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O Laco de Sangue

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Academic year: 2021

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O laço de sangue:

uma leitura kleiniana da fraternidade Resumo:

O texto trabalha a questão do laço fraterno pensado pela ótica da teoria de Melanie Klein. Introduz a idéia de que o aparelho mental é um mecanismo que, para se defender do contato com o conhecimento e com a verdade, usa mecanismos de defesa tão violentos e primitivos que implicam na construção de um estado mental que podemos chamá-lo de estado de "regressão ética". Esse estado implica em um estreitamento mental que dificulta a formação do laço fraternal espontâneo e a capacidade para transformar experiência bruta em conhecimento. A clínica e o clínico em processo de aprendizado ou em trabalho diário também são afetados por isso, ficando assim fortemente limitados e provavelmente adoecidos.

Summary:

This text revolves around the question of the fraternal bond as considered by Melanie Klein´s optic. It introduces the idea that the mental apparatus is a device that uses, to defend itself from the contact with the knowledge of truth, mechanisms of defense which are so violent and primal, that implicates in the construction of a mental state which we could call as being of "ethical regression". This state implicates in a mental shortening, which difficults the creation of the expontaneous fraternal bond and the hability to transform the brute experience in knowledge. The clinic and the analist in a learning process and daily work are also affected by this, thus becoming strongly impaired and probably ill.

1- Ao buscar em minha memória, ao longo desses últimos anos de estudo da teoria kleiniana, qual é o lugar do pai em sua obra, não posso concluir diferente: ele está com os filhos dentro da barriga da mãe! Reduzido a seu ícone mínimo, reduzido ao seu valor de parte, reduzido à representação de um fragmento do corpo do pai humano e real, um fragmento de seu ser, o pai em Klein é o pênis em seu estado erótico bruto, sexual e ensandecido. Sem mediação, nem tolerância, existe como um perseguidor interno, insone, sempre em ereção e desesperado para invadir delinqüencialmente a mente dos bebês que buscam a teta da violenta mãe primeva. Em excitação ininterrupta, esse pai vive em seu confinamento - condenado que está pela incapacidade simbólica que a inveja cria ao redor do próprio corpo a ser conhecido e comemorado - o que seu físico determina e sua finalidade condiciona. Sempre pronto para estabelecer uma fusão com a mãe dentro desse mundo thalassico onde habita, união essa feita contra os filhos que os dois mesmos produziram, vivem ignorantes de quem são esses filhos, e do que podem significar. Dessa experiência de estranhamento e de morte da curiosidade é por onde se introduz, em nossa mente, as questões esquizofrênicas e paranóicas. Unificados no ódio o casal parental encarna dessa maneira a repugnante figura bem desenhada pela imagem de um casal de pais xifópagos genitais em coito ininterrupto, constituindo-se em um dos mais cruéis superegos que habitam a mente do bebê humano, só comparável em maldade e brutalidade ao superego primordial materno. Essas são as primeiras manifestações do superego delinqüencial que acompanharão o sujeito para o resto de sua vida e que constituirão as bases cínicas do relacionamento dos indivíduos em grupo.

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desproporcional que do encontro com o bebê recebe como primeira forma expressiva a relação que a boca e o mamilo induzem, mergulhados um no outro, completamente dependentes, viciados na execução de suas funções, grudados e confundidos, vivendo como horror qualquer forma de discriminação. Pura fusão, pura indiferenciação. Mundo narcísico, mundo da escuridão, mundo das relações fúnebres. Que fratria, que fraternidade? Laço de sangue, laço de ódio!

Pai pedaço de carne desesperadamente desejante dos órgãos genitais complementares da fêmea, pai órgão desejante de um outro órgão, pai condenado à tirania da vagina da mãe separada do resto de seu corpo. Pai inimigo dos filhos, mecanicamente amordaçado e sentenciado pela obrigação imposta por seu corpo não concebido como expressão de beleza, pai órgão instintivo de fecundação, pai não sonhado, pai reduzido à compulsão e ao gozo advindo da repetição em ato de um movimento que jamais começa uma vez que jamais se pode concluí-lo. Nenhuma relação com a lei, nenhuma relação com o simbólico. É um superego que castra por reação, por violência psicótica, por cinismo e delinqüência, mas não interdita, apenas submete o outro, horrorizando-o como sujeito, pois o obriga a tomar sem o necessário prazer a forma que o corpo lhe empresta senso-perceptivamente e que a emoção não elaborada pelo outro humano lhe acrescenta. Não nasce da lei dos homens nem da cultura, é apenas lógica derivada da racionalidade com que nós, os bebês-kleinianos, lidamos com esse começo aflitivo de nossa vida. Submetido às formas asfixiantes derivadas da força formalizante do próprio corpo e do contato com a percepção do outro, o sujeito que vive no interior desse mundo interno coloca a percepção do objeto no campo da devoração e não suporta sua própria capacidade para descobrir a beleza íntima das coisas descobertas diariamente na experiência de viver. Submetido, escravizado, subjugado pela própria loucura e pelo sensorial experimenta o dia-a-dia como desespero, desamparo, como desafeição. As coisas do simbólico, as coisas da lei, as coisas da fraternidade, em Klein. vem de outras bandas. São emoções cultivadas na tristeza, na dor contida e solitária, no recolhimento, no desapego, na contrição. Não é a repressão que conduz a lei ou que contribui para que ela se estabeleça. As experiências simbólicas, que conferem singularidade ao sujeito, nascem do luto e da capacidade para experimentar tristeza e desilusão sem entrar em colapso usando a hipocrisia como uma defesa contra o encantamento exercido pelo objeto. As leis do simbólico, em Klein, nascem das experiências que vêm do mundo das emoções mais delicadas de serem constituídas, vem do mundo da elaboração dificílima dos ódios primitivos quando eles adquirem as primeiras formas mentais representadas. Vem do mundo construído pela emoção mas nobre do entristecimento e da força por vezes desnorteadora que a beleza nos traz. Penso que um homem sem a sua tristeza é um homem incapaz para o simbólico, incapaz para a cultura, incapaz, infelizmente, para a beleza e para a beatitude.

