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Academic year: 2021

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Memória e Aprendizagem

Rodrigo Pavão Laboratório de Neurociências e Comportamento rpavao@gmail.com

A memória pode ser definida como a capacidade de um organismo alterar seu comportamento em decorrência de experiências prévias. Do ponto de vista fisiológico, essa capacidade é resultado de modificações na circuitaria neural em função da interação do indivíduo com o ambiente. Como já foi apresentado nos capítulos anteriores, o encéfalo humano é composto por bilhões de neurônios, cada neurônio se projeta para centenas de outros neurônios, e as regiões em que essas células se comunicam são denominadas sinapses. A Figura 1 (esquerda) mostra um botão terminal do neurônio pré-sináptico “A” sobrepondo-se ao corpo celular de um neurônio pós-sináptico; o primeiro é capaz de modular a atividade do segundo. A formação de novas memórias envolve mudanças nas sinapses existentes (como a do terminal “A“ com o neurônio pós-sináptico) ou a formação de novas sinapses (como a do terminal axonal “B” sobre o terminal “A” – ver Figura 1, direita); essas alterações levam à alteração e estabelecimento de circuitos neurais que representam as memórias arquivadas.

 

Figura 1 – Sinapses axo-somática (esquerda) e axo-axônica (direita). A atividade do botão axonal “B” pode modular a liberação de neurotransmissores do botão terminal “A” (modificado de Carlson, 1998).

Esse conhecimento atual resultou do trabalho de inúmeros personagens; destacaremos os principais em um breve histórico do estudo da memória. As primeiras indagações de que se têm notícia na história da humanidade sobre a natureza da memória foram formuladas pelos filósofos gregos e, posteriormente, reformuladas pelos pensadores iluministas. No entanto, o estudo experimental da memória teve início no século XIX, com o desenvolvimento do que hoje denominamos Psicologia Experimental. Hermann Ebbinghaus (1880) realizou uma série de estudos (avaliando sua própria memória) envolvendo a memorização de listas de sílabas sem sentido e a recordação das mesmas diferentes períodos de tempo depois de sua apresentação. Suas principais observações são resumidas na Figura 2.

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Figura 2 – Resultados dos estudos de Ebbinghauss envolvendo memorização de listas de sílabas. Foram descritas (1) a curva de recordação ao longo do tempo após a exposição às sílabas (painel da esquerda) em que ocorre uma queda rápida da porcentagem de itens recordados até cerca de duas horas; a partir de então, a porcentagem de itens recordados permanece praticamente constante, (2) recordação em função da posição na série, em que a recordação logo após a apresentação da seqüência de itens resulta numa maior lembrança dos itens posicionados no início e no final da lista de itens, e (3) a curva de aprendizagem, em que há necessidade de vários dias de treinamento para que a lembrança completa da lista ocorra com menos treino (Ebbinghauss, 1885).

Müller e Pilzecker (1900), inspirados pelos trabalhos de Ebbinghaus, realizaram testes que envolviam a apresentação de pares de sílabas que cuja lembrança deveria ocorrer após um intervalo de tempo, oferecendo-se apenas um dos elementos de cada par; uma lista distratora era oferecida para um segundo grupo de voluntários durante o intervalo de tempo entre a lista apresentada e a lembrança da primeira lista. Os autores notaram que os voluntários cuja atenção foi desviada do material estudado exibiram lembrança menor do que o grupo de voluntários sem desvio da atenção; assim, enfatizaram a fragilidade das memórias quando a atenção é desviada (Lechner e col.,1999). Esses autores descreveram também o efeito de perseveração, em que testes posteriores eram afetados por testes prévios. Os voluntários lembravam-se de pares de sílabas apresentadas em outro teste, realizado semanas antes, resultando em erros, pois novas combinações deveriam ser recordadas. A lembrança de combinações estudadas semanas antes evidencia que atividade cerebral persevera após novo aprendizado (Lechner e col.,1999). Essa atividade é resultante do processo de consolidação das memórias. No trabalho de Ebbinghauss (1885) a estabilização da lembrança das sílabas várias horas após sua apresentação é também resultado desse processo de consolidação.

