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INTRODUÇÃO: NOSTALGIA IMPERIAL. Nostalgia imperial.

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COPYRIGHT © 2 0 1 3 RICARDO HENRIQUE SALLES COORDENAÇÃO EDITORIAL ALBERTO SCHPREJER PRODUÇÃO EDITORIAL PAULO CÉSAR VEIGA CAPA I LABORATÓRIO SECRETO

Este livro segue a grafia atualizada pelo novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor no Brasil desde 2009.

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) S166n

2. ed.

Salles, Ricardo,

1950-Nostalgia imperial : escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado / Ricardo Salles. - 2. ed. - Rio de Janeiro : Ponteio, 2013.

212 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia

ISBN 978-85-64116-62-7

1. Brasil História Império, 18221889. 2. Brasil Civilização -Séc. XIX. 3. Escravidão - Brasil - História - -Séc. XIX. I. Título. 13-05959 CDD: 981.04

CDU: 94(81)

PONTEIO É UMA MARCA EDITORIAL DA

DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA.

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Os direitos desta edição estão protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

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Em memória de Lygia e Waldemar Vieira

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Sumário

Prefácio à segunda edição 9

Agradecimentos 15 Apresentação 17 r

' I. Introdução: Nostalgia imperial 23

II. A Planta Exótica: O projeto político imperial 39 Historiografia e teorias da escravidão moderna 40 Civilização e projeto político imperiais 46

Projeto hegemônico imperial: Construção de uma ordem política 48 Projeto hegemônico imperial: A construção de uma política externa III. O Papo Amarelo do Tucano: A cultura imperial 65

Formação de um substrato cultural brasileiro 68 Nação, povo e escravidão 73

Literatura, arte e cultura imperiais 78

IV. "Louvam-se as pessoas e despedem-se com jantares" 95 As idéias liberais no Brasil Império: Fora do lugar? 97

As idéias liberais na Europa na primeira metade do século XIX 98 Idéias liberais, cidadania e escravidão 101

O efeito ideológico: Hegemonia e incorporação 113 O efeito ideológico: Hegemonia e dominação 119 V. "Uma questão de forma e oportunidade" 131

Emancipacionismo: Antecipação e flexibilidade 133 Apogeu imperial: Crise de hegemonia 139

Abolicionismo: A reforma frustrada 146 República: Loteamento do poder 157 VI. Conclusão 161

Notas 165 Bibliografia 199

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I. Introdução: Nostalgia imperial

A imagem de nosso país que vive como projeto e aspiração na consciência coletiva dos brasileiros não pôde, até hoje, desligar-se muito do espírito do Brasil imperial; a concepção de Estado figurada nesse ideal não somente é válida para a vida interna da nacionalidade como ainda não nos é possível conceber em sentido muito diverso nossa projeção maior na vida internacional (Sérgio Buarque de Holanda).18

D e um modo geral, esta observação de 1936 permanece válida até nossos dias, já no limiar do século XXI. Como vimos, recentemente a idéia de uma restauração monárquica ganhou força, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista intelectual.

Interessa-nos a razão pela qual a "... imagem de nosso país que vive como pro-jeção e aspiração na consciência coletiva dos brasileiros não pôde, até hoje, desli-gar-se muito do Brasil imperial..." Em grande parte é o próprio alcance limitado do que poderíamos chamar a obra republicana o grande responsável pela sobre-vivência do espectro monárquico entre nós. Com efeito, a República, pelo menos até 1930, mostrou-se incapaz de elevar o país a patamares de progresso material, social e político que ela mesma havia acenado como seus compromissos.

*+*

Uma conjuntura intelectual e cultural muito particular e rica marcou o quadro de expansão do movimento republicano nas últimas décadas do século passado. Então, o regime monárquico, em que pese uma certa simpatia difusa pelo Imperador, era objeto de profundas críticas e era generalizado um senti-mento de que um Terceiro Reinado não tinha um futuro muito promissor. To-mara conta da vida espiritual do país a partir da década de 70, o movimento que ficou conhecido como "a Ilustração Brasileira".19 Então, como colocou

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os pontos do horizonte"20 e a noção de atraso em relação aos países capitalistas

centrais tomou conta da intelectualidade. Afinados com seu tempo, as idéias de evolução, progresso e atraso e a crença no papel positivo e impulsionador da ciência passaram a povoar a consciência destes intelectuais, que se lança-ram à tarefa de modernizar o país.

Uma certa simplificação cômoda, a posteriori, associou rapidamente, nesta conjuntura de crise do Império, modernização, abolicionismo, imigrantismo e republicanismo. Não só não havia unanimidade em torno de todas estas idéias, como elas não necessariamente habitavam lado a lado no universo intelec-tual da época. Machado de Assis, por exemplo, manteve-se cético e descrente das grandes inovações da ciência.21 Se o movimento republicano se inseria no

contexto da "Ilustração Brasileira", esta, contudo, não se restringia ao mesmo, tomando-o como um dado. Intelectuais "modernizadores" e ocidentalizantes de peso, como Joaquim Nabuco e André Rebouças, eram monarquistas e prega-vam as reformas sem alteração no quadro político-institucional do país. Tobias Barreto e o próprio iconoclasta Sílvio Romero permaneciam relativamente in-diferentes aos movimentos republicano e abolicionista que agitavam a vida política do país. Estes, aliás, em alguns casos, apresentavam-se quase como contraditórios de um ponto de vista prático.

Mesmo nascendo neste ambiente, a República não contou com o amplo apoio da população. Se, num primeiro momento, foram poucas e dispersas as vozes que se levantaram em defesa do antigo regime, isto não significou de imediato a legitimação da República. Ainda assim, esta, mesmo -que não legitimada, nasceu sob a aura do progresso, ao menos se tivermos em conta o discurso de seus fundadores, principalmente intelectuais.

Fruto de golpe militar sem apoio popular, em que pese a tentativa de José do Patrocínio de obter respaldo e legitimidade para o novo regime junto à Câmara dos Vereadores, a República não despertou aquela corrente de ener-gia que poderia permanecer por anos após um acontecimento que, ao menos em teoria, deveria mudar profundamente os destinos nacionais. Já se analisou o fracasso da República, em seus primeiros anos, em consolidar seus valores e símbolos no imaginário popular.22 A República, na verdade, foi uma

gran-de frustração, uma ducha fria nos ânimos que haviam se excitado nos anos mais ricos da "Ilustração Brasileira".23 Suas primeiras vítimas, excetuando-se,

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é claro, os monarquistas, foram os próprios arautos do novo regime, que cedo constataram que tudo permanecia o mesmo.24 Positivistas, evolucionistas e

cientificistas rapidamente decepcionaram-se com o novo regime. Políticos e oligarquias tradicionais terminaram por apossar-se do poder. A fé na ciência e no progresso mostrou-se incapaz de conduzir o grupo de intelectuais muito longe. Raul Pompéia matou-se em uma noite de Natal e Silva Jardim desapare-ceu no Vesúvio. Sílvio Romero e Euclides da Cunha25 acabaram por render-se

às teorias em voga que prescreviam a inferioridade racial de nosso povo mu-lato, afastando-se dos postulados positivistas de Aníbal Falcão, por exemplo, que viam na miscigenação e na síntese cultural, através da incorporação dos fetichistas negros e amarelos à civilização ibérica, a "fórmula geral do destino da pátria brasileira".26

Foi ainda Machado de Assis quem explicitou o desencanto e o esgotamento característicos do novo momento. Ele, que já ironizara as idéias de progresso e fé num futuro radiante, passou a propor uma literatura que se afastasse dos grandes debates políticos. Ao comentar as características da Academia Brasi-leira de Letras, Machado de Assis dizia que esta deveria ser como uma "torre de marfim" e que os acadêmicos "... podem escrever páginas de história, mas a história faz-se lá fora".27 Mesmo assim, em seu penúltimo romance, Esaú

e Jacó, a crítica sutil aos ingredientes ideológicos e morais da vida política nacional e, especificamente, a minimização do significado da emergência da República enquanto signo de mudança política profunda estão presentes. Em outra direção, o grande romance da época — mesmo que reconhecido a posteriori —, uma crítica ferina do novo regime e, em particular, do governo de consolidação republicana de Floriano Peixoto, é O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.