Isto posto, passo a fazer algumas afirmativas que poderiam ser consideradas como pensamentos decorrentes das imagens que fui derivando de meu recente contato com o tema que hoje temos como objeto de atenção e estudo, e também se derivam de meus devaneios sobre psicanálise em geral, que mistura, de certa forma, as questões freudianas que mais me são caras às questões que decorrem de minha dedicação à compreensão da obra kleiniana.

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2- Temo que a "função fraterna" dependa diretamente da capacidade que alguém deve ter para poder viver uma experiência de fraternidade, e, por sua vez, esta deve ser derivada da capacidade e da disposição que cada indivíduo necessita desenvolver para tolerar e dar forma a sua própria subjetividade evasiva e errante, contando com o outro humano para a conclusão dessa tarefa. Édipo é apenas o paradigma de um homem coletivo e universal, ele não se presta para as questões ligadas ao singular do sujeito. A montagem, derivada do narcisismo - e esse me parece ser o caso quando se fala de Édipo como um complexo - infelizmente não serve para esse fim sofisticado que é a elaboração do singular. O narcisismo destrói o laço de amor entre os pares e, ao seu redor, acrescenta lixo, solidão e penúria. O conhecimento morre, a ilusão que sustenta a esperança necessária à vida desaparece e com ela a fraternidade não se torna possível.

3- Sem tristeza não há um sujeito, sem desilusão acolhida pelo par humano o conhecimento não se formula, e, sem conhecimento, que fraternidade poderá ser compreendida? O ser humano é frágil por definição e por isso mesmo é déspota. Seu medo o faz violento, sua fragilidade o faz ignorante dessa mesma violência. Em seu caminho se encontra capturado pelo devir contínuo de seu ser e pelo horror de nunca poder sê-lo com a clareza que seria adequada ao acontecimento. Esse sujeito que somos, fora do campo do narcisismo e cuja delicada beleza no mais das vezes é inapreensível para nós, em sua dupla face de presença ausente, ou de presença ambígua, só pode apresentar-se aos nossos olhos quando estamos relativamente distraídos, e também contidos e envolvidos em algum campo onde possamos sentir em nossa calma a razão de nosso mergulho no esquecimento. É nesse mergulho em direção ao passado e somente nesse, que nossa origem de seres vindos das profundezas aquáticas e anaeróbicas do antigo oceano, em que podemos resgatar a nossa serenidade para viver a turbulência emocional advinda da fagulha criativa e divina, derivada do movimento da pulsão. O ego narcísico isola o homem comum do convívio com seu semelhante colocando ao seu redor um fosso invisível, cercado de monstros, ditos protetores, que o impedem de crescer transformando-o numa cidadela semelhante àquelas da idade média ou reduzindo-o a um mecanismo subserviente e violento, possuído que é pelo ideal arquitetado pela mente vigiada pelo superego.

4- Se a fraternidade não for apenas uma figura de retórica, é certo que não pode encontrar viço no campo da paranóia, menos ainda no da fragmentação, menos ainda no da fobia e menos ainda no da sublimação dos "sentimentos homossexuais" que poderiam ser a base para o sentimento fraternal. A fraternidade, se é que posso dizer que assim a compreendo em Melanie Klein, é da ordem da inclusão e do acolhimento do forasteiro que chega e que é recebido à mesa para desfrutar do alimento dividido. Ninguém, em sã consciência e à luz da solidariedade necessária à compreensão das dificuldades e das dores que o viver impõe, pode desenvolver sentimentos paranóides na chegada do novo e causar mais perturbação do que aquela que a vida já causa a todos na jornada em direção ao desconhecido. Um irmão, espontaneamente não pode causar nem tampouco representar mais medo do que aquele que a vida já, em sua indiferença crônica, a nós causa. A mente perseguida é da ordem da inimizade, do estranhamento, tanto quanto é também daquela ordem que dá espaço à soberba, à desfaçatez, ao ciúme, ao ódio, à inveja, à obscenidade, à vulgarização do gosto, à violência e a promiscuidade. A estupidez e a arrogância acrescentam um peso insuportável a essa sopa de reações defensivas do sujeito, reações essas que são próprias às

