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Fluxos afros e indígenas e... : criações em devir

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

Diego Alexandre de Souza

FLUXOS AFROS E INDÍGENAS E...: CRIAÇÕES

EM DEVIR

CAMPINAS 2019

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FLUXOS AFROS E INDÍGENAS E...:

CRIAÇÕES EM DEVIR

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Educação, na área de concentração Educação.

Orientadora: ALIK WUNDER

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO DIEGO ALEXANDRE DE SOUZA E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. ALIK WUNDER.

CAMPINAS 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

FLUXOS AFROS E INDÍGENAS E...: CRIAÇÕES

EM DEVIR

Autor: Diego Alexandre de Souza

COMISSÃO JULGADORA:

Alik Wunder

Adilson Nascimento de Jesus Alda Regina Tognini Romaguera

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho acadêmico aos meus sobrinhos Willians César de Souza Torres Rocha, Júlia de Souza, Luiz Miguel de Souza Torres Rocha e Luísa de Souza.

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AGRADECIMENTOS

Ao CNPq, pelo apoio – o presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (processo nº 133495/2018-3).

À Alik Wunder, por tantos ensinamentos e por ser uma fonte de inspiração. Aos amigos e amigas do grupo Humor Aquoso e OLHO.

Aos professores Alda Regina Tognini Romaguera, Adilson Nascimento de Jesus, Wenceslao Machado de Oliveira Junior, Davina Marques e Antônio Carlos Rodrigues Amorim.

A todos os meus professores no Ensino Fundamental, Médio, Graduação e Pós-Graduação.

Aos alunos que passaram por minhas aulas.

Ao meu pai Marco Antônio de Souza e minha mãe (in memoriam) Marlene Bonifácio de Souza; aos meus irmãos Júlio César, Vanessa Amanda, Marcos Paulo, Jéssica Eduarda e Thaís Monique. Aos meus amadíssimos sobrinhos Willians César, Júlia de Souza, Luiz Miguel e Luísa de Souza.

À Altina Felício dos Santos, minha mãe artística; à Lygia Arcuri Eluf, meu oceano da Arte; ao Antônio Carlos Tuneu Rodrigues.

Aos grandes amigos da vida universitária Beatriz Regina Barbosa, Hugo Romano Mariano e Carlos Alberto Rocha.

À Sheila Nicolas Villas Bôas, Técnica de assuntos educacionais do Museu Nacional/UFRJ; e Ione Helena Pereira Couto, responsável pela Coordenação de Patrimônio Cultural do Museu do Índio do Rio de Janeiro.

À equipe da Secretaria de Pós-graduação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Aos artistas Rosana Paulino, Sidney Amaral (in memoriam), Sônia Gomes, Denílson Baniwa, Jaider Esbell, Arissana Pataxó e Grada Kilomba.

E agradeço a todos os artistas do universo, especialmente os de ascendência afro e os provenientes dos mundos da floresta.

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Umuntu ngmuntu ngabantu “Eu sou por que nós somos”

máxima Zulu

Wemakaa! “Viver!”

Frase do povo Baniwa

Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo!

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RESUMO

Os fluxos e vórtices deste trabalho se fazem atravessados por um agir artístico que se desenvolve pela criação: produção textual literária, e uma produção artística de imagens que compreendem fotografia e desenho. Textos e imagens criados por meio dos fluxos afros e indígenas em agenciamentos variados. Na busca de revelar minhas criações artísticas, com leveza, me debruço sobre minha biografia, evoco deslocamentos/transitoriedades e compartilho uma parcela das vicissitudes de minha jornada em torno da Arte e Educação. O devir é operador conceitual nesta dissertação de mestrado, e aqui estaremos sob o devir nas malhas deleuzeanas, em um trabalho comprometido com a multiplicidade dos mundos, com as linhas de fuga e com a área da Educação amalgamada aos processos de criação. O trabalho promove encontro com imagens de artistas de ascendências afro e indígena, dentro de uma perspectiva e produção de arte contemporânea. Esta dissertação de mestrado frui pelas redes tecidas e que se tecem por entre vidas e imagens de artistas atravessados pelas potências Afro e Indígena e..., e..., e...

Palavras-chave: Arte; Educação; Arte Afro-Brasileira; Indígenas na arte; Criação; Arte

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ABSTRACT

The flows and vortexes of this work are crossed by an artistic action that is developed through creation: literary textual production, and an artistic production of images that include photograph and drawing. Texts and images created through African and indigenous flows in various agencies. In the quest to reveal my artistic creations, lightly, I lean on my biography, evoke displacements/transitoriness and share a part of the vicissitudes of my journey around Art and Education. Becoming is a conceptual operator in this master's dissertation, and here we will be under becoming in the Deleuzian meshes, in a work committed to the multiplicity of worlds, escape lines of flight and with the area of Education amalgamated with the creation processes. The work promotes encounters with images of artists of African and indigenous descent, within a perspective and production of contemporary art. This master's thesis enjoys the woven networks that weave through the lives and images of artists crossed by the Afro and Indigenous powers and ..., and ..., and ...

Keywords: Art; Education; Afro-Brazilian Art; Indigenous in art; Creation; Art and education.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - cartaz do espetáculo de dança “VIRASER”.

Figura 2 - fotografia da encenação “VIRASER”, dirigida por Juliana Passos (crédito da imagem: Bárbara Vignolo Chambon).

Figura 3 - fotografia da encenação “VIRASER”, dirigida por Juliana Passos (crédito da imagem: Bárbara Vignolo Chambon).

Figura 4 - fotografia da encenação “Fragilíssimo”, dirigida e interpretada por Diego Alexandre de Souza (crédito da imagem: Samuel Garbuio).

Figura 5 - desenho do artista Jim Dine - fonte: site da Galeria Richard Gray.

Figura 6 - trabalho do artista Robert Rauschenberg - Fonte: site da fundação Rauschenberg. Figura 7 - desenho do artista Larry Rivers - Fonte: site do MoMA.

Figura 8 - fotografia do processo de montagem da intervenção urbana “Velho Chico” (crédito da imagem: Alik Wunder).

Figura 9 - fotografia da intervenção urbana “Velho Chico” (crédito da imagem: Revista ClimaCom).

Figura 10 - fotografia da intervenção urbana “Velho Chico” (crédito da imagem: Revista ClimaCom).

Figura 11 - fotografia da intervenção urbana “Velho Chico” (crédito da imagem: Revista ClimaCom).

Figura 12 - fotografia da intervenção urbana “Velho Chico” (crédito da imagem: Revista ClimaCom).

Figura 13 - fotografia da intervenção urbana “Velho Chico” (crédito da imagem: Revista ClimaCom).

Figura 14 - trabalho de Rosana Paulino – Fonte: site da artista.

Figura 15 - trabalho de Rosana Paulino – Fonte: site da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Figuras 16-17-18 – trabalhos de Rosana Paulino – Fonte: site da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Figuras 19-20 - trabalhos de Rosana Paulino – Fonte: site da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Figuras 21-22-23 – trabalhos de Sidney Amaral. Fonte: catálogo O banzo, o amor e a cozinha de casa.

Figura 24 - trabalho de Sidney Amaral. Fonte: catálogo O banzo, o amor e a cozinha de casa. Figura 25 - trabalho de Sidney Amaral. Fonte: catálogo da exposição: O banzo, o amor e a cozinha de casa.

Figura 26 – trabalho de Sônia Gomes. Fonte: Galeria Mendes Wood DM. Figura 27 - trabalho de Sônia Gomes. Fonte: Galeria Mendes Wood DM.

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Figura 28 - trabalho de Denílson Baniwa – Fonte: site do artista .

Figura 29 - fotografia da performance de Denílson Baniwa na 33ª Bienal de São Paulo – Fonte: site da Fundação Bienal.

Figura 30 - fotografia da performance de Denílson Baniwa na 33ª Bienal de São Paulo – Fonte: site da Fundação Bienal.

Figura 31- fotografia da performance de Denílson Baniwa na 33ª Bienal de São Paulo – Fonte: site da Fundação Bienal32.

Figuras 32-33 - trabalho e fotografia de Jaider Esbell em frente a seu trabalho – Fonte: site do artista.

Figuras 34-50 - trabalhos de Jaider Esbell – Fonte: site do artista.

Figura 51- livro ilustrado por Jaider Esbell e escrito por variados autores. Fonte: site da Editora Elefante.

