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O JOVEM DE BOM DIA CAMARADAS E SUA RELAÇÃO COM A POLÍTICA ANGOLANA DOS ANOS 80 Rosilda Alves Bezerra

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Campina Grande, Editora EDUEPB, 2011 – ISSN 2176-5901 1

O JOVEM DE BOM DIA CAMARADAS E SUA RELAÇÃO COM A POLÍTICA ANGOLANA DOS ANOS 80

Rosilda Alves Bezerra Pires Laranjeira (1995) afirma que as crianças e os jovens têm sempre, na literatura prometeica, como é a de toda a África, um papel muito importante, simbolizando, em última instância, o triunfo do novo sobre a velha tradição e sobre a dominação colonial. Em Bom dia camaradas, de Ondjaki, essa premissa ocorre no tempo e no espaço, cujo enredo acontece em uma escola e o tempo da história corresponde a de um ano letivo, localizado nos anos 80, na cidade de Luanda.

Narrado por um jovem da classe média angolana, os amigos da escola são os principais personagens recriados pela memória, participando de atividades escolares ou de reuniões na casa de algum deles. Os jovens dividem os anseios de uma Angola envolta aos conflitos das tentativas da África do Sul de invadir o território angolano e da política do Apartheid aplicada naquele país. A narrativa evidencia o papel desempenhado pela escola, nesse contexto, como um espaço de resistência e de formação do indivíduo situando um país em construção. As presenças dos professores cubanos imprimem o tom de disciplina e resistência, argumentando que para formar bem um país, até mesmo as crianças e os jovens devem refletir sobre seus atos.

Nicolau Sevcenko (2003) destaca que a literatura é, antes de mais nada, um produto artístico, porém com raízes no âmbito social. Nesse sentido, o jovem narrador retoma momentos cruciais da história de Angola, além de reavivar a memória do leitor para acontecimentos lamentáveis como o apartheid. Bom dia camaradas, é um reflexo sobre a infância, as relações sociais na Luanda, numa perspectiva aparentemente simples, narrado pelo olhar de uma criança atenta, sensível e interpretadora. Mas também é uma reflexão sobre como os países que viveram submergidos, pelo espectro da guerra, tiveram de conviver com esta fatalidade, que é o caso de Angola.

Nesse sentido, Bom dia camaradas é visto como um romance de memória, narrado em primeira pessoa, no qual toda a ação se desenrola ao longo dos poucos dias que antecedem as férias escolares de um determinado ano na infância do narrador, que passa por um período de

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transição, saindo da infância e iniciando a adolescência. O espaço da narrativa ocorre em dois ambientes, o familiar e o escolar e nesse contexto esse pré-adolescente narra as suas aventuras e desventuras em uma Luanda envolvida pela guerra, e o aspecto de caos e instabilidade política por ela proporcionada.

O primeiro capítulo destaca as aventuras do jovem e a interação com seus amigos e o “camarada António”, um empregado antigo da casa, para quem muitas perguntas são questionadas quando o assunto é sobre a política antiga de Angola. O contato com a tia Dada, vinda de Portugal, uma parente que o narrador só conhecia por telefone. No espaço escolar, há os colegas e os professores cubanos, militares que vieram para Luanda com o objetivo de auxiliarem na reconstrução do país, devido às circunstâncias sociais e políticas daquela época. Os cubanos são retratados pelo jovem narrador como indispensáveis na questão educacional e militar. Neste segundo campo, a presença cubana em Angola foi absolutamente decisiva para combater as invasões sul-africanas e várias tentativas de sabotagem da UNITA [Surgido em 1966, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) foi um dos grupos armados que lutou durante a independência e, mais tarde, na guerra civil angolana. Apoiada pelos Estados Unidos e África do Sul, a UNITA disputou contra o Movimento pela Libertação de Angola (MPLA) – ligado à União Soviética e Cuba - e a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) – o poder do país. Atualmente, se constitui como partido político de oposição ao governo.

