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Escravidão em Machado De Assis: Uma análise da obra Memórias póstumas de Brás Cubas

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Academic year: 2021

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Escravidão em Machado De Assis:

Uma análise da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”

Rafaela Rodrigues da Silva Carvalho

Discente do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas – Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG, rafaelarscarvalho@ymail.com

Daniel do Val Cosentino

Docente do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas – Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG, dcosentino@terra.com

Resumo

O século XIX foi um período de grandes transformações para o Brasil. Entre sediar a capital do império português, proclamar-se livre e consolidar-se como nação, o debate sobre a abolição da escravatura esteve presente e atuante, contribuindo efetivamente para a construção da História nacional. Com efeito, a escravidão sustentou toda a estrutura produtiva da época, bem como configurou um elemento de contradição social. Se por um lado a elite agrária brasileira aspirava aos padrões culturais da Europa, por outro se valia de mão-de-obra essencialmente escrava, enquanto os europeus já adentravam na forma capitalista de produção. Nesse sentido, é passível de observação o fato de uma obra realista, escrita à época por Machado de Assis, apresentar-se como instrumento de análise da realidade social.

Palavras chave: realismo, escravidão, Machado de Assis.

Introdução

Publicada em 1881, a obra magna de Joaquim Maria Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, inaugurou o realismo no Brasil. O período literário então vigente, a saber, o romantismo, primava pelo caráter heroico e pelo idealismo de suas personagens. O

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2 autor, ao contrário, abusa de recursos gráficos e narrativos, utilizando a ironia como força motora de seu romance, abarcando todas as fases da vida de um não-herói.

Nascido no seio da elite carioca, Brás Cubas, a personagem central do romance, contraditória e psicologicamente complexa, reflete um homem com problemas existenciais, sem nenhuma grande realização. Apresentando-se como um “defunto autor”, Cubas inicia a narrativa de sua história pelo fim, ou seja, por sua morte. Tal fato rompe a linearidade do texto, agravado por constantes digressões, que deixam a narrativa mais lenta.

Toda a estrutura de Memórias póstumas, bem como a análise psicológica das personagens e a interação com o leitor, presente ao longo da narração, contribui para uma reflexão a respeito da situação miserável da população. Tendo como cenário um Rio de Janeiro oitocentista, a obra consiste em um retrato da sociedade da época, concentrada na conjuntura ideológica do Segundo Império. O recurso utilizado por Machado com o fim de discutir essa sociedade, bem como criticá-la, é a abordagem amiúde da individualidade e da natureza das personagens.

Nessa discussão, travada em todo romance, percebe-se claramente as relações entre capitalismo, classes sociais, cientificismo, positivismo e escravidão. O enredo da obra sustenta-se na história brasileira, de modo a dar significado a ela por meio de referências implícitas ou explícitas. Portanto, a mensagem político-social do romance configura-se como um método, uma vez que a ousadia de Machado, expressa em sua forma literária, “onde lucidez social, insolência e despistamento vão de par, define-se nos termos drásticos da dominação de classe no Brasil: por estratagema artístico, o autor adota a respeito uma posição insustentável, que entretanto é de aceitação comum” (SCHWARZ, 2000, p. 10).

Neste sentido, o presente trabalho se propõe a apresentar um levantamento de aspectos da obra que permitem discutir a escravidão e a posição do escravo no Brasil Imperial a partir do realismo em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Nesta, Machado de Assis apresenta, com maestria, as contradições de uma sociedade, que, por um lado, aspira à cultura, ao conhecimento e ao modo de vida europeia, mas que, por outro, se sustenta em um modo de produção escravista, ou seja, tipicamente colonial.

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Escravidão em Machado De Assis: uma análise da obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”

O triunfo do realismo

O realismo é uma corrente artística que ganhou vida em fins do século XVIII e se desenvolveu a partir da razão, da ciência e da realidade, priorizando a essência em detrimento da aparência, tão comum nas artes de então. Marcada por características como denúncia das injustiças sociais e desprezo pela idealização romântica, o movimento buscava retratar a realidade tal qual ela era, sem prejuízo de beleza e forma.

