• Nenhum resultado encontrado

ÍNDIOS TERRAS E ARMAS. Introdução a História do Rio Grande do Norte.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "ÍNDIOS TERRAS E ARMAS. Introdução a História do Rio Grande do Norte."

Copied!
20
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Reitor. Ótom Anselmo de Oliveira

Vice-Reitora: Técia Maria de Oliveira Maranhão Pró-Reitor de Extensão: José Willington Germano

Diretor da EDUFRN: Hermano Machado Conselho Editorial José Willington Germano (Presidente)

Hermano Machado Manzo Vítor Pereira Oswãldo Hajime Yamamoto Maria Célia Ribeiro Dantas de Aguiar

Renata Passos Filgueira de Carvalho ' Ciciâmio Leite Barreto

Maria Bernardete Cordeiro de Sousa Alessandro Augusto de Azevedo

Rildeci Medeiros

Editora: Fátima Maria Dantas da Costa Coordenação de Revisão: Risoleide Rosa Revisão: Bethânia Lima, Mauren Cinthia e Patrícia Silva Capa: Detalhe do quadro "Dança dos Tarairiu", do pintor holandês

Albert Eckhout, da corte de Maurício de Nassau, séc. XVII

Editoração eletrônica: José Antônio Bezerra Júnior Supervisão editorial: Alva Medeiros da Costa Supervisão gráfica: Francisco Guilherme de Santana

Catalogação da publicação. UFRN/Biblioteca Central "Zila Mamede" Divisão de Serviços Técnicos

Monteiro, Denise Mattos

Introdução à história do Rio Grande do Norte / Denise Mattos Monteiro. - Natal (RN)-EDUFRN - Editora da UFRN, 2000.

246 p. . 1. Rio Grande do Norte - História. 2. História - Ensino Médio - Rio Grande do Norte. I. Título.

ISBN 85-7273-112-1 ' CDD 98132 RN/UF/BCZM 00/2 . „••' CDU 981.32

Todos os direitos desta edição reservados à . . ' . • „ , EDUFRN - Editora da UFRN

Campus Universitário, s/n - Lagoa Nova - 59.078-970 _ N a t a l / R N - Brasd Tel: (0XX84) 2153236 Telefax: (0XX84) 2153206 _ ^ I f i * Email: edufrn@editora.ufrn.br

(2)

Mapa das Capitanias Hereditárias desenhado pelo artista português Luís Teixeira em 1574. Biblioteca da Ajuda, Portugal.

1. índios, terras e armas:

a luta pelo território

(Séculos XVI e XVII)

A conquista portuguesa

O estado do Rio Grande do Norte juntamente com os do Rio de Janeiro, Ceará, Piauí e Sergipe, segundo os dados oficiais e até um período muito recente, eram considerados os cinco estados brasileiros onde não existiriam mais povos indígenas. Com exceção de um deles, todos localizam-se na região Nordeste do Brasil. Atualmente, certas comunidades reivindicam a identidade indígena em quatro desses estados, restando, ao que tudo indica, apenas o Rio Grande do Norte como único estado da federação em que os indígenas teriam desaparecido por completo. Entretanto, o nosso estado foi o principal palco de um dos maiores e mais longos conflitos armados envolvendo índios e brancos em todo o período colonial da História do país -a ch-am-ad-a Guerr-a dos Bárb-aros. Como ocorreu esse processo?

Quando os europeus chegaram às terras americanas, naqueles territórios que vieram mais tarde a constituir o Brasil, encontraram homens e mulheres que foram por eles chamados de "índios". Essa expressão, que se consolidou com o tempo, tinha origem no fato de que, ao aqui chegarem com suas caravelas, estavam na verdade procurando um caminho através do Oceano Atlântico para as índias, grande área econômica no Oriente, com a qual se faziam importantes trocas comerciais.

N o contato com esses habitantes, os europeus aprenderam que aqueles que viviam no litoral autodenominavam-se Tupi e referiam-se aos do interior, que tinham línguas e costumes diferentes dos seus, como os Tapuia. Essa divisão e designação f o i adotada pelos colonizadores brancos e vigorou durante largo tempo.

(3)

Com o desenvolvimento da lingüística e da etnologia1 sobretudo

em nosso século, constatou-se que tanto os Tupi como os Tapuia apresentaram, na verdade, grandes diferenças internamente, principal-mente as diversas tribos que habitavam o interior do território.