Mas somente a decepção republicana não basta para explicar a força da idéia monárquica. Está apresentava-se — e apresenta-se — não propriamen-te como realidade política da nação, mas como elemento de seu imaginário, como "projeção e aspiração na consciência coletiva dos brasileiros".

A valorização dos tempos da Monarquia não esperou muito para se fazer presente. Nos primeiros tempos da República, os monarquistas, para além da reação política e mesmo militar contra o novo regime, lançaram-se na batalha

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de conquistar o passado imperial contra o presente republicano. Já em 1899, iniciava-se a publicação da coletânea A década republicana. Uma série de en-saios, escritos por proeminentes figuras do movimento monarquista, analisava as realizações do Império em relação ao que o novo regime havia feito até então. Evidentemente, a comparação era em tudo desfavorável à República.28

A década republicana, entretanto, inscrevia-se nos embates políticos diretos entre tradicionais políticos monarquistas e o novo regime. A perspectiva dos monarquistas estava centrada no futuro imediato e nas esperanças de restaura-ção a curto prazo. Neste sentido, pouco se pode falar que diretamente tivessem produzido ou se inserissem em um sentimento nostálgico. Para eles, nem a República era um dado quase que imutável nem as esperanças de retorno ao regime imperial infundadas.

Muito diferente é o caso de duas obras do mesmo período que abordam temas do passado e da história do Império. Trata-se de Um estadista do Império e Minha formação de Joaquim Nabuco, respectivamente a biografia de seu pai, Nabuco de Araújo, e a sua própria autobiografia.

Figura exponencial do movimento abolicionista, monarquista, adepto de reformas econômicas, sociais e políticas e, até certo ponto, desvinculado dos círculos políticos tradicionais do Império, Joaquim Nabuco não estava dire-tamente envolvido com o movimento de reação monárquica que se organizou logo após a proclamação da República. Numa determinada medida, era mesmo evitado e excluído por seus articuladores, lideranças políticas monarquistas tra-dicionais que, até bem pouco tempo, haviam sofrido dura oposição por parte de Nabuco.29 Com sua carreira política interrompida em seu ápice pela

erup-ção da República e fortemente identificado com o regime monárquico, Nabuco lançou-se à tarefa de resgatar o passado imperial num sentido mais profundo que as polêmicas que então opunham monarquistas e republicanos.30 Em Um

estadista do Império, obra de história de fôlego, publicada em 1897, buscava explicitamente valorizar o significado do período imperial para a construção da nação brasileira ao mesmo tempo em que via cada vez mais escassas as possi-bilidades e mesmo a propriedade de uma restauração. Tratava-se de uma visão panorâmica sobre o período máximo do Segundo Reinado guiada pela análise da vida de seu pai, Nabuco de Araújo, político eminente do período.31 Em

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com as grandes conquistas do século XIX brasileiro, a Independência, a Unidade Nacional e a Abolição, Nabuco assim definia o quadro mental que o inspirara a escrever a vida do pai:

A nossa dinastia tivera em 15 de Novembro o que chamei uma assunção: vivera e acabara como uma encarnação nacional. (...) Quando eu pensava no papel representado pela casa reinante brasileira, Dom Pedro I, Dom Pedro II, Dona Isabel, e nas condições de unanimidade, espontaneidade, e finalidade nacional necessárias para ela o poder de novo desempenhar de acordo com sua lenda, o problema excedia a minha imaginação, e parecia-me um atentado contra a história querer-se acrescentar (...) um novo painel àquele tríptico...32

Deste modo, uma restauração, nos mesmos moldes de grandeza representada pelas três gerações de monarcas, não só aparecia como uma impossibilidade imediata devido à ausência das condições de "unanimidade, espontaneidade, e finalidade nacional", como a obra da Monarquia passava para uma esfera quase que mítica da história. Ela estava indissoluvelmente ligada aos destinos do país e à fundação mesma da nacionalidade. Aqueles teriam sido tempos de 1

grandeza e identificação com ideais maiores que dificilmente o novo regime poderia alcançar ou sobrepujar. Segundo Nabuco:

...durante os anos que trabalhei na Vida de meu pai a minha atitude foi insensi-velmente sendo afetada pelo espírito das antigas gerações que criaram e funda-ram o regime liberal que a nossa deixou destruir...(...). A Monarquia para aquelas épocas de arquitetos, pedreiros e escultores políticos incomparáveis, era uma bela e pura forma, mas que não podia existir por si só; o interesse, o amor, o zelo, o fervor patriótico deles dirigia-se à substância nacional, o país...(...). Para tais ho-mens, verdadeiramente fundadores, um terremoto poderia subverter as institui-ções, mas o Brasil existiria sempre, e à sua voz seria forçoso acudir...33

A Monarquia aqui, corporificada através de seus quadros políticos prin-cipais, era identificada com o país, com sua "substância nacional". Encerrada num passado imutável, ela deixara sua marca indelével que mesmo o terremo-to republicano poderia abalar, mas não apagar. Entrevê-se o terremo-tom nostálgico relativo a este passado heroico e de grandeza, de um regime a que a geração atual fora incapaz de dar continuidade.

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Do terreno do confronto político imediato passou-se para uma compara-ção histórica, até certo ponto implícita, abrangente. O regime republicano não era mais contestado em sua legitimidade política imediata. Havia sim uma contraposição ao significado e à dimensão da obra monárquica. Esta falaria por si e estendia a sua sombra muito além do que a República sequer pensava alcançar. A aceitação tácita da realidade política do novo regime era acompa-nhada por uma construção do passado imperial que em tudo diminuía, em sua dimensão histórica, a estatura da República que pusera por terra o regime que fora capaz de tão profundamente encarnar as condições de "unanimidade, espontaneidade, e finalidade nacional".

* * *

Uma geração de historiadores, ainda formada sob o Império, colocou-se a tarefa de escrever uma História do Brasil em que a continuidade entre o passado colonial e o Império independente era bastante acentuada e valori-zada. Capistrano de Abreu preocupou-se em desvendar pontos polêmicos do passado colonial através de uma crítica documental mais severa. Deste pon-to de vista, comenpon-tou a própria obra de Varnhagen, principal hispon-toriador do Segundo Reinado, e estabeleceu uma perspectiva mais original de estudo do passado colonial com mais ênfase nos motivos econômicos e sociais da colo-nização.34 Em comum havia a busca da compreensão da obra da colonização

portuguesa, com acento na sua paternidade do descobrimento e na expansão e ocupação do território para além dos limites estabelecidos pelo tratado de Tordesilhas.35Rio Branco, que mais tarde usaria seu vasto conhecimento

docu-mental sobre a ocupação do território no período colonial como apoio à sua obra diplomática de consolidação das fronteiras, já nos primeiros anos da Re-pública estabeleceu uma continuidade dos grandes acontecimentos da nossa história em seus períodos colonial e independente.36

O impacto da proclamação da República atuou no sentido de trazer com mais força para o presente o significado da obra imperial. Oliveira Lima, assim como Nabuco, integrante dos quadros da diplomacia republicana sob a batuta de Rio Branco, é talvez o exemplo mais claro neste sentido (além do próprio Nabuco evidentemente). Em nota introdutória explicativa a O império brasi-leiro dizia que seu trabalho não era "... a justificação de uma época ou gover-no, que dela não carece, porque consigo carrega seu fulgor moral". Durante o

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Império, a questão servil havia se resolvido de forma pacífica e legal, o regime parlamentar havia florescido, a ordem civil se impusera e uma política externa baseada em princípios fixos fora seguida, "O Império..." fora "...assim, deveras representativo e notável"37

A tendência de valorização do período imperial prosseguiu na geração se-guinte e praticamente se estendeu até os anos cinqüenta. Como exemplos desta tendência, podemos citar particularmente os nomes de Pedro Calmon, João Camilo de Oliveira Torres e Hélio Vianna38 que buscavam, numa história dos

acontecimentos, ressaltar os feitos das grandes figuras do Império ou ainda o caráter avançado da civilização brasileira naquele tempo.

