi o primeiro a se registrar como ONG, inaugurando no movimento este formato de organização que se tornaria predominante nos anos 1990.

O retorno de alguns direitos como o de formar associações e organizações civis, em particular, e o processo de transição para a democracia formal tiveram forte impacto na

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construção das ações e das bandeiras de luta. O fato de uma organização criada para a luta em defesa da diversidade sexual ser reconhecida e legitimada formalmente não era de importância menor para um grupo que pouco tempo antes se expressava de forma ―semiclandestina‖. Além disso, novas formas de mobilização e de ação coletiva se tornaram possíveis no novo contexto. Nesse período, dois fatos se tornaram marcantes. O primeiro foi a campanha coordenada pelo GGB pela retirada da homossexualidade do código de classificação de doenças do INAMPS. Essa luta foi importante por ter mirado uma das raras instâncias em que se discriminava oficialmente a homossexualidade no Brasil e ter questionado, inclusive, a associação entre homossexualidade e doença que ganhava força devido à aids. A mudança reivindicada foi sancionada pelo Conselho Federal de Medicina em fevereiro de 1985 (FRY; MACRAE, 1983; GREEN, 2000a). O outro fato foi a campanha encabeçada pelo Triângulo Rosa e o GGB, ―junto à Assembleia Constituinte, pela inclusão da proibição de discriminação por ‗opção sexual‘, posteriormente renomeada de ‗orientação sexual‘, na Constituição‖ (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 122).

Nos anos 1990, o movimento voltou a crescer sendo expressão disso a criação da sua primeira instância nacional. Junto à fundação da ABGLT, outras formas de ação coletiva e de organização política, outras bandeiras e estratégias se tornariam predominante na construção dos grupos ativistas. É nesse momento que se inicia a investigação do presente trabalho. Antes de avançar nela, contudo, é importante apresentar as principais correntes teóricas, perspectivas e categorias que fundamentaram o desenvolvimento da minha análise.

Considerações teóricas e metodológicas preliminares

O interesse desta pesquisa surgiu, ainda durante o mestrado, quando eu fazia parte do Grupo de Estudos de Política da América Latina (GEPAL) na Universidade Estadual de Londrina. Ali, nos debruçávamos sobre estudos e pesquisas que discutiam, entre outros temas, a relação entre movimentos sociais latinos e o neoliberalismo. O intuito era entender a constituição, a dinâmica e a luta de movimentos como os sem-terra, sem-teto, sindical, feminista, indígenas, de desempregados etc. no processo de resistência ao e (algumas vezes) de assimilação do neoliberalismo. Estudos que tinham a teoria marxista como um dos seus principais paradigmas de análise e que procuravam compreender as consequências do avanço

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das concepções neoliberais na construção de políticas econômicas e sociais, bem como a formação de resistências a esse processo criadas por grupos e classes subalternas8.

Assim, o interesse do marxismo se deu principalmente sobre movimentos que, a partir dos anos 1990, ganharam crescente expressão política na América Latina. De origens diversas e com múltiplos objetivos, esses movimentos tinham em comum a oposição ao neoliberalismo. Os estudos também indicaram que, a despeito da heterogeneidade, tratavam-se de movimentos das clastratavam-ses trabalhadoras, ainda que muitos destratavam-ses não tratavam-se colocastratavam-sem como um movimento de classe (GALVÃO, 2009; 2011). Além de discutir a composição de classe bem como os posicionamentos ideológicos e projetos constituídos na ação coletiva, outra preocupação da vertente marxista foi perquirir os ―potenciais‖ anticapitalistas dos movimentos. Nesse sentido, Galvão apontou também que os movimentos dos subalternos, ―mesmo que não anticapitalistas, se chocam com aspectos da ideologia dominante e do direito burguês, pois as relações sociais capitalistas não se realizam apenas no plano da produção‖. Assim os movimentos afetam, por exemplo, o direito de propriedade (com ocupações de terra e de empresas, luta por moradia), a igualdade formal (que oculta a desigualdade real, em suas diferentes formas: classe, gênero, raça, sexualidade), o direito de ir e vir etc. (GALVÃO, 2011, p. 122).