O lirismo impresso na escrita de Ondjaki faz com que se perceba a guerra de um modo cruel, mas com a experiência de que cada cultura que se cruza a guerra possa reagir de modo distinto, mas todas procuram vencê-la. O que se repete nas produções de Ondjaki é justamente esta tentativa de que o povo, apesar das mazelas produzidas pela guerra, sempre tenta buscar sonhos no quotidiano devastado. Dessa forma, com o fim do ano se aproximando, um sentimento de tristeza e melancolia se aproxima, e o jovem teme perder o contato com os colegas e professores, além de sua tia que mora em outro país.

Entre as décadas de 1970 e 1990, que cobrem a infância e a adolescência de Ondjaki, quem governava o país era o Movimento Popular de Libertação de Angola, o MPLA, apoiado pelo bloco socialista e em constante conflito com a União Nacional para a Independência Total de Angola, a Unita, patrocinada pelos Estados Unidos.

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Os professores cubanos retratados em Bom dia camaradas representaram uma realidade para a geração do autor, cuja escrita não demonstra uma preocupação com o discurso ideológico, nem engajamento social. Há uma admiração pelos professores cubanos, além de enfatizar de que forma esses “camaradas” estão dispostos a lutar por um país que não é o deles, mas que buscam nessa causa a própria vontade de lutar por justiça, como podemos observar nessas passagens:

[...] – Já viste o que é, vir para um país que não é o deles, vir dar aulas ainda vá que não vá, mas aqueles que vão para frente de combate... Quantos angolanos é que tu conhece que iam para Cuba lutar numa guerra cubana? [...] (ONDJAKI, 2006, p.77).

Na minha cabeça chegou uma mistura de frases: um brinde a partida de tantos cubanos, um brinde ao fim do contacto com os camaradas cubanos...um brinde a Cuba, por favor, um brinde a Cuba, ... um brinde à vontade, à entrega, à simplicidade dessas pessoas, um brinde ao camarada Che Guevara, homem importante e operário desimportante, um brinde aos camaradas médicos cubanos, um brinde a nós também, as crianças, as „flores da humanidade‟, ...um brinde ao futuro de Angola neste novo rumo, um brinde ao Homem do amanhã...um brinde ao Progresso! (ONDJAKI, 2006, p.108).

No entanto, a voz de quem narra, o garoto cuja idade não deve ultrapassar os doze anos, não é infantilizada, mas não deixa de transparecer uma certa ingenuidade, sempre com a observação peculiar:

Nós ficávamos um bocado aborrecido com as notícias, poque era sempre a mesma coisa: primeiro eram as notícias da guerra, que eram diferentes quase nunca, só se tivesse havido alguma batalha mais importante, ou a UNITA tivesse partido uns postes (...). Depois vinha o intervalo com a propaganda das FAPLA. Ah, é verdade, às vezes falavam da situação na África do Sul, lá do ANC, enfim, isso eram nomes que uma pessoa ia apanhando ao longo dos anos (ONDJAKI, 2006, p. 28).

O jovem narrador mesmo com a pouca idade mostra receio em incorporar no futuro as Forças Armadas, por isso que ele e seus amigos estudavam com afinco, porque poderiam ser dispensados da vida militar obrigatória caso seguissem bem nos estudos. As notícias do país e de outras partes do continente africano não passavam em branco pelo olhar atento do jovem, que cresce em uma Angola pós-colonial, ainda marcada pelas sucessivas guerras civis, mas observado de um modo nada rancoroso. Além das notícias recorrentes, observa-se também

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sobre a questão do Apartheid na África do Sul e de que forma o garoto narrador se vê interessado na causa de libertação da África do Sul, a partir de Nelson Mandela:

Também se aprendia muita coisa, porque a propósito disso, por exemplo, do ANC, é que o meu pai nos explicou que era o camarada Nelson Mandela, e eu fiquei a saber que havia um país chamado África do Sul onde as pessoas negras tinham que ir para casa quando tocava a campanhia às seis da tarde, que elas não podiam andar no machimbombo com outras pessoas que não fossem negras também, e até fiquei bem espantado quando o meu pai me disse que esse camarada Mandela já estava preso há não sei quantos anos (ONDJAKI, 2006, 28).