Diferentemente do realismo, “o romance como gênero literário é a expressão artística mais acabada do mundo burguês” (FREDERICO, 1997, p. 41). Com efeito, a nova ordem social que se formava conferiu à burguesia uma nova postura: ela abraçou os valores liberalistas, transformando-se em uma elite conservadora, preocupada apenas com a manutenção da ordem estabelecida. A sociedade então deixou de ser

o palco da história social, dos conflitos e da busca do conhecimento da verdade. Agora, a sociedade passa a ser vista como uma segunda natureza, como algo fixo e imutável, e o pensamento se compraz na apologia existente. A democracia é substituída pelo liberalismo; a economia clássica transforma-se em economia vulgar; o racionalismo abandona o ideal emancipatório e torna-se uma técnica positiva de controle social (FREDERICO, 1997, p. 41).

Se por um lado o romantismo se prima pelo idealismo, por outro o realismo se funda na realidade. Segundo György Lukács, um dos pensadores que mais estudou, pela ótica da teoria marxista do conhecimento, a ciência das artes – a estética –, o realismo configura-se como o “único método apropriado para se obter uma representação artística correta” (FREDERICO, 1997, p. 32). Com efeito, frente ao desafio imposto à arte – “o de refletir a realidade social, o mundo dos homens, como uma totalidade viva formada pela unidade contraditória de essência e aparência” (FREDERICO, 1997, p. 34) – o desafio do artista é mostrar a aparência como um disfarce da essência.

Isso Machado de Assis cumpre com primazia na obra Memórias póstumas de Brás Cubas, que, no limite, traz uma crítica à sociedade brasileira embasada na realidade social. Além disso, personagens como Brás Cubas, dotados de uma “ineliminável singularidade, concentram também certas tendências universais próprias do ser humano, postas num determinado momento histórico” (FREDERICO, 1997, p. 51).

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se quisermos entender a problemática da arte contemporânea, é necessário buscar – por baixo da superfície dos processos formais, estruturais ou técnicos – a visão do mundo que é subjacente às várias tendências e, a partir daí, determinar quais as que permitem uma rica e unilateral reprodução da realidade, a partir da qual se torna possível a criação (ou recriação) de autênticas estruturas formais, e quais as que não se prestam – por deformarem o real – senão a um experimentalismo técnico fundado na dissolução da forma (COUTINHO, 1967, p. 25).

Uma vez que a arte, essencialmente uma forma ideológica, compõe a superestrutura em lugar da base econômica; em uma sociedade repartida em classes antagônicas, ela encontra-se atrelada a determinados interesses das classes sociais ditas dominantes. Porém, sua manifestação carece de ganhar forma, de modo que as ideias políticas, bem como morais ou religiosas precisam se integrar a uma estrutura artística ou a uma totalidade que possui sua legalidade própria (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2011).

Ilustrando tal conceito, Machado apresenta nas Memórias as três classes existentes no Brasil do século XIX: a dominante, a dos escravos e a dos trabalhadores livres; bem como suas relações sociais. A primeira, a elite agrária, é representada pelo próprio Brás Cubas; a segunda, tanto dos negros escravizados quanto dos livres, é figurada por Prudêncio; e a terceira, referente à classe livre, embora dependente economicamente e por isso também basilada na escravidão, encontra-se Dona Plácida, uma agregada de Brás e sua amante.1

Classificadas como atuações sociais, as categorias, para captar a realidade não devem, portanto, “ser construções abstratas a priori [...]: elas devem, inicialmente, emanar da própria realidade. Algo só é verdadeiro para o pensamento porque existe efetivamente na realidade” (FREDERICO, 1997, p. 49).

De acordo com Celso Frederico (1997, p. 53), situações e personagens típicas são atributos básicos da “grande literatura realista sensível às mutações históricas, sempre contraposta [...] à literatura menor que só consegue criar personagens e situações médias, fixas e estereotipadas”. Por conseguinte, a partir do pensamento marxista, qualquer gênero artístico é realista na medida em que constitui de forma singular “a totalidade das determinações do reflexo estético da realidade objetiva” (COUTINHO, 1967, p. 107).