Esses resultados sugeriram a existência de diferentes tipos de memória, incluindo (1) uma memória que dura poucos segundos ou minutos, suscetível a interferências e não consolidada, e (2) memória que dura dias ou semanas, robusta e resistente a interferências, e consolidada.

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Em seu livro Principles of Psychology, William James (1890) denominou esses tipos de memória como (1) memória consciente primária e (2) memória consciente secundária, respectivamente. Além disso, esse autor mencionou também, em capítulos distintos, “habilidades / hábitos”, envolvendo experiência não consciente. Curiosamente, essas idéias foram ignoradas até a década de 1960.

No início do século XX, o fisiologista russo Ivan Pavlov e o psicólogo americano Edward Thorndike, descreveram, respectivamente, o Condicionamento Clássico, em que um animal aprende a associar dois estímulos (e.g., som de campainha a apresentação de comida) pela sua apresentação contígua, e o Condicionamento Operante em que o animal aprende a associar uma resposta motora a uma recompensa e uma segunda resposta a uma punição.

Esses paradigmas estabelecidos por Pavlov e Thorndike influenciaram de modo decisivo uma escola de pensamento denominada Behaviorismo, que almejava tornar a psicologia uma “ciência objetiva”, baseada na observação de comportamentos, desprezando conceitos como pensamento, imaginação, consciência ou mente, que eram consideradas entidades subjetivas, não passíveis de abordagem experimental. A história do Behaviorismo pode ser contada por seus conflitos com outras escolas de pensamento, como sua disputa com a Psicologia Clínica, em que os behavioristas criticavam os psicanalistas por uma suposta falta de controle experimental e de embasamento lógico e científico. Os behavioristas defendiam que deve-se estudar as relações entre os estímulos apresentados e as respostas geradas.

Uma escola alternativa de pensamento também baseada nos estudos iniciais de Pavlov e Thorndike, denominada Cognitivismo, investigava não apenas como estímulos geravam reações, mas também os processos não observáveis diretamente, mas que intervêm entre o estímulo e a resposta. Essa escola de pensamento admite a flexibilidade do comportamento animal, incluindo conceitos como representação, criação, inteligência, memória e atenção, conceitos não admitidos pelo behaviorismo por não serem restritos à relação entre estímulos e respostas.

O cognitivista Edward Tolman (1948) defendeu a idéia de que ratos arquivam em sua memória uma representação espacial do ambiente, um mapa cognitivo, que permite a orientação flexível no ambiente, inclusive encontrar atalhos nunca percorridos, mas dedutíveis a partir do mapa cognitivo. Na esteira dos etologistas, Cooper e Zubek (1958) realizaram estudos sobre as relações entre os comportamentos inatos e aprendidos (ver Figura 5).

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Figura 5 – Ratos de uma mesma população inicial, que apresentavam diferentes níveis de desempenho em uma tarefa envolvendo a aprendizagem de um labirinto foram cruzados por gerações sucessivas, gerando uma linhagem “burra” e uma linhagem “brilhante” no desempenho dessa tarefa. Em seguida, esses animais foram expostos a três condições ambientais distintas, envolvendo (1) crescimento em ambiente empobrecido (gaiola com animais isolados), (2) crescimento em ambiente padrão (caixa com um pequeno grupo de animais), e (3) crescimento em ambiente enriquecido (caixa grande, com muitos animais, brinquedos etc). Os animais das linhagens “burra” e “brilhante” crescidos em ambientes empobrecido ou enriquecido exibiram desempenho equivalente. Diferentemente, animais dessas duas linhagens crescidos em ambiente padrão exibiram marcada diferença de desempenho; o desempenho dos animais da linhagem “brilhante” foi marcadamente melhor. Em outras palavras, a diferença existe apenas condição padrão de criação. Os autores concluíram que tanto fatores inatos como ambientais influenciam o comportamento (modificado de Cooper e Zubek, 1958).

E os mecanismos fisiológicos subjacentes a esses processos?