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soluções desesperadas tomadas sob o domínio do narcisismo, e, assim fazendo, desferem um ataque frontal contra a beleza humana levando à humanidade a desembocar em seu ridículo e na inabilidade para suportar a experiência de curiosidade, criando o outro humano como um objeto aflitivo e paradoxal, perigosíssimo,não fraternal e impossível de ser compreendido. Aí, a fraternidade também está comprometida e não pode ser derivada dos movimentos defensivos de sublimação ou de repressão dos impulsos erotizados e não elaborados, nem tampouco pode derivar esses problemas levantados pelo convivo com o outro para as relações com a verdade e com a fé! Creio que irmãos não nascem nesse chão. Quem tem medo não faz amizade, quem desconfia só pode se restabelecer se for convidado a não regredir moralmente aceitando esse conjunto de defesas radicais e desesperadas que definem o sujeito como um ser desmedido por princípio. A rigor, é na solidariedade que se deriva da fraternidade espontânea advinda da noção de amizade intuitiva - que já trazemos inscrita conosco - é que se encontra a semente da compreensão da função fraterna. É num estado de esperança desinteressada - mesmo quando se detecte tensão, incerteza e turbulência - que somos capazes de compreender internamente a noção e a função do semelhante. É nesse estado que podemos não estranhar um ao outro. Isto é, quando a tristeza vier e puder nos igualar em nosso sofrimento não haverá mais a necessidade da presença de um pai-mítico cuja força maior viesse reprimir os impulsos hostis de um sujeito prepotente e incapaz para compreender o companheirismo e a amizade. Sem emoções mais sutis, capazes de localizar o sujeito num ambiente de diferenças e não de disputas, ambiente inclusivo e não expulsivo - como parece ser esse ambiente formulado pelo narcisismo e pelo superego - as questões fraternas não podem ser elaboradas e, sem essa elaboração não há quem possa desfrutar do laço de semelhança, afetivo e profundo tão necessário à fraternidade como eu quero compreende-la, menos ainda permite que sejam desenvolvidas as noções do amor pelo outro e pelas 'coisas do mundo'. Sem as condições internas para experimentar insegurança, frustração e desilusão, somos incapazes para compreender o significado e o sentido que os nossos sentimentos de dor e ódio e não conseguimos com isso dar conta de elaborar as emoções mais violentas que contemos quando somos tocados pela insensatez de nosso desmedimento que muitas vezes pode se derivar da presença irresponsável do outro. O medo impõe um silêncio à beleza e à criatividade humana e cessa a inteligência criativa, levando com ele nossa capacidade para sonhar e depois pensar, e depois, se tudo correr bem, reconhecer a cultura e o coletivo, para, daí sim, organizarmos a vida conhecimento.

5- Um aparelho psíquico, como, por exemplo, o que foi descrito por Freud, muito além de explicar as manifestações mentais patológicas e de sugerir parâmetros para as manifestações da mente normal, muito antes de esclarecer que o inconsciente é o objeto de estudo da psicanálise, esclarece, isto sim, e de modo radical, de onde é derivada a degradação ética, a degradação moral, a degradação humana que se espalha em todas as direções étnicas e culturais desde o início da humanidade e aponta, implacável, como o destino humano se assemelha mais ao destino de uma besta sofisticada, condenada a ser incapaz de lidar com a insuportável herança de violência suscitada pela inabilidade própria ao humano de lidar com a experiência de beleza que emana do objeto. Herança traumática, herança de dor e de destruição. Violência que, parece, ser recebida na linhagem da ancestralidade da qual deriva. Besta sofisticada e incapaz de se organizar diante da dor das memórias recebidas de nosso passado de ações que necessitaríamos respeitar mais em seu valor de ferimento e de transmissão das dores não resolvidas por aqueles de quem derivamos. A

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indiferença afetiva grave e a crueldade premeditada sugerem ter havido uma catástrofe ética no passado, que hoje parece expressar-se nas relações sociais onde a hostilidade aberta (que se organiza na montagem social das instituições) se assemelha muitíssimo àquela usada por grupos animais, organizados por castas ou bandos liderados por machos mais fortes.

Fato curioso e não incomum, é o de que pescadores percam parte de suas mãos, ao abrirem o ventre de tubarões-fêmea grávidas, uma vez que acabam sendo atacados e mordidos vorazmente por bebes tubarão que já estão enormes no interior de suas mães. Alimentaram-se de seus irmãozinhos menores durante a gravidez da mãe. Aqui segue a explicação científica, ou seja, os tubarõezinhos mais fortes, em sua jornada darwiniana de crescimento e em sua luta amoral pela sobrevivência, desconhecem a idéia de semelhança, de espaço compartilhado, tanto quanto desconhecem a idéia de companheirismo e fraternidade e devoram, impunemente, a seus irmãos menores tomando-os por comida em seu desespero de viver. No ventre de suas mães, esses tubarões se alimentam dos irmãos sem disso se dar conta. Também, é impressionante a maldade e a violência consciente dos bandos organizados dos chipanzés quando encontram, por exemplo, com uma fêmea de um clã vizinho cuidando de seu bebê e, ao perceberem a situação indefesa na qual ela se encontra, arrancam-lhe o bebe das mãos para, em seguida, espanca-la com esse bebê até que ele morra diante de seu olhar estarrecido e horrorizado. Não menos impressionante é o relato da captura de um chipanzé macho errante e distante de seu território de origem quando encontrado e capturado por um bando de outro clã que vigiava as fronteiras de seu território -sendo espancado até quase morrer. Esse ato premeditado, fria e criteriosamente, é coroado com a ação certeira do líder do bando que arranca a traquéia do macho solitário diante dos membros do grupo rival que, com arrogância, comanda. Então, penso e pergunto - tendo em consideração a afirmativa ferencziana de que a ontogênese repete a filogênese, e que nosso "desejo de retornar ao oceano abandonado dos tempos primitivos" (p.66), pela via da "regressão thalassica" - é algo compulsivo em nós? Pergunto: não seria possível dizer que esse mesmo veículo que nos leva ao passado, não seria, ele mesmo, também, capaz de nos levar a uma regressão de nossa moral? Não estará nesse passado primitivo também a herança ancestral que sustenta a lógica das reações de medo e desespero, e, por frias que são, carregam todo gesto de cinismo e perversão destruindo com isso a relação com o outro humano apenas por usar com desdém o recurso defensivo que anula a relação amorosa com o semelhante do mesmo modo que anula a relação entre o afeto e a representação?