Se o romance é tipicamente realista, o Machado consegue, na obra, cruzar os destinos individuais das personagens – enquanto seres sociais – com as possibilidades concretas dadas pelo desenvolvimento da sociedade, além de, seguindo o desenrolar de tais destinos, revelar

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A obra apresenta também outras personagens que compõem a estrutura da sociedade brasileira, como Virgília, a amante de Brás, e seu pai, o Conselheiro Dutra, quase uma representação do governo oitocentista; Marcela, uma prostituta espanhola que foi o primeiro amor de Brás, amando-o “durante quinze meses e onze contos de réis” (Cap. 17); Eugênia, a “flor da moita” coxa que só não foi desposada pelo narrador por possuir essa deficiência; e Quincas Borba, um amigo de infância que o reencontra muitos anos depois, mendigo, e dono de uma nova filosofia de vida: o Humanitismo. Porém, neste trabalho será apresentado apenas as personagens que representam as classes sociais na sociedade escravista carioca, alvos de maior crítica social.

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5 as forças sociais que atuam em uma época determinada da história de uma sociedade (FREDERICO, 1997, p. 52). Com efeito, por ser o primeiro a conseguir tal feito no Brasil, o autor é quem faz triunfar o realismo no país.

A sociedade escravista brasileira

Para entender as Memórias póstumas de Brás Cubas, é necessário primeiro compreender o contexto histórico pelo qual atravessava o Brasil, contexto esse vivido por Machado de Assis. A obra foi publicada em 1881, porém sua personagem principal, Brás Cubas, viveu de 1805 a 1869, de modo que presenciou episódios importantes da história do país. Ademais, “entre a morte do ‘defunto autor’, em 1869, e o aparecimento do texto, em 18802, houve acontecimentos políticos e sociais decisivos da década de 1870, os quais conformam, de fato, o conteúdo e o tom do relato de Brás” (CHALHOUB, 2003, p. 97). Portanto, faz-se mister discutir e analisar os principais elementos constitutivos da sociedade escravista brasileira ao longo do século XIX.

Em 1808, a Corte portuguesa chega ao Brasil fugida da França e com ajuda da Inglaterra, fazendo do Rio de Janeiro a capital da Monarquia portuguesa. A partir de então, o Príncipe Regente Dom João VI adota medidas que representaram mudanças significativas na estrutura econômica brasileira. Em 1822, é declarada a Independência e o Rio de Janeiro torna-se a capital do Império brasileiro.

Nem a chegada da Coroa Portuguesa, nem a declaração da Independência, porém, foram suficientes para mudar a condição dos escravos. Apesar dos tratados de independência elaborados com apoio da Inglaterra exigir o fim do tráfico negreiro até 1827, o governo Imperial não tomaria ação efetiva para romper com a estrutura social do país. Desde o século XVI, com o sistema de plantation nas lavouras de açúcar3, a economia brasileira se assentava

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A obra apareceu primeiramente em um jornal do Rio de Janeiro, em 1880. Porém, ela só foi publicada no ano seguinte, em 1881.

3 Inicialmente a mão-de-obra escrava utilizada nas plantações de açúcar no nordeste brasileiro era de índios

nativos. Os negros africanos chegaram “para a expansão da empresa, que já estava instalada. É quando a rentabilidade do negócio está assegurada que entram em cena, na escala necessária, os escravos africanos: base de um sistema de produção mais eficiente e mais densamente capitalizado.” (FURTADO, 2007, p. 77). Ver também Prado Junior (1994).

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6 em uma estrutura de produção essencialmente escravista4. Três séculos depois, no século XIX, a estrutura produtiva permanecia a mesma, com os negros agora nas lavouras de café.

De qualquer forma, a defesa progressista do tráfico de escravos implicava “problemas ideológicos difíceis de resolver, e encarnava a parte de afetação e afronta que acompanha a vida das ideias nas sociedades escravistas modernas”. Analogamente “a ambivalência tinha fundamento real, e Machado de Assis, conforme se verá, soube imaginar-lhe as virtualidades próximas e remotas” (SCHWARZ, 2000, p. 30).