Mesmo em autores que buscaram uma interpretação mais profunda e ori-ginal do nosso passado, como Gilberto Freire e Oliveira Viana, há, senão uma valorização, ao menos uma condescendência extremamente benévola em rela-ção ao período imperial analisado. No primeiro caso, tratava-se de uma análise da escravidão brasileira que buscava descobrir nesta aspectos positivos signi-ficativos que teriam marcado a formação de nosso povo. No caso de Oliveira Viana,39 as instituições políticas imperiais e a figura do Imperador D. Pedro II

eram contrastadas, positivamente, à ausência de uma formação mais sólida de nosso povo.

Finalmente, cabe ressaltar que a revisão mais crítica de nossa história, cujo marco essencial é a Formação do Brasil contemporâneo de Caio Prado Júnior,40

de 1942, detinha a atenção de sua análise na época colonial, relegando o Impé-rio quase que a uma continuação daquele período. Excetuando-se o clássico de Raimundo Faoro, Os donos do poder*1 podemos dizer que apenas mais

recen-temente, praticamente a partir dos anos 60, o século XIX brasileiro passou a ser revisitado pela nossa moderna historiografia. As instituições políticas imperiais c a grande produção cafeeira escravista passaram a ser objeto de análise, muitas vezes no sentido de se melhor compreender a própria formação do Estado brasi-leiro contemporâneo e a transição para uma economia capitalista. As décadas de 70 e 80 assistiram a uma significativa produção historiográfica em torno do tema do século XIX, particularmente no que diz respeito à análise da escravidão.42

* * *

Portanto, a influência de uma historiografia tradicional, que em parte pro-duziu uma visão do século XIX que estimulava um sentimento de nostalgia em

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relação àqueles tempos, ainda é recente e se faz notar. Contudo, o que estamos chamando de nostalgia imperial é mais uma causa desta produção historiográ-fica que seu efeito. É preciso mais que uma interpretação do passado — mesmo que ela seja um elemento essencial do processo — para que este possa estender sua sombra sobre o presente de forma tão duradoura. É preciso explicar como a sociedade imperial foi capaz de produzir uma imagem tão forte de si mesma, que ainda permanece presente "na consciência coletiva dos brasileiros"

A construção dos Estados-nações é uma das grandes questões que marcam a história ocidental no século XIX. Até aproximadamente 1880, contudo, a noção do que seria uma nação era ainda vaga e inserida no contexto do pen-samento liberal.43 O Estado-nação seria o grande elemento para a definição de

uma nação. Fatores como língua, etnia, raízes culturais etc. pesariam menos. Mesmo assim, a própria afirmação crescente dos Estados centralizados incen-tivou as iniciativas que buscavam em tradições mais remotas elementos que fortalecessem os laços e traços comuns de um povo. Ancorado nestas tradi-ções, este viria a se constituir em base de uma nação, por sua vez identificada com um Estado centralizado.

No plano cultural, esta situação correspondia aos tempos de predomínio do romantismo, em que nação e história, pela via política bem real de constru-ção ou consolidaconstru-ção dos Estados nacionais, estavam indissoluvelmente liga-das. Segundo J. Guinsburg, "... com o Romantismo e sua revolução historicista se enceta a era propriamente historiocêntrica da História".44 Então, uma das

questões centrais que se colocou para os historiadores foi a de determinar a singularidade dos povos e nações.

Assim, porque tudo se faz 'história' no Romantismo, a História se faz então 'realidade integrando historiograficamente o estudo do desenvolvimento dos povos, de sua cultura erudita e de seu saber popular (folclore), de sua persona-lidade coletiva ou espírito nacional, de suas instituições jurídicas e políticas...45

O fenômeno teve sua marca americana na afirmação das novas nações egressas dos processos de independência contra as antigas potências coloniais. Aqui, ainda mais, os fatores étnicos, lingüísticos e culturais teriam pouco peso pelas próprias características das sociedades coloniais ligadas em suas tradi-ções, folclore, língua e cultura às suas antigas metrópoles europeias. Mesmo

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assim, a cultura romântica estava presente e buscou compor o pano de fundo das novas nações.

No caso da América portuguesa, tratava-se de entender as raízes históri-cas de uma entidade chamada Brasil no momento mesmo de sua fundação. Intimamente identificada com o Estado central que há pouco consolidara seu poder sobre o restante do país, a tarefa que se colocava era a de produzir uma história fundada nas tradições, que demonstrasse a identidade entre o novo Estado e as raízes nacionais. No quadro histórico definido pela independên-cia recente das nações do Novo Mundo, colocava-se a questão de fundar uma tradição.46 Tradição que avaliava a sociedade imperial que havia resultado da

independência tendo como parâmetro um modelo europeu ocidental. Nesta avaliação, salientava-se o grau elevado de sua civilização, a estabilidade do jogo político parlamentar, a política externa e, já no Segundo Reinado, especial-mente a figura de D. Pedro II.

Varnhagen, o historiador oficial do Segundo Reinado e reconhecido como o fundador de nossa historiografia, foi praticamente o inaugurador desta tra-, dição, ainda que, em sua obra principal, só tenha tratado dos tempos coloniais e da independência- De uma maneira geral, podemos dizer que a produção historiográfica de Varnhagen47 visava acentuar a ligação entre a colonização e a

civilização europeias representadas pelo elemento português e a nova nação. A solução monárquica pós-independência era o elemento assegurador de conti-nuidade da carga cultural civilizatória luso-europeia colonial. A permanência da casa reinante dos Bragança era vista como a materialização mesma deste fato. Entretanto, o Império, através de seu domínio e subordinação, incorpo-rava os elementos próprios do Novo Mundo, a natureza e o selvagem, a esta tradição civilizatória.4*

A associação entre Romantismo, História e Nação já foi bastante enfatizada e não corresponde a uma particularidade do caso brasileiro;49 as nações e os

Es-tados nacionais modernos, em sua grande parte, tiveram na cultura romântica de um modo geral e na afirmação do capitalismo industrial da primeira me-tade do século XIX alguns de seus elementos constitutivos mais importantes. No caso dos países da América, contudo, a afirmação dos Estados nacionais, pela via das independências contra as antigas metrópoles, correspondeu pra-ticamente à própria criação dos mitos e tradições que o romantismo europeu

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encontrara em seu passado histórico remoto e que lhe serviram de caldo para sua produção cultural. No Novo Mundo, tratava-se de criar não só a cultura romântica, mas os próprios nutrientes desta, aquilo que Hobsbawm chamou de "laços protonacionais" que haviam sido produzidos ao longo do processo histórico anterior europeu.50 Desta maneira, este período, que só pelo seu

qua-dro político de afirmação nacional na luta pela independência já era carregado de significado histórico, correspondeu ao que podemos chamar de fundação de uma entidade nacional alicerçada em um Estado que era moldado por, mas, principalmente, moldava um conjunto abrangente de noções e valores: pátria, povo, caráter, vocação histórica, cultura e natureza nacionais. A correspondên-cia entre o Brasil imperial e o processo de fundação desta entidade nacional constitui, por si só, razão suficiente para que este período seja positivamente valorizado por boa parte da tradição historiográfica e mesmo para a perma-nência de sua vitalidade temática em nossos dias.

