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A dispersão do sujeito na letra da música Bom Conselho, de autoria do cantor e compositor Chico Buarque de Holanda

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Academic year: 2021

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A dispersão do sujeito na letra da música Bom Conselho, de autoria do cantor e

compositor Chico Buarque de Holanda

Dra. Gilsa Elaine Ribeiro Andrade 1

Dra. Josefa Jacinto de França 2

Resumo

Este artigo se propõe a apresentar uma análise da letra da canção Bom conselho, de Chico Buarque de Holanda, gravada em 1972, em parceria com Caetano Veloso, constituindo, portanto, nosso objeto de estudo. Nesta análise, nosso objetivo consiste em apresentar a múltipla construção do sujeito no texto, através das vozes nele presentes; enfocando, principalmente, o fenômeno da negação; além de demonstrar que, nesta letra, o discurso é constituído por uma dispersão de textos e sujeitos, que corroboram na sua natureza heterogênea. Assim, no discorrer do artigo, apresentamos pontos da teoria da Análise do Discurso; seguidos de marcas bibliográficas de Chico Buarque, as quais fazem com que ele seja situado no contexto histórico, político e social da época em que escreveu a canção. Resumidamente, abordaremos sobre a formação do texto; a noção de discurso; e a dispersão do sujeito em Bom Conselho. A metodologia para a análise constitui-se na aplicação de conceitos baseados nos estudos sobre a heterogeneidade do texto; como também a dispersão que fundamenta as várias posições ocupadas pelo sujeito em um texto, numa abordagem fundamentada pela teoria da Análise do Discurso. Sua análise nos leva à conclusão de que seu discurso é constituído por uma dispersão de textos e de sujeitos; como também de que o título da letra é condizente com as várias vozes presentes nesse discurso. Para essa análise, fundamentamo-nos nos pressupostos teóricos da Teoria da Análise do Discurso, ancorados em autores Maldidier (2011); Maingueneau (2015); Foucault (2009), Henry (1992), Orlandi (1999) e Althusser (1980ª).

Palavras-chave: Chico Buarque; Bom Conselho; Análise do discurso.

1 Doutora em Literatura e Cultura pelo Programa de Prós-Graduação em Letras (UFPB). Professora de Língua Portuguesa da DeVry João Pessoa. Contato: gandrade2@devryjoaopessoa.com.br.

2 Doutora em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (UFPB). Professora de Ensino Superior da Universidade do Vale do Acaraú - UVA - e da Faculdade Devry. Contato:

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1. Introdução

Este artigo tem como foco principal apresentar uma análise da canção Bom Conselho, de autoria de Chico Buarque de Holanda, dentro de uma perspectiva da Análise do Discurso (AD). Para isso, baseamo-nos nos estudos sobre a heterogeneidade do texto, partindo do princípio de que, Bom Conselho, foi formado por mais de um texto, e por mais de uma voz (sujeito). Além disso, abordamos o conceito de heterogeneidade, a partir dos pressupostos teóricos de Maingueneau (1089) e sua teoria da enunciação. Em seguida, analisamos a canção “Bom conselho”, de Chico Buarque, na perspectiva da dispersão do sujeito nela presente, principalmente sob a ótica do fenômeno da negação, a partir do qual, o autor faz uma inversão de valores, apropiando-se de vozes e enunciados de ditos populares. Finalmente, abordamos as enunciações ideológicas presentes na canção, dentro do contexto do silenciamento imposto pelo período da ditadura militar no Brasil.

1.1 Análise do Discurso e Sujeito

Nos anos sessenta do Século XX surge, na França, uma nova disciplina, A Análise do

Discurso (AD), tendo como seu objeto de estudo “o discurso” ao mesmo tempo que se opunha

à Análise de Conteúdos, tão contemplada nas diversas áreas da Ciências Humanas. Enquanto esta concebia o texto na sua transparência, apenas enquanto projeção de uma realidade extradiscursiva, indiferente às articulações linguísticas e textuais; aquela, por outro lado, procurava realizar uma análise na qual passava a considerar o texto na sua opacidade. A Análise do Discurso, portanto, procurava interpretar o texto considerando tanto o modo de funcionamento linguístico-textual dos discursos, como também as diversas modalidades da língua, dentro de um determinado contexto histórico e social de produção.