O avanço de nosso conhecimento sobre os primitivos habitantes, entretanto, esbarra em uma grande dificuldade: a carência de vestígios dessas culturas, uma vez que tribos inteiras desapareceram, física e/ou culturalmente, no contato com o homem branco. Esse foi o caso de tribos do sertão nordestino, aí incluindo-se todas as que habitaram o sertão de nosso estado.

Dessa forma, o pouco que sabemos tem origem em registros que foram escritos, sobretudo, no período colonial e a partir dos quais os estudos lingiiístico-históricos, estabelecendo ligações entre línguas que desapareceram e línguas ainda faladas, tentam identificar as tribos extintas. Com todas essas dificuldades, são muitas as incertezas e mesmo as divergências entre diferentes estudiosos.

Mas, de maneira geral, os povos indígenas do Brasil - tanto os desaparecidos como os sobreviventes - são classificados, pelo critério lingüístico, atualmente, em quatro grandes grupos: o tronco Tupi, dividido em sete famílias de línguas; o tronco Macro-Jê, com nove famílias; o tronco Aruaque e, por último, um grande grupo de línguas consideradas independentes e ainda não classificadas.

Os povos que habitaram o território que hoje constitui o estado do Rio Grande do Norte dividiam-se entre os Potiguara, que habitavam o litoral, e os Tarairiu, habitantes do sertão.

Os Potiguara pertenciam ao tronco Tupi e distribuíam-se entre os atuais estados da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Os homens Potiguara costumavam perfurar o lábio inferior, durante a puberdade, por onde tránspassavam ossos,

1 Lingüística é a ciência que estuda a linguagem humana, a origem, evolução e características de diferentes línguas. A etnologia é a ciência que se dedica ao estudo da cultura dos chamados povos naturais, aí incluindo-se sua língua, raça, religião, modo de vida, etc.

(4)

pedras ou madeiras, às vezes também perfuravam as faces e orelhas para o mesmo fim. Pintavam o corpo com negro, do suco do jenipapo, e o vermelho, extraído do urucum. Utilizavam enfeites de plumas coloridas pelo corpo e cabelos, cordões de contas naturais e braceletes (...) Habitavam a proximidade do litoral e as ribeiras dos rios, fabricando canoas e apetrechos para a pesca, que era feita com flechas e pequenos anzóis feitos de espinhas de peixe ligados a fios de algodão ou espécie de cânhamo. Moravam em aldeias, sua principal unidade da organização social, cuja localização era escolhida num lugar alto, ventilado, próximo à água e adequado às plantações que se faziam ao seu redor. Suas habitações, feitas com toras de madeira, cobertura de folhas e sem divisões internas, tinham d u a s a três e n t r a d a s apenas, e eram compridas e arrumadas em volta de um terreiro quadrado que ficava vazio. Num lugar permaneciam apenas três ou quatro anos, quando, por enfraquecerem-se as terras e desfazerem-se as casas, tinham que mudar. Em cada casa moravam cerca de duzentas pessoas aparentadas entre si (...) O trabalho indígena era, em sua essência, comunal. Apesar de haver entre os Potiguara a posse de instrumentos e utensílios, não havia a apropriação da terra, nem do seu produto, por grupos privilegiados (...) Os homens dedicavam-se à caça e à pesca, preparação da terra para o plantio, construção de ocas e canoas, confecção de armas e instrumentos, cata de lenha e à guerra contra os inimigos. As mulheres c u i d a v a m das plantações, desde a semeadura à colheita de suas principais roças, mandioca e milho, com os quais se faziam as farinhas e também as bebidas; cuidavam também das caças e peixes para a alimentação de todos, assim como teciam fios para confeccionar as redes onde dormiam, moldavam o barro para fazer potes e panelas; cuidavam das crianças e animais domésticos; faziam cestos de fibras vegetais; coletavam os frutos, raízes e mel; e carregavam os utensílios quando da mudança da aldeia. Os alimentos conseguidos em comum, tanto na caça e coleta q u a n t o nas r o ç a s , g a r a n t i a m a alimentação de todos da comunidade.2

2 LOPES, Fátima Martins. Missões religiosas: índios, colonos e missionários na colonização da capitania do Rio Grande do Norte, p. 33-37.

(5)

Dentre as tradições culturais dos Potiguara estava a antropofagia, praticada com os prisioneiros feitos em guerras movidas contra tribos, inimigas. A antropofagia fazia parte, portanto, de seu sistema de ritos, mitos e crenças.