No entanto, apesar de da análise marxista se debruçar sobre uma diversidade de movimentos sociais, havia para mim um incômodo silêncio nesses estudos sobre o movimento LGBT. Talvez isso se justificasse pelo fato de muitos/as destes/as pesquisadores/as o considerarem um movimento meramente ―identitário‖ ou ―cultural‖, que (supostamente) quase não teria relação com os processos ―econômicos‖ e ―políticos‖. Ao mesmo tempo, as pesquisas sobre o movimento LGBT produzidas no Brasil trouxeram apenas em raríssimas ocasiões o neoliberalismo como categoria central ou, ao menos, com alguma preponderância nas suas análises.

Diante dessa lacuna, foi fundamental indagar se os efeitos e as resistências que a expansão do neoliberalismo gerou em outros movimentos sociais também não afetou o movimento LGBT, já que todos estavam atuando no mesmo contexto político, econômico e cultural. Ou ainda, refletir se o neoliberalismo tinha relação apenas com os movimentos ditos

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De acordo com a cientista política Andréia Galvão, o marxismo não desenvolveu uma teoria dos movimentos sociais plenamente articulada. Isso porque, sobretudo os clássicos, deram prioridade à discussão das formas partido e sindicato. Assim, ―o movimento operário era o movimento social por excelência, de modo que a noção de movimento social estava vinculada à condição de classe operária e à luta entre capital e trabalho‖ (GALVÃO, 2011, p. 107). Os estudos mais recentes, por sua vez, se dedicaram a investigar a relação entre as classes sociais (num sentido mais amplo) e outros movimentos sociais (e não somente o operário), bem como a relação com o Estado, as resistências ao neoliberalismo, entre outras questões.

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―de classe‖. Mas aí, ficaria a questão: os/as militantes do movimento LGBT não teriam origem e identidade de classe? E, no que tange ao Estado, que nas últimas décadas estreitou os vínculos com o movimento LGBT, não seria o mesmo Estado que se relacionou com outros movimentos sociais que o consideravam neoliberal? E o conteúdo das políticas econômicas e sociais não afetava a dinâmica do movimento LGBT?

Sobre essas questões, em uma recente publicação estadunidense intitulada Marxism

and Social Movements, uma coletânea de vários artigos, com discussões teóricas e estudos de

caso – mostrando que a análise marxista sobre os movimentos sociais não é produzida apenas nos países latino-americanos –, merece atenção particular o artigo The Strange

Disappearance of Capitalism from Social Movement Studies (numa tradução livre, ―O

estranho desaparecimento do capitalismo dos estudos dos movimentos sociais‖). Com esse título, os autores Gabriel Hetland e Jeff Goodwin sugeriram que a categoria capitalismo se tornou amplamente ausente nos estudos recentes sobre a temática, sobretudo naqueles orientados pela vertente dos ―novos movimentos sociais‖ e, em especial, nos estudos sobre o movimento LGBT. De acordo com a análise deles, tais estudos tenderam a negligenciar não só os efeitos diretos e imediatos das instituições capitalistas sobre a ação coletiva, mas também os caminhos pelos quais as dinâmicas capitalistas influenciavam indiretamente as possibilidades de protesto. Ao debater como a categoria de capitalismo ainda pode contribuir para analisar os movimentos sociais, mesmo aqueles não formados em torno das classes sociais, os autores concluíram que não só essa categoria é negligenciada, mas também a própria economia política (HETLAND; GOODWIN, 2013)9.

Diante disso, e ao lado das questões empíricas colocadas sobre a relação do movimento LGBT com as classes sociais, Estado e neoliberalismo, coloca-se uma questão de caráter mais teórico: a economia política (marxista) importa para a análise do movimento LGBT? Cabe lembrar que o neoliberalismo ganhou expressão teórica, a partir dos anos 1940, como uma problemática de economia política. Numa primeira definição, esta pode ser entendida como teoria(s) e método(s) que analisam as relações da produção material e do

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Os autores afirmaram que ao se distanciarem da economia política, os estudos sobre o movimento LGBT se concentraram sobre as causas imediatas e de curto prazo da ação coletiva, nas mudanças das oportunidades políticas, as estratégias dos líderes do movimento (HETLAND; GOODWIN, 2013, p. 102). Isso não invalida, no entanto, as reflexões e categorias das teorias dos ―novos movimentos sociais‖, que desenvolveram um ―instrumental‖ relevante para a análise de casos concretos. Por mais que seja importante considerar questões relacionadas ao capitalismo e ao neoliberalismo na análise, não se trata, contudo, de desconsiderar outras categorias, como repertórios de ação coletiva, referente às diferentes formas de protesto; oportunidades políticas, que falam do conjunto de possibilidades de ação e alianças num determinado contexto; e, mobilização de recursos, que diz respeito às formas pelas quais os movimentos conseguem financiar suas ações. Essas três categorias serão utilizadas na presente pesquisa, as quais também podem contribuir para pensar a relação entre movimento e neoliberalismo.