Logo, os pressupostos teóricos da Análise do Discurso (AD) surgiram na perspectiva política de uma ação que pretendia combater o excessivo formalismo linguístico predominante na época, o qual era visto como uma nova facção do tipo burguês. Tais pressupostos têm como marco inaugural o ano de 1969, com a publicação de “Análise Automática do Discurso” de Michel Pêcheux(1969), além do lançamento da revista “Langages”, organizada por Jean Dubois. Assim a Análise do Discurso (AD) sai em busca de um sujeito até então descartado; indo, portanto, encontrá-lo na Psicanálise e no Materialismo

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Histórico althusserano. Da Psicanálise, havia interesse na AD em trabalhar o sujeito desejante, inconsciente, descentrado, afetado pela ferida narcísica; já do Materialismo Histórico, o seu interesse era no sujeito assujeitado, materialmente constituído pela linguagem e interpelado pela ideologia.

Paul Henry (parceiro de Pêcheux e fundador com ele e Michel Plon da Análise do Discurso - AD) clamava: “ O sujeito é sempre e ao mesmo tempo sujeito da ideologia e sujeito do desejo inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação” (HENRY, 1992, p,188).

Para Foucault (2009b), falar de sujeito do discurso é pensar em multiplicação de sujeito, apresentar as diversas maneiras de pensar sujeito, perguntar: quem fala no texto? De onde fala? Quem pode falar sobre isso? Quem permite alguém falar sobre isso ou aquilo? Assim Foucault 2009ª) conceitua discurso. “Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva. O discurso é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência” (FOULCAULT,2009ª, p. 132).

Já Althusser (1980a) procura diferenciar o Sujeito ideologia e o Sujeito-indivíduo. Assim, ele marca o sujeito-ideologia com um S maiúsculo e o sujeito- indivíduo com um S minúsculo. A diferenciação marcada pelo autor tem como função primordial caracterizar o caráter sobredeterminante da ideologia sobre os indivíduos ou os sujeitos interpelados e o caráter submisso edo sujeito-indivíduo ao Sujeito-ideologia. A ideia do autor é de que a ideologia, como Sujeito, possui o poder de interpelar os indivíduos como sujeitos e de deixá-los sob sua orientação. Assim, o sujeito do discurso não é apenas o sujeito ideológico; nem apenas o sujeito inconsciente Freud – lacaniano, portanto. A marca discursiva desse sujeito consist no papel de intervenção da linguagem na perspectiva linguística e histórica que a Análise do Discurso lhe atribui. Portanto, a Análise do Discurso se caracteriza, a partir do seu surgimento, por um viés de ruptura com toda uma conjuntura política e epistemológica, e por necessidade de articulação com outras áreas das ciências humanas.

Conforme Orlandi (1999), quando se trata de um conjunto de trabalhos de consistência interna, pode-se falar não apenas em Análise do Discurso francesa (AD); mas em Análise do Discurso (AD) germânica, americana, inglesa, italiana, brasileira dentre outras; Visto que essa disciplina é desenvolvida em diversos lugares do mundo, com suas diversas tradições.

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Para a autora (1999), no Brasil, a Análise do discurso (AD) se apresenta como uma disciplina muito proveitosa, de forma profissional, intelectual e institucionalmente consequente; com muitos resultados, tanto para a teoria como para a prática do conhecimento linguístico.

