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"Trodding out of Babylon": linguagem, pessoa e formas de tradução Rastafari

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Academic year: 2021

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Felipe Neis Araujo

“TRODDING OUT OF BABYLON”:

LINGUAGEM, PESSOA E FORMAS DE TRADUÇÃO RASTAFARI

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de mestre em Antropologia Social.

Orientadora: Profa. Dra. Evelyn Martina Schuler Zea

Florianópolis 2014

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Felipe Neis Araujo

“Trodding Out of Babylon”: Linguagem, Pessoa e Formas de Tradução Rastafari

Dissertação Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Antropologia Social.

Banca Examinadora

_________________________________________ Dra. Evelyn Martina Schuler Zea

(PPGAS/UFSC – Orientadora)

_________________________________________ Dr. Lynn Mario Menezes Trindade Souza

(USP)

_________________________________________ Dra. Vânia Zikán Cardoso

(PPGAS/ UFSC)

________________________________________ Dr. Scott Correl Head

(PPGAS/UFSC)

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Para Daniel Neis Araujo, irmão e amigo.

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"We know where we're going We know were we're from We're leaving Babylon

We're going to our Father's Land Exodus: Movement of Jah People!"

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Agradecimentos

Greetings and love. To one and all.

Este curso de mestrado não teria sido possível sem o apoio moral e financeiro de minha mãe, a quem agradeço em primeiro lugar. Também agradeço à dona Norma por nunca ter me cobrado a hora em que eu finalmente irei sair da escola e arrumar um emprego. Quando terminei a graduação ela se empolgou e me apoiou com as ideias de mudar a área de estudos e tentar o mestrado. No final desta etapa da pós-graduação eu falei que queria continuar estudando e que iria fazer a seleção para o doutorado. Ela vibrou tanto com a decisão quanto com a aprovação e me disse para não me preocupar se haveria ou não uma bolsa, pois continuaria a me apoiar. Infelizmente meu pai não viveu para experimentar este momento comigo, mas tenho certeza que ele também estaria muito contente. Agradeço pelo tempo que pude desfrutar de sua companhia. Certamente há muito dele em mim. Minha mãe que o diga!

Meu irmão, Daniel, sangue do meu sangue, é uma presença fundamental em todas as etapas da minha vivência. Durante o mestrado não foi diferente. Nas conversas de fim de tarde no bosque, nos churrascos aqui em casa e na sua casa, nos rolês, nos engarrafamentos de Floripa, no Scarpelli e ali onde a Olegário da Silva Ramos encruza com a Dib Cherem nós tivemos – e teremos ainda – muitos bons momentos. Eu quero que saibas, também, que um dos motivos mais fortes que me fizeram deixar a loucura um pouco de lado e procurar dar um jeito na vida foi a admiração que eu tenho por ti, Jovem. Quando eu penso em nossas trajetórias o fundo musical é sempre aquele: “You was just a little smaller/ But you still rolled”.

Quero agradecer também a alguns irmãos que embora não tenham o mesmo sangue que o meu fazem parte da minha família, a família que mora no meu coração. Ao August, por muitas coisas. Nós vamos sentir a tua falta se tu fores embora, mas vamos ficar felizes porque tu estarás feliz. Manda brasa, jovem. Ao Kleberzinho, que também se formou recentemente: parabéns! Ao Jojo, just married, amigo desde a infância até a eternidade: “I hope your wife knows/ She's got a player for life/ And everybody miss you”. Agradeço também ao

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-ix-Fabrício, o Exu Mirim – a. k. a. Criatura da Noite –, que eu sempre sei onde encontrar. Ao Vermelhito, pelas caipirinhas de frutas variadas, mas também por muitos outros momentos de felicidade.

Tem uma rapaziada que não sai ali do bosque se não precisar. Eles têm até um nome: a Roda Eterna. A gente riu pouco durante estes 7 anos de UFSC, hein jovens? Pela amizade, pelas risadas e otras cositas más eu agradeço ao Cavera, ao Claytão, ao André Cabelo, ao Gui, à Nat, ao senhor Édio Cunha e ao Alemão, também conhecido como Hélder. Agradeço ao Xalalá, que é patrimônio histórico da UFSC, da Travessa Ratcliff e da praia de Naufragados. Quando o moço do disco-voador aparecer no teu quintal me chama que eu vou. Meus sinceros cumprimentos e agradecimentos ao Thiaguinho, este jovem de serenidade inspiradora e de muitos conhecimentos – os quais compartilha humildemente. Agradeço também ao Álvaro Cabelo: estamos juntos desde o ensino fundamental! Entre estes amigos o meu irmão é conhecido como Magrese e eu como Monstro. Belos epítetos, hein? Nós todos “tamo aí mandando brasa”, como cantou o poeta.

Ao longo deste processo de pesquisa e escrita a Dani, minha companheira, aturou muitas oscilações de humor, muita ausência e alguns aporrinhos. Muito obrigado por todo o apoio, pelas palavras de conforto, pelo carinho, pela paciência e pela atenção. Meus agradecimentos vão com amor e respeito, como naquela canção do saudoso Guru: “So think of me as one man/ Who has crazy respect for you as a woman”.

Devo agradecer ainda aos professores do PPGAS por fazerem dele um programa estimulante do qual eu não quero me desvincular. Vou nomear aqui apenas aqueles com quem tive a oportunidade de aprender, mas os meus cumprimentos se estendem a todos. O meu “muito obrigado” vai para a professora Edviges, para o professor Gabriel, para a professora Antonella e para o professor Márnio. Agradeço também aos funcionários do expediente da secretaria do PPGAS, Éder e Ana, pelas gentilezas e pela prestatividade.

Para os professores Vânia e Scott um parágrafo novo: a eles agradeço não só pelas lições, mas também pela amizade. Vânia vem apostando em mim desde a banca de seleção de mestrado. Ao longo destes dois anos de mestrado ela e Scott se tornaram interlocutores

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muito importantes e fico feliz que tenham aceitado participar da banca de defesa desta dissertação. Espero que vocês também se reconheçam um pouco ao longo destas páginas, mas assumo a responsabilidade por qualquer mal-acionamento possível das coisas que aprendo com vocês.

Quero cumprimentar também os colegas do GESTO por terem me aceitado e compartilhado comigo seus conhecimentos e sua amizade. Ana, Rafael, Jaqueline, Nádia, Franco, Felippe, Marcela, Mainá: thanks a lot!

Minha orientadora, Evelyn, também aposta em mim desde a banca de seleção do mestrado. Com paciência, delicadeza e dedicação ela vem guiando a minha caminhada acadêmica nestes últimos dois anos. Ela e seu companheiro, Alfredo, abriram as portas de sua casa para me receber em muitas ocasiões agradáveis que eu gostaria de um dia poder retribuir. Devo muito à Evelyn por ter chegado até aqui e também pela aprovação no doutorado. Muito obrigado pelas lições – de antropologia e de postura –, pelas risadas e pelo carinho. Espero que tu também te reconheças nestas páginas, mas assumo a responsabilidade pelas maneiras como aciono as coisas que me ensinas.

Agradeço também ao professor Lynn Mario, que gentilmente aceitou compor a banca de defesa desta dissertação mesmo com a agenda cheia e com prazos curtos. Pegar um vôo bate-e-volta não é a coisa mais confortável do mundo, eu sei, e acredito que pouquíssimas pessoas topariam esta empreitada para participar de um ritual acadêmico. Espero um dia poder retribuir este gesto de humildade e dedicação. Espero também que estendamos esta interlocução, professor; há muitas coisas que preciso aprender contigo.

Obrigado, mais uma vez, a todos vocês que fazem parte desta caminhada. Shalom. Salam aleikum. Irie! Loveful heights!