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mercado com o Estado, no intuito de procurar explicar e compreender a vida social10. Embora seja bastante ampla, essa definição permite refletir sobre as indagações mais concretas dessa pesquisa, como compreender a dinâmica dos conflitos, disputas e contradições na luta pela diversidade sexual e de gênero e se essa dinâmica tem alguma relação com a luta de classes, ainda que com a mediação do Estado. E, como não há aqui espaço para neutralidade, dentro das diferentes correntes da economia política, o foco da análise será feita com base na vertente marxista, cujas contribuições se fundamentam no entendimento de que as desigualdades entre as classes sociais são fruto de uma relação social e histórica.

No entanto, se os objetivos da análise são os pilares de uma investigação por servirem de nexo entre teoria e metodologia, como lembrou Sautu et. al. (2005, p. 29), então, a proposta de estudar a questão LGBT trouxe a necessidade de incorporar parte das contribuições de outras correntes de pensamento, devido às próprias limitações do marxismo sobre o tema. Nesse sentido, analisar a relação entre o neoliberalismo e o movimento LGBT no Brasil demandou um diálogo entre os elementos teórico-metodológicos do marxismo com os de outros referenciais, como o feminismo materialista e o feminismo pós-estruturalista, as contribuições de Michel Foucault e os estudos sobre a ―construção democrática‖. Embora isso requeira a construção de uma fundamentação teórica que envolve vertentes e autores/as com muitas divergências, a busca por uma coerência metodológica se dará à luz da análise empírica, ao mesmo tempo em que, no decorrer do texto, procurarei me posicionar sobre aqueles dilemas teóricos que têm relação mais direta com o estudo em questão. A seguir, esclareço a forma como estou utilizando e combinando algumas categorias e perspectivas que considero fundamentais para iniciar a análise.

Hegemonia(s) e a perspectiva relacional de poder

Conforme já exposto, a análise da influência do neoliberalismo sobre a luta pela diversidade sexual e de gênero no Brasil se dará a partir de dois caminhos: a construção das ações coletivas da ABGLT, de suas concepções, projeto político e formas de mobilização de recursos; bem como a relação da associação com agentes/aparelhos de Estado, principalmente com o governo executivo. Esse recorte demandou o diálogo entre diferentes vertentes teóricas e, por isso, esclareço nessa sessão porque penso ser possível combinar contribuições como as

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Sobre a definição de economia política e suas diferentes leituras, ver Bottomore et. al. (2001, p. 118-120); Netto & Braz (2008, p. 15-26).

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de Antonio Gramsci, Nicos Poulantzas, Michel Foucault e do feminismo, que dão fundamentação teórica à minha pesquisa. Mais especificamente, faço uma discussão inicial sobre os conceitos de poder, hegemonia, Estado, sociedade civil, gênero e heterossexismo. Começo com a categoria de hegemonia que, no presente estudo, será utilizada para pensar tanto a construção da hegemonia neoliberal no Brasil como também a luta do movimento LGBT contra a hegemonia heterossexista, e investigar se o primeiro processo teve alguma influência sobre o segundo.

Como é sabido, o conceito de hegemonia – embora tenha sido utilizado também por Lênin – foi disseminado a partir de reflexões de Gramsci. A forma como este o utilizava, privilegia o foco na disputa entre as classes sociais, distanciando-se da ideia unilateral de dominação política; enfatiza a construção dialética das estratégias e ações que envolvem processos de negociações e enfrentamentos, de assimilações e resistências; e procura expressar a dinâmica da relação desigual entre classes e grupos, que, é a um só tempo, material e simbólica. A riqueza da proposta gramsciana foi um marco para a teoria política e após a sua morte em 1937, a categoria de hegemonia inspirou não apenas estudos marxistas sobre o Estado (como Louis Althusser e Nicos Poulantzas) ou sobre a cultura (como Raymond Williams), mas também contribuiu para desenvolvimento teórico da segunda ―onda‖ do feminismo11

e abriu caminho para a perspectiva relacional do pós-estruturalismo (como Foucault, Judith Butler, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe).

