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MUITO ALÉM DO CARTÃO POSTAL: A CIDADE REMEMORADA NA POESIA DE JORGE COOPER Susana Souto Silva (UFAL) 1

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MUITO ALÉM DO CARTÃO POSTAL: A CIDADE REMEMORADA NA POESIA DE JORGE COOPER

Susana Souto Silva (UFAL)1

Resumo: Variadas e complexas são as relações entre espaço urbano, memória e poesia. Neste texto, serão analisados poemas do poeta alagoano Jorge Cooper (1911-1991) que abordam a relação entre espaço urbano e memória, em diálogo com de teóricos que pensaram o espaço e a memória, como Michel Collot (2013), Paul Ricouer (2007) e Jacques Le Goff (2003).

Palavras-chave: Jorge Cooper; Cidade; Poesia.

Introdução

Andamos pelas ruas de muitas cidades conduzidos/as por poemas, contos e romances. Conhecemos o movimento colorido da rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, lendo as narrativas machadianas. Andamos pelas praias de Pernambuco, pelos cemitérios alagoanos e pelos canaviais do Nordeste, em muitos versos de João Cabral de Melo Neto. Os textos, em verso e em prosa, dialogam continuamente com o espaço em que são escritos e também compõem esses espaços em nosso imaginário.

As relações entre cidade e literatura foram ainda construídas na relação entre escritor e mercado editorial. No século XX, a desigual industrialização brasileira força ondas migratórias das quais não escapam os/as escritores/as, que dão cotinuidade a um movimento iniciado já no século anterior, em que muitos nomes que hoje compõem o nosso cânone saíram de estados do Nordeste para buscar melhores condições de vida e possibilidades de publicação, em especial, no Rio de Janeiro, capital do império no século XIX, cidade onde se concentravam as maiores editoras do País, até o final do século passado. Desse processo migratório, faz parte o poeta Jorge Cooper (1911-1991), filho de mãe alagoana e pai inglês; ele vai para o Rio muito cedo, volta para Maceió e depois retorna ao Rio, já casado. Em nenhuma das cidades que morou, Rio, Maceió ou São Luís do Maranhão, porém, Cooper consegue aderir aos grupos de poder e prestígio, provavelmente devido as suas posições políticas de esquerda, um comunista que faz vigorosas críticas ao Estado brasileiro e ao seu caráter patrimonialista, defende a

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necessidade da revolução e o fim da propriedade privada, como afirma e reafirma, em conversas com amigos e em entrevistas (COOPER, 2010). Assim, ausente dos grupos de poder e dos círculos lietrários de prestígio, só publicou em vida seleções de poemas, nenhum livro integralmente.

Sua poesia completa veio a público quase 20 anos após a sua morte, em 2010 e contém os livros: Achados e Poesia sem idade, que englobam poemas escritos entre 1945 e 1968; Linha sem traço, Poemas (Quando em São Luís), Os últimos, Os últimos

II, Os últimos III e Os últimos IV. Na poesia cooperiana, prevalece o que Calvino, referindo-se à obra de Paul Valéry, denomina “tensão para a exatidão”, marca dos poetas “[...] para quem o uso da palavra é uma incessante perseguição das coisas, uma aproximação, não de sua substância, mas de sua infinita variedade, um roçar de sua superfície multiforme e inexaurível” (CALVINO, 1991, p. 90). Os títulos reafirmam uma poética da síntese e da exatidão; quando ele não consegue fazê-los densos, usa somente a palavra Poema ou lhes atribui apenas números, o que predomina, principalmente, nos quatro últimos livros de sua obra, em que a ideia de fim é reafirmada continuamente, desde o título, Os últimos .

Na maior parte dos seus livros, há poemas curtos, compostos quase sempre com menos de dez versos, também curtos, em que raramente são usados metros regulares e formas convencionais, fixas, e que prescindem da pontuação, exceto no que concerne ao travessão e ao parêntese.