1.2 Um pouco sobre Discurso

Denise Maldidider (2011), quando se refere à verdadeira obsessão de Michel Pêcheux por uma noção de discurso, diz que este é constituído num verdadeiro ponto de partida de uma “aventura teórica”. Para a autora, não se deve falar em discurso sem mobilizar outros sentidos, ou mesmo rever outros conceitos que fazem parte da sua formação como língua, sujeito e história. Dessa forma, o discurso, Segundo Maldidider (2011), foi para Pêcheux e continua sendo objeto de pesquisas num complexo e infinito campo de pesquisas; e a noção de discurso que se presta à investigação de pesquisas, apresenta-se como um objeto teórico sem nenhum compromisso com evidências empíricas; o que leva o estudo sobre discurso a apresentar marcas de ruptura no momento em que o investigador procurar entender, desvendar, interpretar, ou mesmo flagrar o momento em que sentido faz sentido. Em assim sendo, o sujeito formado pela linguagem; a história como processo; e a língua como algo denso; são noções que, vistas por ângulos da Análise do Discurso (AD), apenas florescem, quando submetidas à perspectiva do discurso.

2. Método utilizado

A metodologia para a análise constitui-se na aplicação de conceitos baseados nos estudos sobre a heterogeneidade do texto; como também a dispersão que fundamenta as várias posições ocupadas pelo sujeito em um texto, numa abordagem fundamentada pela teoria da Análise do Discurso (AD).

3. Resultados/Discussões

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Francisco Buarque de Holanda nasceu a 10 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, filho do historiador Sérgio Buarque de Holanda e de D. Maria Amélia, pianista amadora. Compositor, teatrólogo e romancista. Chico Buarque nunca se afasta muito de seus temas prediletos, como os marginais; percebido, por exemplo, na letra da música Geni e o Zepelin, do ano de 1979; anti-heróis; em Minha história, do ano de 1971. Os infelizes; em Vai passar, do ano de 1990; e os desvalidos em Construção, do ano de 1971. Sua defesa por esses temas é tão inflamada e sincera que, muitas vezes, se confunde com sua profunda identidade.

Dentro dessa perspectiva, a canção “Bom conselho”, gravada em 1972 no disco em parceria com Caetano Veloso, intitulado Juntos e ao vivo, está inserido, dentro da obra de Chico Buarque, no tema “protesto”. Vivendo uma época de plena ditadura e já tendo voltado da Itália, o poema citado retrata a época do “cale-se”, na qual não se era permitido falar abertamente e denunciar a realidade tão presente, principalmente em suas canções.

3.2 Sobre a heterogeneidade do texto

Dizer que um texto é heterogêneo é afirmar que ele é formado por mais de um texto e por mais de uma voz (sujeito) em sua construção. Nenhum texto possui uma forma única; todo ele tem uma história e possui influências da forma e da vida do sujeito, como também de outros textos e enunciados construídos anteriormente. Essa relação forma o que consideramos texto.

Desse modo, o texto, levando-se em conta os pressupostos teóricos assumidos pela escola francesa de Análise do Discurso, não pode ser analisada de forma homogênea, como se nele um único sujeito estivesse inserido. Afinal, o discurso é considerado por essa escola, como constituído por uma dupla dispersão - do texto e do sujeito - . É essa dispersão que fundamenta as várias posições ocupadas pelo sujeito, em um texto. Posições essas marcadas pela formação discursiva, de natureza ideológica, que governa os mecanismos enunciativos.

Apesar de se considerar o locutor como responsável pelo enunciado, não se deve confundi-lo com o autor do texto, isto é, o produtor físico do enunciado. Pode-se perceber tal afirmação a partir do exemplo dado por Dominique Maingueneau (1989) que nos revela bem essa relação locutor-autor.

Segundo Maingueneau (1989, p. 76), “[…] se assinamos um formulário preparado pela administração, do tipo ‘Eu, abaixo-assinado, declaro...’, o eu do locutor deste texto sou eu

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mesmo e, no entanto, não sou o seu autor efetivo”, isto é, o formulário possui um locutor que assume o enunciado, que se responsabiliza por ele. Entretanto, esse locutor não é o próprio autor do texto, pois este não existe, mas é um “eu” que assume as responsabilidades deste discurso.