Figura 52 - trabalho de Arissana Pataxó. Fonte: site do prêmio PIPA de Arte Contemporânea. Figura 53 - trabalho de Arissana Pataxó. Fonte: site do prêmio PIPA de Arte Contemporânea. Figura 54 - trabalho de Arissana Pataxó. Fonte: site do prêmio PIPA de Arte Contemporânea. Figura 55-59 – imagens do trabalho de Grada Kilomba. Fonte: catálogo da exposição: Grada Kilomba: desobediências poéticas.

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SUMÁRIO

PRÓLOGO...14

MOVIMENTO - Linhas de criação Rio de Sonhos...18

FLUIR A & I e... ...60

MOVIMENTO deslocamentos e transitoriedades Reconvexo...72

Onde eu nasci passa um rio...105

MOVIMENTO DEVIR Afro-Indígena Artistas / Contemporâneas A...122

Artistas / Contemporâneas I ...149

EPÍLOGO...176

BIBLIOGRAFIA...186

APÊNDICE – índice de imagens...192

ANEXO...198

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PRÓLOGO

No processo de pesquisa, muitos são os movimentos de descoberta e espanto. Entre as linhas que estabelecem a possibilidade de compreensão: o texto escrito, as imagens; muito se revela e muito permanece a brilhar e arder em mistério impenetrável. O devir nesta pesquisa de mestrado se desvela um operador conceitual importante, posto que, se trata de um trabalho comprometido com a multiplicidade dos mundos, com as linhas de fuga e não com formas arborescentes; uma investigação que devém devir, e que não está pautada numa analítica filosófica.

Esta dissertação de mestrado está organizada em três distintos movimentos que abrigam cada um deles duas partes.

O MOVIMENTO Linhas de criação , compreende minhas criações autorais em literatura e artes visuais, contando com o conto Rio de Sonhos, e uma composição de imagens criadas através dos fluxos afros e indígenas e... (Fluir A & I e...).

O MOVIMENTO deslocamentos e transitoriedades , compreende duas parcelas, na parte intitulada

RECONVEXO há um desvelamento sobre minha trajetória em torno da Arte; e ONDE EU NASCI PASSA UM RIO são expostos os caminhos metodológico e conceitual que nortearam esta dissertação.

O MOVIMENTO Devir afro-indígena , revela imagens dos trabalhos de artistas de proveniência afro e indígena acompanhadas de reflexões a partir de seus trabalhos.

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Carrego comigo, na composição desta dissertação uma miríade de inquietações, entre muitas, algumas são: como se dão as formações dos artistas de proveniência afro e indígena? De que modo e em quais condições elas se dão? De quais lugares geográficos e subjetivos esses artistas partem?

Dentro do panorama visual da diáspora negra as poéticas de muitos artistas de ascendência afro revelam denúncias e violências. Me pergunto, o que eclode de um trabalho artístico criado por quem está sob a égide da violência estrutural, sistêmica e simbólica: constrangido pelas forças do racismo? Dentro do panorama visual das desterritorializações e reterritorializações (im)possíveis dos indígenas: indígenas urbanos (nascidos na cidade, cidadãos portadores de documentação básica RG, CPF, carteira de trabalho que é um direito, e ao mesmo tempo, uma obrigação), indígenas em contexto urbano (nascidos em aldeia e que estão no espaço urbano por diversos motivos: saúde, educação, roubo de terras, etc., desobrigados da documentação básica), indígenas aldeados (não-partícipes do espaço urbano). Me interrogo: o que emerge dos trabalhos artísticos criados por pessoas que também estão sob a égide da violência estrutural, sistêmica e simbólica, enovelados pelas forças do preconceito?

Sob as chaves do racismo e do preconceito concernentes aos âmbitos racial e étnico, os de ascendência afro e/ou indígena compartilham a experiência brasileira da discriminação negativa por conta de seus atributos fenotípicos e/ou culturais; me inquieto sobre como contagiar a história oficial com outras narrativas, como colocar as versões históricas em multiplicidades, e consequentemente transformar a história da Educação e a história da Arte para alargar as perspectivas tocantes ao conhecimento e fruição que nos são negados sobre os contributos afros e indígenas que nos constituem a todos.

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Como (re)escrever nossas histórias, levando em conta o que já foi escrito, compreendendo que em nossa atualidade, mais de 50% da população brasileira se identifica como não-branca (fonte: IBGE – censo 2010), e a constatar que nossa produção artística e intelectual está fundamentada pelas vias oficiais (governamentais, acadêmicas, institucionais, etc.) orientadas pelas diretrizes da branquitude euro-ocidental e euro-americana?

São muitas as inquietações, e essas inquietações não são questões lançadas que precisam ser respondidas em sua totalidade. Apesar das camadas de violências, há inúmeras camadas de beleza nos universos afros e indígenas desde ancestralidades que nos remontam a tempos imemoriáveis até a contemporaneidade, existência e resistência, criação e fabulação, processos de vida e modos de invenção singulares. Atravessando meus interesses, interpelo: quais subjetividades residem nos espaços incomensuráveis de vida no âmbito da arte contemporânea conectada aos universos afros e indígenas e como os artistas contemporâneos e as pessoas são atravessadas por estas instâncias. Com quais texturas, tecituras, urdimentos, qualidades e potências? Esse trabalho resvala e se faz atravessado por estas inquietações, se movimentando por entre criações artísticas (visuais e literária), vidas e obras de arte.

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MOVIMENTO

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RIO DE SONHOS

(CONTO)

- Eu quero morrer, primeiro porque tudo tem que morrer. Nasce-se, cresce-se, floresce-se, vigora-se, prolifera-se, tomba-se, cai-se, deixa-se de existir. Enfim, há libertação nessa bola que flutua e se descama infinitamente por bocas vorazes que não cessam suas devorações. Sou um comedor de vidas e histórias inventadas. Minha indigestão é centenária, sombras e realidade se metabolizam em minhas entranhas, meu estômago é grande e elástico, mas tem limites! Minhas tripas quilometrais já se tornaram labirintos escuros que levam a lugar nenhum. Minha barriga adiposa assemelha-se a uma colcha de retalhos puída, está repleta de estrias.

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Queria expelir os tempos sedimentados nos pedaços de matéria que me fazem ser o que sou. Por anos e anos só me fazem engolir: ossos, pedras, homens, penas, letras, livros, quadros, pratos, oxímoros, tapetes, tronos, cetros, aliterações, roupas, múmias, garrafas, flechas, bandeiras, mesas, machados, esqueletos, metáforas, vertigens de invenções, regimes de verdade e inverdade, céus, sóis, nós, arames, ferros, lanças, papéis, cartas, amantes, bolas, borlas, canetas, pregos, parafusos, cômodas, terras, telhados, vidros, borboletas, madeiras, vitrines, fac-símiles, réguas, águas, cadernos, adagas, dores, granitos, cedros, perfumes, sais, saias, chapéus, relógios, britas, caos, armamentos, fotografias, cabelos, respiros, luzes, fios, elétrons, tênis, chinelos, olhos, ondas, moebius, documentos, segredos, rendas...

Era já inverno no Brasil – julho – o luminoso, mudo e pesado sol pairava sob o vasto céu da cidade do Rio de Janeiro. Há anos um amigo me ofereceu para ler “O demônio do meio-dia”. E aqui, na entrada da Quinta da Boa Vista – o sol à pino – estou a passar sozinho por um pedaço de terra singularmente triste.

Passo por um lago de águas pretas, árvores centenárias, planaltos e gramados extensos, sigo por uma via principal larga cujo chão é composto por uma terra fina e seca que parece canela em pó, pouco a pouco – como que a revelar afluentes – trilhas pequenas de poeira passam a surgir, caminhos dissonantes aparecem.

Através da luz intensa deste dia, vejo, a cerca de 100 metros um pequeno redemoinho se fazer, desfazer e se refazer. Embalagens plásticas de doces, terra, cabelos, folhas secas, gravetos, fragmentos de papel se agitam ao sabor do vento.

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Ao me aproximar do pequeno ciclone, avistei uma página solteira de um livro inexistente. Enfiei a mão no vórtice e pesquei a página velha, suja, carcomida e amareladíssima. Nas letras idosas daquele papel roto, pude ler, com gosto acre na boca e sob um filtro ocre nos olhos, um pequeno pedaço da página que voava:

“tenho medo dos acontecimentos futuros, não por eles mesmos, mas por seus efeitos.”