Nas Memórias, Machado demonstra que a situação apresenta maiores contradições quando a sociedade aspira a padrões culturais e intelectuais vinculados à liberdade, mas permanece ancorada e estruturada a partir da escravidão e com uma economia com características coloniais.5 Tal situação evidencia a contradição primeira da nossa sociedade que, nos termos em que desenvolveu o capitalismo, de maneira incompleta, “resultou numa economia vulnerável e dependente externamente, que se reflete até hoje em um país subdesenvolvido com problemas sociais, em fome e miséria para grandes contingentes humanos” (COSENTINO, 2006, p. 12).

A despeito da pressão exercida pela Inglaterra em favor do fim da escravidão, foi apenas em 1850, aos quatro de setembro, que se instituiu a Lei Eusébio de Queiroz, abolindo o tráfico de escravos no Brasil. Desse modo, “extinta a fonte principal de fornecimento de mão-de-obra para o sistema escravista, este tenderia a acabar” (COSENTINO, 2006, p. 17). A extinção do tráfico acarreta “outro efeito direto: põe termo ao longo conflito com a Inglaterra; e das relações políticas que então se estabelecem com aquele país, resultará novo afluxo de suas iniciativas e capitais para o Brasil” (PRADO JÚNIOR, 1994, p. 154). No entanto, as ações realizadas contra o tráfico, consistiam apenas em medidas para adiar a abolição definitiva, resguardando os interesses dos grandes senhores de terra.

Além da pressão dos ingleses, o sucesso da lei se deveu a fatores internos, tais como o descontentamento dos agricultores quanto aos preços elevados dos escravos, dado às constantes capturas dos navios negreiros pela Inglaterra; bem como a submissão destes aos traficantes, que, porque haviam se tornado “uma potência financeira, e apesar do desprestígio

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A grande diferença entre os trabalhos livre e escravo consiste no fato de, no primeiro, o trabalhador ser desprovido dos meios de produção, motivo pelo qual é obrigado a vender sua força de trabalho como mercadoria, ou seja, em troca de salário. Já no regime escravista, o escravo é ele próprio uma mercadoria, no sentido de ser comprado, vendido, e ter todo o produto do seu trabalho apropriado por seu dono. Ver Cosentino (2006).

5 É importante ressaltar a incoerência do pensamento liberal brasileiro que “criticava o absolutismo e o

colonialismo de um lado, pregando o rompimento dos laços coloniais, mas por outro, mantendo a escravidão como elemento unificador da sociedade imperial que se formara com a emancipação política.” (COSENTINO, 2006, p. 14).

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7 social que os cercava, faziam sombra com seu dinheiro às classes de maior expressão política e social do país” (PRADO JÚNIOR, 1994, p. 152), a saber, fazendeiros e grandes proprietários de terras, que são devedores àqueles.

Duas semanas após a extinção do tráfico de escravos, foi promulgada a Lei de Terras, com o fim de regulamentar o direito sobre a propriedade no Brasil. Até então, a apropriação territorial se dava por meio da posse, na qual os grandes proprietários aumentavam seus domínios se apossando das terras dos demais. Este período “estruturou de forma definitiva o latifúndio, que tinha base no poder local e se valia da ausência estatal” (COSENTINO, 2006, p. 26).

Uma vez que a questão agrária sempre esteve ligada à discussão da mão-de-obra, a Lei de Terras nasceu como um complemento à abolição do tráfico, primeiro porque “tudo que o escravo representava em termos de mercadoria e capital imobilizado deveria ser substituído pela terra”, e depois porque “o fim do tráfico colocava em questão o fim do trabalho escravo e, consequentemente, a transição para o trabalho livre” (COSENTINO, 2006, p. 28). A lei, então, foi essencial para a inserção do trabalho assalariado no Brasil.

A todo o momento o governo tentava alterar o status quo da sociedade, atendendo, para isso, aos críticos da escravidão, mas sem prejudicar as lavouras e os interesses dos donos dos cativos. Com efeito, em 28 de setembro de 1871, foi criada a Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre. Essa medida declarava livres os filhos dos negros nascidos após a sua vigência, contanto que, mantidos sob os “cuidados” dos senhores até os oito anos de idade, trabalhassem até os vinte para pagarem a “educação” recebida. Os donos poderiam optar, ainda, por receberem uma indenização do Estado (PRADO JÚNIOR, 1994; COSTA, 2001).