Quando Gramsci afirmou que, apesar da existência de ―filósofos profissionais e sistemáticos‖, todos os ―homens são ‗filósofos‘‖ e que esta filosofia peculiar ―a todo mundo‖ está contida ―na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo‖, e contida, também, no ―senso comum‖, na ―religião popular e, consequentemente, em todo sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir‖ (2006, p. 93), ele recolocou a questão da hegemonia e da estratégia em outros termos. Ao partir dessa constatação, Gramsci defendeu a necessidade de, no processo da revolução socialista, empreender uma ―reforma intelectual e moral‖, no sentido de disseminar elementos de uma concepção de mundo e de um projeto de sociedade elaborados sob a perspectiva do fim das desigualdades de classe. Nos países que apresentassem uma sociedade civil ―robusta‖ e complexa, esse trabalho de disputa hegemônica deveria se dar, privilegiadamente, nas ―trincheiras‖ da sociedade civil.

11

Haraway (1995, p. 14), mesmo fazendo fortes críticas ao marxismo, reconheceu que em relação à construção do debate epistemológico do feminismo, no início, ―a perspectiva marxista oferecia instrumentos para elaborarmos nossas versões das teorias de perspectiva, insistência na corporificação, uma rica tradição de críticas da hegemonia, sem a desqualificação dos positivismos e relativismos, e teorias nuançadas da mediação‖.

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O conceito gramsciano de hegemonia implica, conforme Gruppi (1978), não apenas a ―economia‖ e a ―política‖, mas também a moral, o conhecimento, a ―filosofia‖, a ―cultura‖. Escrevendo sobre a luta de classes e sob a perspectiva da superação do capitalismo, Gramsci definiu a ideologia hegemônica como ―o significado mais alto de uma concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas‖, tornando-se capaz de cimentar e unificar todo um ―bloco social‖ (GRAMSCI, 2006, p. 98-9). Para Hall et. al., a referência constante de Gramsci ao termo ―hegemonia ético-política‖ indicava que, ao contrário de Lênin, ele não resumia a questão da hegemonia ao ―nível político‖, pois afetaria ―todos os aspectos da vida e do pensamento da sociedade‖. Os autores apontaram também que o termo hegemonia se referia ―à relação dialética de forças de classes‖, de forma que foi utilizado para ―analisar essas relações das classes e entre as classes‖ (HALL et. al., 1980, p. 64-65).

Como nos lembrou Williams (2011), o termo hegemonia trata de um conjunto de práticas e expectativas, de compreensão do ser humano e seu mundo; constitui um sentido absoluto por se tratar de uma realidade vivida, além da qual se torna muito difícil para a maioria dos membros da sociedade mover-se, pois abrange as diversas áreas de suas vidas. Essa noção ampla de hegemonia estava presente em Gramsci, embora ele atribuísse também outras acepções. É preciso lembrar que para o autor política, economia e cultura são diferentes facetas de uma mesma totalidade, de modo que o conceito de hegemonia se refere a todas essas ―dimensões‖ da realidade social. Por isso, esse conceito ao enfocar um ou outro aspecto dessa realidade pode ser definido a partir de um sentido mais restrito, que é o caso da definição de hegemonia como direção de uma fração de classe ou de um grupo social, que tem preponderância para colocar suas demandas ao Estado e a outras frações e grupos em geral.

Embora essa última noção de hegemonia tenha contribuído para o desenvolvimento do debate sobre Estado e classes sociais (sobretudo, a partir do final dos anos 1960), foi a visão ampla do conceito, assentada numa perspectiva que recusa a separação orgânica (mas apenas metodológica) entre economia, política e cultura, que foi assimilada nas últimas décadas para o entendimento de outros antagonismos sociais. Isso subtraiu a limitação do uso do conceito às lutas de classe, ao mesmo tempo em que procurou fugir do economicismo ao analisar também as questões políticas e culturais no processo de construção do ―consenso‖ ou da ―sujeição‖ social. Contudo, a extensão do uso desse conceito para entender outras relações de poder não implicou na perda de sua força para explicar questões como o neoliberalismo.