Dobrei o papel. Coloquei-o no bolso. Ao subir uma escarpada porção de terra, finalmente, me deparei com a visão melancólica do Museu Nacional. A fachada monumental do palácio que foi utilizado durante o Império do Brasil como residência pela família imperial brasileira, é agora guardadora de heterotopias complacentes. Dispositivo que encerra mundos pulsantes.

Impossível exprimir como se deu, mas ao primeiro plano da edificação uma sensação de tristeza insuportável se entranhou em meu espírito.

Olhei para a paisagem que me circundava (para as paredes pardacentas, incrustadas de histórias e mortos opulentos já dissolutos no ar,para as árvores que ainda resistem, algumas barrocamente retorcidas e adornadas por caminhos irisados e tortuosos feitos por lesmas) com uma profunda depressão.

Em todas essas coisas há um frio, uma dor cinza, fina, indelével, um adoecimento das emoções. *

Me foi interdita a entrada pela frente do Museu, a não ser que eu pagasse a taxa de entrada e adquirisse o bilhete. Entrei pelos fundos do Museu (pelo fato de estar ali enquanto pesquisador, para uma visita técnica agendada a algumas semanas), o vigia desatento e infeliz me perguntou para onde eu ia e para falar com quem,

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a partir de meus dizeres me orientou o caminho, e me fui, envolto em uma névoa úmida para as entranhas do Museu.

Adentrei o pátio, que era dono de um imodesto chafariz sem água, pássaros pretos e castanhos, alguns parecidos com caroços generosos de manga se agitavam em torvelinhos pelo lugar. Fui em busca de M.; ao entrar no edifício me deparei com o elevador, suas portas densas e imóveis de metal conjunto a um odor exponencialmente nauseabundo. Um outro vigia, responsável por essa outra área, ao ver minha expressão involuntária de desagrado diante daquele fedor explosivo, pôs-se a explicar que aquele cheiro vinha do vão do elevador: um gambá feminino deu à luz três dias antes na madrugada; no espaço vazio (térreo) onde opera a cabine do elevador. Não se sabe como o bicho entrou naquele espaço, mas fato é, que a cabine na madrugada não estava no térreo.

Quando, de manhã, o Museu abriu e o elevador passou a ser usado, a cabine esmagou mãe e filhotinhos, sem dó, sem piedade, sem intenção, apenas isso: o elevador desceu.

Insidiosamente a atmosfera putrefata havia dominado o ambiente.

Segui em busca de M., eu precisava fazer a visita técnica ao Museu, especificamente, eu precisava mergulhar na sala Etnologia Indígena Brasileira, porém neste exato momento, tudo que eu mais queria era me desvencilhar da área fétida.

Avistei a sala de M. na lonjura do espaço, no Museu a sala ficava na ala oeste – na Seção de Assistência ao Ensino - setor educativo. M. era uma mulher instigante, talvez entre 50 e 55 anos. Pelo corredor eu ia em sua direção. Num grito interno no qual apenas foi possível escutar um suave ruído ela disse meu nome, num misto de acalorada recepção e pergunta:

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– D.?

Eu lhe ofereci um sorriso, meneios de cabeça e meu andar apressado.

O sorriso que M. retribuiu revelou dentes brancos e arredondados semelhantes a uma linha de caroços de milho branco em uma espiga de milho careca. Ou seus dentes me lembraram um colar de pérolas guardado há tempos em uma gaveta, no porão de uma casa antiga, por anos desabitada.

Mal nos apresentamos, M. já me inunda com livros (nos dizeres dela "colhidos") emprestados da Biblioteca Francisca Keller, pertencente ao Museu.

Na página 18 de A Outra Margem do Ocidente li: “Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, mas não tem nenhuma sabedoria. Não pensam mais no que eram seus ancestrais quando foram criados. Nos primeiros tempos, eles eram como nós, mas esqueceram todas as suas antigas palavras. Mais tarde, atravessaram as águas e vieram em nossa direção. Depois, repetem que descobriram esta terra. Só compreendi isso quando comecei a compreender sua língua. Mas nós, os habitantes da floresta, habitamos aqui há longuíssimo tempo, desde que Omama nos criou. No começo das coisas, aqui só havia habitantes da floresta, seres humanos. Os brancos clamam hoje: 'Nós descobrimos a terra do Brasil!'. Isso não passa de uma mentira. Ela existe desde sempre e Omama nos criou com ela. Nossos ancestrais a conheciam desde sempre. Ela não foi descoberta pelos brancos! Muitos outros povos, como os Macuxi, os Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari, os Xavante, os Kayapó e os Guarani ali viviam também. Mas, apesar disso, os brancos continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra! Como se ela estivesse vazia! Como se os seres humanos não a habitassem desde os primeiros tempos!

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Os brancos foram criados em nossas florestas por Omama mas ele os expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram perigosos para nós. Ele lhes deu uma terra, muito longe daqui, pois queria nos proteger de suas epidemias e suas armas. Foi por isso que os afastou. Mas esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas palavras se propagaram por muito tempo. Eles se lembraram: 'É verdade! Havia lá, ao longe, uma outra terra muito bela!', e voltaram para nós. Na margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram viviam outros índios. Esses brancos eram pouco numerosos e começaram a mentir: 'Nós, os brancos, somos bons e generosos! Damos presentes e alimentos! Vamos viver a seu lado nesta terra com vocês! Seremos seus amigos!'. Era com essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar desde que também chegaram a nós. Depois dessas primeiras palavras de mentira eles foram embora e falaram entre si. Depois voltaram muito numerosos. No começo, sem casa nesta terra, ainda mostravam amizade pelos índios. Tinham visto a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui. Mas desde que se instalaram realmente, desde que construíram suas habitações e abriram suas plantações, desde que começaram a criar gado e a cavar terra para procurar ouro, esqueceram sua amizade. Começaram a matar as gentes da floresta que viviam perto deles.

Nos primeiros tempos, os seres humanos eram muito numerosos nesta terra. É o que dizem nossos mais velhos. Não havia doenças perigosas, sarampo, gripe, malária. Estávamos sozinhos, não havia garimpeiros para queimar o ouro, fábricas para produzir ferro e gasolina, carros e aviões. A floresta e os que a habitavam não estavam o tempo todo doentes. Foi apenas quando os brancos se tornaram muito numerosos que sua fumaça-epidemia xawara começou a aumentar e a se propagar por toda parte. Essa coisa má se tornou muito poderosa e foi assim que as gentes da floresta começaram a morrer. Quando viviam sem os brancos nossos ancestrais não

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tinham fábricas, caçavam e trabalhavam em suas plantações para fazer crescer seu alimento. Também não sujavam todos os rios como esses brancos que agora procuram ouro em nossas terras.

'Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos importantes', dizem os brancos. Mas são apenas palavras de mentira. Eles não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para se pôr a devastá-las. Todas as terras foram criadas em uma única vez, as dos brancos e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso existe desde os primeiros tempos, quando Omama nos fez existir. É por isso que não creio nessas palavras de descobrir a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra, é por isso que repetem essas palavras. São também as dos garimpeiros a propósito de nossa floresta: 'Os Yanomami não habitavam aqui, eles vêm de outro lugar! Esta terra estava vazia, queremos trabalhar nela!'. Mas eu, sou filho dos antigos Yanomami, habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri! Ela sempre esteve ali, antes de mim. Eu não digo: 'Eu descobri esta terra porque meus olhos caíram sobre ela, portanto a possuo!'. Ela existe desde sempre, antes de mim. Eu não digo: 'Eu descobri o céu!'. Também não clamo: 'Eu descobri os peixes, eu descobri a caça!'. Eles sempre estiveram lá, desde os primeiros tempos. Digo simplesmente que também os como, isso é tudo."1

Na página 30 leio um parágrafo apenas: "Desde os primeiros administradores da Colônia que chegaram aqui, a única coisa que esse poder do Estado fez foi demarcar sesmarias, entregar glebas para senhores feudais, capitães, implantar pátios e colégios como este daqui de São Paulo, fortes como aquele lá de Itanhaém."2 Eram

as portentosas vozes de Kopenawa3 e Krenak4 em um livro de capa vermelha e cor laranja.