A ficção toma uma dimensão quase real quando comparada à vida de Ondjaki, que nasceu dois anos após o fim da guerra de independência, em 1977. Assim como o menino-narrador do romance, Ondjaki conviveu em meio às guerrilhas nacionalistas, que fizeram de Angola território de enfrentamentos entre comunistas e capitalistas.

A memória da infância em Bom dia camaradas tem relação com o pensamento de Le Goff (1994), quando destaca a valorização da informação do presente e do passado como forma de registro da memória. O temor do menino narrador, que tem medo do lendário Caixão Vazio, uma espécie de lenda urbana de Angola.

A narrativa traz uma Luanda moderna do final dos anos de 1980, um cenário semelhante ao do autor que habitava a mesma cidade na infância. Entretanto, observa-se que o narrador busca uma relação de compreensão em que se permite descobrir as sutis diferenças entre o povo e o governo. Ao tratar da relação dos angolanos com a África do Sul, fica evidente a forma de compreensão em situações complexas para a idade do garoto, mas de uma sensibilidade reflexiva.

Foi também assim que percebi porque os sul-africanos eram nossos inimigos, e o que o fato de nós lutarmos contra os sul-africanos significava que nós estávamos a lutar contra alguns sul-africanos porque de certeza que essas pessoas negras que tinham um machimbombo especial para elas não eram nossas inimigas. Então também percebi que, num país, uma coisa é o governo, outra coisa é o povo (ONDJAKI, 2006, p. 28).

O narrador parece inserir-se com certa espontaneidade neste contexto político. A visão dos conflitos surge de modo mais pragmático, realista. Ter a noção de perceber a diferença entre povo e governo também pode ser visto como algo que está ligado ao próprio Ondjaki, não somente como autor, fruto de um instante de diáspora, mas também por meio de seus

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próprios personagens, que vivem no eterno conflito de idas e vidas, na referência à tia que mora em Portugal, e que não compreende determinadas atitudes do povo angolano em relação ao governo, pois em sua visão, há mais medo do que respeito.

O que se destaca no texto é o constante jogo de justaposição das falas e experiências do camarada António e do garoto; dos camaradas professores cubanos e do fato de que o narrador sempre usa o termo “camarada”, fato este que nunca permite que o leitor esqueça a natureza contraditória do sistema liberdade-opressão pelo qual passa Angola. Assim, também constrói a identidade do garoto, com as experiências e as vivências históricas e políticas de seu país.

A identidade, neste sentido, passa a ser um conceito que tem sido analisado atualmente, na visão de autores contemporâneos como Bauman (2005) e Hall (2000). Como infere Bauman (2005, p. 23), se até a algumas décadas a identidade “não estava nem perto do centro do nosso debate, permanecendo unicamente um objeto de meditação filosófica. Atualmente, entretanto, a “identidade” passa a ser um assunto de extrema importância e evidência”. Mas ao tratar da questão de identidade, observa-se a argumentação de Apiah (1997, p. 243), ao se referir sobre a identidade humana como uma construção histórica:

Toda identidade humana é construída e histórica; todo mundo tem seu quinhão de pressupostos falsos, erros e imprecisões, que a cortesia chama de “mito”, religião, de “heresia”, e a ciência, de “magia”. Histórias inventadas, biologias inventadas e afinidades culturais inventadas vêm junto com toda identidade; cada qual é uma espécie de papel que tem que ser roteirizado, estruturado por convenções de narrativa a que o mundo jamais consegue formar-se realmente.