—Antônio Soares Amora, analisando Noções de corografia brasileira, prepa-rado por Joaquim Manuel de Macedo para a Exposição de Viena de 1873 e que buscava traçar um panorama completo do Império brasileiro, considera que o texto explicitava "mitos" nacionais característicos do nosso romantis-mo. Destes, "...pelo menos oito merecem particular referência, pois foram os mais atuantes na consciência coletiva do País...".51 Resumidamente, estes mitos

seriam:

— grandeza territorial do Brasil;

— majestade e opulência de sua natureza; — igualdade de todos os brasileiros;

— benevolência, hospitalidade e grandeza do caráter do povo; — grande virtude dos costumes patriarcais;

— invulgares qualidades afetivas e morais da mulher brasileira; — alto padrão da civilização brasileira e;

— privilegiada paz do país num mundo dominado pelas lutas políticas e sociais.52

Alguns destes mitos permanecem ainda no imaginário e no substrato de crenças de muitos brasileiros: a grandeza territorial e a majestade da natureza como índices de um futuro promissor para o país, a cordialidade do povo. Ou-tros sofreram alterações ao longo do tempo: o caráter pacífico e não sangrento

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de nossa história no lugar da paz política e social, as qualidades físicas das mu-lheres somando-se ou substituindo as suas qualidades morais. Outros, ainda, vêm perdendo força, como as virtudes dos costumes patriarcais. Finalmente, há os que desapareceram ou muito se relativizaram: a igualdade de todos os brasileiros — em parte substituído pelo mito da democracia racial que seria como que uma compensação para as evidentes desigualdades sociais — e o alto padrão de nossa cultura.

Importante ressaltar é que, mais que mitos de uma escola artística e lite-rária, foram — e são — mitos relativos à formação da própria nacionalidade e do que poderíamos chamar de um "projeto brasileiro", expressão de uma certa vocação nacional protagonizada pelo Estado-nação. Trata-se de mitos de formação na medida em que corresponderam historicamente à constituição desta "entidade" Brasil enquanto superação e resgate de seu passado colonial e constituição de uma formação social política, cultural e ideologicamente au-tônoma. Daí sua força e permanência mesmo depois da superação do roman-tismo e das condições sociais específicas que lhes deram origem. Na produção cultural do período em que se forjaram estes mitos, situam-se os clássicos da literatura, da poesia e do teatro brasileiros. A associação entre a produção do romantismo brasileiro e a afirmação da nacionalidade, como veremos adian-te,53 era explicitada por diversos intelectuais do período. Não é outro o sentido

de parte da obra de Gonçalves Dias e José de Alencar e da direção imprimida ao então criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Como mitos de um momento de formação, é natural que permaneçam e que a referência a eles seja constante na produção cultural contemporânea. Por que, entretanto, não permanecem apenas como elementos de um passado remoto, mas, ao contrário, insistem em assombrar o presente como uma cons-tante lembrança de sua pequenez e inconclusão?

Nossa resposta a esta questão, resumidamente, é a de que o momento his-tórico de sua gestação, a sociedade escravista imperial, ainda não foi supera-do, no sentido de uma refundação de um projeto nacional por nenhum dos períodos subsequentes da história brasileira. Se o bloco histórico formado a partir da construção da sociedade imperial foi quebrado em sua articulação política e em sua base material escravista, o mesmo não se deu com sua obra: seu projeto de civilização.54 O escravismo plenamente desenvolvido no Brasil

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pelo fim do século XVIII e início do século XIX propiciou o surgimento de uma formação social com uma definição de interesses econômicos e nacionais específicos no contexto internacional capitalista e um grau de organicidade interna particular em relação aos demais países da América do Sul. Do ponto de vista do desenvolvimento histórico posterior do país, tal definição de in-teresses e organicidade interna não foram atingidos novamente, acarretando uma permanente inconclusão, seguida de renovadas tentativas frustradas de superação desta inconclusão, de um projeto nacional autônomo, independente e que tivesse como significado um real progresso econômico e social, em cujo nome deu-se a superação da sociedade imperial.

A superação da escravidão correspondeu mais a uma situação de cerco ex-terno do que propriamente a desenvolvimentos inex-ternos da sociedade brasilei-ra que propiciassem o surgimento de novas forças sociais, econômicas e mo-rais. Isolada internacionalmente do ponto de vista econômico, inviabilizada nos mecanismos básicos de sua reprodução ampliada, condenada moralmente a partir do predomínio dos valores capitalistas e da emergência dos valores sociais e democráticos da segunda metade do século XIX, a escravidão brasi-leira talvez pudesse ser comparada com o regime contemporâneo de apartheid na África do Sul, em seu anacronismo no que diz respeito a seus valores no mundo contemporâneo. A superação da escravidão entre nós deu-se em larga medida através de uma crítica moral. A escravidão tornara-se alvo de ataques em seu valor simbólico: sua imoralidade de acordo com os valores predomi-nantes então no contexto do mundo ocidental aparecia como uma-marca do atraso do país; sua superação era condição indispensável para o progresso do país. Os rumos deste progresso — quem o alavancaria e quem seriam seus principais beneficiários —, entretanto, eram algo pouco claro e, mais ainda, pouco amadurecido. Se a abolição representou um vácuo capaz de tragar o regime monárquico e quebrar o poder da velha oligarquia escravista do Vale do Paraíba, isso foi tudo. O movimento abolicionista foi insuficiente para agre-gar forças que significassem uma verdadeira superação de todas as mazelas da escravidão e, principalmente, pudessem conduzir o país a uma completa reor-ganização de sua vida econômica, social e moral. Os setores mais dinâmicos da classe dos grandes proprietários rurais escravistas compreenderam em tempo a inevitabilidade da abolição e rapidamente se recompuseram para lhe fazer

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face e, além de garantir seu suprimento de mão de obra, aproveitar o momento para se apoderarem do poder político. A associação entre a República mon-tante e os grandes fazendeiros antigos proprietários de escravos foi algo mais que uma peça de retórica política de líderes abolicionistas e reformistas fiéis ao regime monárquico como Nabuco e Rebouças. É significativa a reticência da ala paulista do partido republicano em relação à questão da escravidão. Signi-ficativa também foi a adesão ao republicanismo e ao novo regime depois do 15 de novembro de antigos opositores do movimento abolicionista.

É verdade que o alcance do abolicionismo não pode ser reduzido a uma crítica da aparência da escravidão, de seu aspecto formal. O fim do cativeiro e a igualdade de todos perante a lei representaram um golpe mortal ao escravismo. Como bem colocou Eric Foner:

Entre os processos revolucionários que transformaram o mundo do sécu-lo XIX, nenhum foi tão dramático em suas conseqüências humanas ou teve implicações sociais tão profundas como a abolição da escravatura. Realizada por revolução negra, legislação ou guerra civil, a emancipação não apenas eliminou uma instituição em crescente antagonismo com a sensibilidade da época, como também introduziu questões dificílimas acerca do sistema de organização econômica e de relações sociais que substituiria a escravidão.55

Estas questões, de um modo geral, giraram em torno da manutenção do controle sobre os demais meios de produção — em especial a propriedade da terra —, do aparato de Estado, da manutenção dos antigos valores e privilégios por parte da antiga classe dominante. Se esta era definida em sua essência pela propriedade sobre os escravos, entretanto, sempre teve uma existência histó-rica concreta: um passado; determinadas atitudes mentais e valores culturais; uma posição no presente em relação aos demais grupos sociais, ao Estado e demais instituições; uma parcela relativa à posse da riqueza social. Daí, que ela não desapareceu num piscar de olhos somente com a abolição da escravi-dão, ainda que com este fato tenha sido ferida de morte. O processo histórico subsequente, a partir das variáveis de como tenha se dado a abolição, da pre-sença de outras classes sociais dominantes ou de outras classes proprietárias baseadas em distintos modos de produção na formação social, das pressões externas sofridas etc., acarretou num período de transição. Este período deve

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ser entendido no sentido de sociedades não claramente definidas a partir de modelos teóricos determinantes e não no sentido da inauguração de um pe-ríodo que necessariamente resultaria na implantação de um novo modo de produção capitalista.

No caso brasileiro houve esta transição inconclusa, que acima definimos, devido à não presença de um elemento das classes dominantes alicerçado num novo modo de produção emergente. Os cafeicultores do oeste paulista, mais que uma nova classe dominante, apresentavam-se como uma fração da classe dominante escravista que, por sua chegada tardia ao ápice da produção cafeei-ra no momento de declínio absoluto da esccafeei-ravidão e de não presença no apare-lho de Estado central, teve meapare-lhores condições de enfrentamento da crise final do escravismo. Asseguraram seu controle sobre os demais meios de produção, em especial a terra, sobre a produção e riqueza e, com o advento da República, sobre o aparelho de Estado. Neste sentido, a República Velha dos fazendeiros se constituiria numa sociedade de transição e não como uma passagem ne-cessária para o capitalismo (mesmo que se leve em conta o desenvolvimento histórico posterior que conduziu o país para um capitalismo periférico).