Por um segundo um entre-tempo se fez e pude estar na antiga casa de minha irmã em Itanhaém. Tive minhas mãos enfarinhadas e doridas de sovar pão, o delicioso pão que fazíamos juntos. Como um espírito,

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como num flash de luz eu me deslocava pelos velhos e humildes pontos (hoje!) turísticos de Itanhaém. A velha igreja católica e sua ladeira de cascalhos: o Convento Nossa Senhora da Conceição em pé por quase 500 anos! no alto do morro Itaguaçu. As ruínas do Abarebebê, pertencentes ao antigo Itanhaém e hoje emancipado Peruíbe, vetusto, parco em substância e pleno em história... A "cama de Anchieta", formação rochosa entre duas praias possuidora de uma espécie de leito esculpido pelo tempo, que abriga a lenda que revela ter sido, esse leito, o espaço onde o complexo personagem eurocêntrico (que ajudou a construir o Brasil e que ajudou a destruir as multiplicidades do devir-indígena na terra habitada pela diversidade devastada pela ignomínia europeia Meu D'us bendito seja o nome do S'nhor! Nasceu em San Cristóbal de La Laguna em 1534 Tenerife região das Ilhas Canárias na Espanha esse que veio ter no Brasil antes de ser Brasil Brasil esse tal filho de uma família de guerreiros (porcos eles) tendo sido um de seus irmãos defensor do El ejército de Flandes organizado

por la rama española de la dinastía de los Habsburgos la casa de Austria en los territorios de los Países Bajos Españoles esse tal de padre Anchieta esse mesmo que usaram para nome da fundação TV e rádio Cultura que

fez o Castelo Rá-tim-bum e a droga do programa Roda Viva o padre José de Anchieta tinha tudo para ser guerreiro combatente mas tinha temperamento acanhado e era dado as letras tinha aptidão para a poesia se dava bem com latim estudou no colégio das Artes da Companhia de Jesus em Portugal com 14 anos era estudante em Coimbra tinha a saúde fraca no Brasil antes de ser Brasil o padre Anchieta chegou e rodou todo e mais além o litoral paulista Catequizando Batizando Ensinando Um dos grandes fundadores da violência simbólica por essas paragens João Paulo II em 1980 o beatificou e em 2014 o Papa Francisco o canonizou e o fez apóstolo do Brasil por ter sido um dos pioneiros da introdução do cristianismo aqui).

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Nesta instantânea reminiscência, numa imagem amarela minha irmã me diz que Itanhaém é a pedra que canta.

- Guana-pará, pronunciou M.

Debruçado sobre a mesa, me viro para o rosto de M. como se meus olhos fossem uma câmera fotográfica, cuja lente 50 mm, a capturasse num ângulo contre-plongée e a transformasse em uma altiva nauta, dona de sílabas dançosas, bailarinas que são, movimentavam-se para orbitar meu interesse.

Kûáranãpará, a Guanabara veio do Tupi, é essa enseada ou lago parecido com o mar. Ou seio do mar, ou peito que alimenta perenemente. Ou Iguaá-Mbará.

O estrangeiro disse: Mamópe setã? O tupinambá respondeu: Kariók-pe.5

A Quinta da Boa Vista que hoje é o Museu foi erguida no alto de um morro para brindar os olhos de quem vê com a opulência da geografia da cidade.

As janelas - órbitas que se abrem - foram alçadas ao éter para que pudessem abrigar a brisa oceânica. Como é sabido, grande parte da configuração da cidade do Rio de Janeiro foi feita a partir de aterros. No centro da cidade, coração do lugar, morros foram desbastados, explodidos. Passaram a não mais existir.

Mangues, brejos e lagoas foram suprimidos; o intrincado e movente chão de águas profusas da baía - veio pela mão do homem - encontrar a retidão da procura estéril, agenciada pelos fluxos urbanos financeiros ferozes, na argúcia angustiante do estabelecimento de algum capitalismo cujas raízes em enovelamentos lancinantes se desenvolvem inexoravelmente a partir de alguma eurocentricidade.

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Não importa que estejamos num continente cujo nome homenageia Américo Vespúcio. Não importa que o Brasil (em cartografias de um passado remoto, bem pra lá dos mais de quinhentos anos: Bresil, Brasir, O'Brasil, Hy Brazil, O'Brassil, Breasil); se pelo cinábrio, se pelo monge irlandês São Brandão, O navegador. Pouco importa se a ilha mítica se consolidou na terra que aqui estamos. Não me importa se para os de lá a nossa realidade tropical era verdadeiramente o Paraíso; e muito me importa se ousadamente invadiram o Paraíso sem a justa e obrigatória passagem pelo Rio Lete. Muito me importa a consciência má e devastante que aportou por aqui e permaneceu por longo e tenebroso período.

Já não mais me importa se um monte de árvores com troncos de cor vermelha, como brasas incandescentes, uma miríade braseira faz o Brasil, se o nome é mais velho que a substância do olhar dos que se apropriaram do espaço, se a origem do nome é gaélica ou latina, se é da matéria dos sonhos místicos da terra ancestralmente pagã violentada e cristianizada, se Teosi e Zezusi puderam assistir a máquina burocrática da Igreja Católica Apostólica Romana lançar bulas permissivas para o horror. Aqui é o semba do mundo.

***

Agora vamos iniciar a visita técnica ao Museu, são bem mais que três horas da tarde, em poucas horas o Museu fechará suas pesadas portas.

M. me esclarece que precisará se ausentar e deixará comigo a arte-educadora G. Desterro.

M. é uma funcionária antiga, ela é quase uma peça do acervo. M. irá ao médico e retornará as 22:00 horas, permanecendo até não sei que horas no Museu.

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M. me pergunta se quero voltar a noite para o Museu para reencontrá-la e finalizar a visita. Me conta sobre a beleza do lugar a noite, do silêncio, da solenidade, dos mistérios e assombros possíveis da solitude do Museu vazio a noite.

"Tem muita gente que não vive vivendo dentro Museu."

M. se vai. Nos encontraremos as 23:00 horas na entrada que fica nos fundos do Museu. ***

Estamos eu e G. Desterro, ela é jovem, aparenta 30 anos, usa um vestido branco, austero. Me faz perguntas sobre o porquê de minha visita técnica, perguntas sobre a pesquisa que desenvolvo, perguntas sobre minha vida acadêmica. Respondo pormenorizadamente cada questão e, sem qualquer real interesse, lhe retribuo todos os questionamentos.

Quero saber também como M. poderá me receber tão tarde no Museu (aceitei prontamente o convite quando ela o fez, porém considerei imensamente estranho e insólito estar tão tarde vasculhando, passeando por uma instituição pública secular).

G. Desterro então me contou que o Museu tem uma dinâmica bastante singular; o Museu é um complexo que agrega exposições, bibliotecas e muitos pesquisadores de diferentes áreas: antropologia biológica, antropologia social, arqueologia, linguística, etnologia, botânica, entomologia, geologia e paleontologia.

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Iniciamos a visita pelo talvez mais antigo material exposto no museu: o meteorito Bendegó. Meteorito encontrado na Bahia no século XVIII e que foi por ordem de Dom Pedro II levado para o Rio de Janeiro. O meteorito pesa mais de 5 toneladas, foi encontrado por um menino, um simples pastor de gado. Quando da primeira vez do deslocamento deste material, a carreta que o transportava não aguentou e desgovernada caiu no riacho Bendegó. Vi inúmeras rochas, minérios de variados nomes, tamanhos e cores. Um carnaval de formas orgânicas, serpenteantes linhas buriladas por temporalidades densas: Avanhandava, Campos Sales, Carlton, Henbury, Krasno Jarrk, Patos de Minas, Pirapora, Santa Catarina, São João Napomuceno. Em cada amostra de rocha havia uma plaquinha com o nome da cidade ou região onde foi encontrada (e mais um monte de informação, realmente inútil para o grande público).

Ao atravessarmos um pórtico, pela luz âmbar da tarde somos recebidos pelo Unaysaurus, uma escultura de dinossauro repleta de vida, um bicho de pele grossa com cores zebradas: preto e azul, algumas manchas brancas, olhos redondos e penetrantes, semelhantes a um camaleão. Trata-se da reconstituição do fóssil encontrado em sedimentos na Formação Caturita, no distrito de Água Negra, ao sul do município de São Martinho da Serra, no Rio Grande do Sul. Eis o fóssil de um dos bichos mais antigos do Brasil. O Unayssauros viveu no período Triássico, 251 a 199,6 milhões de anos atrás. Ao lado da sala temos uma ossada de 13 metros de altura, é o Titanossauro, e demos um salto para o Cretáceo superior (99,6 a 66,5 milhões de anos atrás). Do lado oposto, temos as ossadas do tigre-dentes-de-sabre e das preguiças gigantes, estamos no cenário do Pleitosceno brasileiro, regressamos para pouco mais de 1,5 milhões de anos, um vento passa e uma pluma adentra o corredor, pudemos contemplar dois animais da megafauna extinta.