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-xi-Resumo

Trata-se, nesta dissertação, de seguir algumas formas através das quais Rastafaris traduzem em suas narrativas, seus corpos e seus conceitos as suas experiências, suas expectativas, sua história, seus conflitos e dissensos. Os Rastas acusam o colonizador branco europeu de ter alterado a história do Criador, Jah, e do Homem, afim de tentar subjugar o Homem Negro, a criatura original. Uma das principais formas de promover estas alterações, dizem os Rastas, se dá através da edição e da tradução dos textos bíblicos. Não é apenas a tradução de um idioma para o outro que concorre para a alteração das narrativas sagradas: as formas de vivenciar as narrativas – de tornar a palavra em carne – também são traduções, e através delas a Babilônia – o dominador – falsifica as prescrições do Criador. Na tentativa de tentar subjugar o Homem Negro a Babilônia também criou um idioma, criou conceitos e fabricou narrativas. Os Rastas, entretanto, atentaram para as armadilhas do idioma inglês, a language of the master, e desenvolveram métodos para escrutiná-lo. Afim de se diferenciar da Babilônia os Rastas também vêm fabricando uma linguagem para si, um idioma com conceitos que procuram ser positivos. Para além das narrativas e de um idioma, os Rastas também procuram se diferenciar fisicamente da Babilônia, cultivando seus corpos de acordo com prescrições sagradas que traduzem da Bíblia. Algo que se destaca nos corpos Rastafari e nas narrativas nativas que tratam dele é a positivação da negritude e da africanidade. O corpo Rasta conecta a negritude à africanidade e ao Criador; a alimentação às relações sociais e históricas; os dreadlocks às prescrições bíblicas; a cannabis à saúde, à noção de I – um conceito importante que remete ao elo entre a pessoa rastafari e Deus – e à sabedoria. Tanto o idioma corporal quanto o idioma verbal dos Rastafari são instrumentos acionados pelos irmãos e irmãs no processo de deslocamento da Babilônia em direção a Sião, deslocamento que se dá tanto no plano físico quanto no plano intelectual.

Palavras-chave: Rastafari; Linguagem; Pessoa; Formas de tradução tivas

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-xiii-Abstract

My aim, in this dissertation, was to follow some of the ways through which Rastafarians translate into narratives, bodies and concepts their experiences, expectations, history, conflicts and disagreements. The Rastas accuse the white European colonizers of having modified the history of the Creator, Jah, and of Man, in order to try to subdue the Black Man, the original creature. One of the main ways to work these modifications, the Rastas say, is through the editing and translation of biblical texts. But it is not just through the translations from one language to another that the alteration of the sacred narratives work: the ways of experiencing these narrative - to make the word flesh - are also translations, and through them Babylon – the dominator – falsifies the prescriptions of the Creator. In the attempt to subdue the Black Man, Babylon has also created a language, concepts, and narratives. The Rastas , however, pay attention to the pitfalls of the English language, the language of the master, and have developed methods to scrutinize it. In order to operate a differentiation from Babylon the Rastas have also fabricated a language for themselves, a language with concepts meant to be positive. In addition to the differentiations they work through their narratives and language, the Rastas also seek to differentiate themselves from Babylon physically, cultivating their bodies according to sacred prescriptions they translate from the Bible . Something that stands out in the Rastas' bodies and in the narratives regarding it is the positivization of blackness and Africanness. The Rasta body connects blackness and Africanness to the Creator; it connects a way of alimentation to social and historical relations; it links the dreadlocks to biblical prescriptions; it relates cannabis to physical health and to the notion of I – an important concept that refers to the link between the person and God –, of Rastafari and wisdom. Both the body language and the verbal language of Rastafari are tools worked by brothers and sisters in the process of displacement from Babylon toward Zion; displacement that occurs both in the physical and in the intellectual planes.

Key Words: Rastafari; Language; Person; Native Ways of Translation

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-xv-Lista de Figuras

Figura 1 – Creazione di Adamo, de Michelangelo Buonarroti. ...42

Figura 2 – Mapa Orbis Terrarum...43

Figura 3 – Irmãos da United Afro-West Indian Federation...75

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Sumário

Nota de Apresentação...xxi

Introdução...27

I – Canções de Redenção: Versões Rastafari da História...35

1. “I Dis Ya Version”...40

2. “Eles Querem o Nome de Sião”...50

3. “Jah Vive”...57

II – “O templo do Deus Vivo”: Corpo e Pessoa Rastafari...63

1. O Carbono Africano...66

2. Knotty Dreads, Natty Roots...77

3. I-tal...84

4. “A Cura das Nações”...91

III – Iyahric: Descolonizando a Language of The Master ...97

1. Livalect...101

2. Overstanding a Linguagem Colonial...102

3. O I da Linguagem Rastafari...106

4. “I Nah You!”...108

5. Um Plural Negativo...109

Nota de encerramento...113

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Nota de Apresentação

Rastafari. Um nome. Uma forma de nomear. Uma vivência – livity, um conceito nativo. Uma palavra que deriva do título nobiliárquico – Ras – e do nome – Tafari Makonen – do imperador etíope Hailie Selassie I antes de sua coroação, ocorrida no ano de 1930: Ras Tafari Makonnen. Os Rastas reconhecem o monarca africano como uma reencarnação de Jesus Cristo, vindo na forma do Leão Conquistador da Tribo de Judá; o Deus Vivo que voltou para guiar o povo escolhido, o povo original, a raiz e a descendência do Rei Davi à terra prometida de Sião – localizada na África, na Etiópia, terra onde foram gerados os primeiros homens. Selassie jamais afirmou ou negou a sua divindade, mas reconhecia a si como um herdeiro da linhagem de Salomão, o rei bíblico famoso por sua sabedoria e por ter construído o templo que teria abrigado a Ark of The Covenant, o símbolo do pacto do Criador com seu povo escolhido. Hoje a arca estaria na Etiópia, trazida por Menelik, filho de Salomão com a Rainha de Sabá.

Antes de prosseguir prestemos atenção às pronúncias do nome Rastafari: no português os dicionários e as pessoas falam Rastafári. No idioma dos Rastas e no inglês se fala Rastafarai. Eu peço ao leitor que tenha atenção a este termo, I – pronuncia-se Ai. Ele conecta uma série de noções nativas que serão comentadas ao longo deste texto, e no terceiro capítulo eu lhe dedico mais atenção. Por enquanto basta levar em conta que ele remete à noção de pessoa rastafari e à pessoa do Criador, Jah. Este nome, Jah, aparece na tradução da Bíblia autorizada pelo monarca britânico Jaime I. No Salmo de número 68, versículo 4, lê-se: “Sing unto God, sing praises to his name: extol Him that rideth upon the heavens by his name JAH , and rejoice before him”. Uma das traduções brasileiras transforma os versos em “Cantai a Deus, salmodiai o seu nome; exaltai ao que cavalga sobre as nuvens. SENHOR é o seu nome, exultai diante dele”. Além deste nome, Jah – e de God [Deus] e Lord [Senhor] –, empregam também o termo Iyaman, palavra que remete, possivelmente, à ideia de Higher Man. O conceito de I, do qual o termo Iyaman deriva, será tratado no capítulo 3. Devo frisar desde agora, entretanto, que a ideia de que o Criador vive nos céus é rejeitada pelos Rastafari. Mais à frente, no primeiro e no segundo capítulos eu irei

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-xxi-comentar esta questão.

Antropólogos, historiadores e sociólogos já quiseram definir Rastafari como um movimento político, como um sistema de crenças, como uma filosofia. Ele resiste às definições que pretendem aprisioná-lo em categorias que lhes são estrangeiras, que buscam dizer de fora o que ele é. Há uma canção Rastafari inspirada por um Salmo que aponta, também, para a dificuldade, a dor e as incertezas de como se apresentar a seus Outros: How can I sing in a strange land?Como cantar em terra estrangeira? A Jamaica, local onde Jah se revelou ao Homem na era em que vivemos, não é a terra do Homem Negro, do Rastaman. Na poesia do Rasta Joe Ruglass: “Jamaica is an island, but is not I-land” (apud CHEVANNES, 1994). “A jamaica é uma ilha, mas não é a terra do I”. A tradução para o português não faz justiça à beleza sonora do original, mas é o mais próximo de sua intenção que eu consigo chegar.