Essa lei, mais uma vez, configurava uma manobra essencialmente política, caracterizada pela astúcia do governo em alcançar seus objetivos atendendo a interesses tanto de liberais quanto de conservadores. Nesse sentido, a medida não percutiu efeitos imediatos, já que os escravos seriam libertos após os vinte e um anos de idade. Essa proteção ao proprietário adiou a discussão da libertação definitiva dos cativos.

Em consequência disso, em 1879, foi criada a Lei de Locação e Serviços, como uma forma de organização do trabalho assalariado. Essa lei regulamentava o trabalho dos imigrantes, incentivado pelo governo, bem com o trabalho dos nacionais, por meio de contratos que durariam, para estes, de três a seis anos, e, para aqueles, o máximo de cinco anos, podendo ser renovados. A lei visava atrair os imigrantes, iniciando um processo de

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8 imigração europeia, para dar respostas mais favoráveis aos trabalhadores mas sem deixar de ser repressivo (COSENTINO, 2006). Por outro lado, a reorganização do mercado de trabalho tirou a atenção do fim da escravatura.

A última medida antes de tal fim, a Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe, datada de 28 de setembro de 1885, estipulava que os escravos acima de 60 anos seriam libertos, contanto que ou trabalhassem mais três anos ou pagassem uma multa a seus donos, podendo ser dispensados caso chegassem aos 65 anos (COSENTINO, 2006). Essa “foi uma tentativa desesperada daqueles que se apegavam à escravidão para deter a marcha do processo” (COSTA, 2001, p. 70). No limite, a liberdade dos sexagenários continuava condicionada às vontades dos senhores.

A partir de 1880, o movimento abolicionista ganhou grande força frente à sociedade, invertendo os papéis de escravos e de senhores: agora estes apresentavam-se como algozes e aqueles como vítimas. A justiça passava a olhar com maus olhos a escravidão a despeito dos senhores, e os próprios escravos contestavam cada vez mais a legitimidade de sua situação, bem como reivindicavam sua liberdade. Não suportando as pressões, aos treze de maio de 1888, foi assinada pela Princesa Isabel a Lei Áurea, abolindo definitivamente a escravidão no Brasil (COSTA, 2001; PRADO JÚNIOR, 1994).

Notas sobre escravidão em Memórias póstumas de Brás Cubas

À guisa de observação inicial, faz-se necessário entender o foco narrativo utilizado por Machado de Assis na condução do romance. A vontade de chamar a atenção predomina desde o título, configurando um contrassenso, uma vez que os mortos não escrevem. O “defunto autor”, Brás Cubas, impressiona por sua ousadia e indiferença, denunciada já no prólogo – “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. Nesta passagem, a dedicatória aos vermes – um desrespeito – deixa claro que, para o finado, não há ninguém digno de ser lembrado, declarando o pessimismo da obra. Do mesmo modo, é quase um desrespeito a maneira íntima com que, logo de início, é tratado o leitor caso não goste do romance: “pago-te com um piparote, e adeus” (Schwarz, 2000; Barreiro, 2011). Analogamente, a volubilidade da personagem, usada pelo autor como base do texto6, constitui “a fórmula narrativa de Machado consiste em certa

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A volubilidade aqui consiste em uma “feição geral a que nada escapa, sem prejuízo de ser igualmente uma tolice bem marcada, de efeito pitoresco, localista e atrasado. Ora funciona como substrato e verdade da conduta

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9 alternância sistemática de perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira” (SCHWARZ, 2000, p. 19).

Nesse sentido, fugindo de características próprias do romantismo, o autor apresenta um anti-herói humano e contraditório, que interage e dá respostas ao ambiente no qual vive. A exemplo disso faz-se digno de nota o emplasto criado pelo narrador, que foi, segundo ele, o verdadeiro motivo da sua morte.

Essa ideia era nada menos que um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas de remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória. (Cap. 2)

Apresentado como um medicamento cheio de motivos nobres, o emplasto é na verdade um capricho do “defunto autor”, que almejava ver seu nome estampado nos jornais. Se por um lado o emplasto assumia esse caráter particular, envolto em glórias para Brás, por outro é também “destinado a aliviar nossa melancólica humanidade”. Com efeito, “Machado de Assis parece desvendar, finalmente, o que parecia obscuro: suas personagens não serão dadas ao extremo da bondade ou da vilania, mas um misto de atitudes que, aos olhos de todos, parecem dignas e, simultaneamente, sob a observação do narrador, mesquinhas, dedicadas ao regozijo particular” (BARREIRO, 2011, p. 4).