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Alguns passos adiante, lê-se a frase estampada na parede "O sertão já foi mar". Entramos na parcela DINOSSAUROS DO SERTÃO: estamos na Chapada do Araripe, um planalto com dezenas de quilômetros que abriga as Formações do Crato e Romualdo. O que se apresenta a nossos olhos são diversos quadradinhos com pequenos rabiscos em tons terrosos e arenosos - pois são fósseis - desenhos lavrados desde tempos imemoriáveis no chão e nas escarpas do lugar. O planalto perpassa Pernambuco, Ceará e Piauí. Estudos revelados nas paredes do Museu nos dizem que nessa região há 115 milhões de anos havia um lago de água doce. No transcorrer do tempo o mar avançou para o interior do continente e por volta de 110 milhões de anos atrás o lago de água doce se fez laguna de água salgada. Esse foi um período de uma vida gorda em desenvolvimento de vários organismos, como peixes, pterossauros e dinossauros. Com o passar do tempo a laguna deixa de existir e nasce um sistema de rios, que por meio das explanações de G. Desterro, compreendemos que esse sistema fluvial gerou às rochas que formam a Chapada do Araripe. Ao longo das dezenas de milhões de anos, os processos geológicos modificaram profundamente o lugar. O que estava submerso, totalmente debaixo d'água foi elevado e se tornou seco e exposto.

G. Desterro me dá as costas e segue por um longo corredor, eu, entendo que é então hora de deixar essa mostra e seguir adiante, me vou atrás dela. Entramos na ala nominada Zoologia. Como num zoom estou num filme de terror chamado: Vertebrados e Invertebrados; do lado direito "Aves do Museu Nacional", do lado esquerdo "Insetos, crustáceos, moluscos e quelicerados".

As aves imóveis que estão no Museu Nacional são desconcertantes, uma coleção com quase dois séculos de existência, inúmeros bichos empalhados, preservados para fins educacionais ou científicos. Sou

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recepcionado pelo Gavião Real e pelo Albatroz gigante, poderosos seres voadores. Estão com as asas abertas, mostrando assim, a magnitude de suas envergaduras. As etiquetas fixadas abaixo de seus corpos dizem:

Gavião Real, Harpia harpyja. Descrição: Ordem Falconiformes. Linnaeus, 1758. A harpia ou gavião-real é o predador alado brasileiro mais poderoso. Ocorre em florestas bem conservadas de todo o Brasil, já sendo raro ao longo do leste brasileiro, devido à destruição da Mata Atlântica. Se alimenta de macacos, preguiças, quatis e outros animais que preda nas florestas. As fêmeas podem ser bem maiores que os machos, uma comum estratégia em grandes predadores. Alguns pesquisadores alegam que essa diferença de tamanho aumenta a ágama de possíveis presas e, portanto, a viabilidade evolutiva dessas aves. A harpia é a ave símbolo do Museu Nacional.

Albatroz gigante, Diomedea exulans. Descrição: Ordem Procellariiformes. Linnaeus, 1758. Os albatrozes são grandes voadores que chegam a três metros de envergadura. São aves oceânicas, comedoras de lula e outros invertebrados marinhos. Eles ocorrem, principalmente, nas altas latitudes do hemisfério Sul.

Uma profusão de pássaros me enche a alma de boniteza e susto, por que o espaço é altamente lúgubre; e então, retorno num átimo, àquela sensação de tristeza anteriormente vivenciada. Tudo que foi vivo um dia, se agitava por mares e florestas, produzia variações, semeava, comia, acasalava, cantava, está, como estas duas espécies, conservado, estabelecido nos tempos mortos do agora.

Viajo nas formas, nas texturas das plumas, nas cores que em alguns corpos seguem análogas, e em outros em contrastes dilacerantes e improváveis, capazes de nos fazer morrer de beleza. O Urutau ou Mãe-da-lua-gigante me espantou, os olhos pretos como petróleo e o bico que parece uma boca humana numa escarnescente gargalhada.

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Sigo por entre aves do Brasil, suas asas que não se movem, seus olhos que nada veem, etiquetas de um metal brônzeo a revelar seus nomes, as datas em que foram encontradas. Arapaçu de Bico Torto, Curiango, Seriema (que é uma caçadora nata de cobras que ocorre em grande parte das áreas abertas brasileiras), Ema (parente dos avestruzes, ave sem poder de voo, na pequena etiqueta diz que é o macho quem choca os ovos e cria os filhotes), Mocho Orelhudo (que é uma coruja impressionante), Pavó, Tesourinha da Mata, Tiê Galo, Tucanuçu, Maguari, João Bobo, Limpa Folhas de Testa Baia, Arara Azul, Fragata, Mutum-de-penacho, Inhuma, Azulona, Anambé preto, Sanã parda.

Novo susto, cheguei em: Invertebados - Insetos, crustáceos, moluscos e quelicerados. De longe, em algumas paredes brancas vejo algo parecido com uma oficina de produção de joias, onde estão dispostas inúmeras amostras de pedras preciosas, gemas pequenas e brilhantes. Na parede branca, saltam aos olhos uma coleção de quartzos fumê, do preto ao marrom translúcido, citrinos amarelos, topázios deslumbrantes, esmeraldas verdes como certas águas do mar da Bahia.

Ao longe, pedras preciosas. De perto, exposição de insetos, três grupos: Ordem Blattaria (baratas), Ordem Coleoptera (besouros), Ordem Orthoptera e Subordem Ensifera (esperanças e grilos).

Que frêmito! Que assombro!

As baratas em diversos tons de marrom, do claríssimo ao quase preto. Os besouros passam pelo furta-cor e deslindam-se em pujantes arcos-íris efêmeros, eles são realmente os tesouros das caixinhas de joias do Museu expostos; azuis e verdes de indescritíveis urdiduras, amarelos detalhes semelhantes a trabalhos de ourivesaria de igrejas barrocas. As esperanças e grilos, muitos tipos verdejantes como a erva saudável que recebe muita luz do sol e muita água fresca, outros tipos belamente ressequidos como folhas outonais ocres, cor

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de terra e areia, quase ordinários, quase oníricos. Suas asas - leves véus nacarados - imobilizadas há tempos pelos técnicos da instituição, nos ensinam sobre mimetismos através da aparência, sem jamais nos ensinar.

Adiante estão os crustáceos. Ojeriza, essa é a palavra que pode descrever como me sinto se fosse possível que me tocassem. Caranguejos de diferentes tonalidades e de diferentes biomas estão em exibição. Em vitrines próximas as paredes estão outros crustáceos que considero formas de vida de difícil compreensão, que despertam minha repulsa e fascínio, e aos quais, muito brevemente estou a ler informações sobre. Dispersas informações que promovem um pouco mais de confusão no meu olhar - família Scyllaridae, família Chaetiliidae, Família Pollicipedidae Pollicipes elegans, Família Balanidae...

Os moluscos estão dispostos no Museu como um infinito mosaico, repleto de harmonia, tudo muito lindo e muito próximo ao que se pode ver nas praias. Um oceano de conchinhas do mar. Um intervalo de ternura depois de tantos insetos e caranguejos.

E chegamos a última parcela deste eixo-temático: Quelicerados! O horror nos assola novamente: aranhas, escorpiões e carrapatos. Simplesmente um horror! Passo por essa sala com rapidez, preciso me poupar de venenos e dissabores.

G. Desterro me introduz no novo universo expositivo chamado Antropologia Biológica. Entramos nos fluxos humanos. Espanto, absorção, magnetismo e mistério estão presentes. Cada uma das peças pertencentes a esta sala são singulares e irmãs.

Cabeça mumificada produzida pelos Shuar (Jivaro) é a peça que primeiro vejo neste ambiente. É complexa, mas olhando ao redor tudo é complexo; retornando aos ambientes que a pouco deixei constato quão complexas foram as experiências diante das materialidades percebidas, uma intensa experiência visual, com

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camadas de temporalidades deslizantes. O que mais me atravessa é o fato de toda essa matéria ter um acúmulo de verdades. Independente de discursos e narrativas. Independente de molduras, vitrines, textos, mediações, palavras, refletores, pedestais. Rochas, bichos e agora pessoas se apresentam e estáticos não param de pulsar.

Essa verdade é de uma incompreensão imensa, recai sobre si mesma incógnita imanente. Impermanências e acumulações.