Em texto publicado no jornal O Estado de São Paulo (1991), e agora relançado em apêndice na Poesia completa, o poeta e crítico José Paulo Paes ressalta, como traços predominantes dessa poesia, “[...] a concisão epigramática, a condensação expressiva e a unidade de registro” (2010, p. 358). Paes destaca ainda o uso original da pontuação, restrita ao travessão e aos parênteses, uso esse associado à busca de uma linguagem sem excesso, à qual Cooper dedica um metapoema (2010, p. 297):

POEMA

Minha vida não tem pontuação

i. é

só parêntese e travessão

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Eis por que nos meus poemas não abro mão do parêntese e do travessão

Em vida, publicou apenas poemas em jornais, no Rio, e duas antologias – o que cria algum estranhamento, uma antologia que precede a obra completa – feitas pela boa vontade de amigos que frequentavam a sua casa em Maceió, quando ele retorna para a cidade devido a problemas de saúde e financeiros. Na capital alagoana, morava seu filho único, também poeta, Charles Cooper, médico, que acompanha o pai no tratamento de sua doença que paulatinamente vai roubando seus movimentos, como escreve no tocante poema “Com a idade que tenho” (COOPER, 2010, p. 244):

Com a idade que tenho estão meus dias contados

– Em crescente minguante contados

E minha memória claudica

Enquanto a hora não chega e em nada me faça

eu

bicho que sou

vou me sabendo árvore

O poema acima, de um dos seus últimos livros, aborda a aguda consciência da passagem do tempo, bem como a sua relação com a memória e o corpo, temas recorrentes em seu temário. O tempo é também o centro de outro poema desse livro, significativamente intitulado “Desoras” (COOPER, 2010, p. 26).

Eventualmente, a memória é associada, de modo direto ou indireto, às cidades que Cooper habita, ao longo de sua vida, Maceió, Rio de Janeiro e São Luís do Maranhão; esta última, referida já no subtítulo do livro Poemas (Quando em São Luís) (2010). Alguns desses poemas, que abordam a relação memória e espaço urbano, serão aqui analisados.

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A cidade rememorada

Maceió foi celebrada e também duramente criticada, em canções, contos, poemas, romances, como Angústia, de Graciliano Ramos. Essa oscilação, às vezes, ocorre em uma única obra, como é o caso da poesia de Jorge Cooper, marcada por forte inflexão autocrítica e pela recorrência do discurso memorialístico, em que as imagens do passado mesclam-se à percepção do espaço, referidos diretamente à cidade habitada ou não, da infância, da juventude e da velhice, bem como à reflexão acerca da inapreensibilidade dos sentidos contraditórios do tempo e da própria finitude. Em “Bilhete” (COOPER, 2010, p. 45), lemos:

A memória não é um palimpsesto Uma aranha mexe-se na teia

Tua lembrança ganha-me o sensório infiltra-se-me no sangue

ressuscita-me nossa história Sempre me foste ouvidos

Neste poema não usarei de métrica e rima (Artifícios à memória)

− É de fácil gravação

Ressuscitar-te-á nossa história.

A memória é, em Cooper, matéria de sua poesia densa e em tensa relação com a reflexão sobre a morte, o tempo, a loucura, o amor. A evocação do tempo passado, perdido, não raro, se faz a partir do enfrentamento da memória e do esquecimento. Paolo Rossi, em O passado, a memória, o esquecimento, afirma que:

Entre as razões que explicam as paixões atuais pelo tema da memória há, sem dúvida, uma grande “demanda do passado” e uma renovação do interesse pelos argumentos e temas que pareciam superados ou marginais, tanto para os teóricos da invasão geral da técnica no mundo moderno, quanto para os teóricos da superação do capitalismo e da revolução mundial (2010, p. 25).

Em Achados, primeiro livro de Cooper, a noção de memória é evocada, direta e indiretamente; pelo uso do vocábulo memória, bem como pela presença recorrente de outros do mesmo campo semântico: lembrança, herança, passado, história, vivido. Nas

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páginas iniciais desse livro, o poema, “Aspiração” enfrenta o tempo: “(os ponteiros do relógio são o tempo de braços abertos/ ao infinito das horas)” (COOPER, 2010, p. 23).

Em seus poemas, Maceió, quando aparece, é um espaço metamórfico, cuja transformação é nitidamente operada pelas memórias dos dois momentos em que o poeta a habita: na infância e na juventude, tempo de descobertas, amores e convívio com a família, as imagens do pai, e, algumas vezes, da mãe e da casa, em muitos dos seus poemas, imbricam-se com as da cidade rememorada reconstruída nas malhas dos seus versos; e na velhice, quando retorna à cidade antes abandonada, para aqui viver seus últimos anos e elaborar seus últimos poemas; nesta nova etapa de convívio com a cidade, temos um olhar marcado pelo desencanto e também afetado pela doença, que o faz ficar cada vez mais limitado ao espaço doméstico e ao convívio com familiares, amigos e vizinhos.