Gold e colaboradores (1970) expuseram ratos a uma câmara clara de uma caixa conectada, por uma porta tipo guilhotina, a uma câmara escura cujo assoalho é constituído de barras metálicas eletrificáveis. Os ratos rapidamente entram na câmara escura; no entanto, ao entrarem nessa câmara, levam um choque nas patas. Em tentativa posterior (teste), realizada 24 horas depois, os animais inseridos na câmara clara não entram na câmara escura (ver a barra vermelha da Figura 6). Animais de um grupo controle, que não receberam choque nas patas no dia anterior, entram rapidamente na câmara escura (ver barra verde da Figura 6). Em experimentos adicionais, a intervalos de tempo variáveis depois do treinamento com choque nas patas, aplica-se uma corrente elétrica no sistema nervoso dos animais, um choque eletro-convulsivo (ver Figura 6 - esquerda). Observa-se que quanto menor o intervalo de tempo entre o choque nas patas e o choque

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eletro-convulsivo, maior é o prejuízo de memória aversiva sobre o ambiente escuro. Porém, a medida que esse intervalo de tempo aumenta, menor é o efeito, como se o choque eletro-convulsivo perdesse sua efetividade para “apagar” a memória (ver Figura 6 – direita, barras de cor laranja).

Figura 6 – Experimento ratos e choques.

 

A organização temporal dos eventos e os resultados estão apresentados à esquerda; os resultados obtidos estão à direita. Modificado de Xavier (2004) e Gold (1970).

Shashoua (síntese publicada em 1985) prendeu um flutuador nas nadadeiras peitorais de peixinhos dourados de modo que os animais ficam em posição invertida. Após longo esforço de cerca de 3 horas, alguns peixes conseguem volta à posição normal, apesar do flutuador (Figura 7, treino inicial representado pela curva verde). Se o flutuador for removido e recolocado três dias depois, os animais que aprenderam a tarefa mais rapidamente; i.e., os peixes conseguem voltar à posição normal em apenas 15 minutos, o que indica que eles aprenderam e retiveram a solução desse desafio (curva azul) (para detalhes sobre esses experimentos, ver Helene e Xavier, 2007a).

 

Figura 7 – Experimentos de Shashoua (1985) envolvendo aprendizagem em peixes dourados (para detalhes ver o texto) (modificado de Shashoua, 1985, e Xavier, 2004).

Em outro teste, Shashoua (1985) injetou valina marcada com hidrogênio radioativo (valina-H*) no ventrículo encefálico de animais que ficaram por 4h com o flutuador, ou valina marcada com carbono radioativo (valina-C*) no ventrículo de animais que não foram

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treinados. Os encéfalos dos animais dos dois grupos foram homogeneizados conjuntamente e as proteínas foram separadas por peso molecular. A maioria das proteínas presentes estava marcada tanto com valina-H* quando com valina-C*; porém, algumas delas estavam mais marcadas com valina-H*, indicando que elas se originaram no cérebro dos animais que aprenderam a tarefa; essas proteínas foram denominadas ependiminas. Num terceiro teste, as ependiminas foram isoladas e injetadas em coelhos para producão de anticorpos específicos contra as ependiminas. Então, os anticorpos foram injetados no ventrículo encefálico de peixes que tinham acabado de aprender a tarefa de nadar com o flutuador; no teste de memória realizado 3 dias depois, esses peixes demoraram cerca de 3h para voltar à posição normal (Figura 7, curva vermelha). Ou seja, esses animais comportam-se como se nunca tivessem sido submetidos ao treinamento. Presentemente, as ependiminas são denominadas “moléculas de adesão celular” e estão diretamente relacionadas com o fortalecimento e formação de sinapses.

Em conjunto, os resultados dos experimentos envolvendo choques eletro-convulsivos e síntese de proteínas sugerem que há dois processos envolvidos na manutenção da memória. Um deles, mais instável, é prejudicado pelo choque eletro-convulsivo, estando relacionado ao padrão de atividade eletrofisiológica dos neurônios (freqüência de disparos, por exemplo). O outro, associado com produção de proteínas, parece envolver alterações estruturais nas sinapses gerando circuitos alterados no sistema nervoso. Num certo sentido, esses dois tipos de processos parecem sobrepor-se aos descritos por James (1890).

Resumindo, parece haver (1) uma Memória de Curta Duração, baseada na atividade elétrica dos neurônios e, assim, um tanto suscetível a interferências e (2) uma Memória de Longa Duração, representada por alterações estruturais dos neurônios, particularmente nas sinapses com outros neurônios, robusta e resistente a interferências.