Nascido em uma família abastada, Brás Cubas, desde muito cedo, recebera a qualificação de “menino diabo”, o que de fato fora. Entre traquinagens e indiscrições, o garoto, cheio de vontades, recebera muitos mimos de seu pai. Na primeira passagem da obra referente a escravos, o narrador conta que, com apenas seis anos, quebrara a cabeça de uma negra porque esta lhe negou uma colher de doce. Logo em seguida, Brás descreve sua relação com um garoto escravo:

Prudêncio, um moleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, –

humana, contemporânea inclusive, que só não reconhecem os insanos, ora como exemplo de conduta ilusória, um tanto primitiva, julgada sobre fundo de norma burguesa e utilizada como elemento de cor local e sátira. Esta incerteza de base, longe de ser um defeito, é um resultado artístico de primeira força, que dá a objetividade da forma a uma ambivalência ideológica inerente ao Brasil de seu tempo”. (SCHWARZ, 2000, p. 31).

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algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhônhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!” (Cap. 11)

O fato de Brás pertencer à elite agrária, somado à idolatria que seu pai nutria por ele, não deixam dúvidas de que a personagem não poderia ser diferente. Ademais, “o defunto autor parece ter que, por princípio, fazer observações pessimistas sobre a natureza humana — e sobre ele mesmo — regadas de ironia que divertem e deprimem” (BARREIRO, 2011, p. 4). Neste sentido, o fato de Brás usar um negro como cavalo e/ou brinquedo, ao ponto de bater-lhe com uma vara, demonstra a semelhança de Prudêncio com um animal ou objeto, já que ambos são tratados da mesma forma.

Tal fato alude ao rigor sem lacunas com que Machado de Assis submeteu a configuração do romance realista aos “imperativos da volubilidade, rigor em que a parte da amargura e da descrença em face da sociedade contemporânea é grande, deu margem por sua vez ao aproveitamento de formas bonachonas e bem aceitas de espelhamento social” (SCHWARZ, 2000, p. 34). De fato, uma vez que a sociedade brasileira do século XIX é sustentada pela escravidão, assuntos referentes a escravos são corriqueiramente discutidos, como em uma festa dada pelo pai do pseudo-autor que, ainda criança, ouve um sujeito dar notícia a outro sobre o tráfico de escravos que,

segundo cartas que recebera de Luanda, uma carta que o sobrinho lhe dizia ter já negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que... Trazia-as justamente na algibeira, mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos contar, só nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos. (Cap. 12)

Fica evidente, assim, a condição dos negros no Brasil oitocentista. O modo como, em uma reunião entre amigos, os escravos são mencionados não deixam dúvidas quanto a sua dominação pelos possuidores de terras. Mais que isso, fica expressa a sua coisificação, enquanto comparados a gado, já que diz que se havia negociado “cerca de quarenta cabeças”.

Ainda sobre a condição dos negros, pouco depois, com a morte de seu pai, Brás e sua irmã, Sabina, casada com o Cotrim, vão fazer a partilha dos bens deixados pelo finado. Quando de uma discussão quanto ao valor dos imóveis, Sabina pondera:

— Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos arranjar tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, Cotrim não aceita os pretos, quer só o boleeiro de papai e o Paulo...

— O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro. — Bem; fico com o Paulo e o Prudêncio.

— O Prudêncio está livre. — Livre?

— Há dois anos.

— Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata? (Cap. 46)

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11 Vale lembrar que, a essa época, os escravos representavam o maior capital imobilizado que existia. Isso significa que eles valiam mais que a própria terra, cuja regularização só foi ocorrer em 1850 com a Lei de Terras. Sinônimo de status, a posse dos cativos definia a composição social da elite carioca. Na passagem acima, cujos escravos são deixados como parte dos bens, a discussão entre os irmãos gira em torno da prataria, que se apresentava tão ou mais valiosa que os negros. A exemplo disso, o boleeiro, dito acima, que não é tratado nem pelo nome, só é conveniente enquanto condutor da sege, o que expressa a frase de Brás quando este diz que fica com a sege e não há de comprar outro boleeiro. A frase sintomática de Cotrim, quanto à libertação de Prudêncio, a besta da infância do narrador – “creio que não libertou a prata?” – evidencia mais uma vez a ironia da obra tanto ao escarninho frente à libertação de Prudêncio, quanto à comparação deste novamente com um objeto: a prata.

O fato de Cotrim não abrir mão dos escravos mesmo em favor da prataria e mesmo não gostando deles, evidencia quão importante são os cativos na estrutura da sociedade brasileira, cuja determinação abarca também as relações sociais dos indivíduos. Com efeito, o cunhado de Brás, típico cidadão carioca,

Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito das relações sociais. (Cap. 123)

Neste sentido, Cotrim só era bárbaro para os seus inimigos, que o alegavam cruel no trato com os escravos. Como um estratagema para abrandar a conduta do cunhado, Brás afirma que este só mandava ao calabouço “os perversos e os fujões”; e apenas porque “esse gênero de negócio requeria”. Cotrim, boa pessoa, só era impiedoso com os escravos, como se estes não carecessem de bondade, uma vez que se apresentavam não como indivíduos, e sim como mercadorias. Mas de modo algum se pode “atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito das relações sociais”.

Com efeito, “embora desrespeitoso de restrições, o espírito negador não agride as iniquidades consagradas pela História; mas, a julgar pela conduta do memorialista, é certo que livra a classe dominante da obrigação para com os dominados, dando-lhe latitude total à irresponsabilidade” (SCHWARZ, 2000, p. 43). Ademais, à época em que foi publicada as Memórias, “as ideias abolicionistas eram aventadas no Brasil já fazia tempo e, ciente de que

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12 havia contradição em divulgá-las num país que se dizia liberal, Brás Cubas justifica as duras punições de Cotrim chamando-as puro efeito de relações sociais”7 (BARREIRO, 2011, p. 8).

Os paradoxos de um país em efervescência ideológica são ainda mais gritantes quando o narrador encontra Prudêncio.

Interrempou-mas [as reflexões] um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: – “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão”! Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado! – Meu senhor! gemia o outro.

– Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, – o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele. – É sim, nhonhô.

– Fez-te alguma coisa?

– É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

– Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

– Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto! (Cap. 68)

Nessa passagem, Prudêncio se apresenta como dono de outro negro, situação difícil de ocorrer dado o alto preço dos cativos. Por outro lado, o fato de o “moleque de Brás” possuir um escravo ao mesmo tempo em que demonstra a sua pseudo ascensão social, cuida das relações existentes entre senhores e servos, estas em detrimento das de negro para negro. Assim, há um considerável “elemento em comum nas políticas de domínio exercidas sobre escravos e dependentes: em ambos os casos, e permanecendo sempre na ótica da classe dos senhores e proprietários, as relações sociais de dominação estão assentadas no pressuposto da inviolabilidade da vontade senhorial” (CHALHOULB, 2003, p. 51).

O momento que melhor demonstra isso é quando, a despeito de também ser negro e já ter sofrido punições semelhantes, Prudêncio bate em seu escravo; mas quando Brás se acerca da situação, o outro, mesmo livre, lhe pede a bênção, e, como se não bastasse, atende ao

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13 pedido do narrador e perdoa o bêbado incontinenti, dizendo submissamente: “– Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede”.

Na verdade, o fato de Prudêncio também ser negro e já ter sofrido punições semelhantes é o verdadeiro motivo da coação exercida sobre seu escravo. Conclusão a que chega o próprio narrador depois de mais uma digressão, “era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro”. E ainda Brás arremata com um “veja as sutilezas do maroto!”, como se de fato essa fosse a melhor forma de sua besta sentir-se como gente.