F I G U R A 1 - Indígena Tarairiu

Os Tarairiu, incluídos por alguns estudiosos no tronco Macro-Jê, devido a traços culturais em comum, habitavam a zona semi-árida do que é hoje o Nordeste.

Esses tapuia, como alguns outros indígenas do Brasil, costumavam depilar todo o corpo e o rosto. Todos, inclusive as crianças, costumavam pintar o corpo, utilizando-se de tinta preta, extraída do jenipapo, e vermelha, do urucum. Andavam

(6)

nus, porém com os genitais cobertos: as mulheres usavam uma espécie de avental, confeccionado com folhas preso à cintura e os homens usavam um cendal [véu], também vegetal. Os homens perfuravam bochechas, lábios, orelhas e nariz, por onde transpassavam ossos, pedras coloridas ou madeira. Também utilizavam penas de aves diversas, que prendiam nos cabelos e corpo, colando-as com cera de abelha ou atando-as com fios de algodão para fazer cordões, pulseiras e tornozeleiras. Usavam também sandálias feitas com fibras vegetais. O clima hostil do sertão impunha aos Tarairiu uma vida seminômade. De acordo com as estações do ano, os Tarairiu mudavam seu acampamento para os lugares que melhor lhes garantissem a sobrevivência, portanto não tinham aldeias fixas, num único lugar, mas construíam acampamentos regulares, dentro de uma área delimitada (...) Por cansa do s e m i n o m a d i s m o , s e u s a c a m p a m e n t o s e r a m r ú s t i c o s , compostos por abrigos feitos de paus e folhas, geralmente à beira d' água. Dormiam em redes, ou mesmo no chão quando viajando, tendo sempre uma fogueira perto (...) As mulheres e crianças eram incumbidas "de transportar os utensílios, cestarias, bagagens e armas (...) também deveriam, no novo acampamento, procurar os paus e folhagem para confecção de a b r i g o s . E r a m t a m b é m elas que se i n c u m b i a m da alimentação e bebidas, e dos cuidados das crianças, auxiliadas pelas anciães. Aos homens cabia a caça, pesca e a prõcura de mel silvestre; eram exímios caçadores (...) e construíam armadilhas para peixes e a n i m a i s silvestres; c a ç a v a m principalmente pequenos animais, já que grandes não havia pelo sertão. Sua alimentação básica era, pois, a caça, assada em fornos subterrâneos, a pesca, o mel, frutos, raízes, ervas e animais silvestres como lagartos e cobras. Após as chuvas e os rios estarem cheios, os Tarairiu voltavam para as várzeas a fim de plantarem mandioca, milho, legumes e alguns frutos e raízes (...) Os Tarairiu eram guerreiros temidos pelos outros indígenas, por sua força, velocidade e destreza na guerra, onde adotavam a tática da surpresa, isto é, da guerrilha?

3 LOPES, Fátima Martins. Op. cit., p. 112-114. Veja-se, em Anexo A, um relato do final do século XVII, aproximadamente, em que seu autor descreve alguns aspectos da vida e da cultura de indígenas Tarairiu.

(7)

%

s •i

.. o »•a. m < UJ < % UJ O 3 Q UJ ^ Q Oi 5> O o d : o u . Z O o 2 < z O o o < tr < 2 n i O o z m O o:

o

ir tr ac tu CL Í Í oeuesoQ

FIGURA 2 - Fonte: Lopes, Fátima M. Missões Religiosas: índios, Colonos Missionários na Colonização da Capitania do Rio Grande do Norte

(8)

Pela figura 2, podemos observar os territórios indígenas tradicionais, no início do processo colonizador.

O primeiro contato com o homem branco se deu entre os

Tupi-Potiguara que habitavam o litoral leste, visto que foi aí que aportaram as

primeiras embarcações vindas do outro lado do Oceano Atlântico. O que teria movido os europeus em direção ao continente americano?

Na Europa dos séculos XV e XVI, o desenvolvimento atingido pelas manufaturas e pelo comércio exigiam mercados cada vez mais amplos. Esses mercados eram fundamentais para a continuidade do desenvolvimento do capitalismo mercantil europeu, através do fornecimento de matérias-primas e do consumo dos produtos manufaturados. Além disso, poderiam fornecer àquele continente os metais preciosos de que ele carecia e com os quais se cunhavam as moedas, cada vez mais importantes em suas trocas comerciais.