Onde esses traços de memória estão no sistema nervoso? Eles estariam localizados em áreas discretas ou estariam espalhadas pelo sistema nervoso? Este tipo de investigação ficou conhecida como “a busca pelo engrama (= traços de memória)”.

Franz Gall, fundador da Frenologia, no século XIX, defendia que quando uma pessoa usa muito uma determinada região do cérebro, esta se hipertrofiaria (de modo similar a um músculo) e, assim, deformava a caixa craniana, gerando um “calombo”; por outro lado, se a região não fosse usada, ela atrofiaria, gerando uma “depressão”. Seguindo esta concepção, Gall investigava o formato da caixa craniana de pessoas inteligentes, engraçadas, egoístas, loucas etc. e propôs mapas sobre a localização das funções mentais (publicados em revistas especializadas como a American Phrenology Journal, http://www.phrenology.com/americanphrenology.html). Esta proposta gozou de grande reputação durante o século XIX, mas foi totalmente abandonada posteriormente.

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Figura 8 – Franz Gall e um mapa frenológico.

Na década de 1920, Karl Lashley tentou localizar, em ratos, o engrama, ou seja, os traços da memória, responsáveis pelo aprendizado do percurso para se orientar num labirinto. Para testar essa idéia ele fez incisões no córtex antes ou depois do animal aprender a tarefa; então, avaliava o desempenho do animal, tentando correlacionar a extensão das lesões, com seu desempenho. O autor descreveu que os prejuízos de aprendizagem e memória se correlacionam com a extensão da lesão, mas não com sua localização (ver Bear, 2002; Helene e Xavier, 2007b). Esse resultado favoreceu a hipótese de que os engramas estão espalhados pelo sistema nervoso e não dispostos em áreas específicas como propunham, por exemplo, os frenologistas.

No entanto, as memórias parecem não estar totalmente espalhadas pelo encéfalo como sugerem os resultados de Lashley. Pensa-se, atualmente, que os ratos solucionam a tarefa valendo-se de diferentes modalidades sensoriais (visão, propriocepção, tato, olfato etc.) e estratégias (orientação alocêntrica, egocêntrica etc.); quando as lesões são pequenas, os ratos podem aprender e lembrar a solução usando as modalidades preservadas; quando as lesões são extensas, o rato é incapaz de aprender ou lembrar do labirinto.

Essa interpretação vai ao encontro de uma idéia interessante, denominada modelo de “cell assembly” (de agrupamento de células) de Donald Hebb (1949). De acordo com essa proposta, o engrama estaria representado em uma rede neural distribuída como apresentada na Figura 9.

 

Figura 9 – Esquema representativo de redes neurais de Hebb. Os pontos pretos são os neurônios e as linhas são as conexões. A rede tem uma organização inicial como representado em (A); ao receber um estímulo, é ativada (B); esse estímulo pode ser apresentado repetidas vezes, ou pode ter reverberado nessa rede, de modo que as conexões entre os neurônios são fortalecidas (C e

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D); então, um estímulo mais fraco ou mesmo incompleto, mas que mantenha algumas das características do inicial (D) é capaz de ativar a rede fortalecida (E) (modificado de Bear, 2002, e de Helene e Xavier, 2007b).

A perspectiva de que o engrama da memória esteja representado em circuitos neurais que funcionam de maneira cooperativa e que diferentes regiões nervosas podem contribuir para esse processo, estimulou os neurocientistas a se debruçassem sobre a tentativa de localizar os sítios da memória em nosso encéfalo.

O estudo do caso do paciente H.M. muito contribuiu para o desenvolvimento dessa área. Esse paciente sofria de epilepsia intratável (na ocasião); o foco epiléptico situava-se no lobo temporal medial, bilateralmente. Então, na tentativa de ajudar o paciente, removeu-se essa estrutura cirurgicamente; isso resultou na remoção dos 2/3 anteriores do hipocampo e da amígdala, além de outras porções corticais (Scoville e Milner, 1957) (ver Figura 10, esquerda). Como esperado, H.M. foi curado da epilepsia; porém, exibiu uma perda de memória. A amnésia de H.M. era anterógrada (o paciente era incapaz de formar novas memórias) e também retrógrada; porém, neste último caso a amnésia era temporalmente graduada (ver Figura 10 direita). O prejuízo cognitivo de H.M. estava restrito à aquisição de memórias de longa duração; suas capacidades perceptuais se mantiveram, assim como seu QI, sua personalidade e a memória de curta duração; ou seja, estes últimos, estavam todos preservados (Scoville e Milner, 1957).