A cabeça mumificada tem cabelos pretos. A cabeça foi encolhida e parece uma bonequinha ou uma sofisticada escultura. A cabeça foi encolhida para fins ritualísticos pelos indígenas que vivem na Amazônia, na parcela amazônica hoje pertencente ao Equador e Peru, não há uma data especificada na peça, mas há vestígios deste povo desde mais de setecentos anos atrás. É um povo muito conhecido no mundo por conta da técnica e tradição (proibida pelo Peru nos anos 50 e pelo Equador nos anos 60) extraordinária de encolhimento de cabeças humanas decapitadas.

Segundo G. Desterro diversos museus do mundo possuem essas cabeças, são diversos os interesses: culturais, museológicos, científicos. Como permanecem preservados mesmo num clima quente e úmido da Floresta Amazônica?

Sabe-se hoje que uma parcela do procedimento utilizado por esse povo para conseguir o encolhimento é a retirada do crânio de dentro da pele, e por diversos outros procedimentos, grosso modo, envolvendo água quente e fogo faziam a pele encolher sem que se perdesse a aparência do rosto.

Essa sala tem mais mortos, depois da cabeça encolhida, temos a "múmia do Brasil" exposta! por conta dos experimentos com carbono 14 é sabido que essa múmia encontrada no território brasileiro tem por volta de 600 anos. A preservação natural de corpos humanos é rara no Brasil devido ao clima tropical e o solo ácido,

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principais fatores que aceleram a decomposição dos corpos. A "múmia" encontrada em território brasileiro e em exposição no Museu Nacional é um corpo preservado por séculos em uma gruta, trata-se de uma mulher e duas crianças; pesquisadores constataram que a gruta era um cemitério indígena Botocudo, da etnia Maxakali, Kanakan ou Makuni. O que vemos no Museu é a figura frágil de um corpo que parece ter sido construído em invenção. Pergunto para G. Desterro se o que está exposto é uma réplica, sobretudo me interesso em saber por conta da raridade do material e também do impacto e violência pela amostragem tão nua, delicada e destrutível.

Muito perto, guardado por vidros está o crânio humano de indivíduo feminino, que assim como a múmia encontrada em território brasileiro foi coletada em Minas Gerais, embora no mesmo Estado, estavam em regiões diferentes. O crânio humano de indivíduo foi coletado na gruta conhecida como Lapa Vermelha, na década de 1970; numa missão arqueológica franco-brasileira com pesquisadores do Museu Nacional e estrangeiros. Experimentos com carbono 14 revelaram que o crânio tem entre 11 mil e 11.500 anos de existência. Fazendo desta peça o esqueleto mais antigo das Américas; a partir de então ele ficou conhecido como Luzia. O crânio apresenta formas que desafiam as narrativas consagradas sobre o povoamento da "América" pelo estreito de Bering.

Adjacente ao crânio temos propriamente a imagem de Luzia. Um busto com a configuração de uma mulher de dimensões fidedignas ao crânio vizinho. Não ossos e passado, e sim a tentativa de trazer ao tangível: carne, pele, boca, cartilagens, expressão. O Museu produziu a "Reconstituição de Indivíduo Humano de Sexo Feminino". O rosto foi construído na Inglaterra, e se baseia em diversas possibilidades cristalizadas numa versão acabada. Refere-se a um dispositivo fronteiriço entre ciência e arte, por um lado o crânio é um elemento irrefutável, por outro o rosto que o veste é uma elucidação possível.

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Saímos do setor Antropologia Biológica e alcançamos o setor nominado Arqueologia, composto por quatro partes: Egito Antigo, Culturas do Mediterrâneo, Arqueologia Pré-Colombiana e Arqueologia Brasileira, essas partes se subdividem e se interpenetram.

Do pórtico da entrada avisto a grande peça majestosamente colocada no centro da sala. O caixão do sacerdote Hori, de cerca de 1049 a 1026 a. C., pertencente a XXI dinastia, coletado em Tebas ocidental, atual Luxor. Foi presente político do Egito para o Brasil. As marcas do tempo perpassam o caixão, muitas marcas de batidas, muitos arranhões e rachaduras, porém os inúmeros defeitos não conseguem macular a suntuosidade do artefato. Totalmente feito em madeira policromada é ricamente pintado. Sobre todo o fundo há um amarelo esmaecido - a cor do papiro que enovelava o morto nas tessituras do Livro dos Mortos - circundado por padrões variados, hieróglifos profusos e retângulos emoldurados por linhas azul-turquesa, num deles, bastante preservado está um fragmento da mitologia egípcia da Antiguidade. Numa cena de cosmogonia vê-se a deusa Nut cujo corpo amparado no chão pelos pés-pernas e mãos-braços, que com esforço erguem o tronco e criam o céu, a deusa é a personificação da Abóbada celeste; arqueada projeta-se sobre Geb, seu esposo e deus que personifica a Terra. Entre os dois, com os braços levantados está Shu, o deus do Ar, avizinhado pelos deuses com cabeça de carneiro que representam os ventos. São imagens milenares que revelam uma cultura adepta a concepção da ressureição.

Dois caixões na sala, antropomórficos, em paredes opostas parecem dialogar pelo espaço, bocas fechadas, olhos abertos, grandíssimos com círculos pretos como jabuticabas cintilantes. Diferentemente do caixão deitado e sobre cavaletes no centro da sala, estes dois estão em pé. Um é o caixão de Sha-Amun-en-su, o outro a tampa do caixão de Hariese, um tem a pele marrom o outro tem a pele preta.

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G. Desterro discorre sobre a poderosa cultura egípcia da Antiguidade e sobre alguns estudos que ela teve contato enquanto funcionária do Museu. O que mais me chamou a atenção foi a busca dos historiadores eurocêntricos em privilegiar sempre o período ptolomaico da história egípcia, que é justamente o âmbito do domínio grego e branco (que coincide com o período do declínio).

Os tempos profundos, da gênese e florescimento da civilização egípcia guardam a profusão de ações de seres humanos de pele preta e marrom, cuja evidência inconteste é visível pela estatuária copiosa que resiste até os dias atuais.

Por meio de fragmentos do passado é possível ver uma quantidade incomensurável de modos de existência, entre muitas linhas é possível vislumbrar como se desenham de forma bastante gráfica os vórtices de preconceitos e apagamentos perpetrados por uns para fazer enfraquecer os outros.

Passamos pelas estelas funerárias, que são lápides de rochas calcárias com figuras e inscrições incisas, algumas feitas a quase dois mil anos a. C.

Passamos por estatuetas e diversos artefatos como a micro escultura milenar Shabti Hanemakhbit, a estátua de Ísis lactante, a estátua do deus Bés, os vasos canopos (que guardavam em seus interiores as vísceras embalsamadas durante os processos de mumificação).

Da tempestade de areia dos rizomas da História do Egito Antigo chegamos às culturas do Mediterrâneo, uma coleção greco-romana. Segundo G. Desterro, a coleção veio a existir por conta da Imperatriz Teresa Cristina, que se casou com D. Pedro II por procuração. Saída de Nápoles, muito antes da República Italiana existir, chegou ao Rio de Janeiro, muito antes da República Federativa do Brasil existir. Trouxe em sua bagagem um pedaço bastante caro da Europa: peças coletadas nas escavações de Pompeia e Herculano.

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Esta coleção é extasiante, entretanto passei por ela de modo breve, como a ver vitrines em shopping. O próximo ambiente é referente a Arqueologia Pré-Colombiana, não gosto do nome Colombo, não gosto das culturas aqui apresentadas estarem circunscritas na chave Pré-Colombiana, não gosto sequer do nome América para o continente. Não obstante, compreendo o fastidioso jogo destas nominações.

Na sala de chão de madeira estão dispostos alguns artefatos que em comum tem o fato do tamanho pequeno, estão alocados com pequenas placas que marcam suas procedências. Da cultura Chankay há três elementos: um cântaro antropomorfo, um fragmento de tecido que se constitui uma cantoneira de um manto sacerdotal e um fragmento de tecido de tanga. A cultura Chankay se desenvolveu onde hoje se encontra o Peru, sobretudo entre os anos 1000 e 1400 d. C. nos vales do Rio Chankay e Chillon.

A cultura Chimu, também se desenvolveu onde hoje está o Peru, mas no Vale do Rio Moche, onde no litoral abrigou a capital Chan Chan que teve mais de 50 mil habitantes no século X; através das explanações de G. Desterro venho a saber que nessa região havia distinções e profundas disputas entre os povos dos Vales e os povos das Montanhas (Cordilheira dos Andes), da cultura Chimu estão expostos um vaso duplo com a cabeça de um pequeno gato, e um vaso com alça ponte e quatro patas.