Indo mais além nessas reflexões, dissemos anteriormente que o discurso possui um caráter heterogêneo, constituído de vários sujeitos e da presença de outros textos que o constituem. Logo, podemos então nos perguntar: que outros sujeitos seriam esses em um texto? Como identificá-los? Para responder a essas perguntas, temos que recorrer às várias funções enunciativas do sujeito falante: o locutor, o enunciador e o autor. O locutor, conforme nos referimos anteriormente, é aquele que se representa como o “eu” do discurso; já o enunciador (ou enunciadores) é um ser cuja voz está presente na enunciação sem que se lhes possa atribuir palavras precisas; ou seja, ele não é o responsável pela enunciação, mas alguém que o incorpora; responsabiliza-se pelas suas ações ou falas; no entanto, a enunciação permite expressar seu ponto de vista. Por fim, o autor é a função social que esse “eu” assume enquanto produtor da linguagem.

Desse modo, é exatamente por podermos distinguir pelo menos duas marcas de sujeitos – locutores e enunciadores – em um texto, que se caracteriza a heterogeneidade do mesmo. Ademais, chamamos a atenção para o fato de que o leitor não deve observar apenas o dito, isto é, o que parece ser uma única voz, como se fosse um discurso homogêneo; mas, principalmente, as outras vozes que perpassam o discurso.

Entre as funções enunciativas, analisaremos um fenômeno – aparentemente muito ingênuo – mas que pode ser objeto de análise polifônica, chamada de negação. Na verdade, é muito antiga a ideia de que é preciso distinguir em um enunciado negativo duas proposições: uma primeira e uma outra que a nega. Porém, no momento em que esse recurso é relacionado à distinção locutor/enunciador, é permitido ajustar o fenômeno da negação a um quadro bem mais geral. Partamos do exemplo a seguir, retirado de Manigueneau (1989, p. 82):

A: O presidente é menos popular.

B: Ele não é menos popular, jamais o foi.

No primeiro exemplo, temos um pressuposto, isto é, o que está em nível do não dito que aparece como uma outra voz que foi negada: anteriormente ele era popular. Já no segundo exemplo, há uma negação do posto, que seria o que está ao nível do dito que aparece como

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uma única voz: o presidente não é menos popular e, por fim, o do pressuposto: ele já foi popular. Mas que função tem esse fenômeno na análise de um texto?

É simples observar – e analisaremos o exemplo no poema de Chico Buarque de Holanda - que neste recurso utilizado pelo locutor de um determinado discurso, há toda uma carga ideológica, além da presença de vozes (algumas do senso comum) que o locutor nega ou assume demonstrando uma certa intenção. Entretanto, o fato de observarmos uma certa intenção na construção do discurso do locutor, não deve ser entendido como se ele fosse o dono soberano do seu dizer ou por outros dizeres, outras vozes que o constituem. A análise que faremos da letra da canção Bom conselho, de Chico Buarque de Holanda, terá como base a múltipla construção do sujeito no texto, através das vozes nele presentes, enfocando, principalmente, o fenômeno da negação.

3.3 A dispersão do sujeitoem Bom Conselho

De uma maneira mais geral, o poema Bom Conselho é construído, principalmente, através do fenômeno anteriormente explicado, ou seja, o da negação; a partir do qual o autor faz uma inversão de valores, apropriando-se de vozes e enunciados de ditos populares, conforme podemos observar na letra da canção transcrita abaixo:

Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça

Inútil dormir que a dor não passa Espere sentado

Ou você se cansa

Está provado, quem espera nunca alcança Venha, meu amigo

Deixe esse regaço Brinque com meu fogo Venha se queimar Faça como eu digo Faça como eu faço

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Corro atrás do tempo Vim de não sei onde

Devagar é que não se vai longe Eu semeio o vento

Na minha cidade

Vou pra rua e bebo a tempestade

(letra disponível em <https://www.letras.mus.br/chico-buarque/85939/> Acesso em 09 abril 2017)

O poema em análise é constituído, essencialmente, por dois polos: o da acomodação (a voz do senso comum) e o da subversão, isto é, a voz que chama para uma mudança, que quer tirar o interlocutor dessa acomodação. Mas, como se processa constituição?