6- Não só fica esclarecida a catástrofe emocional e ética à qual estamos submetidos, quando Freud descreve as manifestações e a organização do processo primário, como também, podemos observar que nosso aparelho psíquico está apto a tolerar regressões éticas e degradações morais como nenhum outro quando de alguma forma pressente estar entrando em zona de perigo, tomando atitudes que, em circunstâncias mais seguras jamais seria capaz de tomar. É nesse momento que a couraça narcísica cria um campo de insanidade ao redor do conhecimento e introduz o egoísmo e a desconsideração como um empecilho à criatividade e à capacidade para se investigar e compreender o que se apresenta no mundo que nos cerca e ao qual de certo modo deveríamos, ao compreende-lo, sermos gratos.

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genérico algumas das defesas descritas por Freud quando ele formula as idéias do aparelho psíquico e do mundo interno:

A) Um aparelho que busca o prazer e evita o desprazer é um aparelho que de imediato já confunde satisfação com alívio e portanto fica habilitado para caminhar ao lado do equívoco e não ao lado da verdade e do conhecimento, prefere a negação e a eliminação das representações da dor ao contado angustiante com a realidade;

B) Um aparelho que, depois da primeira vivência real de alívio das tensões causadas pela pressão exercida por necessidades insatisfeitas, transforma o alívio em prazer auto-erótico e abandona o objeto real externo quando de uma nova demanda formulada pela necessidade, e procura, antes de tudo dentro de si mesmo a imagem da satisfação registrada na memória, procura,em seu desespero e aflição, a lembrança de apaziguamento na fantasia de satisfação, é um aparelho que está habilitado para negar a realidade da experiência desagradável, investindo na reativação alucinatória da lembrança sensorial do passado, está habilitado a se atrever a prescindir daquilo que é da ordem do necessário que está representado pela presença do outro humano. Nesse sentido, o sujeito apto a alucinar no lugar de reconhecer e buscar sua satisfação no mundo real é um sujeito descrente de sua subjetividade e da fraternidade nela contida. É incapaz de experimentar sofrimento. É um sujeito que falha duas vezes, uma ao não poder sofrer prazer e outra ao não poder sofrer a dor . É um sujeito encapsulado em sua interioridade narcísica, descrente da possibilidade de experimentar solidariedade humana e que se permite abrir mão de informações biológicas fundamentais e necessárias, para crer, descuidadamente em uma realidade virtual que o reconduz ao campo do equívoco que desemboca no da produção da ignorância (travestida de arrogância e onipotência);

C) A realização alucinatória de desejo é a expressão brutal dos níveis de negação psíquica aos que se pode chegar para evitar entrar em contato com as experiências de dor e desprazer, tanto quanto das experiências de desilusão e ressentimento. É, esse estado de desespero e de voracidade que faz com que o sujeito busque um prazer a qualquer custo, mesmo que isso lhe custe a vida, onde encontro as bases para dizer que Freud, mais do que lançar luz à arquitetura do psiquismo humano, foi capaz de propor uma teoria que revela que o sujeito desamparado descoberto pela psicanálise, é um sujeito que não tem acesso à realidade e vive sem a noção fundamental de que vale a pena buscar mais uma vez seu parceiro humano ao invés de em seu lugar perseguir o traço mnêmico da experiência de alívio (registrada como experiência de satisfação!). É esse o sujeito que está habilitado a propor o cinismo como solução para uma dor que só obteria lenitivo se pudesse ser compartilhada em estado de fraternidade com o par da espécie com o qual convive e compartilha o desenvolvimento. Fora desse campo tristemente amoroso as soluções narcísicas adotadas pela mente corrompida pela solução desesperada, só levam tal sujeito - que poderia ser cotidiano - ao abismo do ideal onipotente e aflitivo proposto pelo superego, impossível de ser atingido uma vez ser da ordem do impossível.