Cabe reconhecer que o neoliberalismo é um ―fenômeno‖ complexo e, como tal, tem sido compreendido por diversos ―ângulos‖ e abordagens teóricas. Para o marxismo, não há tão

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pouco uma definição única. De forma mais abstrata, o marxismo o entende como uma fase do capitalismo, iniciada nos anos 1970, quando se intensificou a ofensiva do capital contra o trabalho (e contra as conquistas de políticas e direitos sociais), no intuito de ampliar seu poder, ao mesmo tempo em que uma nova dinâmica de acumulação do capital ganhava centralidade, o que fortaleceu rapidamente o papel do capital financeiro nas relações econômicas entre os países e no cotidiano de suas populações. Instituições financeiras como fundos de pensão e de investimentos, grandes seguradoras, empresas financeiras especializadas (CHESNAIS, 2005, p. 27) e bancos são o que podemos concretamente denominar de capital financeiro, cujos interesses e projetos se tornaram hegemônicos, nesse momento da história, diante as demais frações do capital e das classes trabalhadoras. O termo hegemonia aqui é empregado num sentido estrito, ou seja, como hegemonia de uma fração de classe sobre as demais classes12.

Essa questão tem sido amplamente analisada e tem gerado importantes estudos. Uma forma de análise privilegiada para se pensar a hegemonia financeira – e que importa a esta tese – se refere à investigação de como ela se reflete no Estado e na construção de políticas econômicas e sociais. As análises sobre as dinâmicas e as relações internacionais evidenciaram como os países capitalistas centrais impuseram, com a ajuda de agências como o Banco Mundial e o FMI, um conjunto de medidas que deveriam ser tomadas pelos governos e seus Estados. A questão das classes sociais continuou a ser fundamental para analisar criticamente o que ficaria amplamente conhecido como ―programa‖ ou ―modelo‖ neoliberal, que não por um acaso correspondem aos interesses do capital, mas principalmente da fração financeira. Medidas como: rigorosa disciplina fiscal do Estado, afim de manter um superávit primário, ou seja, uma reserva para pagar os juros da dívida pública (cujo maior credor é o mercado financeiro); priorizar e focalizar os gastos públicos, promovendo cortes radicais nos orçamentos sociais ditos não ―produtivos‖ (educação, saúde, moradia, infraestrutura), no intuito de atingir o tal equilíbrio orçamentário; liberalização financeira, eliminando restrições para o capital internacional; abertura dos mercados com a supressão das barreiras aduaneiras,

12

De acordo Chesnais (2005, p. 27), ―a centralização das rendas não investidas na produção e não consumidas (...) permitiu que essas instituições [financeiras] se tornassem proprietárias-acionistas de um novo tipo de empresa e detivessem, ao mesmo tempo, elevados volumes de título da dívida pública, de forma que os governos tornaram-se seus ‗devedores‘. Certamente, sem que isso tenha sido plenamente previsto nem desejado, a liberalização e a mundialização financeira deram aos mais importantes proprietários de ações e obrigações (...) os meios de influir sobre a repartição da renda em duas dimensões essenciais: a da distribuição da riqueza produzida entre salários, lucros e renda financeira, e da repartição entre a parte atribuída ao investimento e a parte distribuída como dividendos e juros. Como as duas determinações da repartição afetam o nível do investimento e comandam o emprego e o crescimento, é difícil imaginar um poder mais forte [que o] da finança‖. Ver também Harvey (2011), Galvão (2008) e Paulani (2008).

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favorecendo as importações e a conquista de partes do mercado pelas transnacionais, o que com o tempo levou a diminuição de parte do ―parque industrial‖ de muitos países pobres (como foi o caso do Brasil nos anos 1990); privatização das empresas estatais; desregulamentação de direitos sociais e trabalhistas; a garantia jurídica da propriedade intelectual (MILLET; TOUSSAINT, 2000; CHESNAIS, 1996). Além das políticas sociais, cuja forma neoliberal será discutida no próximo capítulo, que deveriam ser submetidas ao sucesso das políticas econômicas.

Essas medidas tiveram mais ou menos impacto de acordo com a dinâmica de cada país, as disputas entre as forças e as resistências internas. Mas, é importante perceber que tais medidas são ―políticas‖ não só porque privilegia certos grupos em detrimento de outros, mas também porque elas forçavam a concretização de um determinado projeto de sociedade, legitimado por certas racionalidades e visões ―ético-políticas‖ elaboradas e difundidas, sistematicamente, por universidades, agências multilaterais, instituições financeiras, institutos de pesquisas, empresas de comunicação etc. Assim, não se pode desconsiderar que o processo de hegemonia neoliberal diz respeito a uma intensa disputa de concepções e práticas entre agentes individuais e coletivos concretos que defendem certos princípios, discursos, interesses etc. e pressionam para dar ―sentido absoluto‖ a uma ―realidade vivida‖.