A vida fora do continente africano é experimentada e narrada pelos Rastas como o exílio na Babilônia. Esta palavra-som, Babylon, é utilizada pelos irmãos para descrever a Jamaica como o cativeiro em terra estrangeira, longe da África, para falar da confusão mental promovida pelas mentiras dos opressores e também, como notou Frederick Cassidy (1961), para se referir à polícia. No filme Rockers, gravado em Kingston e protagonizado por Rastas ligados à cena musical da capital jamaicana, há uma cena onde a polícia chega para dispersar um agrupamento e alguns irmãos gritam, avisando os outros, “Babylon! Babylon!” (HENZELL, 1972). Numa canção intitulada Licks and Kicks, ou Chutes e Pontapés, os cantores e compositores do trio vocal jamaicano Israel Vibration relembram de um episódio no qual a polícia dispersou violentamente irmãos congregados numa residência. O termo que acionam para descrever a força policial é Babylon:

I'm sure it was on the 24th Eu estou certo de que foi em 24 (Of September) (De Setembro)

That was the day Este foi o dia

This incident happened Em que aconteceu este incidente (I remember) (I me lembro)

My brethrens Meus irmãos

Were all assembled Estavam todos reunidos In one and all Todos juntos

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Minding them own personality Mentalizando suas personalidades (Of I quality) (De qualidade I)

Babylon then came along A Babilônia então chegou (Have you just seen?) (Você viu só?)

With their forces and brutality Com sua força e brutalidade Licks and kicks and boxes Socos e chutes e mais socos Right to Nas/nos

My brethrens' chapel/chapter Capelas/capítulos de meus irmãos Licks and kicks and boxes Socos e chutes e mais socos Right to my sistren's faces Nos rostos de nossas irmãs (BUGINS, 1978: faixa 10).

Antes de comentar os versos eu gostaria de chamar atenção para a forma como escolhi transcrevê-los. No LP e no CD onde a canção aparece não há transcrição de sua letra. Encontrei na internet algumas transcrições duvidosas que decidi não seguir, pois meus ouvidos não escutavam as palavras que elas inscreviam na canção. Transcrevi, então, eu mesmo, e não sem alguma dificuldade. Coloquei fora dos parênteses os versos cantados pelo compositor Lascelle “Wiss” Bugins. Dentro deles eu aloquei os versos cantados por Cecil “Skelly” Spence e Albert “Apple Gabriel” Craig. Vale notar que este estilo de canção, onde um Rasta canta versos seguidos de outros cantados em coro por outros Rastas, segue o estilo de meditação dos irmãos durante as reasonings. No primeiro capítulo desta dissertação eu volto à noção de reasoning; por enquanto basta tomá-la como uma forma nativa de refletir através de palavras faladas. Falar das coisas, contar histórias, são formas de meditar nelas, como um velho Rasta há muito tempo ensinou a um antropólogo: When I talk I reason, disse o irmão (PULIS, 2000 [1994]): 25). Quando o I fala o I reason1. Quando o I conta histórias ele reason com elas.

Licks and Kicks narra um episódio muito comum na Jamaica: a invasão das casas onde os Rastas se reúnem para fumar ganja. Quando esteve entre os Rastas, por diversas vezes, nos anos 1970, a antropóloga Carole Yawney notou que os irmãos procuravam se retirar da vista da polícia e de possíveis delatores afim de utilizar a ganja (YAWNEY, 1 Há, entre os Rastas, a noção de que Jah – o I – fala através do Homem – o

também I. Tal ideia parece estar inscrita também no conceito nativo de countenance, conceito este do qual irei tratar em outra oportunidade.

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-xxiii-1977). O verso onde Bugins afirma que seus irmãos estavam mentalizando suas pessoalidades remete ao ato de fumar ganja, a erva sagrada que evoca JAH, prática importante para os Rastas da qual trato

no segundo capítulo desta dissertação.

Note que há um verso onde fiquei em dúvida se a palavra cantada é chapter ou chapel. Embora os termos possam parecer distantes sonoramente eles podem remeter a uma ideia comum. A palavra chapter, capítulo, serve para descrever uma reunião de clérigos. A palavra chapel, capela, serve para nomear pequenas igrejas. Digo que as palavras se aproximam porque ambas remetem a assembleias clericais. No caso dos Rastas, entretanto, a noção de igreja não remete a uma construção, a um prédio: na perspectiva dos irmãos o corpo do Homem é a igreja, o templo do Deus Vivo. No Livro de João (2:19) Jesus se refere a seu corpo como um templo, e no Livro do Apocalipse (21:22) Deus fala através de Jesus, que fala através de João, que o Senhor Todo-Poderoso e o Cordeiro, que é Cristo, são o templo. Na perspectiva Rasta, Selassie I, o Cordeiro reencarnado na forma do Leão Conquistador da Tribo de Judá, escolheu o corpo do Homem para viver após se retirar fisicamente da Criação, ideia que retomo adiante.

Antes de prosseguir, uma palavra para justificar as escolhas da tradução do termo I. A forma como os Rastas empregam este conceito extravasa a noção pronominal do eu. Além disto, as noções rastafari de eu e de pessoa extrapolam a gramática da língua inglesa. O I da fala rastafari não é o mesmo “I” do idioma inglês. Ao longo das páginas que seguem eu traduzi o termo, por vezes, como eu, mas em outros casos mantive I para evocar a potência polissêmica deste conceito nativo rastafari.

*****

Certa vez um antropólogo se encontrava em campo, entre Rastas, entregue a uma atividade que os irmãos e irmãs praticam cotidianamente: a leitura dos textos bíblicos, narrativas que os Rastas reconhecem como suas histórias. O pesquisador, entretanto, não lia as passagens da mesma maneira que os irmãos costumam fazer. Ao invés de pronunciar as palavras ele apenas lia os trechos mentalmente. Ao perceber isto, o irmão com quem ele estudava os textos sagrados o ensinou que para poder compreender as verdades e as contradições

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existentes nas palavras é necessário pronuncia-las em voz alta. Os Rastafari nos ensinam que as palavras são sons e poder, como sugere a expressão word sound power, expressão nativa acionada de forma recorrente para se referir a conceitos e a narrativas. A importância e o poder dos sons para os Rastas será retomada no primeiro capítulo desta dissertação.

O Rasta que ensinou o antropólogo a ler lhe disse, numa outra ocasião, que há palavras boas que fazem o Homem enxergar de maneira correta, mas há também aquelas que o fazem olhar na direção errada. Ele o ensinou ainda que ler em voz alta é um processo onde as palavras mortas são transformadas em sons vivos. Há de se notar, ainda, que o Rasta sugere uma relação entre a visualização das coisas e a pronúncia das palavras. Cite é a palavra que o Rasta usava para se referir à leitura das narrativas bíblicas. Pode-se traduzir a palavra como citar. Mas a forma como se pronuncia cite – sait – é a mesma forma como se pronuncia sight, palavra que pode ser traduzida como visão. O Rasta ensinou isto ao antropólogo através da recitação de trechos do Apocalipse, um livro que considerava bastante visual.

Eu gostaria de convidar o leitor a empregar esta técnica de conhecimento rastafari para ler esta dissertação. Sugiro que leia este trabalho em voz alta, pronunciando as palavras afim de tentar perceber as inevitáveis contradições que eu possa criar em minhas narrativas. Pronunciar as palavras também vai ajudar o leitor a se familiarizar com as formas como os Rastas as pronunciam e como eles as desmontam e remontam foneticamente.