Vale ressaltar aqui que mais uma vez foi mostrada a distinção entre memória de curta duração (associada à atividade elétrica) e memória de longa duração (associada à estrutura neural) proposta por James um século antes.

 

Figura 10 – O paciente H.M. teve parte do lobo temporal medial removido bilateralmente (porção cortical, amígdala e hipocampo). A amnésia exibida por H.M. era anterógrada (ele era incpaz de formar novas memórias) e retrógrada, neste último caso, temporalmente graduada (lembranças da juventude e de eventos ocorridos até 2 anos antes da cirurgia foram preservados, mas as lembranças são gradualmente prejudicadas até o momento da cirurgia (modificado de Bear, 2002 e Xavier, 2004).

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No entanto, H.M. conseguia adquirir e reter diversas informações. Por exemplo, aprendeu a ler palavras invertidas, como se apresentadas por meio de um espelho, após a cirurgia e também novas habilidades motoras e cognitivas (ver Helene e Xavier, 2007a, para detalhes). Mesmo assim, se consultado sobre seu treinamento prévio nessas tarefas, alegava nunca ter feito isso; mesmo assim, seu desempenho nessas tarefas treinadas era proficiente.

Aparentemente, o hipocampo (e outras estruturas do lobo temporal medial) é fundamental para a reverberação da atividade neural, que leva ao arquivamento de informações sobre eventos experienciados. Essa reverberação seria essencial para o arquivamento das informações sobre “o que” ocorreu, mas não sobre “como” desempenhar uma tarefa percepto-motora. Na aquisição de uma habilidade, por exemplo, “como” andar de bicicleta, a aquisição envolveria o treinamento repetitivo e envolveria regiões nervosas intactas no paciente H.M. Assim, embora o paciente adquira essa habilidade não é capaz de se recordar “que” já a praticou. Em outras palavras, a natureza da informação “saber que” é diferente da natureza da informação sobre “saber como” (ver Helene e Xavier, 2007a, para detalhes). As memórias “saber como” são atualmente denominadas memórias implícitas (o que faz bastante sentido, pois é muito difícil declarar como se anda de bicicleta) e “saber que” são denominadas memórias explícitas.

Pacientes com Doença de Parkinson (que exibem disfunções em estruturas nervosas denominadas gânglios da base) exibem um quadro oposto ao dos amnésicos (que, como vimos, tem lesão no lobo temporal medial). Os pacientes com disfunções nos gânglios da base exibem memória explícita preservada e prejuízo da memória implícita; esse prejuízo pode envolver tanto aprendizagem e desempenho de respostas motoras, como perceptuais (pacientes com Parkinson, por exemplo, exibem prejuízo na aprendizagem da habilidade de leitura de palavras invertidas) (Knowlton e col., 1996; Perretta e col., 2005).

A memória de curta duração, preservada em amnésicos e parkinsonianos, usada corriqueiramente para guardar, por exemplo, um número de telefone obtido numa lista (e quando terminamos de teclá-lo já não somos mais capazes de declará-lo), está associada ao funcionamento dos córtices frontal e parietal (Baddeley e Warrington, 1970). A memória de curta duração é frequentemente denominada memória operacional.

Assim, memória vem sendo classificada em (1) memória de curta duração ou memória operacional e (2) memória de longa duração. Por sua vez, a memória de longa duração pode ser subdividida em (2a) memória explícita e (2b) memória implícita.