A cidade da infância, em alguns dos seus poemas, é associada às memórias da vida familiar, em convívio com o pai, agora ausente; essa memória transfigura de modo bastante delicado a percepção que o sujeito poético tem da cidade, como ocorre no primeiro poema do seu primeiro livro, Achados (COOPER, 2010, p. 23):

Meu pai

Hoje vivi sentimentos de meu pai Assobiei suas modinhas prediletas Como não fui ao circo que há na cidade (primeira de suas diversões)

passeie em derredor

Através do pano ouvi as graças sem graça do palhaço o contentamento ingênuo do povo

Depois

sentei-me à Praça Deodoro no seu banco predileto

(Mas faltou o grupo de amigos a que se reunia) Aspirei o ar desembaraçado do logradouro Espiei a lua e as estrelas no alto

por entre as franças da árvore que me servia de sobrecéu

Olhei as mulheres que passavam à procura de homem (Era dez horas)

Satisfiz meu pai

De volta para casa só não fiz beber e fumar Como era sonhador

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Em uma organização circular, o poema, escrito em versos livres, começa e termina com a referência ao pai e tece fios de memórias da infância aos fios de memórias de Maceió, com sua Praça Deodoro em intenso movimento noturno. Esta praça é um lugar central na cidade, fica em frente a um teatro homônimo, ambos, homenagens ao marechal que deu um golpe e proclamou a república. A vivência, pela remininiscência, dos sentimentos do pai, anunciada no primeiro verso, se processa pelo recurso da canção; as modinhas guardadas na memória e agora assobiadas pelo filho, sujeito que tenta restaurar a presença do pai, e se processa também pela repetição do percurso urbano feito partilhado outrora com o filho, que, agora, sozinho, tenta refazer seus passos, incorporar seus passos. Esse movimento entre passado e presente, que remete para o futuro, mimetiza o percurso memorialístico ancorado em elementos mínimos, o canto, o percurso, o olhar, e busca reviver no corpo do sujeito poético a presença do corpo paterno, agora ausente e presente, em alguma medida, uma vez que parte do pai sempre vive no filho/a. É, simultaneamente, busca e perda, a busca do tempo perdido, de que Proust nos fala; é também a busca de perder-se, nesse processo de rememoração; é ainda a busca de restaurar poeticamente essa perda, de modo que algo não se perca de todo, uma vez que permanecerá inscrito em seus versos, nos versos de um filho em percurso pela memória, pela cidade, pela palavra cantada e escrita.

Esse percurso, porém, é parcial, assim como rememorar é, antes, reordenar fragmentos, dando sentido ao passado, a partir do presente, e não repetição literal do que é pretérito. No poema cooperiano acima citado, o sujeito poético, significativamente, não entra no circo, fica em suas margens, ouvindo barulhos; a audição, aliás, é retomada neste poema como primeiro operador memorialístico, pela repetição da modinha, e aqui volta com os barulhos do circo, um índice também de alegria. O circo, diversão preferida do pai, é recurso metonímico para refazer a memória da infância vivida em companhia do pai, tempo ao qual o poema retorna. Tempo e espaço não se dissociam, a memória do pai afeta a percepção do espaço, uma vez que “O ambiente visual do homem não é uma adição de estímulos pontuais, mas um conjunto estruturado pelo ponto de vista do observador, que põe as coisas em relação umas com as outras, segundo um processo complexo de ‘ocultação reversível’” (COLLOT, 2013, p. 21).

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Rememorar é ter consciência, simultaneamente, da presença e da ausência, que no poema é indicada, entre outras imagens, pelo banco preferido do seu pai, que já não é mais o mesmo, pois além do pai, falta a roda de amigos que lhe dava sentido, e nele pouco tempo o filho permanece. Para Paul Ricouer (2007, p. 45):

Desde Platão e Aristóteles, falamos da memória não só em termos de presença/ausência, mas também em termos de lembrança, de rememoração, aquilo que chamavam anamnesis. E quando essa busca termina, falamos de reconhecimento. É a Bergson que devemos o ter recolocado o reconhecimento no centro de toda a problemática da memória. Em relação ao difícil conceito da sobrevivência das imagens do passado, seja qual for a conjunção feita entre as noções de reconhecimento e de sobrevivência do passado, o reconhecimento, tomado como um dado fenomenológico, permanece, como gosto de dizer, uma espécie de “pequeno milagre”. Nenhuma outra experiência dá a este ponto a certeza da presença real da ausência do passado.