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-xxv-Introdução

Trata-se de seguir, nesta dissertação, algumas formas através das quais Rastas traduzem em suas narrativas, seus corpos e conceitos as suas experiências, suas expectativas, sua história, seus conflitos e dissensos. Logo de partida é bom destacar que não pretendo realizar um trabalho sobre o Rastafari pois não considero a antropologia acadêmica, disciplina a cujos métodos e teorias me refiro para empreender a pesquisa cujos resultados apresento neste texto, superior à antropologia nativa. Eu não pretendo (re-)produzir aqui aqueles tipos de antropologia "que o Ocidente emprega, a fim de dar sentido, definir, descobrir e tornar inteligível como um mundo" nativo opera (MAGUBE e FARIS, 1985: 93 apud FAYE 1997: 1). O que eu procuro através das páginas que seguem é aprender formas rastafari de articular condições de sentido. Estou interessado nos processos de significação deles.

Não estarei apresentando aqui os Rastafari, mas minha interação com eles através de seus modos de traduzir suas vivências. Cabe frisar desde já que esta interação se deu através do intermédio de etnografias, sociologias e histórias; artigos de jornal, canções e romances; filmes e documentários. Embora a Jamaica e os Rastas jamaicanos sejam referências recorrentes nas páginas deste texto eu ainda não tive a oportunidade de viajar para a Jamaica. Um marco de referência na história do Rastafari remonta à cidade de Kingston, capital da Jamaica, nos anos 1930, quando Leonard Howell e alguns seguidores passaram a reconhecer Haile Selassie como Deus. Desde essa época muitas outras pessoas ouviram a voz de Jah e passaram a caminhar em sua companhia. Hoje, na Jamaica, há a Ordem Nyahbinghi, a Ordem Bobo Shanti1 e as Twelve Tribes of Israel, além de algumas ordens 1 Há diferenças – e diferenciações – significativas entre os Nyabinghi e os Bobo Shanti e há diferenças também nas formas como não-rastas percebem os irmãos ligados às diferentes ordens. Enquanto os Nyahbinghi costumam usar seus dreadlocks soltos, por exemplo, os Bobo geralmente os acomodam em turbantes. Estes últimos também costumam vestir túnicas, e não apenas durante os serviços sagrados. Entre os Nyabinghi, entretanto, os turbantes e as túnicas são menos usuais. Há de se reparar, também, que enquanto os Nyabinghi buscam se separar dos não-rastas através de seus modos de ser muitos dos irmãos continuam a viver nas cidades e nas áreas rurais jamaicanas, em meio aos não-rastas. Os Bobo Shanti, por sua vez, vivem numa comunidade rastafari

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-27-menores. Há também ordens rastafari fora da ilha caribenha. Minha atenção está voltada, nesta dissertação, para fontes jamaicanas, mas recorri também a algumas fontes de outros locais. Meu interesse pelo material jamaicano foi despertado e continuou aumentando por conta das críticas nativas ao colonizador e ao seu idioma, críticas com as quais fui me deparando ao longo das leituras, das canções, dos filmes e documentários que apresentam vozes rastafari. Os Rastas jamaicanos têm o inglês como “língua-madrasta”, já que as suas línguas originais africanas foram arrancadas e um idioma rastafari ainda está para ser construído.

Esta dissertação está dividida em três capítulos seguidos de uma breve nota de fechamento, a título de encerramento momentâneo desta pesquisa. Digo momentâneo pois eu pretendo voltar aos Rastas. Dediquei o primeiro capítulo a pensar algumas narrativas através das quais os Rastas apresentam histórias de si, do Criador, da Criação e de seus Outros. Barry Chevannes (1994:2) registrou em Rastafari: Roots and Ideology que a história do Rastafari começa com o cativeiro nas plantations do período colonial. Nas meditações e nas canções2 dos irmãos e irmãs, entretanto, a I-storia começa bem antes, quando JAH

ofertou ao Homem a Criação – a Terra. O cativeiro em terra estrangeira e a escravidão moderna têm lugar de destaque nas narrativas rastafari, mas eventos e tempos anteriores também têm a mesma importância. A invasão da África, os processos de escravização dos africanos e a desumanidade dos navios negreiros também são motivos recorrentes nas meditações rastafari. Há um poema do Rasta Samuel Clayton que traduz alguns destes temas:

Greetings from the Rastafari Saudações dos irmãos Rastafari, Brethren, still domiciled in the ainda domiciliados na antiga former Slave, Plantation-Isle ilha-plantação-escravista Jamaica Jamaica where we were para onde fomos carregados

próxima a Kingston. Apesar de terem escolhido uma forma de separação espacial, os Bobo têm por hábito convidar não-rastas para atender aos serviços sagrados e compartilhar de seu espaço e alimento (CHEVANNES, 1994). Para mais reflexões acerca das diferenças entre as ordens rastafari ver BARNETT, 2005.

2 Meditação e canção são termos nativos que apresento no primeiro capítulo

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“carried beyond”3 our de nossas fronteiras. Não por livre borders. Nor by freewill, vontade, mas por força, força como but by force, force like in em 1565 quando John Hawkins ganhou 1565 when John Hawkins a permissão real da Rainha Elisabete I was given a royal charter para trazer escravos da África para as by Queen Elizabeth 1st to Índias Ocidentais no navio particular bring Slaves from Africa dela, o “SS Jesus de Lubeck”

to the West Indies on her personal ship, the “SS Jesus of Lubeck”.

(CLAYTON, 2007)

Enquanto os nativos narram as suas raízes e as suas rotas partindo sempre da África, há uma certa insistência da parte de alguns antropólogos, historiadores e sociólogos em querer arbitrar as origens do Rastafari na Jamaica dos anos 1920 e 1930. George Eaton Simpson (1955), sociólogo estadunidense, foi o primeiro acadêmico a publicar um estudo acerca dele4 e vinculou suas origens ao Garveyismo (IBIDEM: 167). O sociólogo jamaicano Leonard Barrett (1997 [1972]: 68), no clássico The Rastafarians, sugeriu que seria impossível 3 Note a proximidade entre a pronúncia da expressão carried beyond, carregado

para além ou para fora, e a da palavra Caribbean – Caribe. Numa aproximação

sonora uma inscrição histórica e política: Caribbean; Carried Beyond Africa,

Carried Beyond Home.

4 Nas quase cinco páginas do breve ensaio ele apresenta o Movimento como um culto messiânico atrativo para sociólogos e antropólogos por conta do interesse destas áreas de conhecimento nos “aspectos contra-aculturativos dos cultos messiânicos e dos movimentos nativísticos” (SIMPSON, 1955: 167). À época da publicação a noção de que a cultura era algo que podia ser perdido, guardado ou restaurado – como uma joia – ainda era cara aos campos da antropologia e da sociologia e conceitos durkheimianos como anomia e herskovitsianos como

aculturação estavam em voga. Simpson conheceu o Movimento Rastafari em

1946, quando esteve na Jamaica pela primeira vez, e realizou trabalho de campo entre os irmãos em 1953, tendo retornado mais seis vezes à ilha caribenha entre este ano e 1985, quando publicou Religion and Justice: Some Reflections on the

Rastafari Movement (SIMPSON, 1985). Nos anos 1950 ele se deparou com

pequenos grupos que congregavam de um punhado de irmãos a centenas deles, sendo algumas das organizações nomeadas por Ethiopian Coptic League,

United Ethiopian Body, Ethiopian Youth Cosmic Faith, United Afro-West Indian Federation – de quem simpson tirou fotos; ver a figura 3 no capítulo 2 –

e African Cultural League (SIMPSON, 1955: 167). Havia também irmãos e

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-29-compreender a emergência do Rastafari se não nos voltássemos ao etiopianismo da Jamaica setecentista. O historiador e sociólogo Rex Nettleford (1976: vii) afirma que o Rastafari é um fenômeno originado “na história moderna e na sociologia da plantation americana (…) da qual a Jamaica e o Caribe fazem parte”. Para Barry Chevannes o Rastafari tem origens na plantation e no revivalismo, tradição religiosa jamaicana que lhe seria “anterior” (CHEVANNES, 1994; 1995).