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Memória de Curta Duração (Memória Operacional)

ex. lembrar número da lista telefônica

Memória Explícita

ex. lembranças

Memória Implícita

ex. habilidades e hábitos mantida em amnésicos

mantida em parkinsonianos

prejudicada em pacientes com danos frontais

prejudicada em amnésicos, especialmente para eventos recentes. mantida em parkinsonianos mantida em pacientes frontais

mantida em amnésicos prejudicada em parkinsonianos mantida em pacientes frontais

dura poucos segundos ou minutos suscetível a interferências

não consolidada (representada no padrão de atividade eletrofisiológica das redes neurais; e.g., freqüência de disparos)

dura semanas ou anos é resistente a interferências

consolidada (representada na estrutura das redes neurais; e.g., ependiminas) – memória implícita pelo treino repetitivo, memória explícita pela reverberação (hipocampo)

É possível fazer uma comparação, que poderia ser interpretada como provocação, entre a Frenologia do século XIX e o modelo de memória atual. Apesar de um pouco agressiva, essa comparação é útil, pois estimula a interpretação de que os modelos são aproximações incompletas que nos ajudam entender a realidade (ver http://fisio.ib.usp.br/fisioteorica). De fato, algumas limitações do modelo de memória podem ser apontadas, como não levar em conta a dramática plasticidade do sistema nervoso e a clara inspiração nos equipamentos eletrônicos.

O primeiro aspecto pode ser evidenciado pelo estudo realizado por Leah Krubitzer (1998) sobre a estrutura cortical de gambás. O córtex de um gambá adulto normal exibe uma estrutura como a representada na Figura 11 (esquerda); se nos estágios fetais o animal é submetido à remoção parcial do córtex, seu córtex adulto exibirá estrutura bastante diferente da do gambá normal (Figura 11, direita). Isso mostra que estruturas relacionadas com determinados tipos de processamento podem assumir funções distintas (o animal lesado apresenta uma reorganização generalizada do sistema, não limitado a prejuízo no processamento visual). Assim, uma interpretação alternativa a dos correlatos anátomo-funcionais obtidos dos estudos envolvendo lesões é de que o sistema lesado funcione de modo distinto, não limitado ao prejuízo naquela função.

Figura 11 – Organização cortical de gambás adultos. À esquerda o córtex normal e à direita o córtex re-organizado após uma lesão fetal (modificado de Krubitzer, 1998).

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eletrônicos e o funcionamento dos sistemas de memória. Isso, em princípio, não é um problema; é simplesmente uma estratégia de estudo. A evolução dos modelos de memória parecem corresponder a evolução dos equipamentos eletrônicos, e.g., (1) modelo de conexões estímulo-resposta inspirada nas centrais telefônicas do início do século XX, (2) os modelos sobre tipos de memória, estocagem e recuperação da informação inspirados nos computadores dos anos 50-80 que também sofreram grande avanço e (3) computadores atuais estão muito mais flexíveis, com grande interação entre hardware e software. Um exemplo dessa questão, que pode ser apresentada como uma restrição ao entendimento do sistema nervoso ao avanço tecnológico dos computadores, é evidente nas palavras de Baddeley (1998): “por que não desenvolver computadores que são baseados em processamento paralelo, e estudar as capacidades desse sistema para aprender, lembrar e pensar?”. Talvez a analogia tenha assumido um outro papel que não inspirar / facilitar a comunicação, tornando-se uma “camisa-de-força” ao restringir o entendimento do fenômeno às características do sistema descrito na analogia.

Apesar dessas limitações, é inegável que esse modelo é útil e pode gerar conseqüências práticas. Sabe-se que pacientes com a doença de Parkinson exibem sérias dificuldades em suas atividades rotineiras, em decorrência do prejuízo da memória implícita. Piemonte (2000), partindo do conhecimento de que pacientes com a doença de Parkinson exibem prejuízo da memória implícita, mas memória explícita preservada, treinou esses pacientes a realizarem suas atividades cotidianas como andar, levantar-se da cama ou vestir uma camisa, com base em seqüências de instruções memorizadas explicitamente sobre como executar cada uma dessas tarefas; isto é, cada uma dessas ações foi subdividida em sub-componentes de movimentos, por exemplo, levantar a perna, virar o tronco, empurrar a cama, que foram memorizados explicitamente pelos pacientes. Então, essas memórias declarativas eram utilizadas no momento do desempenho da atividade. O resultado foi um aumento na velocidade e precisão dos movimentos por parte dos pacientes, com melhora substancial de sua qualidade de vida. Isso ressalta que modelos, apesar de muitas vezes incompletos, podem gerar conseqüências práticas e também contribuir para o avanço do conhecimento numa área.

Referências Bibliográficas

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