Essa constituição se processa de duas formas. Em primeiro lugar, nota-se que o “eu” que assume a voz e que está no lugar do sujeito chama o tempo todo a atenção do interlocutor para ouvir o seu “bom conselho”:

Ouça um bom conselho eu lhe dou de graça.

A partir desse chamamento, nós já percebemos uma apropriação de uma outra voz (a voz do senso comum) que diz: - se conselho fosse bom, não se dava, se vendia. Assim, o locutor inverte o aspecto negativo do conselho, presente na voz do senso comum, atribuindo-lhe o adjetivo bom, com também chamando o interlocutor para ouvi-lo, fazendo-o participar de seu discurso através da sua voz. É ora aceitando, ora negando outras vozes que constituíram e que constituem a ideologia reinante na sociedade, que o locutor “eu” começa a dar o seu “bom conselho”:

Inútil dormir que a dor não passa espere sentado ou você se cansa

está provado: quem espera nunca alcança.

Notamos, logo nos primeiros conselhos, uma voz (ou vozes) que afirma “nada como um dia atrás do outro” para esquecer a dor. Essa voz convida ao comodismo, ao esquecimento e à

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espera; atitudes estas aceitas pelo senso comum, que afirma a ideologia da acomodação. Em contrapartida, o locutor, na sua fala, nega essa voz através do advérbio não, depois passa a concordar parcialmente com ela para, em seguida, negá-la mais fortemente: - Está provado:

quem espera nunca alcança.

Após esse primeiro conselho, o locutor chama novamente o interlocutor para sair do

regaço do seu mundo. Logo, percebemos novamente, aqui, a presença dos dois polos - um

sujeito que “dorme” e outro que o chama a “acordar”- . A partir desse momento, o locutor chama o interlocutor, cada vez com mais ênfase, através dos verbos no imperativo afirmativo:

Brinque com meu fogo Venha se queimar Faça como eu digo Faça como eu faço

Aja duas vezes antes de pensar

Portanto, O locutor faz um convite mais forte para que o interlocutor saia de sua acomodação e venha se queimar. Agora também nos aparece um elemento novo: primeiro o locutor passa a participar do polo da subversão a que ele convida o interlocutor, por meio da afirmação da negação. A voz da ideologia afirma: - faça o que eu digo, mas não faça o que eu

faço. Essa afirmação nos remete a um estado de hipocrisia no qual minhas palavras não

condizem com as minhas ações. Porém, o locutor se coloca como modelo de ação, como participante na ação de subversão da ordem estabelecida ao afirmar “faça como eu faço, aja duas vezes antes de pensar. O locutor coloca-se, portanto, como modelo de seguimento. Não são mais conselhos apenas de palavras, mas conselhos a partir de uma própria ação do sujeito. Outro tipo de negação presente no poema está expresso pela subversão da fala do enunciador feita pelo interlocutor, ou seja, a voz do senso comum (enunciador) diz: Pense duas vezes

antes de agir, já o locutor, por sua vez, diz o contrário: Aja duas vezes antes de pensar.

Faz-se necessário observar que a progressão desse “bom conselho” que o autor vem dando de graça vem desde a inversão e a negação de vozes, para finalizar com um aspecto bastante interessante em seu discurso nos versos:

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vou para rua e bebo a tempestade,

Nesses versos, temos três vozes presentes. Primeiramente, a do locutor que assume o discurso; em segundo lugar, a de um enunciador que diz “quem semeia vento colhe tempestades” e, por fim, a voz da ideologia que ressalta seu valor negativo ao afirmar “não semeie vento se não colherás tempestades”, através da forte carga semântica que a tempestade sugere: o da destruição, da derrota, que gera um sentimento de medo e aversão. Ao contrário, o locutor assume um ponto de vista positivo, negando essa carga semântica da destruição e vencendo o medo para fortalecer os conselhos que vem oferecendo.