No Velho Sul americano do pós-guerra civil, ocorreu algo semelhante. De-pois da tentativa radical de quebrar totalmente o poder dos antigos senhores sulistas no período da Reconstrução, houve mais uma recomposição do antigo bloco dominante sob completa hegemonia do Norte capitalista, mas com a manutenção da posição de classe imediata dos antigos senhores sulistas na Re-denção. Segundo Eric Foner, no que diz respeito à conceituação das sociedades que se organizaram após o fim da escravidão no Caribe e no Sul dos Estados Unidos

As características do próprio processo de abolição foram cruciais para o que se seguiria — quem o controlava, qual o papel desempenhado pelos próprios escra-vos e em que medida a emancipação desafiou o controle dos fazendeiros sobre os recursos econômicos disponíveis, bem como a sua hegemonia política e social.56

A questão da reforma agrária tornou-se o problema central do século XIX e XX. "Para negros e brancos, abolicionistas, libertos e fazendeiros, o acesso à terra aparece como o problema crucial que a emancipação não resolveu".57 A reforma

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um aspecto político e moral importante na medida em que quebrava os ele-mentos do poder da antiga classe dos senhores de escravos relacionados com o monopólio da posse da terra. Nos Estados Unidos, houve algo mais parecido com aquilo que foi descrito por Arno Mayer58 para o caso inglês, quando,

mes-mo colocada claramente em posição subalterna após as revoluções políticas do século XVII e da revolução industrial do século XVIII a antiga nobreza man-teve sua presença no aparelho de Estado, diversos de seus antigos privilégios e um relativo controle sobre a propriedade rural. Os antigos senhores sulistas, após a derrota na guerra civil, mantiveram seus mecanismos de dominação e acesso aos meios de produção ao nível das estruturas de poder regional, ainda que algumas adaptações tivessem que ser feitas, e continuaram a ter peso a ní-vel do novo Estado nacional, quando políticos sulistas continuaram a desem-penhar importante papel na vida política nacional como quadros do Estado americano sob nova hegemonia. No Brasil, tentando manter a analogia com o processo analisado por Mayer para a Europa do século XIX, ocorreu algo mais semelhante aos casos da Rússia e da Áustria. As transformações econômicas e políticas ocorreram mais por força da necessidade de adaptação de Estados nacionais sob controle das antigas classes dirigentes e de parcelas das classes dominantes ante a pressão externa exercida pelo contexto econômico e políti-co do capitalismo ascendente, do que propriamente pelo surgimento de uma nova classe produtora.

Superada a instituição da escravidão pela pressão do movimento abolicio-nista e do novo contexto moral internacional, permaneceu o lugar da exclusão, mesmo que sem seu arcabouço jurídico e ideológico. A crítica moral da es-cravidão por si só não correspondeu a sua crítica efetiva e superação. Foi uma crítica parcial de seus efeitos, de fora para dentro: suficientemente forte para desferir um golpe mortal e impedir a reprodução e expansão do regime escra-vista; insuficiente para remover, no entanto, o restante do edifício escravocrata. Este permaneceu — e em larga medida permanece — lançando sua sombra sobre o presente, resistindo a quaisquer mudanças subsequentes, mantendo uma situação em que a exclusão moral e material é a marca da organização social e que a cidadania formal é espoliada de seus direitos mais elementares; uma situação em que os valores predominantes são exatamente os que, sob um manto de aparente grandeza, justificam uma situação de exclusão social.

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Nos capítulos que se seguem, buscaremos analisar como se deu a constru-ção deste edifício escravista que sobreviveu — e sobrevive —, mesmo superada sua base estrutural. Examinaremos a formação do Estado imperial e suas insti-tuições políticas e a constituição de uma hegemonia de classe sobre o conjunto da sociedade que condicionaram a produção dos mitos de fundação da socie-dade brasileira e, numa certa medida, determinaram o alcance histórico destes mesmos mitos e de uma nostalgia imperial difusa.

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II. A Planta Exótica:

O projeto político imperial

v "J * •• SC a m a i o r i d a d e n â o resguardasse a nação como um parapeito, ela ter-se-ia

despenhado no abismo. A unidade nacional, que se rasgara em 1835 pela ponta do Rio Grande do Sul, ter-se-ia feito em pedaços. (...) Já nesse tempo se falava em completarmos a uniformidade política da América, em extirpar "a planta exótica".59

E s t a frase de Joaquim Nabuco refere-se aos anos da regência e às ameaças que teriam rondado a monarquia brasileira, para alguns uma "planta exótica"

na América.60 Neste capítulo, buscaremos compreender a natureza desta planta

exótica e por que seu exotismo, mais que um efeito casual, era intencional e re-presentava a marca de sua diferença, a essência de sua individualidade histórica.

* * *

O desenvolvimento da sociedade escravista imperial implicou um deslo-camento crescente do nível de realização dos interesses da classe dominante escravista do plano imediato da produção e manutenção direta das relações de produção para o da consolidação e expansão de um Estado e de uma socieda-de específica, a sociedasocieda-de imperial. Para além socieda-de organizar as relações sociais imediatas de exploração de seus escravos — e, em última instância, para asse-gurar sua permanência — os senhores de escravos organizaram esta sociedade que foi a base de uma cultura, um modo de vida e de um Estado próprios, numa palavra, de uma civilização particular, a civilização imperial.

O escravismo plenamente desenvolvido foi a base desta civilização. O ponto de partida de nossa análise é a especificidade das relações de produção escra-vistas, nas quais o trabalhador, sem dispor de qualquer meio de produção, é ele mesmo uma mercadoria. Nas sociedades escravistas plenamente desenvolvi-das, estas relações determinaram o conjunto da organização social e política de uma formação social. Com esta afirmação, não estamos buscando desvendar

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IV. "Louvam-se as pessoas e despedem-se

com jantares"

Tudo corre pela beira da vida como dantes: vendem-se e compram-se pretos, vendem-se e compram-se coisas ainda piores e tudo corre e fazem-se elogios e louvam-se as pessoas e despedem-se com jantares como se tudo fosse por certo uma epopéia jamais igualada (D. Sebastião Soares de Resende).163

Esta passagem é do diário do bispo da Beira e refere-se à África portuguesa em 1957. A "sobrevivência" do fenômeno da escravidão é o que salta à vista e espanta. Entretanto, ainda não se deu a devida importância a esta instituição que, com certeza, marcou a história ocidental nos últimos cinco séculos. O espírito civilizado ocidental tem insistido em manter um lugar marginal para a escravidão em seu passado; ela tèm sido relegada à periferia do sistema ca-pitalista ou a um momento de sua gênese histórica. Ela teria se circunscrito às suas áreas coloniais americanas e à África negra e bárbara.

Na verdade, a escravidão está na raiz do mundo moderno. Ela não foi ape-nas um expediente econômico passageiro em um tempo de acumulação primi-tiva de riquezas. O peso econômico do escravismo não deve ser subestimado no mundo pós-descobrimentos e mesmo durante parte do século XIX. Segun-do Robert W. Fogel:

Entre 1600 e 1800, os escravos do Novo Mundo representaram a quinta parte

da população ocidental e menos de 1 por cento da população mundiaL Mesmo assim, durante este longo período e se estendendo pelo século dezenove também, bens produzidos por escravos dominaram os canais do comércio mundial.164

O açúcar era a mercadoria dominante neste comércio, "...suplantando em valor o comércio de grãos, carnes, peixes, tabaco, gado, especiarias, tecidos ou metais. Pouco depois da Revolução Americana, somente o açúcar era res-ponsável pela quinta parte das importações britânicas e, se somadas as cotas representadas pelo tabaco, café, algodão e rum, mercadorias produzidas por

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escravos representavam 30 por cento das importações na Inglaterra". Em fins do século dezoito, mais da metade das exportações britânicas destinavam-se, de um modo ou de outro, para áreas coloniais escravistas.165