O sujeito poético se desloca por tempos, espaços, sons e sentidos, demorando-se a olhar o burburinho da praça, as mulheres que procuram homens, a lua, o céu filtrado pela copa das árvores e conclui seu passeio com o retorno sóbrio para casa (“só não fiz beber e fumar”) e com a referência ao sentimentalismo do pai, descrito como sonhador, traço que parece ser partilhado pelo filho que transita por essas memórias, que, ao refazer o percurso constata a falta desse pai morto, consolidada no verbo ser no pretérito imperfeito, “era”, e a presença desse pai agora apenas em sua memória; ele, o pai, vive antes por efeito da rememoração que está entrelaçada, necessariamente, ao presente e ao futuro.

A cidade da miséria: além do cartão postal

Há um segundo movimento em relação a Maceió, na obra cooperiana, que remete à cidade do presente do sujeito poético, vivida não mais na perspectiva daquele que rememora com saudade a infância, mas daquele que se confronta com a cidade desencantada, sem a alegria do convívio com o pai, com a mãe, mas sim, a cidade da falta, da desigualdade:

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MACEIÓ A cidade

não saiu do lugar – Cresceu

o progresso a espichou

O progresso é também fazedor da miséria

– (E como a miséria cresceu em Maceió)

(COOPER, 2010, p. 262)

Apesar de, em sua vida, ter assumido posições políticas à esquerda, o que poderia levá-lo à elaboração de uma poesia de denúnicia e combate social, a poesia de Jorge Cooper não tem como central, em seu temário, a abordagem de temas ligados a esse universo; só raramente adota um tom de denúncia ou de direta tematização de questões sociais. Este poema, no entanto, trata o espaço urbano a partir dessa perspectiva. Os problemas sócio-econômicos do estado de Alagoas são muito graves, isso se revela na posição cocupada por sua capital, e muitos outros dos seus municípios, no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH). Em 1991, Maceió tinha um IDH de 0,507, ficando atrás de Porto Velho (RO), Rio Branco (AC) e Palmas (TO); em 2010, esse índice havia subido para 0,721, porém, a cidade estava agora em último lugar, sendo, portanto, a capital brasileira com o pior IDH do País2.

Maceió está no título e é citada também no último verso do poema transcrito acima, descrita como lugar da miséria, longe do cartão postal, da imagem exuberante que apaga as contradições e ressalta apenas o que pode ser visto como prazeroso e pacífico, consensual, espetacular.

Ao olhar para Maceió, o sujeito poético não vê suas praias e belezas, vê apenas o crescimento de sua miséria, a desigualdade que se amplia no mesmo ritmo em que a cidada cresce. Aliás, antes, o que cresce, quando a cidade cresce, é a miséria, a injustiça. Na segunda e última estrofe, ahá uma afirmação categórica avessa à celebração do progresso, descrito como “também fazedor de miséria); o vocábulo “miséria” é 2 De acordo com o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013, divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA e Fundação João Pinheiro - FJP, com dados extraídos dos Censos Demográficos de 1991 e 2010. Disponível em http://www.deepask.com/goes?page=Veja-ranking-das-capitais-pelo-Indice-de-desenvolvimento-Humano. Acesso: 10 maio de 2017.

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novamente repetido, agora entre parênteses, na reafirmação da relação entre Maceió e “miséria”, vista pelos olhos do sujeito poético que se espanta e entristece com a visão da miséria que engole a cidade. O espaço urbano é, desse modo, visto a partir das relações sociais e econômicas (indissociáveis das questões políticas) que o engendram:

O espaço deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da própria sociedade que lhe dá vida (...) o espaço deve ser considerado como um conjunto de funções e formas que se apresentam por processos do passado e do presente (...) o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que se manifestam através de processos e funções (SANTOS, 1978, p. 122).

O poema, portanto, não assume uma postura celebrativa do progresso que “espicha a cidade”, ao contrário, o descreve como causa da miséria que a corrói e, portanto, o progresso perde seu caráter de positividade, de algo a ser comemorado, nem aborda a cidade da infância, como em outros, mas sim, confronta-se com os gravíssimos problemas que, ao mesmo tempo, em uma imagem contraditória, destrói e amplia a cidade.