Foi através da expansão marítimo-comercial européia e do estabelecimento de colônias no além-mar que novas áreas do planeta foram paulatinamente integradas ao sistema comercial europeu. Assim, os continentes da África, Ásia e América passaram a ser disputados por navegadores portugueses, espanhóis, holandeses, franceses e ingleses que, em prol das burguesias mercantis européias, lançariam as sementes dos vastos impérios coloniais que iriam se formar.

(9)

FIGURA 3 - Caravela portuguesa

Nesse quadro de luta entre diferentes nações européias pela hegemonia colonial, chegaram ao litoral norte-rio-grandense os primeiros navegadores, corsários franceses em busca de pau-brasil, árvore existente em grande parte da mata atlântica brasileira e da qual se retirava um corante que tinha grande aceitação no processo de fabricação de tecidos na Europa. A extração dessa madeira inaugurou a exploração da mão-de-obra indígena nativa pelos interesses mercantis europeus: através de uma relação que ficou conhecida como escambo, os indígenas

(10)

cortavam e transportavam até a praia os enormes troncos, em troca de quinquilharias que lhes eram dadas pelos brancos.

Portugal, a quem cabia a primazia pelo "descobrimento" da nova terra, desde 1500, frente à ameaça francesa na exploração do pau-brasil, decidiu-se pelo envio da primeira expedição que tinha como objetivo a conquista e ocupação efetivas desses territórios - a expedição de Martim Afonso de Souza, de 1530.

Visando dar início a um processo colonizador, a Coroa portuguesa decidiu-se pela divisão de suas terras no Novo Mundo em capitanias hereditárias, a serem concedidas a particulares que, dispondo de grandes capitais, dispusessem-se a povoá-las, garantindo sua posse por Portugal. As 15 capitanias, que foram divididas por 12 donatários, tinham no seu extremo oeste a linha fictícia do Tratado de Tordesilhas, através do qual Portugal e Espanha haviam dividido os territórios da América.

Pela figura 4, podemos observar, aproximadamente, a localização e dimensão originais da capitania do Rio G r a n d e . Ela tinha como seu limite sul a Baía da Traição, que ainda hoje conserva seu nome, no atual estado da Paraíba, e como seu limite norte a Angra dos Negros, no atual estado do Ceará. Alongando-se para o interior, compreendia os sertões dos atuais estados do Ceará, Piauí e Maranhão. Juntamente com a capitania de Pernambuco, constituía uma das duas maiores capitanias em extensão territorial. Foi doada a João de Barros e seu sócio Aires da Cunha, ricos e prestigiados funcionários da Coroa portuguesa, que organizaram juntamente com o donatário da capitania do Maranhão -uma expedição colonizadora em 1535, em direção ao litoral setentrional, onde a presença francesa era uma ameaça ao domínio português. A expedição, fortemente armada e composta por 10 embarcações e 900 homens, entretanto, não logrou êxito, devido à resistência indígena. A ocupação portuguesa foi, assim, adiada.

Somente 62 anos depois, em 1597, ao fechar-se o século XVI, organizou-se uma nova expedição de conquista e ocupação por determinação real. Essa expedição, sob a responsabilidade dos capitães-mores da Paraíba - Feliciano Coelho - e Pernambuco - Mascarenhas

(11)

Homem subdividiu-se em duas frentes: uma esquadra por mar e companhias de infantaria e cavalaria por terra, esta última sob o comando dos irmãos Jerônimo e Jorge de Albuquerque, sobrinhos de Duarte Coelho, primeiro donatário da capitania de Pernambuco.

Dessa última frente participavam jesuítas e franciscanos - dentre os quais havia aqueles que conheciam a língua tupi - e centenas de indígenas, originários da Paraíba e Pernambuco, pertencentes a tribos Tupi já controladas pelos colonizadores.