Nesse sentido, o neoliberalismo é, antes de tudo, um conjunto de concepções de mundo que defende a universalidade do mercado na ―organização‖ da sociedade. É também uma forma de vida e um conjunto de normas de conduta pautados na lógica da concorrência. No âmbito da linguagem, ele se expressou por meio de uma variedade de formas, ganhando ―tradução‖ num conjunto de categorias que se tornaram (em vários contextos) cotidianas: o ―empreendedorismo‖ e a ―empregabilidade‖, que responsabilizam o indivíduo pelo próprio sucesso econômico e social; o reforço do discurso do direito de propriedade como uma questão de liberdade e igualdade formal; a ―flexibilização‖ de leis e mecanismos que atrapalham a ―livre‖ acumulação e circulação do mercado (financeiro); a ―responsabilidade social empresarial‖, que defende uma pretensa ―consciência cidadã‖ para as empresas que tentam propor uma ―resposta‖ para as questões sociais; o discurso da ―racionalização‖, ―profissionalização‖ e ―tecnificação‖ de processos políticos; e o inalcançável ―Estado mínimo‖, que essencializa o Estado como um ente corrupto e ineficiente.

David Havey, na obra O neoliberalismo: história e implicações, afirmou o neoliberalismo como

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uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio (HARVEY, 2011, p. 12).

De acordo com o autor, o neoliberalismo se difundiu em várias partes do mundo ―nas práticas e pensamento político-econômicos desde os anos 1970‖, o que o tornou ―hegemônico como modalidade de discurso e passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que se incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo‖ (HARVEY, 2011, p. 12-13). Para se tornar hegemônico, um modo de pensamento precisa propor

um aparato conceitual que mobilize nossas sensações e nossos instintos, nossos valores e nossos desejos, assim como as possibilidades inerentes ao mundo social que habitamos. Se bem-sucedido, esse aparato conceitual se incorpore a tal ponto ao senso comum que passa a ser tido por certo e livre e questionamento (HARVEY, 2011, p. 15).

Entendê-lo como modo de pensamento, como concepção de mundo, evita a restringi-lo a apenas um conjunto de medidas econômicas a serem implementadas perestringi-lo Estado. Nessa obra, Harvey analisou a história do processo de neoliberalização e como este se tornou tão abrangente no cenário mundial, mostrando como os países foram adotando o neoliberalismo ―como uma nova ortodoxia econômica de regulação da política pública‖ (HARVEY, 2011, p. 31). Mas, ele não esqueceu de apontar que bem antes da década de 1970, já havia se conformado uma ideologia e uma teoria (neoliberais) que, aos poucos, foram traduzidas em políticas estatais. Os governos reorientaram os rumos da economia passando a usar argumentos até então secundários e que há muito estavam em circulação e que, após longas batalhas, transformaram-nos em argumentos fundamentais (HARVEY, 2011, p. 11).

Nesse ponto, as contribuições de Foucault são particularmente relevantes. Em

Nascimento da biopolítica, o autor se dedicou a analisar o liberalismo e o neoliberalismo

como ―artes de governar‖ ou ―governamentalidades‖, que dizem respeito às formas de racionalizar a prática governamental e a conduta dos indivíduos13. Essa perspectiva permite

13

Mais especificamente, com o termo ―governamentalidade‖, Foucault procurava saber como se desenvolveu uma ―maneira de governar, qual a sua história, como ela ganha, como ela encolhe, como ela se estende a determinado domínio, como ela inventa, forma, desenvolve novas práticas‖ (FOUCAULT, 2008, p. 9). Ele investigou como essas racionalidades ganhavam ―coerência‖ e expressão na produção bibliográfica de intelectuais liberais e neoliberais, sem deixar de reconhecer que elas ao mesmo tempo se difundiam e orientavam a construção das formas de ―governamentalidade‖. No caso do neoliberalismo, o que o diferenciava era sua procura em ―regular o exercício global do poder político com base nos princípios de uma economia de mercado‖ (FOUCAULT, 2008, p. 181).

Referências

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