D) Aquele que se torna cínico, vulgar e obsceno, e que portanto aceita as condições degradadas impostas pela defesas amorais da mente primitiva, aceita, nesse sentido, fazer-se agente e cúmplice de uma regressão moral que resulta em degradação ética e concorda com a teoria que

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afirma que o psiquismo, como ele tem sido descrito pela psicanálise, não está habilitado a experimentar dor mental sem reagir com brutalidade. A isso se acrescenta que, ao senso comum, o modo mais sutil e camuflado desse processo de violência se revelar, fica aparente na degradação do gosto, na breguice, na vulgarização das escolhas. O psiquismo que reage assim é um psiquismo que não está habilitado internamente para lidar nem com depressão saudável, nem com tristeza, menos ainda com o aprendizado autônomo, necessário ao crescimento vigoroso da mente humana. É bom se notar que, nessas condições tão assustadoras, ao desprezo pelo próprio corpo segue o desprezo pela realidade e, como forma de evitar o desprazer, tão necessário à formulação do conhecimento, naufraga na mentira que é capaz de justificar qualquer irresponsabilidade como idiossincrasia. Com isso, os processos de luto se estancam e o acesso à realidade oferecido pelo simbólico deixa de ter função;

E) Nas perversões. Mais especificamente no fetichismo, no sadismo e no masoquismo, a degradação ético-simbólica do indivíduo chega ao seu máximo exuberante pelo caminho complexo da frieza afetiva e da evocação contínua do demoníaco. A cegueira auto-imposta no fetiche; o pacto e o contrato assinado na escuridão, no masoquismo; e o poder demonstrativo do raciocínio frio, no sadismo, constituem - no campo da cognição e da produção em ciência - de um só golpe seus duplos "normopáticos". No caso do fetichista, o duplo é o ignorante (uma vez que ele não suporta e não compreende a visão do belo genital feminino, uma vez que a ele pode evocar que os gêneros não se constituem no campo das diferenças físicas, mas sim no das mutilações); no caso do masoquista, o pedagogo - que movendo-se à semelhança das víboras - "ensina" como o outro deve "maltrata-lo"; e, no caso do sadismo, o psicanalista, déspota demonstrador que, em sua neutralidade, conduz a dessecação da mente do cliente: "trata-se, (...) do prazer de negar a natureza em mim e fora de mim, e de negar o próprio Eu. Numa palavra, é um prazer de demonstração." (p.29);

F) Um aparelho psíquico assim descrito, dá indícios claros de que Freud intuiu mas não nomeou a dimensão regredida e degradada da mente humana, e por isso chamou de desamparo aquilo que já era, na verdade, da ordem do horror, do desprezo pelo corpo, do ódio ao outro e do abandono do contato com a verdade, aceitando viver em contínuo estado de apatia estética e moral.

7- Antes de concluir, cito Bion, para iniciar a descida às questões da clínica. Aqui, o que me interessa é menos a questão da discussão sobre o narcisismo, seja ele primário ou secundário, mas o desprezo do social pelo indivíduo; me interessa o que Bion aponta quando fala do indivíduo e seu valor para o grupo, ou melhor, de qual é o valor do indivíduo para o grupo. Ou seja, do quanto um eu narcísico pode valer para um grupo? Quanto vale um eu para um coletivo que semeia e colhe o ódio? Portanto, a partir deste ponto o leitor deverá seguir o fluxo ideativo que se transforma ao final em uma busca ética, na busca de uma clínica, na busca e na pesquisa da fraternidade como o elemento essencial do trabalho de cura.

A baixo cito Bion:

"Mas eu já havia dito que o narcisismo, à primeira vista o narcisismo primário, correlaciona-se com o fato de o senso comum ser uma função da relação do paciente com seu grupo; e, em sua

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relação com o grupo, o bem-estar do indivíduo é secundário à sobrevivência do grupo. A teoria de Darwin da sobrevivência dos mais aptos necessita ser substituída por uma teoria da sobrevivência dos mais aptos a sobreviver no grupo - (Bem! Acrescento eu!) até onde a sobrevivência do indivíduo possa interessar. Isto é, ele [o indivíduo] precisa ser dotado de alto grau de senso comum: 1) Uma habilidade de ver o que todos os outros vêem, quando submetidos ao mesmo estímulo. 2) Uma habilidade para acreditar na sobrevivência dos mortos, depois da morte, em um tipo de Paraíso ou Valhala ou algo assim. 3) Uma habilidade para alucinar ou manipular fatos de modo a produzir material para um delírio: de que há no grupo um fundo inexaurível de amor por ele, paciente. Se, por alguma razão, faltar ao paciente essa capacidade, ou algum conjunto similar de capacidades, para obter subordinação ao grupo - grupo que, sabidamente, é indiferente ao seu destino enquanto indivíduo - destruindo seu senso comum ou o senso da pressão do grupo sobre ele como um indivíduo, como o único método através do qual conseguiria preservar seu narcisismo. No psicótico, nas formas extremas de defesa, o resultado desses ataques destrutivos aparece como uma superabundância de narcisismo primário. Mas isso é uma aparência - o suposto narcisismo primário deve ser reconhecido como secundário a um temor do 'social-ismo'." (pp. 42,43)

8- Na condução de algumas análises em meu consultório, enquanto me observo trabalhando, e na condução de algumas supervisões de casos de colegas, onde tenho a oportunidade de observar o estado emocional vivido por eles diante do relato cotidiano que é feito pelos pacientes, não poucas vezes tenho testemunhado tanto quanto tenho experimentado sofrimento e não menos perturbação ao ouvir no que acaba caindo a experiência psicanalítica. São diálogos que giram em torno do mundo das emoções mais doloridas, dificílimas, quase insuportáveis, emoções que exigem ações irracionais e gestos indizíveis. O mundo narrado está envolto em uma névoa de segredo, de medos e promiscuidade.