(12)
(13)

Tinha início, assim, a presença e atuação de religiosos no território da capitania. Essa presença foi comum na colonização da América Latina, onde a Igreja Católica Romana participou da conquista e ocupação de territórios, pois era instituição social de grande importância nos reinos católicos de Portugal e Espanha, que promoveram aquela colonização. A descoberta de novas áreas para os interesses mercantis europeus abriu a possibilidade, simultaneamente, de novas áreas também para o trabalho de evangelização. Se os objetivos da Igreja e do Estado eram diferentes entre si, isso não impediu que, na prática, a aliança tenha sido feita e com grande vantagem para a Coroa. No caso português, a decisão de colonizar as novas terras foi, inclusive, convenientemente justificada como necessária para a "evangelização" dos povos que aqui viviam. D. João III, rei de Portugal, no Regimento por ele elaborado para o primeiro governador-geral do Brasil - Tomé de Souza -, assim dizia:

Eu, El-Rei, faço saber a vós Tomé de Sousa, fidalgo da

m i n h a C a s a , q u e vendo eu quanto serviço de Deus e meu é

conservar e enobrecer as capitanias e povoações das Terras do Brasil e dar ordens e maneira com que melhor e mais seguramente se possam ir povoando, para exaltamento de nossa santa fé e proveito de meus reinos e Senhorios e dos

naturais deles, ordenei ora de mandar nas ditas terras fazer uma fortaleza e povoação grande e forte, em um lugar conveniente para daí se dar favor e ajuda as mais povoações e prover nas coisas da justiça, direito das partes e negócios da minha fazenda e a bem das partes [...] 4 (Grifo nosso). Para o trato com os habitantes primitivos das novas terras, portanto, os conquistadores contavam com dois trunfos. O primeiro deles eram as armas de fogo que atingiam os corpos e que seriam usadas, sobretudo, contra os mais renitentes em aceitar a presença do homem branco. O segundo trunfo era a catequese que visava a alma e que, ao funcionar como ferramenta para a atração de indígenas ao convívio branco, através

(14)

da pregação do cristianismo, contribuiria para a lenta destruição de sua cultura original.

A presença de mais de 800 indígenas na frente que avançava por terra para a conquista da capitania do Rio Grande inaugurava por aqui uma tática empregada pelo colonizador que se tornaria comum a partir de então: a utilização de indígenas para guerrear indígenas. Conhecedores da mata e seus perigos e dos hábitos de outras tribos, sua aliança era fundamental para o conquistador branco. Essa aliança foi, em muitos casos, facilitada pelas rivalidades já existentes entre diferentes tribos, como aquela que opunha os Tupi-Potiguara do Rio Grande e os Tupi-Tabajara da Paraíba.

Assim, a expedição por terra avançava mediante combates em que se incendiavam aldeias inteiras. Mas uma epidemia de varíola impediu a continuidade dessa marcha e as tropas regressaram à Paraíba e Pernambuco.5 A expedição marítima, por seu lado, desembarcou

finalmente na foz do rio Grande (atual Potengi) e principiou a construção de um forte, inicialmente de madeira, em 6 de janeiro de 1598, sob a cerrada reação dos Tupi-Potiguara da região.

Os indígenas locais com certeza percebiam que, ao contrário da relação periódica e transitória que caracterizava seu contato com os brancos no escambo de pau-brasil, a instalação de europeus em suas terras significava uma ameaça concreta, que se confirmou com o tempo. O início da colonização correspondeu, assim, ao início da própria resistência indígena.

Os invasores, entretanto, tinham vindo para ficar. À intimidação pelas armas somou-se a ação dos religiosos que, dominando a língua tupi e secundados pelos indígenas que faziam parte da tropa de conquista, foram estabelecendo contatos com a população nativa da área, em meio a batalhas que se arrastaram durante meses. Um cronista europeu da época assim descreveu um ataque dos conquistadores a uma aldeia indígena:

5 A varíola, ou bexiga, era uma doença contagiosa cujas epidemias eram então freqüentes, fazendo grande número de vítimas fatais. Foi trazida para a América pelos europeus e, juntamente com outras doenças antes desconhecidas como a gripe e o sarampo, seria responsável por grande mortandade entre os indígenas.

(15)

[...] temorizados com isto os da cerca [da aldeia], e os nossos animados [os conquistadores], vendo que, se a noite os tomava de fora com o inimigo tão vizinho e outros, que podiam sobrevir de outras partes, ficaram muito arriscados, remeteram outra vez à cerca com tanto ânimo, disparando tantas arcabuzadas e frechadas, que puseram os de dentro em aperto, e se deixou bem conhecer pelos muitos gritos, e choros, que se ouviram das mulheres e crianças; e o capitão Miguel Álvares Lobo, com o seu sargento João de Padilha, espanhol, e seus soldados, remeteu a porta da cerca, e a levou, por onde logo entraram outros, e o mesmo fez o capitão Rui de Aveiro, e outros capitães por outras partes com que f o r ç a r a m os potiguares a largar a praça, e fugiram por outras portas, que abriram por riba da estacada, e por onde podiam, mas contudo não deixaram de ficar mortos e cativos mais de mil e quinhentos, sem dos nossos morrerem mais de três índios tabajaras, posto que ficaram outros feridos, e alguns brancos, dos quais foi um o sargento João de Padilha.6 (Grifo nosso).