O tráfico internacional de escravos, notoriamente, foi dos negócios mais rentáveis em toda a empresa colonial europeia por três séculos. Já nas pri-meiras décadas do século XIX, proibido no hemisfério norte e sofrendo forte condenação moral por parte da Inglaterra capitalista, o tráfico ainda alicerçava um importante circuito comercial envolvendo o Império brasileiro e as zonas negreiras africanas. As grandes fortunas brasileiras, de uma forma ou de outra, tinham ligações diretas com o, tráfico internacional de escravos.166

As grandes "plantations" de açúcar representavam, se comparadas com outras atividades econômicas de base não escravista, grandes negócios que requeriam imensas inversões de capital e adotavam inovações tecnológicas disponíveis no sentido de aumentarem sua produção e melhor escoarem seus produtos. Em 1830, em Cuba, cinco anos após a abertura com sucesso da pri-meira ferrovia na Inglaterra, já eram feitos planos para a instalação de estradas de ferro que ligassem as zonas produtoras de açúcar aos portos.167

Em 1850, portanto já em plena expansão do sistema capitalista para além da Inglaterra, das grandes economias escravistas da América, principalmente produtoras de açúcar, café e algodão, apenas Cuba permanecia sob jugo colo-nial. Brasil e Sul dos Estados Unidos constituíam-se em Estados independen-tes, este último em consórcio com o Norte capitalista, é verdade. De qualquer forma, todas as três economias escravistas experimentavam um bom momen-to e não davam mostras de esmorecimenmomen-to.

O volume de negócios, valor e quantidade da produção, participação no co-mércio mundial, capitais investidos, tecnologias envolvidas e a duração secular do ciclo destes produtos talvez ainda não sejam o suficiente para retirar a escra-vidão do lugar marginal que ocupa na história moderna, especialmente no que diz respeito à primeira metade do século XIX. Neste capítulo, buscaremos anali-sar como a escravidão foi mais que um fato econômico na gênese do capitalismo; como ela, mais que um episódio marginal de um sistema, foi uma parte central no mundo que forjou valores ainda caros aos ocidentais, tais como as noções de indivíduo, cidadania, direitos políticos e direito de propriedade. Foi ainda parte central na criação de organizações políticas complexas, que devem ser inseridas

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no contexto da história das sociedades e das nações liberais modernas. Referi-mo-nos, concretamente, ao Brasil Imperial e ao Velho Sul dos Estados Unidos que foram os meios sociais em que a escravidão permitiu o florescimento de civilizações em que estes valores puderam se desenvolver de modo específico.

* * *

Como já vimos, o mesmo movimento histórico que produziu a hegemonia da classe de senhores de escravos nos anos que se seguiram à independência e, particularmente, à instauração do Segundo Reinado foi responsável pela de-finição de uma temática nacional que transcendeu este movimento histórico através da fixação de um terreno cultural de longa duração. Entretanto, os ter-mos da temática nacional estiveram e estão profundamente imbricados aos próprios temas elaborados e utilizados na produção desta hegemonia. Adiante, analisaremos as razões que motivaram, no essencial, a não superação destes termos mesmo depois do fim da sociedade imperial. Agora, trataremos de sua definição quando produzidos enquanto pertencentes à temática elaborada no movimento histórico da hegemonia escravista.

AS IDÉIAS LIBERAIS NO BRASIL IMPÉRIO: FORA DO LUGAR?

Muito se tem falado sobre o artificialismo das idéias e das instituições liberais que vigoraram entre nós no decorrer do Segundo Reinado. Roberto Schwarz 168

é, talvez, o autor mais citado neste sentido. Schwarz fala em idéias fora do lugar / e da incongruência destas idéias transportadas para nosso ambiente social não burguês. A ideologia liberal, no Brasil, perderia a função desempenhada na Eu-ropa de encobrir as contradições sociais. A natureza escravista e clientelística da sociedade brasileira estaria de imediato aparente, anulando-se, assim, o efeito ideológico do liberalismo.

Mesmo apontando a natureza escravista da sociedade imperial, Schwarz não considera a escravidão "o nexo efetivo da vida ideológica", atribuindo este papel ao favor que regeria nossa vida cotidiana. Aqui, ao se conciliar com o clientelismo e perder sua eficácia ideológica precípua, o liberalismo tenderia para o artificialismo. Do ponto de vista da literatura romântica, particularmen-te em José de Alencar, Schwarz salienta que os pontos fracos de sua criação seriam índices da artificialidade do molde europeu referido à nossa realidade.

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Fiel à realidade observada (brasileira) e ao bom modelo do romance (europeu), o escritor reedita, sem sabê-lo e sem resolvê-la, uma incongruência central em

nossa vida pensada.169

O romance, ao adotar o modelo europeu, estaria seguindo a imitação de padrões europeus, o que acontecia na própria realidade cotidiana observada, perdendo seu veio crítico e ganhando em caráter ornamental ao tratar como de Io uma ideologia de 2o grau.170

Evidentemente, a preocupação central de Schwarz é a análise literária e não o exame do liberalismo ao tempo do Império. Ainda que este ponto de vista já tenha sido contestado por outros autores implícita ou explicitamente,171 a visão

das idéias liberais como fora do lugar no Brasil tem sido amplamente aceita.172

Do ponto de vista da cultura imperial mais ampla, já tratamos do lugar de seu caráter ornamental em relação à realidade escravista da sociedade bra-sileira do período. Baseando-nos num ponto de partida semelhante àquele desenvolvido por Mary Louise Pratt em relação ao Romantismo — ao qual já nos referimos no capítulo anterior —, buscaremos aprofundar a discussão sobre o conteúdo do liberalismo brasileiro no século passado. Trataremos mais explicitamente de estabelecer uma correlação e uma correspondência entre o liberalismo e a escravidão moderna que acentua a funcionalidade daquele em relação ao sistema escravista. Preliminarmente, algumas considerações de or-dem geral sobre o liberalismo europeu tornam-se necessárias.

AS IDÉIAS LIBERAIS NA EUROPA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX

Em primeiro lugar, cabe ressaltar que, ao realizar a comparação entre o lugar das idéias liberais na Europa e no Brasil, há uma tendência a tomar estas idéias, no que se refere a seu contexto europeu no século XIX, de um ponto de vista mais geral e abstrato. O liberalismo ora é considerado em seu aspecto mais doutrinário da formulação dos filósofos, ora tal como se apresentou, nos países capitalistas mais avançados quando não somente na Inglaterra, já no final do século e mesmo no início do século seguinte.

De um ponto de vista mais concreto a situação se apresentou de modo diferente. A identificação das tendências dominantes e que terminaram por

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prevalecer ao cabo do processo histórico não autoriza ignorar as diversas conjunturas específicas e o longo processo pelo qual a maioria das nações capitalistas da Europa ocidental terminaram por consolidar sistemas políticos liberais em que as massas passaram a dispor dos direitos plenos da cidadania. Para a primeira metade do século XIX, em toda a parte, ainda que de modo diferenciado, o capitalismo e a burguesia ascendentes acomodaram-se com os interesses das antigas classes dominantes. Se o mundo europeu já não podia ser pensado sem máquinas, fábricas, burgueses e operários do capitalismo industrial, os privilégios e interesses das casas reais e das nobrezas agrárias e de Estado estavam longe de estar enterrados. Mesmo do ponto de vista res-trito da economia, talvez somente a Inglaterra pudesse ser considerada como um exemplo de predomínio do setor propriamente capitalista da economia nacional. Nos outros países, o peso econômico ainda recaía principalmente na agricultura tradicional, no artesanato e nas grandes finanças ligadas ao aparelho de Estado.173

Em relação aos direitos civis, a Europa capitalista de meados do século XIX estava longe de se constituir em um ambiente de igualdade. Nobres encastela-dos nos aparelhos de Estado nacionais e mesmo representando ou exprimindo diretamente interesses agrários ainda cumpriam um importante, senão pre-ponderante, papel social e político.