Geralmente, nesses encontros de supervisão os diálogos referem-se de modo genérico ao que meus colegas e eu experimentamos em nós mesmos durante o trabalho clínico quando temos ou nos obrigamos a ouvir o que não pode ser ouvido por qualquer um quando alguém fala para qualquer um de nós. Mesmo assim ainda lutamos para que o que discutimos possa um dia ser dito em público. Sabemos que estamos na esfera do particular, do íntimo, do privado; e temos que nos haver com formulações dificílimas de serem feitas pela palavra e de serem vistas pela intuição. Essas vivências, põem em movimento uma grande quantia de ódio no mundo institucional, e não podem ser formuladas sem revide no espaço público da instituição, nem publicadas em suas revistas, menos ainda discutidas em colóquios, sem caírem no campo da ofensa pessoal e no dos combates intelectuais violentos, militares, insanos e ensandecidos. Pela escrita, também o espaço institucional constrange e indica o assunto como algo que se encontra fora do âmbito demarcado pelo "senso comum" que a instituição se impôs e que, ao informar a seus membros sobre sua intolerância em relação à verdade diária de nossa faina, evita com isso a verdade da experiência de trabalhar com o inconsciente e de reconhece-lo atuante no interior da própria. A instituição informa, de modo engessado e torto, sobre seus limites emocionais para tolerar e acolher a verdade afetiva de seus profissionais sendo dita em público.

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uma vez se interrompe o processo que envolve o trabalho de descoberta e de investigação e mais uma vez se interrompe a experiência de congraçamento para se dar atenção a detalhes que bem poderiam passar por secundários e, nesse sentido, despercebidos. Com a emoção burocratizada e emborcada num emaranhado de procedimentos, perde-se de vista a questão mais simples, mais cotidiana; perde-se, em última análise a experiência de fraternidade, isto é, perde-se a noção mais sutil de companheirismo, sentimento e sentido de onde deriva e que dá a potência de cura do par analítico. Na função de um outro capaz de sofrer enquanto ouve uma dor que é a dor de humanidade, o analista torna-se um parceiro de viagem, um companheiro para as horas mais difíceis, mais amargas. E, por saber-se assim em seu caminho de ouvir aquilo que adoece, aquilo que de alguma forma se encontra doente, o analista sabe quão perigoso é seu caminhar, sabe em seu íntimo os abismos por onde se desloca e com isso aprende que deve ser irmão de seu cliente para ter alguém a quem recorrer no caso de uma queda. É o irmão a quem se ouve quando se tem nas mãos um trabalho de análise. Isso, infelizmente, do ponto de vista da ciência é temerário, e, nesse momento é a ciência que, ao ditar procedimentos, transforma-se em seu próprio detrator e antagonista, constituindo a comunidade psicanalítica em uma instituição que dita as regras e onde parece mais se querer vender arrogância por humildade, que propriamente pensamentos, tristeza e verdades. Em uma palavra, não deseja expor trabalhos de dor.

O problema, a meu ver o mais grave de todos - e que se deriva dessas condições quase carcerárias decorrentes da institucionalização e da burocratização da instituição - é esse que se liga à questão da "neutralidade" em psicanálise. Friso que a instituição à que estou me referindo ultrapassa, em muito, o âmbito da instituição oficial. Na "instituição" todos são neutros, todos estão à distância justa para observar os fatos mentais sem reagir emocionalmente a eles. Nossa! Meu Deus! Que palhaçada. A questão da neutralidade tornou-se erva daninha, tornou-se jargão e caiu numa espécie de modismo ou de utensílio sem serventia, apesar de fundamental na discussão dos casos entres os colegas. Que horror, neutros, invioláveis, austeros. É esse o problema que se levanta para aqueles que ouvem nas falas repetidas de seus pacientes um montante incomensurável de relatos tão doloridos e por vezes até tão deploráveis que nada se pode dizer de uma neutralidade possível. São relatos que contemplam um absurdo tão grande que o afeto a eles ligados e deles negado é capaz de arrancar nossos cabelos se tornarem-se vento. Relatos onde o desligamento de si e da beleza necessária à existência humana alcançam a degradação moral do próprio narrador e atingem brutalmente a frágil rede psíquica que sustenta o sujeito que escuta. Além disso, é a esse sujeito que escuta a quem se faz a exigência de ser neutro?! Minha nossa, que contradição! É necessário que se diga, quem fala e quem escuta, em psicanálise, por definição, está fora do campo da frieza e da distância. Psicanalisar é estar encharcado até os ossos. É lamentável que se venda aos principiantes esse ideal sacerdotal que é o de atingir um estado acético e 'reservado'. É lamentável que se sugira ao aprendiz que o silêncio deva ser levado a tal ponto até que ele apreenda a consumir-se por dentro até que se perfure ulcerosamente, para dar, então, lugar à divindade psicanalítica que vive no interior do psicanalista, e permitir, assim, que ela evacue em nossa mente uma interpretação feita - com todo o apoio do "senso comum" - pelo e no afastamento afetivo das paixões pessoais, esquivando-se da relação de intimidade com os sentimentos internos promovidos pelo convívio com o outro.

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Do outro lado, do lado de lá da poltrona, no mundo propício para a experiência analítica, naquele mundo para onde se deve ir quando se mergulha ou onde, em realidade, se naufraga na investigação do inconsciente humano, ouve-se uma voz clamando, fazendo pedidos, suplicando. Dê-me um pouco de verdade e fé!