Vencida a resistência indígena, chefes Tupi-Potiguara, que habitavam territórios correspondentes às capitanias do Rio Grande e Paraíba, foram conduzidos à sede dessa última capitania, pelos portugueses, para selarem formalmente um acordo de paz. Assim, no dia 11 de junho de 1599, na presença dos capitães-mores de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, e tendo por intérprete um religioso, os indígenas se comprometeram a cessar a luta.

Conquistado um ponto da capitania do Rio Grande, deu-se, a partir dele, a ocupação do território pelos colonizadores. A fundação de uma pequena povoação, em 25 de dezembro de 1599, situada numa área elevada, três quilômetros acima do forte e à margem direita do rio, por Jerônimo de Albuquerque - comandante do Forte dos Reis -, reforçava a presença física e cultural do homem branco. A Povoação dos Reis, cuja

6Frei Vicente de Salvador. História do Brasil (1500-1627). Citado por LYRA, A. Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 24-25.

(16)

denominação se referia a valores culturais da Europa e do Cristianismo, daria origem a Natal.7

Se a edificação do forte, que passaria a ser refeito em pedra, havia representado a conquista portuguesa, símbolo sobretudo militar, o erguimento da "Povoação dos Reis", constituída de algumas casas de palha e barro em torno de uma capela, era o começo do povoamento europeu efetivo. As primeiras lavouras, e m torno da p o v o a ç ã o , simbolizavam a fixação do homem branco ao território. Essas roças, juntamente com a caça e a pesca, aprendidas com os indígenas, iriam

garantir a sobrevivência na terra desconhecida.

A partir daí, a área da colonização se alargaria crescentemente. Esse alargamento se daria com a concessão de vastas porções de terras pela Coroa portuguesa aos interessados em participarem do processo de colonização, com a condição de que tivessem capital suficiente para fazê-lo. Aos capitães-mores, autoridades máximas em cada capitania, competia executar essas concessões que deveriam ser confirmadas pelo rei de Portugal.

Esse sistema de concessão e distribuição de terras no Brasil, adotado pela Coroa portuguesa e que privilegiava os que tinham capital, foi chamado de sistema sesmarial e vigorou no Brasil durante quase 300 anos, ou seja, até 1820. Sua adoção se explica pelo próprio objetivo mercantil da colonização ibérica: povoar para produzir mercadorias de alto valor no comércio europeu, como a cana-de-açúcar, que necessitava de grandes extensões de terras.

7 "O ponto tradicional, tido e havido onde a cidade foi fundada, é a atual Praça André de Albuquerque, Largo da Matriz, Rua Grande de outrora. Teriam celebrado missa e erguido uma capelinha que, no mesmo ponto e sob reformas incessantes atrávés do tempo, é a Catedral [antiga] na mesma praça". CASCUDO, Luís da C. História do Rio Grande do Norte, p. 28. Em 1611, a pequena povoação foi elevada à condição de Vila, ganhando uma primeira , organização político-administrativa com 1 juiz, 1 vereador, 1 escrivão da Câmara e 1 procurador dos índios. P®r volta de 1614, a denominação de "Povoação dos Reis" passou a ser substituída por "Cidade do Natal".

(17)

FIGURA 5 - Primeira planta conhecida do Forte dos Reis Magos, de 1 6 1 6 (Forte dos Reis)

Na capitania do Rio Grande, a distribuição de terras seguiu, portanto, a forma legal estabelecida pela Coroa. No período compreendido entre 1600 - ano da primeira concessão, de "800 braças de terra ao longo do rio Potengi", a João Rodrigues Colaço, então capitão da fortaleza - e 1633 - ano da invasão holandesa muitas foram as sesmarias e datas de terras concedidas. Duas merecem destaque: a primeira delas foi a concessão feita pelo capitão-mor Jerônimo de Albuquerque a seus próprios filhos, em 1604, no vale do rio Cunhaú, atual município de Canguaretama. Essa sesmaria, cuja extensão foi considerada "exorbitante" pela própria Coroa, mas confirmada em 1628, daria origem ao primeiro engenho da capitania - o Engenho Cunhaú - e seria a base do poder da família Albuquerque Maranhão, poder esse que atravessaria gerações e gerações. A segunda foi a concessão de terras feita aos padres jesuítas, em 1603,

(18)

em área próxima à Povoação dos Reis. Essa concessão, que ocorreu apenas quatro anos depois de fundada a povoação, bem demonstra o importante papel que a Igreja Católica Romana iria desempenhar no trato com a população nativa durante o processo colonizador.