Da cultura Inca estão expostos dois acessórios plumários, a etiqueta diz que foram confeccionados com penas de araras (Ara macao e Ara ararauna), parecem dois pequenos ramalhetes, um com flores laranjas e o outro com flores azuis, amarelas e brancas.

Uma pessoa apressada aparece na sala e chama por G. Desterro, revela que alguém a espera em sua sala e que é urgente. G. Desterro, ternamente me diz que retornará em dez minutos e sai.

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O Quipu Inca está exposto, é composto por cordões que eram um dos meios de comunicação naquela sociedade. Por meio de nós, quantidades eram expressadas. Frouxidão, apertos, cores, distâncias entre nós indicavam diversas informações sobre variados temas.

A miniatura de uma túnica Inca também estava em exposição, medindo 7,5 x 5cm revelava o apreço aos detalhes daquele povo.

Vi um adorno em lã, algodão e pigmento da cultura Lambayeque, misturando vermelho e rosa. Vi a múmia Aymara, o esqueleto de um ser humano envolto em um fardo funerário oriundo da região andina do Lago Titicaca. Vi a múmia pré-histórica de um indivíduo humano de sexo masculino encontrada no deserto do Atacama em uma sepultura na cidade de Chiu-Chiu que fica a mais de 2000 metros de altitude; um corpo com mais de 3000 mil anos, foi sepultado como era de costume no âmbito atacamenho, sentado.

Completamente só, sem G. Desterro, sem M., sem guardas, sem qualquer transeunte na sala, adentrei o espaço dedicado a Arqueologia Brasileira. Maravilhado, hirto, pela entrada permaneço como um monolito, meus olhos, faróis incandescentes, lambem todas as superfícies presentes no aposento. Sambaquis, primeiros habitantes, populações pescadoras e coletoras que viveram nas faixas costeiras do Brasil entre 8 mil anos e o início da era cristã. Rio Trombetas e os zoolitos em forma de peixes nas paredes. A Cultura Maracá. A Cultura Marajoara. A Cultura Konduri. A Cultura Santarém. Cerâmicas, padrões, vasos, urnas, vasilhames, muiraquitãs.

As luzes foram desligadas. Um guarda veio me avisar que o Museu fechou.

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Entreguei as cópias reprográficas dos meus documentos como me foi solicitado muito antes desta visita. Guardei em minha bolsa o documento que M. havia me deixado, um papel autorizando minha entrada as 23:00 horas no Museu, guardei também o certificado de minha visita técnica.

Me despedi.

Sob o ocaso deixei o Museu, suas histórias, suas vicissitudes, seus restos humanos, seus insetos trancados em caixas, suas baratas enfileiradas em paredes, suas cerâmicas milenares, suas penas, seus ecos que apenas ecoam e nada mais.

Descendo as alamedas da Quinta da Boa Vista, aquele sentimento de tristeza, um certo adoecimento das emoções que experienciei na entrada, insidiosamente voltou a ter intimidades comigo.

Passei pelo portão gigantesco que limita o terreno, cumprimentei o guarda que ali estava.

Atravessando a rua está a estação de metrô Maracanã. Decidi retornar ao hotel no qual estou hospedado. Passo por mendigos, miseráveis e sujos; e por um odor nauseante de fezes e urina. Subo as escadas da estação e contemplo o céu. Do alto, agora, me viro e vejo os miseráveis, maltrapilhos, com expressões famélicas pelas calçadas da avenida, homens e mulheres, peles expostas, dores expostas, vidas. O guarda fecha as grandes, pesadas e ornamentadas folhas do portão do Parque Municipal Quinta da Boa Vista.

Que desencanto.

O trem chega. Entro, me sento, através da janela vejo parcelas da cidade do Rio de Janeiro sob a luz laranja. Quanta coisa eu vi! E o Museu fechou bem na hora em que cheguei realmente perto do que mais me interessa: o Brasil. Mas retornarei em poucas horas, e acredito, terei uma experiência fascinante nessa incursão noturna dedicada ao âmago do meu interesse nessa visita técnica: a sala Etnologia Indígena Brasileira e o

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espaço dedicado a África. Como no Museu há pouca coisa sobre o nosso continente; muito pouco material Inca exposto, e Astecas nem ao menos foram mencionados.

Abro meu caderno, vejo minhas anotações, desenhos, rabiscos, informações, diversos momentos dispersos e fixados à caneta no papel, pensamentos, sensações traduzidas em palavras e guardadas no caderno. Passando pelas inúmeras páginas, encontro folhas dobradas contendo pedaços de impressões reprográficas de textos que carrego comigo por que não sei, por que bem sei! Um deles ofertado por minha amiga de Campinas B., escrito por uma artista, mulher negra na segunda metade dos anos 1990, em São Paulo-SP:

"Sempre pensei em arte como um sistema que devesse ser sincero. Para mim, a arte deve servir às necessidades profundas de quem a produz, senão corre o risco de tornar-se superficial. O artista deve sempre trabalhar com as coisas que o tocam profundamente. Se lhe toca o azul, trabalhe, pois, com o azul. Se lhe tocam os problemas relacionados com a sua condição no mundo, trabalhe, então, com esses problemas.

No meu caso, tocaram-me sempre as questões referentes à minha condição de mulher e negra. Olhar no espelho e me localizar em um mundo que muitas vezes se mostra preconceituoso e hostil é um desafio diário. Aceitar as regras impostas por um padrão de beleza ou de comportamento que traz muito preconceito, velado ou não, ou discutir esses padrões, eis a questão. Dentro desse pensar, faz parte do meu fazer artístico apropriar-me de objetos do cotidiano ou eleapropriar-mentos pouco valorizados para produzir apropriar-meus trabalhos. Objetos banais, sem importância. Utilizar-me de objetos do domínio quase exclusivo das mulheres. Utilizar-me de tecidos e linhas. Linhas que modificam o sentido, costurando novos significados, transformando um objeto banal, ridículo, alterando-o, tornando-o um elemento de violência, de repressão. O fio que torce, puxa, modifica o formato do rosto, produzindo bocas que não gritam, dando nós na garganta. Olhos costurados, fechados para o mundo e,

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principalmente, para sua condição de mundo. Apropriar-me do que é malvisto. Cabelos. Cabelo 'ruim', 'pixaim', 'duro'. Cabelo que dá nó. Cabelos longe da maciez da seda, longe dos comerciais de shampoo. Cabelos de negra. Cabelos desvalorizados. Cabelos vistos aqui como elementos classificatórios, que distinguem entre o bom e o ruim, o bonito e o feio. Pensar em minha condição no mundo por intermédio do meu trabalho. Pensar sobre as questões de ser mulher, sobre as questões da minha origem, gravadas na cor da minha pele, na forma dos meus cabelos. Gritar, mesmo que por outras bocas estampadas no tecido ou outros nomes na parede. Este tem sido meu fazer, meu desafio, minha busca."6

*

Decido não ir para o hotel. Desço na estação Carioca, no coração da cidade do Rio de Janeiro. Lembro de ter lido que quando os invasores europeus chegaram no dia primeiro de janeiro na Baía de Guanabara esta era profundamente habitada por diversos homens e mulheres, entre muitos, os extintos Tupinambás, dos quais não vi coisa alguma no Museu.

Os que viveram na Kûaranãpará de mais de cinco séculos atrás, tinham cá, por essa região que hoje é o metrô, as águas benignas e sagradas do Rio Kariok.

Sei que não há mais rio aqui, mas na minha solidão e vontade, me coloco ridiculamente a procurar o que não existe. Por que? Por que posso!

Quantos prédios há nessa região, e quão bonitos são, e quão abundantes são. Nas ruas rios não há, mas sim uma profusão de carros bamboleantes a vaguear e soltar fumaças. Bondes contemporâneos (os veículos leves sobre trilhos -VLT) serpenteiam pelo lugar impondo ritmos circunspectos.

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Me vou pelas ruas do centro da cidade, pelos becos. Avisto a rua do Ouvidor, antiga rua Desvio do Mar, vejo as ruelas de paralelepípedos. Os prédios dos anos 20, dos anos 50, do modernismo, da belle époque. Vou andando com medo dos batedores de carteira. Contemplo a beleza que se espraia por todos os lados, seguindo sem direção, observando as fachadas das igrejas católicas, que são muitas nessa região, cada uma delas singular, única.