Diferentemente destes autores, quero prestar mais atenção aos Rastas; quero lhes dar meus ouvidos e não lhes dar voz. Eles não precisam de ninguém que fale por eles e ninguém deveria ter autoridade para falar no lugar dos Outros. Confesso que não estou preocupado em seguir – e muito menos em definir – as origens do Rastafari. Me interesso, porém, em contestar a ideia de que ele é o produto de alguma configuração sócio-histórica ou sociocultural. Eu creio que é preciso levar os nativos a sério, como nos ensinou Lévi-Strauss, e pensar nas formas como eles produzem seus modos de existir e de pensar. Nas leituras e comentários de trechos bíblicos durante as reasonings, nos cânticos Nyahbinghi, nas canções de reggae e na fala cotidiana narrar a história de JAH e de seu povo são recorrentes. Porque é importante para

os Rastas citar e re-citar estórias do Criador e de sua Criação? Porque e irmãs que Haile Selassie como Deus encarnado e se auto-intitulavam Rastafari mas não estavam ligados a nenhuma ordem. Nos anos 40, 50 e 60 os Rastas experimentavam forte hostilidade de vários setores da sociedade Jamaicana. A aversão partia desde pessoas pobres até os mais privilegiados economicamente. O romancista jamaicano Roger Mais registrou em sua obra Brother Man, de 1954 (MAIS, 2006 [1954]), algumas impressões que Simpson (1955) também teve em seu trabalho de campo: irmãos e irmãs eram xingados e molestados nas ruas de Kingston, por vezes eram atacados a pedradas. Na época os dreadlocks, os cabelos crescidos livremente que formam tranças, ainda não eram tão comuns entre os irmãos e irmãs, mas os homens já costumavam cultivar suas barbas, algo que os distinguia entre a população. Desde aquela época até os dias de hoje o Rastafari chama a atenção por ser um movimento não-centralizado: não há um líder, uma organização formal – embora Simpson tenha falhado em perceber isto, como aponta OWENS (1977: 151). Há, hoje em dia, outras Ordens, mas a não-centralização conhecida por Simpson nos anos 1940 e 1950 parece continuar. Após os estudos de Simpson o Rastafari voltou às discussões acadêmicas em 1960. começou a experimentar uma escalada da repressão que culminou na prisão de treze Rastas sob a acusação de Traição por supostamente disseminarem o terrorismo e o nacionalismo africano. O Movimento também foi acusado, à época, de ter participado dos eventos que levaram Fidel Castro ao poder em Cuba. Tamanha foi a repercussão do caso que o New York Times

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como os Rastas se diferenciam de outros coletivos que também reconhecem na Bíblia a sua história? Como os Rastas falam da relação de seus outros com O Livro que consideram narrar a sua história? A Bíblia dos Rastas é a mesma Bíblia dos Cristãos? Estas são as questões-guia do primeiro capítulo desta dissertação.

O segundo capítulo é dedicado a pensar as noções rastafari de corpo e pessoa. O sociólogo jamaicano Horace Campbell (1985: 4) afirmou, em seu clássico Rasta and Resistance que rejeitava “as análises superestruturais dos dreadlocks, das barbas e do cachimbo5 [num] esforço de entender [grasp] os processos e ideias que levaram ao desenvolvimento dos símbolos particulares do Rastafari”. O vocabulário marxista de Campbell já sugere o enquadre e o tom de seu texto. Para ele política é algo que não pode ser articulado através de corpos. Meu argumento é diferente. Ao pensar e escrever este capítulo eu aprendi que uma das formas através das quais os rastafari se diferenciam da Babilônia e a enfrentam é articulada através da fabricação de corpos.

Os corpos rastafari e as narrativas nativas que tratam deles são campos de reflexão acerca de temas como temporalidade, relações sociais, espacialidade, moralidade, justiça, verdade e falsidade. Através do segundo capítulo eu procurei aprender um pouco de como os Rastas relacionam narrativas bíblicas, a ostentação de certas características físicas, seu modo de alimentação e a utilização da ganja à noção de pessoa. Também meditei na forma como os Rastas pensam e apresentam publicou um artigo dias depois da prisão dos irmãos. Nas linhas do jornal estadunidense o Movimento Rastafari foi descrito como um culto e os irmãos como cultistas. A violência física e simbólica sofrida pelos irmãos levou algumas vozes importantes do Movimento a procurar pesquisadores da Universidade das Índias Ocidentais afim de requisitar que estes estabelecessem um diálogo entre os dreads e a sociedade Jamaicana em geral, esclarecendo ao grande público a natureza, os objetivos e os meios do Rastafari. Atendendo ao pedido dos Rastas, Lewis solicitou a três antropólogos da UWI a realização de trabalho de campo junto aos Rastas afim de publicar num relatório aquilo que haviam vivenciado. Em 1960 foi publicado o Report of The Rastafari

Movement in Kingston (AUGIER et alii, 1960), a primeira monografia dedicada

ao Rastafari, e desde então a bibliografia referente a ele vem aumentando significativamente em termos de quantidade e qualidade. Para revisões bibliográficas do Rastafari na literatura ver OWENS, 1977; CHEVANNES, 1977 e NIIAH, 2005.

5 No original o autor utiliza chillum pipe, um dos nomes do instrumento que os Rastas utilizam para fumar a ganja, erva que reconhecem como sagrada.

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-31-o H-31-omem Negr-31-o e a negritude, uma característica c-31-orp-31-oral negativizada pelos discursos colonialistas que os irmãos e irmãs buscam positivar. O terceiro capítulo é dedicado a pensar o idioma rastafari, o Iyahric – pronuncia-se Aiáric. Nesta seção eu apresento algumas reflexões nativas acerca do inglês, a língua do colonizador da qual os Rastas são nativos sem assim o desejar. Para os irmãos e irmãs o idioma britânico é um instrumento de produção e reprodução de desigualdades entre o Homem; uma ferramenta para a escravização das pessoas. Re-traduzir a language of the master elegendo outros critérios para pensá-la e aciona-la, critérios diferentes daqueles eleitos pelos esforços coloniais, é uma forma de questionar a legitimidade tanto da linguagem quanto daqueles que a adotam. Na re-tradução rastafari palavras como man, understand e I são potencializadas afim de acionar significados Outros. Não se trata de um simples processo de substituição de signos – re-wording, para utilizar a expressão de Jakobson (1960: 63). A tradução rastafari do inglês é um constante processo de reflexão que também remete a noções de temporalidade, de direito, de relações sociais etc.

Ao escrever esta dissertação eu experimentei algo que Carlos Casteñeda descrevera num de seus livros que narram os aprendizados que ele teve com Don Juan, um indígena Sonora. Os conceitos dos nativos e as suas formas de acioná-los acabaram balançando e desestabilizando as minhas conceitualizações. Castañeda registrou que o conhecimento nativo deve ser analisado através dos termos que eles utilizam para descrevê-lo, e que apenas nestes termos ele pode ser evidenciado (CASTAÑEDA, 1985 [1968]: xxxiv). Para mim esta formulação do antropólogo peruano é um convite a elucidar conceitos nativos e acioná-los na reflexão etnográfica, prática que vem sendo defendida com ênfase na antropologia contemporânea (e. g. VIVEIROS DE CASTRO, 2002; HOLBRAAD, 2009).

Antes de prosseguir ao primeiro capítulo eu preciso ainda tecer alguns breves comentários acerca de três conceitos que abundam na literatura que trata do Rastafari. O primeiro conceito é religião. Na monografia pioneira de Smith, Augier e Nettleford o Rastafari foi descrito como um movimento profundamente religioso (SMITH et alii, 1960: 29). Mais de 15 anos após este trabalho Rex Nettleford (1976: vii) voltou a se referir ao Rastafari como um movimento de “contornos religiosos”. O Padre Joseph Owens (1976: 8) também tratou o Rastafari

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como uma religião6. A noção de religião remete a uma série de oposições binárias que ocuparam e continuam ocupando os debates antropológicos acerca da natureza e da finalidade das práticas e experiências que se costuma classificar como religiosas. Pares como crença e conhecimento; racionalidade e irracionalidade; pensamento primitivo e pensamento moderno são alguns dos polos nos quais estão centradas estas discussões.