São Luís: outra cidade

A cidade, em sua relação com a memória, é também resgatada de modo explícito no livro Poemas (Quando em São Luís), indicação que já vem referida no título. Composto de 56 poemas curtos, este volume também está dividido, como ocorre com seus dois primeiros títulos, em três partes, nas quais a memória atravessa temas outros, como amor e a aguda consciência da brevidade do tempo. No entanto, apesar de a cidade ser referida no título (o que poderia indicar uma presença constante ao longo do livro), em apenas um poema ela é diretamente citada. Poucas são as referências a elementos concretos da cidade, como no “Poema primeiro”, da terceira parte (COOPER, 2010, p. 199):

Aqui estou eu em São Luís

– eu em minha sombra – sem espírito e sem alvo acaso

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as ondas

– as ondas do seu mar Atlânticas

No início do poema, uma voz poética que se confronta com os limites da escolha, com a inevitabilidade do espaço, aqui e agora (em elipse) se fazem ouvir. Destituído de limites definidos, cada vez mais mergulhado em questões de ordem existencial, sobre o sentido da vida, o fluir do tempo e a morte, esse sujeito é assombrado por si mesmo, “eu em minha sombra”; esse estar em sua própria sombra, é estar “sem espírito e sem alvo”, lançado ao “acaso”, fora do controle do seu destino, sem o leme de sua vida. A reflexão leva o sujeito poético a fundir-se com o mar, correlato objetivo externo dessa angústia, em seu contínuo desassossego (“sem sossego sempre”), mais ainda em março. O oceano Atlântico aproxima as três cidades que Cooper habita: Maceió, Rio de Janeiro e São Luís; engole-as e o engole num contínuo fluir de memórias, em que espaços se misturam.

Última parada

As cidades que habitamos e que nos habitam, ao lermos e escrevermos, existem como uma cidade invisível, como nos ensina Calvino, em seu belíssimo livro, em que enarrativa e ensaio se fundem, sem respeitar os limites de gênero, as fronteiras entre espaços textuais. Habitar Maceió e lê-la nos versos de Cooper é transitar por um universo em contínua transformação, uma vez que olhar a cidade através do olhar do sujeito poético que constroi a cidade outra é refletir sobre a possibilidades e perdas de uma cidade que nunca está onde esperamos, que não correponde ao que desejamos, mas que pode nos surpreender como um espaço carregado de sentidos inauditos, imprevistos, que podem, se algum modo, ser ditos e pressentidos pelos ritmos dos versos e pelas linhas da prosa.

A poesia de Cooper é antes um convite a nos lembrarmos e a nos esquecermos do espaço que habitamos, do tempo que nos devora:

INDAGAÇÃO Dentro da velhice

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Preso pelo tempo Mocidade e meninice para lá do tempo

– De desandarem a correr atrás do tempo

Onde encontrar o relógio que volte de correr atrás do tempo

(COOPER, 2010, p. 157)

Arte e memória mantêm complexas relações desde tempos remotos. Na Antiguidade, essas reloações estão no cerne da epopeia, cuja função precípua era preservar e projetar para o futuro de modo exemplar as ações do herói épico, guia e síntese da coletividade à qual se vinculava: “Os gregos da época arcaica fizeram da memória uma deusa, Mnemosine. É a mãe das nove musas, que ela procriou no decurso de nove noites passadas com Zeus. Lembra aos homens a recordação dos heróis e de seus altos feitos, preside a poesia lírica. O poeta é, pois, um homem possuído pela memória [...]” (LE GOFF, 2003, p. 433). Este mundo dos herois épicos modelares, há muito entrou em declínio, no entanto, a contemporaneidade também retoma as relações entre memória e poesia, e as mobiliza de outros modos, quase sempre vinculados à reflexão acerca da tradição que os precede.

A obra de Jorge Cooper é uma poesia de difícil inclusão num fluxo mais amplo da produção poética brasileira da segunda metade do século XX, com a qual dialoga. O seu percurso poético se confunde com seu percurso político e com traços marcantes de suas escolhas, avesso a qualquer inclusão em grupos de prestígio e muito crítico em relação às relações de poder que também atravessam o campo literário. Tardiamente apresentada ao público, mas em uma cidade que não está no centro dos poderes atuais, sua obra nos fala das relações complexas também acerca da circulação de poesia no Brasil, de texto literário, que também remetem à distribuição de poderes, saberes e verbas, na configuração de uma história que nem sempre é escrita.

Cooper celebra a memória e esquecimento, em sua poesia sucinta, na escolha do elemento mínimo, em poemas escritos sobre cidades e tempos irrecuperáveis. Celebra o silêncio e a palavra, como toda poesia que permanece em nossa memória, individual e

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Referências

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Lições americanas. Trad. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Trad. Ida Alves. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2013.

COOPER, Jorge. Poesia completa. Maceió: CEPAL, 2010.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Irene Ferreira e outros. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2003.

PAES, José Paulo. A lírica de Jorge Cooper. In: COOPER, Jorge. Poesia completa. Maceió: CEPAL, 2010, pp. 357-364.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.

Referências

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