Assim, terras, antes indígenas, passariam sistematicamente às mãos dos colonizadores. De início em torno da pequena Cidade do Natal. Depois a corrente colonizadora foi se interiorizando seguindo as margens dos rios, principalmente o Potengi e o Jundiaí. Na direção sul, sempre na faixa litorânea, seguiu o percurso dos caminhos já estabelecidos e conhecidos que levavam aos núcleos colonizadores da Paraíba e Pernambuco. Na direção norte, atingiu, nessa etapa, o vale do rio Ceará-Mirim.

A corrente sul seria a única em que efetivamente o povoamento teria por base a atividade açucareira. Nessa faixa, que é hoje denominada de Zona da Mata, as condições de solo e clima propiciariam o cultivo e beneficiamento da cana-de-açúcar. O primeiro engenho da capitania, aí estabelecido, deu origem à Povoação de Cunhaú que, juntamente com a Cidade do Natal, constituía os dois núcleos populacionais então existentes.8 Enquanto Natal constituía o centro do poder

político-administrativo da capitania do Rio Grande, a Povoação de Cunhaú era o centro econômico. O engenho aí situado, exportando açúcar para Pernambuco - além de milho e farinha -, constituía então a fonte de renda básica da capitania.

Nas demais áreas atingidas pelo povoamento, nessa etapa, a atividade principal seria a criação de gado introduzido na capitania pelos colonizadores. Décadas mais tarde, a pecuária se estenderia por grandes áreas, sertão adentro,

8 Um segundo engenho teria então sido erguido onde é hoje o município de Macaíba, às margens do rio Jundiaí e teria pertencido a Francisco Coelho. Mas em 1633, data da invasão holandesa, ele já estaria "de fogo morto devido à ruindade das terras", segundo LEMOS, Vicente. Capitães-Mores e

Governadores do Rio Grande do Norte, p. 15. A existência desse engenho é

controversa. Em algumas obras ele aparece referido como Engenho Utinga, em outras como Engenho Potengi. Há autores que, acreditando em sua existência no passado, consideram-no como tendo sido a origem do atual Solar do Ferreiro Torto, no município de Macaíba.

(19)

tornando-se a mais importante atividade econômica do Rio Grande. Um autor, escrevendo no começo do século XVII, dizia a esse respeito:

A teia desta capitania é fraca mais para gados e cri ações que para (canaviais e roças, e às vezes falta nela chuvas; mas tem muitas partes em que se podem fazer fazendas, ainda que as águas são rasteiras e os matos não são de madeiras tão reais como os da Paraíba; mas não faltam as que hoje podem ser necessárias; lenhas não faltarão nunca.9

Com que mão-de-obra contariam, então, os colonizadores para "fazer fazendas", isto é, derrubar a mata, fazer as roças, construir as edificações necessárias? Os indígenas iriam desempenhar aí um papel fundamental.

No longo processo de conquista e catequese, muitas tribos foram estabelecendo aliança com os brancos que chegavam. Essa aliança significou, na prática, o compromisso de cessar a luta de resistência, de incorporar-se nas próprias tropas de avanço da colonização - guerreando outras tribos ou inimigos europeus dos portugueses -, de fornecer mantimentos de suas lavouras, e de trabalhar para "fazer fazendas" para os brancos.10

A relação e n t r e i n d í g e n a s e c o l o n i z a d o r e s i m p l i c o u a s s i m , n e c e s s a r i a m e n t e , e m i n ú m e r o s - e o n f l i t o s , e x i g i n d o não a p e n a s a interferência permanente dos padres, mas também a criação do cargo de "Procurador de índios", funcionário da administração encarregado de fiscalizar essa relação. O mesmo autor citado acima nos dá uma boa idéia desse quadro ao descrevê-lo por volta de 1612:

Tem este distrito dezesseis aldeias de índios, algumas mui pequenas, todas mal governadas e inquietas por lhes faltar a doutrina de clérigos e capelães, ou de padres ou de

9 Razão do Estado do Brasil, obra do Govemador-Geral do Brasil, D. Diogo de Menezes, citada por LYRA, A. Tavares de . História do Rio Grande do Norte, p. 36.