Uma forma possível de conceber a ideia de religião é voltar-se à etimologia da palavra, como sugere o filósofo francês Jacques Derrida (2002) em Fé e Conhecimento. Para ele, ao menos duas genealogias do vocábulo são possíveis e também problemáticas. A primeira diz respeito à derivação da palavra latina legere, que pode ser traduzida, entre outras formas, como colher, escolher, selecionar, reunir, congregar. A segunda liga a palavra religião ao radical também latino religare, que pode ser traduzido como vincular, ligar, atar (DERRIDA, 2002a). O filósofo francês dá mais crédito ao primeiro caminho etimológico assim como Giorgio Agamben, que chega a classificar a etimologia que remonta ao radical religare como “insípida e inexata” (AGAMBEN, 2007: 66).

Eu prefiro não me referir ao Rastafari como uma religião por conta de dois motivos, ambos de caráter etnográfico. O primeiro deles é o fato de a palavra religião não ser utilizada pelos nativos para se referir nem a seu modo de conhecer e nem a seu modo de viver. O segundo motivo leva em conta a noção cristã de religião, que remete ao radical religare. Os cristãos pensam em sua religião como um modo de se religar ao Criador. Ora, para os Rastas o elo com Deus jamais foi perdido! Ele habita o corpo do Homem, como sugere a expressão nativa I n I, que será pensada no terceiro capítulo desta dissertação.

O segundo conceito que eu gostaria de comentar é aquele de 6 É possível entrever seu fervor católico na seguinte frase: “O Rastafarianismo é

uma religião; é uma forma de conhecer no sentido mais profundo” [“ Rastafarianism is a religion; it is a way of knowing in the deepest sense”]

(OWENS, 1976: 8). Devo destacar que a leitura da etnoghrafia do padre Owens me surpreendeu positivamente. Ao longo das páginas que registrou fica evidente o respeito do pesquisador para com seus interlocutores e a admiração que nutria pela filosofia rastafari. Chama a atenção, em especial, o cuidado com o acionamento e com a descrição de termos e narrativas nativos, algo que busquei tomar como lição. O fato de ele ter descrito o Rastafari como uma

religião no sentido de uma forma profunda de conhecer serve como uma

medida do quanto ele buscou levar os nativos a sério.

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-33-crença. Para Leonard Barrett o Rastafari é um “movimento messiânico”, “um culto” (1997 [1972]: 1), um “sistema de crenças” (IBIDEM: 103). Barry Chevannes também trata as histórias dos Rastas como “crenças”: “[eles] acreditam que todos os africanos na diáspora estão apenas exilados na Babilônia”. Quando eu penso nestes exemplos logo me vem à cabeça um texto de Bruno Latour onde ele critica a noção de sistemas de crença por conta das assimetrias promovidas através de seu acionamento. O ano era 1996 e o pensador francês já assinalava que em antropologia já não estudamos sistemas de crença, mas sistemas de verdade (LATOUR, 1996: 5). Em verdade não seria preciso evocar um nome tão importante da antropologia acadêmica para criticar a hierarquia constituída pelo binômio crença x conhecimento. Os Rastas também nos ensinam que a noção de crença não é algo positivo. Numa de suas canções Bob Marley já abordara esta questão: “Brothers, you should know/ And not believe” – “Irmãos, vocês devem saber/ E não acreditar” (MARLEY, 1979: faixa 8). Este ensinamento também foi dado a um antropólogo por uma irmã Rasta. Ela o ensinou que o Homem Negro conhece as coisas, que ele não acredita nelas.

O terceiro e último conceito que eu gostaria de comentar é aquele de movimento. Não há um texto que trate do Rastafari que não o tenha descrito como um movimento. Os nativos também falam do Rastafari como um movimento, mas é preciso levar em conta que esta noção é diferente dos possíveis significados com os quais as sociologia, as histórias e as antropologias acadêmicas possam querer preencher o termo. Os irmãos e irmãos falam do Rastafari como o movimento do povo escolhido de JAH, o Criador. As formas como acionam a noção de

movimento remetem à ideia de deslocamento, de caminhada, de afastamento da Babilônia e aproximação da terra santa, a Etiópia. Trata-se de um movimento de êxodo físico e mental do cativeiro em terra estrangeira. Esta noção de terra estrangeira, por sua vez, evoca também a noção de conceitos estrangeiros, conceitos domesticantes, conceitos dos quais os Rastas querem se desprender. No que segue eu procuro apresentar algumas das formas através das quais os irmãos e irmãs buscam este desprendimento do colonizador.

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CAPÍTULO I

Canções de Redenção:

Versões Rastafari da História

"And ye shall know the truth, and the truth shall make you free" John 8:32

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Narrar estórias de JAH, de sua Criação e do Homem é algo

que os Rastas fazem de forma recorrente em sua canções e meditações. Pensemos na forma como os irmãos concebem estas duas noções, cantar e meditar. Quando pensamos em cântico e em cantar, as primeiras coisas que vêm à cabeça podem ser: 1) um modo de utilizar a voz distinto daquele como fazemos usualmente; 2) um modo de falar destinado a fins específicos, tais como o entretenimento ou práticas rituais; 3) um modo de utilizar a voz que se vale de uma forma estética musical. Nestes três modos apresentados de pensar a noção de cantar há algumas relações em comum: 1) cantar é sempre algo excepcional, 2) a fala usual não é necessariamente marcada por uma estética sonora; 3) a sonoridade ou musicalidade das palavras parece importar apenas quando elas são acionadas de forma excepcional, como nos cânticos.

Para os Rastas, entretanto, as palavras são sons que tem poder, como sugere a expressão word sound and power, que empregam de forma recorrente. Note-se que não há separação entre word e sound com vírgula. Sound é um conceito nativo rastafari que serve para descrever a noção de palavra. Encadear palavras-som, por sua vez, é descrito pelos irmãos como chant, cantar, e as falas das pessoas são classificadas como chants, cânticos1.

Quando os jornais jamaicanos começaram a divulgar notícias com a morte de Hailie Selassie I, em 1975, Joseph Owens ouviu de um interlocutor que “I-n-I no really take that sound from them”. Esta frase, “I n I não aceita como realidade este som deles”, pode ser traduzida como “I n I não aceita as palavras deles como realidade”. O impacto destas notícias entre os irmãos e o evento no qual este enunciado foi proferido serão descritos abaixo, em outra sessão deste mesmo capítulo. Guardemos, por enquanto, a ideia de que os Rastas traduzem as palavras como sons. Há mais. Numa das reasonings das quais Barry Chevannes participou, alguns Rastas se referiram a falas – falas suas e falas de seus Outros – como chants, ou cânticos (CHEVANNES, 1994: 212-214). Um dos Rastas que participava desta reasoning também se referiu a palavras – palavras de Selassie ao governo jamaicano, inclusive – como sounds (IBIDEM: 213).

1 Esta lógica de sons, cântico e fala será retomada no terceiro capítulo deste estudo, onde penso, a partir de um ponto de vista rastafari, lógicas fonéticas e semânticas do idioma inglês e apresento alguns dos esforços tradutórios dos irmãos afim de fabricar uma língua para si.