Em Bom dia camaradas, o narrador procura compreender as revoluções de Angola, os movimentos de libertação e até as mudanças por que passa, o jovem, seus amigos e os camaradas professores, por meio da História. Observa-se, dessa forma, que a finalidade social da História relaciona-se ao processo de compreensão do próprio passado, que estabelece uma ligação com o presente.

O jovem destaca detalhes de vidas individuais e das questões políticas, baseando-se naquilo que escuta e interpreta, construída em torno das pessoas. Como a memória apóia-se sobre o passado vivido, assim não há memória que seja somente “imaginação pura e simples” ou representação histórica que tenhamos construído que nos seja exterior, ou seja, todo este

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processo de construção da memória passa por um referencial que é o sujeito (HALBWACHS, 2004, p. 78; 81). O que ocorre na narrativa de Bom dia camaradas é o que em Halbwachs (2004) define como memória histórica, ou seja, esta é coerente com a sucessão de fatos que marcaram a história de um país, assim como pelo fato dela ser construída a partir da soma das experiências do sujeito em relação à percepção do tempo.

Nesse sentido, Angola é o país em questão, presente e personificador na obra de Ondjaki, é o que representa a cultura marcada pelas constantes migrações e invasões de povos africanos. Com estas influências o país, no transcorrer dos séculos, manteve algumas culturas, outras transformaram ou desapareceram. Angola recebeu heranças históricas com uma excessiva heterogeneidade de crescimento e decadência (MACÊDO, 2006).

No entanto, apesar das constantes mudanças entre período de guerra e paz, sempre apresentou esforços de continuidade, fato constatado na história e na escrita dos autores angolanos. Um aspecto significante percebido na história de Angola é a estratificação social. Tal estratificação era condicionada por elementos econômicos, religião e, principalmente, a raça, uma vez que “a barreira da cor condicionou a formação da sociedade de classes em contexto colonial, que em Angola adquiriu nova dimensão a partir dos finais do século passado, ao acentuar-se a tendência maniqueísta para representar uma realidade complexa” (FREUDENTHAL, 2001, p. 371). As principais dicotomias eram: cristão/gentio; livres/escravos; ladino/boçal; civilizado/indígena; branco/negro; colono/filho do país. Naturalmente, com estas dicotomias redutoras e o acúmulo da diversidade, é viável perceber Angola como um país plurinacional, multirracial e, por isso, marcada pelo conflito.

Com a ocupação da FAPLAS em Luanda, umas das regras a serem seguidas era no momento da passagem do presidente e sua comitiva pelas ruas. Quem estivesse dirigindo teria que parar os carros, sair deles e ficar em posição de sentido. A tia Dada, que morava em Portugal, não tinha ideia do que isso representava. Por esse motivo continuou dentro do carro, quando a comitiva passava. A reação do jovem foi de preocupação:

─ Tia, tia! tens que sair do carro, rápido ─ Mas sair do carro por quê?

─ Ela estava mesmo sentada, impressionante, e ainda estava a rir

─ Tens que sair do carro e ficar paradinha aí fora, aqueles carros ali pretos são do camarada presidente.

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─ Dona Eduarda, por favor, sai do carro.... O camarada João falava tipo tava com febre.

─ Tia, a sério, sai do carro agora! ─ quase gritei. (ONDJAKI, 2008, p. 55). As implicações herdadas do poder colonial e do Nacionalismo, em Angola, foram preocupantes, uma vez que o racismo destacou-se como um dos principais causadores e justificadores da subordinação do povo negro. Assim, no princípio do século XX, as diferenças raciais tomaram uma dimensão ao unir-se às questões étnicas, religiosas e sociais. O que ocorreu a partir desse fenômeno, denominado por Apiah (1997) como “racionalismo intrínseco” desencadeou nas características físicas dos negros como considerações determinantes para serem aceitos ou não, além das suas qualidades morais e sociais. A elite dos crioulos, como foi denominada, surgiu em Angola no pós-1945, e apresentou uma luta de mobilização, principalmente na zona rural, onde alcançou uma dimensão nacional e revolucionária.