No que toca às camadas que compunham a base das sociedades, a situação tampouco era mais "moderna" e típica do capitalismo tomado como modelo abstrato de estrutura social. Camponeses e artesãos ainda tinham um peso significativo se comparados com a classe operária fabril e os setores médios ligados aos serviços. A mentalidade tradicional permanecia forte e velhos vín-culos de dependência e subordinação às Igrejas e outras hierarquias subsistiam. Mesmo quando formalmente definidas como cidadãs de uma mesma so-ciedade, as camadas pobres estavam ainda de fato bastante excluídas de di-versos direitos: recebiam tratamento diferenciado por parte das autoridades (a pobreza era suspeita); em seu seio, era freqüente a utilização de códigos mais tradicionais e não juridicamente formalizados como padrões de compor-tamento; não dispunham de facilidades assistenciais. Não é por acaso, que, no velho continente europeu nesta época, havia uma visão dos Estados Unidos como uma sociedade mais igualitária, com os direitos políticos e civis básicos

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estendidos ao conjunto da população cidadã, masculina e branca, em que a opinião de todos podia ser ouvida e em que abundavam as oportunidades de progresso individual.

Em meados do século XIX, o liberalismo europeu estava longe de represen-tar um sistema em que os homens tivessem os mesmos direitos de cidadania, principalmente no que diz respeito aos direitos políticos. Os princípios liberais aplicavam-se, por vontade de seus principais agentes políticos, à vida das elites, da nobreza e das classes economicamente mais favorecidas. O voto censitário, as definições de cidadania a partir de critérios de propriedade e/ou de riqueza e mesmo a diferenciação de direitos baseada em uma hierarquia nobiliárquica estavam ainda presentes em diversas sociedades. O sufrágio universal mascu-lino foi, bem como outros direitos básicos do liberalismo, de fato, uma con-quista do movimento popular que se estendeu pelos diferentes países a partir da década de 60 até os últimos anos do século. Como bem coloca Hobsbawrn: Com exceção da Suíça, (...) nenhum outro estado europeu operava na base do sufrágio universal (masculino) na década de 1850.174

As assembleias representativas, além de não serem eleitas pela via do su-frágio universal masculino, tinham normalmente seu poder restringido por outras assembleias e/ou instituições nomeadas, com caráter vitalício ou eleitas por sufrágio ainda mais restritivo.175

Mesmo quando os direitos liberais começaram a se estender, geralmente como resultado de todo um processo de pressão popular principalmente di-rigida por emergentes movimentos socialistas e trabalhistas ao conjunto da sociedade, a expansão imperialista e a vaga de nacionalismo estimulada pelos Estados nacionais repercutiram internacionalmente e internamente no sen-tido de restringir a universalização da cidadania. O contato mais freqüente e intenso com os diferentes trouxe noções de que alguns homens não eram tão capazes de experimentar o liberalismo e, por associação, a civilização. Esta não vocação para o liberalismo de alguns veio em conjunto com uma teoria da diferenciação das capacidades humanas que justificava a preponderância das nações capitalistas mais avançadas, o racismo. Este não apenas justificava a do-minação dos europeus sobre outras partes do planeta, como também no velho

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continente alguns povos eram mais brancos que outros (mais capacitados). De modo semelhante, ainda que mais informalmente, no interior das diversas so-ciedades alguns tinham melhores condições de sobressair socialmente, coinci-dentemente os mais ricos; tratava-se do darwinismo social.176

Em conclusão, poderíamos dizer que, mais que princípios em abstrato, a aplicação do ideário liberal, até meados do século XIX, em espaços nacionais determinados, visava: 1) do ponto de vista econômico, à constituição de mer-cados apropriados às circunstâncias históricas de universalização da produção e circulação de mercadorias; e 2) do ponto de vista político, à constituição de sistemas representativos, mais ou menos excludentes, que permitissem a crescente expressão política dos setores sociais, entre os quais, principalmen-te a burguesia, ascendenprincipalmen-tes. A generalização do consumo de massas e de um mercado mundial amplo seria um fenômeno para os anos finais do século. Na vida política, a emergência das massas como elemento vital nos cálculos para manutenção do poder é que conduziu, principalmente a partir do anos 70, à constituição de democracias representativas mais amplas.

IDÉIAS LIBERAIS, CIDADANIA E ESCRAVIDÃO

A constatação das limitações dos princípios liberais na Europa em meados do século XIX — se comparadas com sua ampliação nos regimes democráti-cos que historicamente prevaleceram — suscita duas observações: 1) historica-mente o liberalismo não só conviveu, como não teve o propósito de eliminar todas as desigualdades políticas e jurídicas; e 2) a aplicação concreta do ideário liberal não necessariamente deveria implicar a extensão do conceito de cida-dania ao conjunto de uma formação social. A adoção de um código político e jurídico baseado nas noções de indivíduo e igualdade legal entre os cidadãos disse respeito primordialmente às relações no interior das classes dominantes. Secundariamente, por efeito das lutas populares e da necessidade de regula-mentação de mercado de mão de obra e produtos cada vez mais amplo, este código foi estendido ao conjunto da sociedade.

Vale lembrar que, mesmo teoricamente, o liberalismo, fosse qual fosse o alcance do conceito de cidadania em relação aos homens reais de determinada sociedade, dispunha de uma certa elasticidade no que diz respeito ao conceito

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de igualdade em seu seio. O liberalismo concreto poderia buscar seu ideário na noção de igualdade natural entre os homens, privilegiando o contrato e a igualdade jurídica dos indivíduos com Locke e Montesquieu. De um modo ou de outro, foi esta vertente que veio prevalecer na Europa Ocidental e nos Esta-dos UniEsta-dos, mas não ainda no período que tratamos. Com Hobbes, o papel do Estado como condição primeira da existência social poderia ser privilegiada a partir da noção de estado natural de guerra entre os homens no lugar de sua natural igualdade.

Pelo menos até o final do século XVIII, quando prevaleceu a idéia da in-ferioridade do trabalho escravo em relação ao trabalho livre e a condenação moral da escravidão, o pensamento das luzes era no mínimo ambíguo em rela-ção à servidão humana. Vale lembrar que este pensamento floresce no mesmo momento histórico em que o tráfico internacional de escravos está no auge e as sociedades escravistas coloniais estão de um modo geral em expansão.

Diferentemente do governo representativo e do tribunal de júri, a escravidão negra era uma instituição comum a virtualmente todas as colônias do Novo Mundo; era, por assim dizer, a criação conjunta das potências marítimas eu-ropeias.177

Esta experiência era abertamente sancionada por pensadores expressivos das luzes como Hobbes, Locke e Montesquieu. As razões para tal sanciona-mento variavam da aceitação de um certo grau de desigualdade natural entre os homens, ao reconhecimento da validade da prática da escravidão nos trópi-cos ou em relação aos africanos.178

* * *

Uma análise sobre a relação entre o liberalismo do princípio do século XIX e a escravidão moderna deveria começar com um pequeno exame das relações entre liberalismo e escravidão do ponto vista das próprias tradições históricas europeias e de sua leitura por historiadores e estudiosos da Antigüidade na-quele momento.

Não é por acaso, ou apenas por uma questão de herança cultural, que o liberalismo foi buscar boa parte de sua referência histórica, jurídica e simbó-lica na Antigüidade greco-romana. O modelo de uma sociedade que havia

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r

desenvolvido um conjunto de instituições, normas e práticas jurídicas e polí-ticas baseadas em um conceito de cidadania restrito, ao mesmo tempo, capaz de produzir uma matriz civilizatória ainda viva e da qual a Europa burguesa se

supunha depositária, estava à mão e dificilmente deixaria de ser utilizado. Para os intelectuais europeus do período que estudamos, a referência à Antigüidade clássica era bastante freqüente como matriz da civilização ocidental. Em con-texto de expansão praticamente mundial dos valores e da civilização europeus, multiplicavam-se os estudos sobre o mundo antigo e ciências como a história e a arqueologia ganhavam destaque. Neste quadro, a abordagem do papel da escravidão na civilização antiga era quase inevitável. A palavra quase é bas-tante adequada, já que muitos estudos simplesmente ignoravam o fenômeno da escravidão — ou lhe davam importância banal — e se concentravam nas grandes realizações clássicas no campo da arte, da arquitetura, da filosofia, da política.179 O mundo econômico era abordado superficialmente, sobressaindo

os aspectos descritivos da gama de produtos disponíveis, o alcance e as rotas do comércio internacional, as moedas e os meios de troca. Menos que a base material da civilização clássica, a economia era vista como um índice — e dos menos importantes — das grandes conquistas da civilização greco-romana, berço do mundo ocidental em expansão. Quando a referência à escravidão era feita, de um modo geral, tendeu a ser condescendente ante a magnitude das conquistas espirituais dos antigos. Como colocou o historiador alemão, do início do século XIX, Arnold Heeren,...