Os lugares fechados, as antigas confeitarias: a Casa Cavé, a Confeitaria Colombo. O Museu Imperial. O Centro Cultural dos Correios. O Centro Cultural Banco do Brasil. A Casa França-Brasil. E a Candelária. A Igreja Nossa Senhora da Candelária majestosa, magna, bela.

Num átimo regresso aos anos 90, sob minha cabeça desfalecem os jovens de rua que morreram no sopé da imponente igreja, e também os que saíram feridos e traumatizados para o resto da vida. As crianças assassinadas por volta da meia noite por milicianos.

Em frente à igreja, no jardim há uma cruz de madeira com o nome dos jovens: Paulo Roberto de Oliveira, 11 anos

Anderson de Oliveira Pereira, 13 anos Marcelo Cândido de Jesus, 14 anos Valdevino Miguel de Almeida, 14 anos "Gambazinho", 17 anos

Leandro Santos da Conceição, 17 anos Paulo José da Silva, 18 anos

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Meninos pretos com vidas ceifadas perto de onde se propõe redenção, mas que se fez martírio.

Prossigo, desço como água pelas ruas do lugar, escorrendo pelo morro chego na Praça Mauá. O Museu do Amanhã. Branco. A revelar para além de si a fina e delgada linha da ponte Rio Niterói. A Baía de Guanabara espelha o céu em suas águas, nesse céu de início de noite, profundamente negras.

Como água doce que ao chegar perto das águas salgadas do mar escolhe, decide e quer retornar para o interior, me transmuto de água para o metal e me torno agulha a costurar a cidade. Por uma rua vizinha encontro o Cais do Valongo, vestígio material (desenterrado em 2017) da chegada dos africanos escravizados nas Américas. Por vinte anos (1811-1831), enquanto funcionou, entre 500 mil e um milhão de homens e mulheres negros desembarcaram nessa plataforma de tráfico transatlântico.

Ouço o som do tambor! por graffitis amadores, desenhos de variantes cores, bonequinhos, bonés, rostos do Amarildo, flores, aparelhos de som; pichações variadas desde letras ininteligíveis até as garrafais LULA LIVRE! entro numa ruelinha, tão estreita que os únicos veículos capazes de passar por elas seriam uma moto ou uma bicicleta. A agulha alinhava a cidade, estou a entrar na Pedra do Sal, o monumento histórico e religioso onde está o quilombo contemporâneo e urbano chamado Comunidade Remanescentes dos Quilombos da Pedra do Sal. O berço do samba do Brasil, o princípio do engendramento do carnaval carioca, dos desfiles das Escolas de Samba. Da proteção e amparo as profundezas da negritude, as raízes misteriosas e oceânicas das Culturas Africanas.

Uma roda imensa de capoeira mistura corpos dançantes com berimbaus e diversificados instrumentos musicais de percussão. Meu coração navega, marco o lugar em minha memória, voltarei aqui, e prossigo.

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Desço por uma rua de pouca luz, sigo obstinado em linha reta, não sei onde vou parar, por hora, apenas sigo. Por volta de vinte minutos de caminhada chego numa paragem a qual reconheço o espaço. O Parque Campo de Santana cercado por grandes grades de ferro está com os portões fechados. Propínquo ao parque está a rua dos Inválidos, onde fica a Casa das Pretas, local onde Marielle Franco proferiu seu último discurso.

Chego a rua Mem de Sá, estou na Lapa, transpus os Arcos da Lapa, nesses arcos do antigo aqueduto água nenhuma passa mais, somente o bonde que leva as pessoas até o alto do morro de Santa Teresa.

Os famosos hoje, Arcos da Lapa, antigo aqueduto Carioca é uma das mais importantes obras realizadas durante o período colonial. O Rio Kariok, o rio sagrado dos indígenas que habitavam o Rio de Janeiro que não era Rio de Janeiro nascia na Floresta da Tijuca, região hoje em que fica o Cristo Redentor e caminhava até o mar da Baía de Guanabara, onde hoje fica a praia do Flamengo.

O largo da Carioca, num chafariz que abastecia as casas de uma era sem tratamento de água muito menos água encanada, continha as águas do rio Kariok (palavra que origina-se de Akari Oka, a casa do peixe Akari, peixe esse conhecido também como cascudo foi abundante neste rio), que era transportada pelo aqueduto.

Lembro-me vagamente de ter escutado, não sei se a assistir um documentário, ou numa mesa-redonda universitária, se num bar, se em aula, que a foz do Rio Kariok, quando esse existia na superfície, se encontrava no sopé do outeiro da Glória, elevação onde fica hoje a Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro.

Saio da Lapa, passo pelos muros da Glória, um leve elevado murado com balaústres, postes e luminárias antigas, que por essas horas iniciais da noite acolhe travestis seminuas que oferecem serviços sexuais. Chego no sopé do Outeiro da Glória. Há uma larga praça com uma estátua de bronze retratando Pedro Álvares Cabral

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empunhando uma vasta bandeira, num pedestal de 10 metros de altura em granito brasileiro, exatamente onde está essa praça era a foz do rio, hoje não há foz, nem rio e nem água. Eu, agulha a costurar a cidade, ouço, ao longe os murmúrios do mar. A marina da Glória é próxima, tomo essa direção, ando, caminho, tiro os sapatos. Tenho os pés na areia. Estou na praia do Flamengo. De onde estou vejo o Pão de Açúcar, um gigante de pedra reclinado. Do outro lado, como que a flutuar sobre o céu da cidade (por conta da falta de luz da noite fazer desaparecer o morro Corcovado e o facho de luz do refletor sobre a estátua a sobressaltar), o Cristo Redentor com os braços eternamente abertos, que parecem abençoar infindamente a orbe, mas incapaz de desfazer as desigualdades e a violência na urbe.

Preciso comer, tenho fome. Preciso beber, tenho sede. Nesse percurso flâneur não me ative ao tempo, e já agora, é tempo de me preparar para o segundo round no Museu.

Entro no restaurante mais próximo as vistas, me abasteço do que há e o que há me conforta.

Me utilizo do wi-fi gratuito aos clientes do restaurante, checo meus e-mails e mensagens na web. No avalanche de mensagens, informes, propagandas, alguém me enviou um link para o site da Mangueira, ressaltando o argumento do carnavalesco para o enredo atual:

HISTÓRIA PRA NINAR GENTE GRANDE é um olhar possível para a história do Brasil. Uma narrativa baseada nas “páginas ausentes”. Se a história oficial é uma sucessão de versões dos fatos, o enredo que proponho é uma “outra versão”. Com um povo chegado a novelas, romances, mocinhos, bandidos, reis, descobridores e princesas, a história do Brasil foi transformada em uma espécie de partida de futebol na qual preferimos “torcer” para quem “ganhou”. Esquecemos, porém, que na torcida pelo vitorioso, os vencidos fomos nós.

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Ao dizer que o Brasil foi descoberto e não dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos feitos que, na realidade, roubaram o protagonismo do povo brasileiro; ao selecionar heróis "dignos" de serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas são fruto da concessão de uma “princesa” e não do resultado de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em sono profundo.

De forma geral, a predominância das versões históricas mais bem-sucedidas está associada à consagração de versões elitizadas, no geral, escrita pelos detentores do prestígio econômico, político, militar e educacional - valendo lembrar que o domínio da escrita durante período considerável foi quase que uma exclusividade das elites – e, por consequência natural, é esta a versão que determina no imaginário nacional a memória coletiva dos fatos.

Não à toa o termo “DESCOBRIMENTO” ainda é recorrente quando, na verdade, a chegada de Cabral às terras brasileiras representou o início de uma “CONQUISTA”. E, ao ser ensinado que foi “descoberto” e não “conquistado”, o senso coletivo da “nação” jamais foi capaz de se interessar ou dar o devido valor à cultura indígena, associando-a “a programas de gosto duvidoso” ou comportamentos inadequados vistos como “vergonhosos”.

Comemoramos 500 anos de Brasil sem refazermos as contas que apontam para os mais de 11.000 anos de ocupação amazônica, para os mais de 8.000 anos da cerâmica mais antiga do continente, ou ainda, sem olhar para a civilização marajoara datada do início da era Cristã. Somos brasileiros há cerca de 12.000 anos, mas insistimos em ter pouco mais de 500, crendo que o índio, derrotado em suas guerras, é o sinônimo de um país atrasado, refletindo o descaso com que é tratada a história e as questões indígenas do Brasil. Não fizeram de

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