Com a criação das três organizações políticas em Angola, as forças do povo e a atitude política criaram, em 1948, o Conselho de Libertação de Angola. Naturalmente, havia grupos clandestinos, como o “Exército de Libertação de Angola (ELA), o Movimento para a Independência de Angola (MIA), o Movimento de Independência Nacional de Angola (MINA), o Movimento de Libertação de Angola (MLA), o Movimento de Libertação Nacional (MLN)... ” (BITENCOURT, 2002, p. 54-55).

O Partido Comunista de Angola (PCA), no ano de 1955, contou com a participação de vários escritores angolanos, entre eles, Antonio Jacinto, Viriato Cruz e José Luandino Vieira, conhecido através da revista Cultura, de 1957 e, posteriormente, participou com sua literatura da luta pela independência de Angola como membro do MPLA. Na narrativa, a tia Dada, não entendia porque todos teriam que ficar parados, em posição de sentido, durante a passagem do presidente. Pelo diálogo a seguir percebemos que a banalização de alguns momentos no cotidiano de um país em guerra, fica explícita a imagem do país vista pela ótica de um menino:

─ Pois... escapaste é ver a cerimônia de tiros que ia haver se algum FAPLA te visse a mexer, parecia que tavas a dançar, ainda por cima ias pôr o chapéu... tens que sair do carro para verem que não está armada ou que não vais tentar alguma coisa... (ONDJAKI, 2006, p. 56).

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─ Tia, em Portugal, quando o vosso camarada presidente passa, vocês não saem do carro?

─ Bem, eu nunca vi o presidente passar lá, mas garanto-te que ninguém sai do carro, aliás às vezes nem se percebe se o presidente vai num carro.

─ Hum!, não acredito, ele não tem as motas da polícia pra avisar? Não põem militares na cidade?

─ Não, militares não põem. Às vezes, se é uma comitiva muito grande, convocam a polícia para afastar o trânsito, mas é coisa muito rápida, o presidente passa e pronto. Claro que os carros se afastam, também é obrigatório, mas é porque ouvem as sirenes, percebes? (ONDJAKI, 2006, p. 57-58).

Em Angola, antes da independência, nas décadas de 1950 e 1960, a procura da identidade nacional era realizada por meio da poesia, instrumento para a busca da autenticidade lírica vinculada à luta nacionalista. Não é por acaso que os autores africanos lidam com veemência em vários campos linguísticos, e com os variados estilos, da poesia à prosa. A poesia de luta, a oralidade, a memória sempre presente nos contos e romances, fizeram das literaturas dos países africanos colonizados por Portugal um espaço de lirismo, mas também de protesto.

Assim, em meados do século XX, este aspecto sistemático auxiliou a desvelar os variados modos de representação e atuação no universo social. A partir desse contexto, vale salientar o destaque que Benjamin (1993) frisa em relação ao narrador, ou seja, quando o autor afirma que a narrativa tem origens longínquas e corresponde a um tipo de experiência que só se realiza com dificuldade no mundo atual.

Tal aspecto narrativo, observa-se que as literaturas africanas sofrem uma certa contradição, uma vez que as produções contemporâneas mantêm o uso das línguas coloniais. Ou seja, a incessante busca da autenticidade africana e a construção da identidade nacional em cada país impediu de que vários grupos culturais e étnicos do continente se agrupassem. Os limites geográficos, determinados pelos colonizadores, dividiam um grupo original em dois países, ou então, agrupavam num único país nações tradicionalmente rivais (HAMILTON, 1984).

Angola, após o término da primeira guerra de independência, não se livrou dos martírios que a violência impôs, uma vez que houve uma continuidade das divisões internas, principalmente entre MPLA e Unita, transformando-se em uma segunda guerra civil disputada entre estes principais movimentos revolucionários.