Castro Alves já o havia dito em Vozes d'África. "Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes Embuçado nos céus?

Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde então corre o infinito... Onde estás, Senhor Deus?..."

...

E nem tenho uma sombra de floresta... Para cobrir-me nem um templo resta No solo abrasador...

Quando subo às Pirâmides do Egito Embalde aos quatro céus chorando grito: "Abriga-me, Senhor!..."

Súplica que vem do lado de quem se deita como cliente no divã de seu analista neutro. Falar com Deus. Meu Deus! Deus; esse silêncio vivo que nos observa e com isso apenas nos aflige! A experiência de aflição que se desdobra em acting-out, nitidamente é derivada do mutismo imposto pelo exercício divino do neutro, e surge como uma última reação ao engodo que essa "neutralidade suspeita", sugere e sustenta. Daí deriva-se o ataque direto ao vínculo fraternal que deveria envolver a dupla de trabalho em um exercício de descoberta e congraçamento. Resta apenas a desistência do trabalho. Esse estado de coisas, cria um campo de abandono, desamparo e silêncio ao redor da fala daquele que veio buscar a cura conosco, uma vez ele estar fora do senso comum que a institucionalização impõe ao analista. Mais uma desilusão acrescida ao desgoverno narcísico do homem delirante que pressupõe dever receber o bem do mundo apenas por estar vivo. Pobre coitado, mal sabe ele o quanto vai ter que transpirar para chegar a algum lugar e, ainda assim, lugar incerto! Desse ângulo, de onde se vê o desespero humano, a vida que é vivida transforma-se em mais um fracasso na formulação da noção de irmandade, principalmente se ela for imaginada como uma ação que não envolveria nenhum esforço, menos ainda sofrimento. O único antídoto diante dessa loucura do neutro - que invade a todos nós quando investigamos - é estarmos dispostos a fazer um investimento tal cujo custo se remete ao custo de uma vida e não ao preço de uma análise. É esse altíssimo investimento pessoal que não permite o mergulho na degradação do vínculo analítico, na evitação da irmandade e na promiscuidade. Mas tem-se que "ter gana, sempre".

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idéia, pela experiência e pela palavra "implicação" . Daí, na instituição que se recusa a falar publicamente das dores daqueles que tratam de seus aflitos mentais, mais um trauma se acrescenta no tecido do ser que a ela recorre para aprender, e, mais uma vez, a fidelidade fraterna, a "companheiridade" intuitiva falha ao tentar vir à cena principal. O voto feito pelo analista de tentar amar o mais que puder o gesto mesmo de curar pela palavra, nesse momento torna-se obscurecido pela técnica e sufocado pela exigência de precisão que muitas vezes insinua-se derivar do silêncio compulsivo apoiado na neutralidade, e assim, a análise torna-se invasão de privacidade e experiência paranóide, não mais se encontra no campo da descoberta e do amor à beleza do mundo.

Infelizmente, é na instituição onde se desfaz subitamente o sentido que advêm da necessidade natural que os homens têm de compartilhar o espaço da fogueira e do convívio. É na instituição também onde se desfaz o sentido do gesto das mulheres que, ao cantar, tecem os mantos para a chegada do inverno e, enquanto cozem seus mantos, narram a história de seus homens admirando-os quando saem para caça e querendo-admirando-os quando, depois, voltam para comer, cantar e beber louvando o final vivo de mais um dia. Na instituição se desfaz o sentido que deriva da dança de homens e mulheres ao redor do fogo, quando, ao dançar constroem à sua volta a esperança no sexo, na confiança e na depressão benéfica e acolhedora que a tristeza dá ao laço fraternal.

Talvez esse seja o sentido de estarmos em análise com alguém, talvez esse seja o sentido do que pode vir a ser a idéia de neutralidade como experiência de virilidade, segurança, firmeza e entrega. Talvez eu possa requerer que haja algo de masculino na tristeza! É, ao compartilharmos da mesma dor, que evitamos que os gestos de nossos semelhantes caiam no vazio funesto da loucura pessoal e no silêncio técnico exigido pelas noções que pretendem nos dizer que nossa reação deve estar de acordo com o uso do senso-comum que o stablichment impõe ao analista na condução de uma análise. Esse frio masoquista, que convida o cliente ao ataque descontrolado, deriva-se da falsa impressão de que a mente do analista suporta a qualquer coisa que possa ser compreendida pela teoria. Enfim, é nesse frio evasivo onde purga o ataque feito por quem sabe ao longo dos anos de trabalho que seu analista não veio para cura-lo. É que o cliente que fala ao silêncio reativo de seu analista sabe que sempre algo estará em vias de se perder em uma análise minimamente "bem sucedida". Desamparo consentido e endossado pela técnica. Nada mais antifreudiano, nada mais próprio ao institucional! Nada mais antianalítico. A condução de uma cura depende do "gesto espontâneo" do analista que só poderá ser vivido quando a fraternidade for passível de simbolização, deixando de ser apenas a conseqüência insana do vínculo sanguíneo ou de uma abordagem técnica e politicamente bem conduzida, posta e estabelecida pela ótica da instituição. O outro que nos fala só poderá ser contido em nós somente quando pudermos suportar a aflição que a presença de nossa loucura durante o trabalho nos causa! Este sim verdadeiro aprendizado -deriva do trabalho de quem se dispõe a escutar a dor e o silêncio de quem vem falar daquilo que não sabe mas que dói muito. "Itabira é uma foto na parede, mas ah! Como dói!" Assim disse Drumont de Andrade.