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Voltemo-nos agora à noção de meditação. Meditar, da forma que os Rastas o fazem, não consiste em passar momentos em silêncio individual ou coletivamente. Certa vez um velho Rasta ensinou a um antropólogo que toda vez que o Homem fala ele pratica reasoning, que é um estilo rastafari de meditar através da recitação de palavras (PULIS, 2000 [1994]). To reason2 é um conceito utilizado pelos Rastas para

descrever a prática de refletir através das coisas da Criação. Aqui através remete a duas ideias: primeiramente à ideia de curso, de deslocamento, inspirada na noção de que a vida dos Rastas como caminhada através da Criação guiada por JAH3. A noção de através

também tem a ver com a ideia de ir por intermédio de algo. A reasoning rasta remete, portanto, à ideia de deslocamento pela Criação. Numa canção intitulada Rastaman Live Up, Bob Marley registrou uma ideia de meditação no estilo reasoning:

Trodding through Creation Caminhando através da Criação In a I-rie meditation Numa meditação I-rie

Seen many visions Vi muitas visões/ Muitas visões vistas Ina this ia Armageddion Neste Armagedom aqui

(MARLEY e PERRY, 1978: faixa 1)

2 Embora Barry Chevannes defina as reasonings como processos rituais e empregue a categoria de drama ritual, cunhada por Victor Turner, em suas descrições e análises das mesmas (CHEVANNES, 1994) eu preciso discordar. A forma como o antropólogo jamaicano enquadrou suas descrições das

reasonings levam o leitor a pensar nesta prática como momentos

excepcionalmente ritualizados, onde os participantes distribuem papeis simbólicos uns aos outros; papeis estes que seriam representados de forma acentuada através do uso de violência verbal e linguagem codificada. Eu comecei a repensar a interpretação de Chevannes a partir de uma fala que um nativo dirigiu a um antropólogo: When I talk I reason. Eu hesito em traduzir

reasoning como raciocínio e reason como razão por conta de uma série de

maus-entendidos que existem em torno das noções de razão. Cabe enfatizar, entretanto, que a reason dos Rastas é algo muito diferente da Raison daqueles que uma certa antropologia vem chamando de Modernos. A reason rastafari aciona e é acionada através de condições de sentido outras: outra moralidade, outra poética, outra política.

3 Nas narrativas bíblicas aqueles que seguem as prescrições do Criador são descritos como pessoas que andaram pelos Seus caminhos. A noção de que a

vivência é uma caminhada me parece apontar para um processo de tradução

rastafari de uma metáfora bíblica.

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-37-Marley canta que numa meditação I-rie, termo que remete a todas as coisas positivas, ele caminha através da Criação e vê as coisas que acontecem. Passado, presente e futuro estão relacionados na palavra Armagedom, assim como o conhecimento das coisas está relacionado à meditação. Peter Broggs, numa canção chamada A Feeling, também evoca algo destas noções:

As I trod through the valley Enquanto o I caminha pelo vale

Oh, JAH! Ó, JAH!

A feeling reach I Um sentimento alcança o I I can't remember Eu não me lembro Feeling só I De já ter me sentido tão I

In the blessed spirit Rastafari! No abençoado espírito do Rastafari

(…) (…)

So forward I n I Então guie I n I em frente

Trodding out of Babylon Caminhando para fora da Babilônia (BROGGS, 1982: faixa 1)

Nesta canção-meditação Broggs descreve a si como um caminhante num vale. Ele não deixa claro se se trata do Vale de Jeosafá ou do Vale da Sombra e da Morte, mas afirma que caminha sob os auspícios de JAH, rumando para fora da Babilônia.

Antes de prosseguir, uma palavra acerca da escolha da tradução do quinto verso, “so forward I n I”, que transformei em “Então guie I n I em frente”. A escolha da tradução de forward como guie-nos em frente precisa ser um pouco mais detalhada. Trata-se de levar em consideração a ideia Rastafari de que o homem deve sempre andar para a frente, em direção aos Portões de Sião, e nunca para trás, de volta à Babilônia. É Max Romeo quem canta:

One step forward Um passo para a frente, Two steps backward Dois passos para trás Down inna Babylon [Caiu] na Babilônia

One day, you are dreadlocks Um dia você é um dreadlock Well dread! Bem, Dread!

Next day you are baldhead No dia seguinte você é um careca4 4 A palavra baldhead é um termo nativo acionado para se referir aos não-rastafari . Este termo marca uma distinção entre os Rastas, que deixam seus cabelos

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Cliche Cliché

Onward, forward A diante, para a frente Don't step backward Não ande para trás

Step out of Babylon! Caminhe para fora da Babilônia! (ROMEO, 1976: faixa 1)

Num dia o homem é um Rasta, um dreadlock, um passo em direção a Sião. No dia seguinte ele abandona o Rastafari, torna-se seu oposto, um baldhead, o que significa voltar dois passos atrás. A ideia de que é necessário, em sua caminhada, afastar-se da Babilônia também é evocada através da palavra step, pisar. Assim como Peter Broggs e Bob Marley, que utilizaram em suas canções a palavra trod, caminhar, Max Romeo também remete seu interlocutor à ideia de que na vida se anda a pé com vistas a se deslocar pela Criação. Voltemo-nos, enfim, à adição do termo guie-me em minha tradução da letra escrita por Peter Broggs. Eu não sabia como fazer jus à beleza do verso e me pareceu que traduzi-lo como “Então em frente I n I” seria uma redução de sua intentio, especialmente por me parecer que ele clama a JAH para fazer I

n I seguir em frente. Os versos que omiti, substituindo por reticências entre parênteses, são um clamor por forças e um agradecimento: “So give I power, give I strenght/ And for this daily bread I give thee thanks”. Em seguida vem o refrão: “So forward I n I/ Trodding out of Babylon”. Entendo, portanto, que o clamor por forças segue acompanhado por um pedido de que I n I seja guiado por JAH para fora da Babilônia. A ideia

de que JAH e sua palavra são guias é inspirada nas palavras de uma irmã

crescer livremente e formarem os nós conhecidos como dreadlocks ou dreads, e aqueles que não usam os dreads. O antropólogo jamaicano Barry Chevannes sugere que “entre 1953 e 1960 os dreadlocks eram uma norma entre os Rastafari, a ganja [cannabis] uma característica quase universal e o sentimento anti-branco cristalizado em torno do chamado Naiabingi, que os Rastas dizem significar 'morte aos opressores brancos' e uma dança de mesmo nome (CHEVANNES, 1977: 243, grifo no original). O antropólogo jamaicano também conta que um de seus interlocutores dissera-lhe, certa vez, que a utilização de dreadlocks era uma atitude com vistas a chocar a sociedade jamaicana que tomava os Rastas como párias. Ainda segundo o interlocutor de Chevannes, os próprios Rastas assumiam o estatuto de párias [outcasts] reivindicando pertencimento ao continente africano, e não ao país caribenho ou à Coroa Britânica, para onde teriam sido levados a força (CHEVANNES, 2002). No capítulo seguinte desta dissertação eu retomarei questões relativas aos dreadlocks, à negritude e à africanidade.

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-39-Rasta: “It's a guide, a guide and a lamp to your foot” [“É um guia, um guia e uma lâmpada para o teu pé”] (LEIB e ROMANO, 1979).

As canções de Broggs e Marley, assim como a canção de Max Romeo, sugerem que é possível e necessário se afastar da Babilônia não apenas de forma física, mas também de forma mental. Mas além de tratarem de meditação e deslocamento, as três canções também remetem a processos e eventos históricos. Marley, através das palavras Criação5 e

Armagedom, remete-nos ao início dos tempos, quando JAH criou tudo, e

ao final deles, quando os justos serão finalmente separados dos ímpios no julgamento que tomará lugar no Vale de Jeosafá. Broggs pede forças para sair da Babilônia, terra estrangeira onde o povo escolhido de JAH

foi escravizado. Max Romeo também evoca o cativeiro em terra estrangeira através da palavra Babylon. Consideremos, então, algumas narrativas da história da Criação e do Homem em versões rastafari.

1. “I Dis Ya Version”

Tomo como ponto de partida o dissenso rastafari em relação às narrativas mitológicas da Conquista das Américas e da formação do Estado Jamaicano. Devo lembrar que a Jamaica foi colônia da coroa britânica até 1962, o que fez com que as narrativas oficiais da história da ilha caribenha tenham sido vinculadas às glórias de conquistadores europeus, especialmente aqueles ligados à Marinha Real Britânica. Através da educação formal, nos bancos escolares, e da educação informal se constrói uma noção de história da colonização da Jamaica onde pululam reis, rainhas e súditos heróicos; sirs e lords a quem se atribui grandes feitos. O louvor a estas figuras mitológicas também se desdobra na nomeação de locais públicos, na produção cinematográfica, no estabelecimento de feriados, na composição e recitação de hinos nacionais. Estas personagens e seus feitos são enaltecidas a ponto de serem convertidas em demiurgos medievais, dividindo a história com H maiúsculo entre o Velho e o Novo, liderando as hostes do progresso ao “fim da história”.