Mais uma vez percebemos o locutor colocando-se como um exemplo a ser seguido, principalmente quando não afirma faça o que eu digo mas não faça o que eu faço, mas ao contrário, nega-o, a partir da afirmação, no momento em que ele assume os conselhos dados ao interlocutor.

Assim, o “Bom conselho” presente no título da canção possui em si mesmo dois polos: o da negatividade – percebida pelo primeiro provérbio sobre o conselho – e o da positividade, assumida pelo locutor. O conselho é bom porque vai tirar-nos da ignorância, chamando-nos à ação, mesmo que perigoso, como ressalta a voz assumida pelo senso comum; principalmente em seu último conselho: não semeie vento senão colherás tempestade, levando muitos a fugirem do perigo.

Ao final do discurso, após ter-se apresentado os dois polos, o interlocutor já foi conduzido a uma nova consciência. Ele já está a par de sua condição. Mesmo sem querer ele não está mais na condição em que se encontrava antes de ter ouvido os conselhos do locutor. E, no final, o locutor diz que semeia o vento, colhe a tempestade e corre atrás do tempo para se chegar ao longe, desafiando a voz do senso comum que põe em todos uma carga de negatividade para afirmar e confirmar a acomodação. Agora, basta a decisão do interlocutor em atender ou não esse chamado, que não é mais o de ouvir, conforme lemos no primeiro verso da canção, mas o de fazer, de acordo com o décimo primeiro verso em diante.

Percebemos, portanto, que essas vozes presentes no discurso do locutor “eu” nos dá uma visão mais crítica e minuciosa do que está presente no dito e no posto. Esse poema de Chico Buarque de Holanda retrata a denúncia de uma época, porém, essa denúncia está escondida entre as vozes do próprio sistema opressor; estratégia esta utilizada para romper a ordem do silenciamento imposto pelas condições políticas deste momento histórico.

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4. Considerações finais.

Na canção Bom Conselho, de Chico Buarque de Holanda, percebemos que a progressão dos polos relacionados ao próprio título da letra não seria possível se não fossem observadas essas várias vozes presentes no discurso que reafirmam o que foi dito anteriormente: o discurso é constituído por uma dispersão de textos e de sujeitos, que corroboram para a sua natureza heterogênea. Esta natureza, por sua vez, é percebida também através de toda uma enunciação ideológica que constitui a natureza enunciativa.

Esse estudo das várias vozes inseridas em um texto; vozes essas negadas e invertidas pelo autor, corroboram para denunciar o silêncio imposto nessa época de sangria da ditadura que fez com que Chico Buarque de Holanda se utilizasse desse recurso para expor a denúncia da realidade imposta ao povo brasileiro - a do comodismo, a do silêncio, a do “esperar para se chegar ao longe”. Mas, que longe?

5. Referências bibliográficas

ALTHUSSER, LOUIS. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Trad. Joaquim José de Moura Ramos, Lisboa: Presença, 1980ª.

FOUCAULT, MICHEL. A Arqueologia do saber. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 2009ª.

_____ A ordem do discurso. Trad.: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2009b.

HENRY, PAUL. A ferramenta imperfeita: língua sujeito e discurso. Trad. Maria FaustaPereira de Castro. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.

HOLANDA, Chico Buarque de. Bom conselho. Disponível em

<https://www.letras.mus.br/chico-buarque/85939/> Acesso em 09 abril 2017.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas, SP: Pontes, 1989. MALDIDIER, Denise. A inquietude do discurso. Um projeto na história da análise do discurso: o trabalho de Michel Pêcheux. In: PIOVEZANI, CARLOS SARGENTINI, VANICE (orgs.). Legados de Michel Pêcheux: inéditos em análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2011, p.39-62.

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ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.

PÊCHEUX, Michel (1969) Analyse automatique do discours. Paris: Dunod. [Análise automática do discurso. In: GADET, F.: HAK, T. (orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.]

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