A fraternidade, a meu ver, deve estar inscrita no campo da beleza que é própria a uma vida vivida de improviso e artesanalmente, e deve estar acolhida no cotidiano de um grupo que pode compreender que essa beleza é aquela que, obrigatoriamente, se encontra no campo do trabalho,

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da elaboração, da transformação e, portanto, no campo da tristeza. Em uma palavra, fraternidade e neutralidade se inscrevem no espaço da desilusão sincera, do trabalho e da transpiração!

A psicanálise sabe que se excedeu em sua idealidade, ela própria, em seu rigorismo porcamente iluminado pelo positivismo científico, criou uma situação desconfortável para a sua prática e uma situação também desconfortável para a sua propagação serena e séria como ciência e como método de cura. A transmissão, ao invés de ensinar o sutil, torna-se o engessamento moral dos profissionais interessados em trabalhar e compreender o ofício de curar a mente humana através da escuta do sofrimento intenso de uma outra mente humana. Ela mesma sabe o desastre científico que está promovendo em si mesma e em sua própria beleza enquanto prática de cura, ao propor como meta e método de ensino o ideal educacional da frieza inatingível que nada mais é que uma distância afetiva ensinada como elemento técnico - a meu ver masoquista. Sabe que é uma distância feita para a instituição e que deve sempre ser imposta na educação do aprendiz obrigando-os a exaltar um afeto paranóide e com isso tornarem-se ridículos. Se educar a pulsão do psicanalista é impossível... torna-la consciente, talvez! Curar-lhe o espírito com um ambiente de amor fraterno...? Quem sabe? É necessário à neutralidade psicanalítica ter sua verdadeira finalidade resgatada e compreendida, é necessário que todos nós estejamos comprometidos com a capacidade para sentir tristeza, e convencidos de que ela - essa tristeza - é a única via que pode nos levar à experiência de cura pela fraternidade. Nossa clínica necessita estar comprometida com a experiência que acolhe a singularidade de cada sujeito que busca, na companhia de seus pares, desenvolver conhecimento de si e do mundo, desenvolver a capacidade para viver mais vezes a experiência de prazer, experiência essa que pode advir dos momentos de congraçamento e da capacidade para experimentar o recolhimento próprio e particular do homem mais profundo e mais triste. Reconhecimento pelo esforço de um dia que foi duro de vencer em sua complexidade de fazer-se parecer apenas com nosso cotidiano. Neutralidade, se vista a luz do laço fraterno simbolizado, pode ser lenitivo de uma dor, alívio de uma solidão, sentimento de beleza que deriva da compaixão e do amor que devemos ao próximo. Isto é, a neutralidade se encontra no ponto justo onde a satisfação de tentar superar juntos o desespero que nós mesmos nos causamos uma vez desnorteados, completamente embriagados por nossa sensorialidade e por nossa mente. Neutralidade é o momento em que evitamos o abandono do vínculo emocional com a tristeza evitando que o cheiro do sexo sem alma, ao que o institucional convida, prevaleça. "Verdade sem amor é crueldade." É isso que Bion parece dizer em algum de seus escritos . Em situações clínicas do dia-a-dia tenho presenciado, não poucas vezes, o desinteresse com que se lida com a verdade narrada das dores e das mentiras diárias que são despejadas nos consultórios terapêuticos. Ninguém quer ouvi-las, nem mediante pagamento, uma vez que o próprio espírito da curiosidade do analista está aprisionado pela burocratização que a instituição psicanalítica impõe a ele como forma de ensino. Essa atitude reduz, quase a zero, a capacidade do analista para ter prazer ao investigar estados mentais intuitivos que possibilitam a observação simultânea de como o analista experimenta suas emoções enquanto escuta e de como o paciente reage a essa observação. As manobras são complexas e o material examinado de difícil digestão. Experiências quase brutas, seguidas de mudanças bruscas de rumo, trazendo para o interior do acontecimento analítico altíssimas dificuldades no manejo de cada sessão. A pessoa do analista, que deve ser posta em "reserva", torna-se exposta continuamente ao incompreensível e acaba se distraindo da tarefa de investigar a mente para querer compreendê-la e tecnicamente domina-la, usando como subterfúgio

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a evitação das manifestações naturais dos seus afetos internos enquanto observa o fato mental. Contorcendo-se em sua orfandade e condenado a suportar doses altíssimas de angustia e incerteza, lhe é exigido que não revele, nem use seu sistema afetivo como referência intuitiva. Assim compreendida, a neutralidade torna-se elemento de ruptura, que nos afasta da função fraterna como eu a estou pensando neste texto. O analista neutro só pode ser irmão da virtualidade perfeita das imagens ideais de seu paciente e, portanto, está muito longe de compreender que o sentido de investigar é sempre aquele que aponta para o provisório de tudo, além de também apontar para a resistência que temos em nos tornar responsáveis por nosso ser, por nossos atos e por nosso destino, respondendo sem medo: "Sim, fui eu!" ao que alguém acrescenta: "E fui eu também!" Muito obrigado.

Referências

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