A versão da Conquista narrada pelas potências imperiais 5 Creation – Criação – ou I-ration são termos acionados pelos Rastas quando se

referem ao mundo. A noção de I-ration sugere uma relação genitiva: a Criação é a Criação do I.

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também relaciona a empresa colonial à batalha pela conversão dos chamados pagãos ao cristianismo, religião professada por todas as grandes nações europeias na época das grandes navegações. Levar a Palavra de Deus aos selvagens, diziam os colonizadores, era a missão-transmissão dos europeus. Salvar as populações nativas de seus modos de existir foi uma das tarefas das quais os demiurgos modernos foram investidos.

Eles reconheciam a si como o povo escolhido pelo Criador, aqueles que haviam herdado o pacto de Abraão. E como descendentes de Jafé teriam o direito de escravizar os africanos, descendentes de Cão – como supunham –, na forma que previra Noé ao amaldiçoar o filho. Trata-se, aqui, de traduções de duas narrativas do Antigo Testamento operadas pelas potências europeias em momentos diversos de sua empreitada colonialista. A primeira delas se refere ao mito do povo original criado por Javé, povo com o qual Ele fez um pacto sagrado. Em troca de louvor e fidelidade a suas prescrições, Javé ofertou a Abraão e a sua descendência o direito de reinar sobre a Criação.

O relacionamento da noção bíblica de povo escolhido com as nações cristãs europeias também foi operado através da produção iconográfica: no período renascentista, por exemplo, as personagens das narrativas bíblicas foram retratadas como pessoas brancas de fenótipo europeu. O conceito de Homem à época da Conquista relacionava a criatura de Deus à pele alva europeia. No teto da Capela Sistina, por exemplo, localizada no Vaticano, Michelangelo Buonarroti registrou uma versão europeia da criação do Homem por Deus. O Trabalho ficou pronto por volta de 1511, quase vinte anos após Colombo ter desembarcado nas Américas, e pode ser conferido pelo leitor na figura de número 1.

A maldição de Noé à descendência de um de seus filhos também foi acionada de forma recorrente pelos colonizadores europeus no processo de fabricação de hierarquias e justificativas para elas (CHEVANNES, 1994; DAVIS, 2006). Numa curta passagem registrada em Genesis 9:21-29 o patriarca bíblico amaldiçoa a prole de Cão, condenando-a à servidão eterna sob o domínio dos descendentes de Sem e Jafé, seus outros filhos. Durante a Conquista das Américas, afim de justificar a captura dos Africanos e o uso destes como mão-de-obra escrava nas plantations espalhadas pelo Atlântico, a narrativa de Noé serviu aos europeus como uma forma de relacionar a população europeia

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-41-a J-41-afé, tom-41-ado como o -41-ancestr-41-al dos br-41-ancos, -41-além de conect-41-ar os asiáticos a Sem e os africanos a Cão. Numa edição de 1472 da Etymologiae de Isidóro de Sevilha, o tipógrafo bávaro Günther Zainer imprimiu a primeira versão de que se tem notícia de um mapa que mostra esta divisão do mundo entre os descendentes de Noé, como mostra a figura 2.

Figura 1

Versão Quinhentista da narrativa contida em Genesis 1:26: “E disse Deus: Façamos o homem ã nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. Não é demais notar que tanto o Criador quanto suas criaturas, seus anjos e Adão, têm a pele alva e cabelos claros.

Assim como a iconografia renascentista inscrevia a Europa e o Homem Branco na História Sagrada, elegendo os nativos do continente como o povo escolhido, a geografia – ou cosmografia, como bem lembra Bernard McGrane (1989) – também tratava de construir um mundo onde os europeus eram privilegiados. Estas narrativas – visuais, orais e escritas – acerca do papel e dos direitos dos povos na Criação são contestadas pelos Rastas.

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Figura 2

Tradução medieval europeia do primeiro versículo de Genesis 10: “Estas, pois, são as gerações dos filhos de Noé: Sem, Cão e Jafé (...)”

Na percepção dos irmãos os textos bíblicos foram alterados pelos europeus afim de relegar o Homem Negro, o Homem Original6, ao papel de pária, de escravo. A escravidão em terra estrangeira sob o jugo dos falsos cristãos, que são os europeus, é um tema recorrente nas canções rastafari. Para os Rastas aqueles homens europeus que vieram para as Américas não realizaram esta empresa afim de espalhar e viver a Palavra Sagrada da Bíblia. Os irmãos reconhecem os europeus, sua empresa colonial, seus modos de viver e pensar como a Babilônia descrita nos textos sagrados.

As versões que os Rastas contam da história do processo de colonização das Américas é bastante diferente daquelas contadas por 6 A ideia do Homem Negro como imagem e semelhança de Jah será retomada no capítulo seguinte, onde trato a questão da construção do corpo e da pessoa rastafari.

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-43-seus Outros. Ao invés de grandes heróis e grandes feitos, bandidos, piratas e assassinos povoam as narrativas dos irmãos acerca da Conquista. Numa das canções mais conhecidas de Bob Marley ele conta que

Old Pirates yes they rob I Velhos piratas roubaram o I Sold I to the merchant ships Venderam o I aos navios mercantes (MARLEY, 1980: faixa 10)

Note-se que Marley descreve como piratas aqueles que os europeus louvam como heróis; os homens que iam às costas africanas comprar homens e mulheres escravizados afim de utilizá-los como mão-de-obra nas Américas. Numa das reasonings das quais participou, Barry Chevannes registrou um momento onde um Rasta se refere a Oliver Cromwell e outros britânicos notáveis da História da Conquista das Américas como piratas:

Shaka: This english pirate, Shaka: Esse pirata inglês, Oliver Oliver Cromwell which Cromwell que comandou o pirata commanded the pirate Admiral almirante Penn e Venables,Cecil Penn and Venables, Cecil Rhodes, Rhodes, John Hawkins, Livingstone John Hawkins, Livingstone... ...

Coro: Burn them! Burn Them! Coro: Queimem-os! Queimem-os!

Power! Poder!

(CHEVANNES, 1994)

Enquanto as narrativas oficiais criam um passado e uma História repleta de heróis cheios de honra, as narrativas dos Rastas evocam um passado onde estas pessoas são piratas, promotoras de injustiças e violência. De exemplos positivos nas narrativas oficiais, estas personagens passam a exemplificar coisas negativas nos cânticos rastafari. Há uma canção de Peter Tosh onde ele afirma que as estórias oficiais que são contadas aos jovens nas escolas são também responsáveis pela reprodução de mazelas históricas. Vejamos:

You teachin' youths Vocês ensinam os jovens To learn in school A aprender na escola

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You teach the youths about Vocês ensinam os jovens sobre Christopher Columbus Cristóvão Colombo

And you said he was E vocês dizem que ele foi A very great man Um grandessíssimo homem You teach the youths about Vocês ensinam aos jovens sobre

Marco Polo Marco Polo

And you said he was E vocês dizem que ele foi A very great man Um grandessíssimo homem You teach the youths about Vocês ensinam os jovens sobre The pirate Hawkins O pirata Hawkins

And you said he was E vocês dizem que ele foi A very great man Um grandessíssimo homem You teach the youths about Vocês ensinam os jovens sobre The pirate Morgan O pirata Morgan

And you said he was E vocês dizem que ele foi A very great man Um grandessíssimo homem So, Então

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You buy the youth Vocês compram para os jovens Fancy toy gun Belas armas de brinquedo

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Referências

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