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─ Parece é paz que vai chegar, menino...Ontem tavam a falar lá no bairro. ─ Tavam a falar de que? Da paz? ─ Hum...Parece vamos ter paz... ─ Ó António, e tu acreditas nisso? Há quantos anos é que ouves essa conversa? ─ Pode ser, menino, pode ser...” (ONDJAKI, 2006, p.120).

Guerra também aparecia sempre nas redações, experimenta só mandar um aluno fazer uma redação livre para ver se ele num vai falar da guerra, até vai já...Guerra vinha nos desenhos (as akás, os canhões monacaxito), vinha nas conversas..., vinha nas pinturas na parede (os desenhos no hospital militar), vinha nas estigas (“teu tio foi na UNITA combater, depois voltou, tava a reclamar lá tinha bué de piolho...”), vinha nos anúncios da tv (“ó Reagan, tira a mão de Angola...!”), e até vinha nos sonhos (“dispara Murtala, dispara porra!”). [...] Guerra é que faz um país ficá com comichão... vucê coça, coça e depois começa a sair sangue, sangue...Guerra é quando você pára de cocá mas ainda tá sair sangue”...” (ONDJAKI, 2006, p.131).

É sobre a memória dessa luta desigual proporcionada pela guerra, que Ondjaki descreve em seus escritos, mas de um modo especial, talvez como as pessoas procuraram lidar com a guerra, ou na visão de Ondjaki, o modo como foram vencendo seus próprios fantasmas. A história da Nação angolana é reconstituída a partir da memória de uma criança, que cresce quase concomitantemente com o país e passa por fases de amadurecimento e mudança. O narrador personagem vivencia no seu cotidiano escolar e familiar os diversos conflitos sofridos pelos angolanos em busca de uma transição social, principalmente no que diz respeito à política:

Na mesa estava muito silêncio, mas lá fora havia gritaria, até houve tiros de comemoração. Quando ligamos o rádio é que percebi: afinal estavam a dizer que a guerra tinha acabado, que o camarada presidente ia se encontrar com o Savimbi, que já não íamos ter o monopartidarismo e até estavam a falar de eleições. Eu ainda quis perguntar “mas como é que vão fazer eleições, se em Angola só há um partido e um presidente...”, mas mandara-me calar para ouvir o resto das notícias (ONDJAKI, 2006, p. 135).

O desfecho da narrativa revela que as crianças e jovens em Angola são seres muito curiosos, com avidez de conhecimento. Com a ajuda dos professores cubanos foi possível desenvolver o nível cultural dos jovens. O camarada professor Ángel, enviado a Angola para lecionar nas escolas de Luanda, dizia: “as crianças são as flores da humanidade!”.

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APIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: EDUFMG, 2005.

BITENCOURT, Marcelo. Estamos juntos: o MPLA e a luta anticolonial (1961-1974). Tese de doutorado. Niterói: UFF, 2002.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução Vera da Costa e Silva...[et al]. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

FREUDENTHAL, Ainda faria. “Angola”. In: MARQUES, A. H. de Oliveira. Nova história da expansão portuguesa. Lisboa: Estampa, 2001. v. XI.

HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: Tomaz Tadeu da Silva (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

HAMILTON, Russel G. Literatura africana, literatura necessária. Lisboa: Edições 70, 1984. LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.

MACÊDO, Tania. Luanda, cidade e literatura. São Paulo: Editora UNESP; Luanda (Angola): Nizila, 2008.

MOURÃO, Fernando Augusto Albuquerque. A sociedade angolana através da literatura. São Paulo: Ática, 1978.

NEGREIRO, Carlos Alberto de. Diferença e realidade: ecos da violência, narrativa e resistência em “O labirinto do fauno” e “Bom dia camaradas”. In: Anais do III CONIEC Congresso Internacional de Estudos Comparativos. “Violência e Violência”. Campina Grande: EDUEPB, 2007.

ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006.

POLLACK, M. “Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos, 5 (10). Rio de Janeiro: 1992.

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