10 Dentre os chefes indígenas que se aliaram aos portugueses, participando do próprio processo de conquista de terras e homens, o mais célebre, no Nordeste, foi Felipe Camarão - Poti -, indígena Tupi-Potiguara que viveu na primeira metade do século XVII, participou das lutas para expulsão dos holandeses -episódio que veremos mais adiante ocupou cargos militares e recebeu o título de "Cavaleiro do Hábito de Cristo".

(20)

quaisquer outros lelSgiiesos: o s da Companhia [de Jesus] por m i s s ã o m a n d a m a cexBos t e m p o s dous padres a visitar esta gente, m a s c o m o dtaaasi p o u c o c o m eles nunca ficam e m estado q u e possam! sarwr aos moradores [os colonizadores], para que a s s i m uns e «siíros se sustentem e facilitem." Uma vez estabelecido oyinící®!<fo povoamento branco na capitania, esta serviu de base de apoio 'territorial e militar, de ponta de lança, para as expedições que empreenderiam at conquista definitiva para a Coroa portuguesa das terras do litoral setentrional do Brasil, onde a presença francesa_era uma ameaça concreto a o s interesses de Portugal. Assim, o próprio Jerônimo de Albuquerque firare atuação destacada na conquista do Maranhão e m 1615 daí origiratMSose o sobrenome de sua família -e Martins Soar-es Mor-eno, q u -e ssiraia no Fort-e dos R-eis, tornou-s-e o primeiro capitão-mor da capitania rfe Ceará em 1621.12

Com o avanço da ocupação posttaiguesa pelo litoral, novas capitanias foram sendo estabelecidas, altearando-se os limites das capitanias donatárias originais, traçadas p o r ocasião do Tratado de Tordesilhas. Era uma nova subdivisão política e administrativa das terras, imposta pelo processo efetivo de conquista e povoamento. Como esse processo foi longo e irregular, os limites entoe as capitanias não eram muito bem definidos. Dessa forma, à medida q u e se consolidou a vizinha capitania do Ceará, o limite oeste da capitania do Rio Grande passou a ser o rio Mossoró, segundo alguns estudiosos, ou o rio Jaguaribe - no atual estado do Ceará -, segundo outros.

A conquista portuguesa, porém, não estava ainda consolidada: a capitania continuaria sendo palco da luta entre potências européias pelo domínio colonial.

11 Razão do Estado do Brasil, obra do Governador-Geral do Brasil, D. Diogo de Menezes, citada por LYRA, A. Tavares de. História do Rio Grande do Norte, p. 37. Segundo LEMOS, Vicente «te. Capitães-Mores e Governadores do Rio

Grande do Norte, p. 15, a principal aldeia de índios aliados aos portugueses

era então a aldeia de Mipibu, situada ao sul de Natal, onde é hoje a cidade de São José do Mipibu.

Referências

Documentos relacionados

A democratização do acesso às tecnologias digitais permitiu uma significativa expansão na educação no Brasil, acontecimento decisivo no percurso de uma nação em

Focamos nosso estudo no primeiro termo do ensino médio porque suas turmas recebem tanto os alunos egressos do nono ano do ensino fundamental regular, quanto alunos

O levantamento das transformações ocorridas mediante a implantação da metodologia lipminiana propõe um debate acerca da importância de garantir uma educação holística

Os principais resultados obtidos pelo modelo numérico foram que a implementação da metodologia baseada no risco (Cenário C) resultou numa descida média por disjuntor, de 38% no

Para que as reservas indígenas possam receber proteção e garantir o seu uso por meio das práticas dos mesmos, o que seria o uso tradicional das terras que as comunidades

A primeira a ser estudada é a hipossuficiência econômica. Diversas vezes, há uma dependência econômica do trabalhador em relação ao seu tomador. 170) relata que o empregado

O tema proposto neste estudo “O exercício da advocacia e o crime de lavagem de dinheiro: responsabilização dos advogados pelo recebimento de honorários advocatícios maculados

4 Este processo foi discutido de maneira mais detalhada no subtópico 4.2.2... o desvio estequiométrico de lítio provoca mudanças na intensidade, assim como, um pequeno deslocamento