... não se deve tentar negar o fato de que, sem o instrumento da escravidão, a cultura da classe dominante na Grécia não poderia jamais ter se tornado o que foi. Se os frutos que esta última produziu têm algum valor para o conjunto da humanidade civilizada, então pode-se ao menos duvidar que o preço da. intro-dução da escravidão tenha sido muito alto.180

As ligações entre o mundo antigo e a Europa capitalista em desenvolvimento não se davam apenas no plano da herança cultural. Havia similitudes no que se refere à própria base econômica da sociedade nos dois casos.

Diversos estudiosos da escravidão moderna têm acentuado a produção ex-clusiva para o mercado como a principal distinção entre esta e a utilização do trabalho escravo na Antigüidade. "Esta íntima conexão com o comércio,

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especialmente com o comércio de longa distância, diferencia a escravidão do Novo Mundo da forma geral de escravidão do mundo antigo ou daquela da África e do Oriente Médio em tempos mais recentes"181 Na escravidão antiga,

africana e aquela existente no Oriente Médio, os escravos, em economias do-mésticas, produziam basicamente para seu próprio consumo ou o consumo de seus senhores.

Se isto é, no fundamental, verdadeiro para a África e o Oriente Médio, o mesmo não se aplica ao mundo antigo. Até o século XV, a escravidão greco-- romana constituíra as formações sociais em que o mercado mais se desenvolgreco-- desenvol-vera na história ocidental e mesmo mundial. Formara-se uma rede de troca de mercadorias que orientava a base da produção econômica. Esta rede de troca de mercadorias se fazia, em grande parte, através da circulação de moedas es-táveis e amplamente aceitas, inclusive no plano internacional.182

O principal ponto de convergência econômica, entretanto, entre a antigüi-dade escravista e o moderno capitalismo se dava naquilo que era essencial para ambos os modos de produção: a coisificação da capacidade de trabalho humano e sua transformação em um bem disponível. Se, no capitalismo, esta disponibilidade ocorre pela transformação da força de trabalho numa merca-doria, "...o que há de único na escravidão (...) é o fato de o próprio trabalhador ser uma mercadoria, e não meramente seu trabalho ou força de trabalho".183 A

existência de escravos talvez seja tão remota quanto as primeiras sociedades humanas. Contudo, mesmo quando estes escravos haviam sido utilizados para fins econômicos — o que nem sempre ocorria e, tampouco, era a finalidade primeira da escravização de outros seres humanos —, este fato não se apre-sentava como a base material destas sociedades. A novidade das sociedades greco-romanas é que, pela primeira vez, a escravidão havia se transformado na pedra angular da produção econômica. O escravo, primordialmente, havia se desprovido de qualquer dimensão simbólica ou familiar para se transformar num fato econômico. No mundo greco-romano, a consolidação da escravidão plena aparece quando esta deixa de ser um desenvolvimento possível das re-lações internas entre as classes destas sociedades e constitui-se num processo externo ligado à guerra e ao comércio. Antes disso, a escravidão doméstica afe-tava os membros das próprias sociedades em questão. Traafe-tava-se de processos de escravização por dívidas ou por favores. Nestes casos, ela era um fato mais

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social que econômico e que, eventualmente, poderia ser revertido. A escravi-dão era por tempo determinado ou o escravo, satisfeita a causa que o levara a esta condição — a quitação de uma dívida, por exemplo — poderia retomar seu status social anterior. Enquanto processo social interno destas sociedades, este tipo de escravidão foi objeto de luta política constante e da atenção de legisladores e reformadores sociais.

Quando a escravidão transformou-se num fato econômico básico, transformando os escravos em mercadoria, a reprodução destas sociedades exigiu que estes perdessem seu status de cidadãos. Por definição, eles deveriam ser e passaram a ser estrangeiros, bárbaros, não portadores da mesma civilização e dos mesmos valores sociais. Na sociedade romana madura do Império, é este fato, aliado à concentração de um outro meio de produção, a propriedade fundiária, nas mãos dos senhores de escravos, que explica a existência da plebe, uma multidão pertencente ao mundo dos cidadãos romanos sem um papel econômico definido. A separação entre cidadãos e não cidadãos, entre estes incluídos os escravos, é uma contradição constitutiva das sociedades escravistas clássicas. Está em sua base. Por mais amplo que pudesse ser — e de fato foi — o conceito de cidadania em termos dos direitos envolvidos, ele era por definição restrito. Nestas sociedades, caminharam lado a lado a coisificação do trabalhador através de sua transformação em mercadoria e a construção de uma cidadania restritiva. Quando este processo se completou, a escravidão clássica havia produzido "... a total redução da individualidade do trabalhador a um objeto padronizado de compra e venda, nos mercados metropolitanos de comércio de mercadorias".184

Tal coisificação da capacidade de trabalho humano — efetuada pela via da coisificação do próprio trabalhador — fez com que se desenvolvessem elemen-tos superestruturais nas sociedades escravistas antigas que teriam continuidade nas sociedades europeias baseadas na expansão do comércio e do mercado e no moderno capitalismo, principalmente através do ideário liberal. Não se tratava somente de uma referência simbólica, havia o valor da produção jurídica e po-lítica greco-romana em termos de sua adequação a uma sociedade igualmente baseada no mercado e na produção de mercadorias, ainda que em escala infini-tamente maior. A doutrina liberal de fins do século XVIII e inícios do século XIX aproveitou as noções de liberdade, indivíduo e cidadania da Atenas escravista.

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Mas, principalmente, o direito escravista romano forneceu elementos para a organização jurídica das modernas sociedades capitalistas no que diz respeito ao direito de propriedade. Em Roma, pela primeira vez, a propriedade havia aparecido como um direito absoluto.

Exatamente como a civilização grega fora a primeira a desvincular o polo

abso-luto da liberdade do continuum político de condições e direitos relativos, a

civi-lização romana era a primeira a separar a cor pura da propriedade do espectro

econômico da posse opaca e indeterminada que, de modo geral, a precedera.

A propriedade quiritária, consumação legal da economia escravista extensiva de Roma, foi um importante advento, destinado a sobreviver ao mundo e à era

em que se originara.185

Assim como a escravidão não desapareceu de todo da Europa ocidental após o fim da civilização romana, os elementos da filosofia e do direito anti-gos permaneceram no imaginário e nas tradições ocidentais. A reativação do comércio internacional e o desenvolvimento do mercado, principalmente a partir do século XV, trouxeram novamente estas tradições para o centro do pensamento europeu nas esferas econômica, política, filosófica e jurídica, bem como o ressurgimento da escravidão em escala ampliada.

... As nações da Europa ocidental compartilhavam um sistema de crenças e associações a respeito da escravidão que derivava da Bíblia e dos clássicos da

Antigüidade e da experiência efetiva com diversas formas de servidão.186

Não se tratava apenas de uma questão de herança cultural. O recrudes-cimento da escravidão no mundo ocidental acompanha e, em certo sentido, serve de base para a retomada destas tradições. Mesmo antes da moderna co-lonização, a utilização do trabalho escravo para atender às demandas da cres-cente economia de mercado já se tornara significativa. Entre 1450 e 1500, C. R. Boxer estima que os portugueses capturaram e/ou traficaram 150.000 escra-vos, na África, em parte recomerciados para Espanha e Itália.187 Nestas regiões,

existiam três condições básicas que Moses Finley identificou para o desenvol-vimento do escravismo: 1) propriedade privada da terra; 2) produção de bens para o mercado; e 3) pouca disponibilidade de mão de obra.188

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