Uma vez que “a chave para se compreender a obra de Machado de Assis está na compreensão do antagonismo de classe, bem como na intriga e no sistema de relações sociais” (SCHWARZ, 2000, p. 41), o autor atribui ao leitor a tarefa de refletir sobre a condição do negro no país. Nesse sentido, ao centrar suas histórias nesses antagonismos, entre senhores e dependentes/agregados, o autor abordava, “na verdade, a lógica de dominação que era hegemônica e organizava as relações sociais no Brasil oitocentista, incluído aí o problema do controle de trabalhadores escravos, a ‘relação produtiva de base’” (CHALHOULB, 2003, p. 57).

No limite, “o romance não busca fixar a contradição, e muito menos a transformação, mas o progressivo desgaste no entusiasmo com que um parasita abocanha a sua parte nas vantagens da iniquidade social, cujo limite não está à vista” (SCHWARZ, 2000, p. 48). Assim, “a pintura aprofundada de um tipo obriga à esquematização da correspondente estrutura histórica. Para dar vida ao protagonista foi preciso trazer à cena um elenco de personagens que em certo plano resumisse a sociedade nacional” (SCHWARZ, 2000, p. 47).

Das relações sociais de Brás, se Prudêncio reflete os escravos da sociedade, a personagem que representa a classe social dita livre, mas dependente economicamente, é Dona Plácida, uma agregada responsável por cuidar da casa dos amores de Brás com Virgília. Porém,

Custou-lhe muito aceitar a casa; farejara a intenção, e doía-lhe o ofício; mas afinal cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha nojo de si mesma. Ao menos, é certo que não levantou os olhos para mim durante os primeiros dois meses; falava-me com eles baixos, séria, carrancuda, às vezes triste. Eu queria angariá-la, e não me dava por ofendido, tratava-a com carinho e respeito; forcejava por obter-lhe a benevolência, depois a confiança. Quando obtive a confiança, imaginei uma história patética dos meus amores com Virgília, um caso anterior ao casamento, a resistência do pai, a dureza do marido, e não sei que outros toques de novela. Dona Plácida não rejeitou uma só página da novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade da consciência. Ao cabo de seis meses quem nos visse os três juntos diria que Dona Plácida era minha sogra.

Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco contos, - os cinco contos achados em Botafogo, - como um pão para a velhice. Dona Plácida agradeceu-me com lágrimas

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nos olhos, e nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo. (Cap. 70)

Como o pressuposto da inviolabilidade das pretensões senhoriais estava evidente nas políticas de dominação de escravos bem como de dependentes e agregados, e como a escravidão é a expressão máxima da dependência, a situação dos agregados, como Dona Plácida, se configura a partir da condição dos escravos. (CHALHOULB, 2003). Por isso Dona Plácida acaba aceitando pactuar com o adultério, pois ela tem ciência de que é o melhor que pode conseguir, dada sua condição de classe.

A agregada talvez seja o alvo das críticas mais ferozes do “defunto autor” (BARREIRO, 2011), mas ao mesmo tempo as críticas à Dona Plácida conferem censuras ao funcionamento mesmo da sociedade brasileira. Frente à desigualdade social, qualquer argumento universalista é “posto à prova, fazendo papel de escandalosa desconversa, tanto mais interessante quanto o seu ânimo é esclarecido”. Desse modo, “a atividade explicativa nas Memórias nunca é desinteressada: a satisfação que proporciona a seu sujeito é causa de uma nota risonha, ao passo que o seu papel especioso no relacionamento entre as classes é causa de uma nota ignóbil” (SCHWARZ, 2000, p. 45).

Portanto, refletindo sobre a existência da agregada, Brás conjetura que

‘Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça. Pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. E de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: - Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: - Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia’. (Cap. 75)

Com efeito, Machado manifesta em Brás certo preconceito e indiferença quanto aos pobres, dada a inutilidade de suas vidas; bem como uma ironia gritante frente à realidade social, já que Dona Plácida foi chamada a uma vida de privações e dificuldades “num momento de simpatia”.

Quando da morte da agregada, muitos anos depois, sozinha e doente sem ajuda de ninguém, Brás pondera novamente sobre a vida de Dona Plácida, se de fato foi “para isto que o sacristão da Sé e a doceira trouxeram Dona Plácida à luz, num momento de simpatia específica.”

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Mas adverti logo que, se não fosse Dona Plácida, talvez os meus amores com Virgília tivessem sido interrompidos, ou imediatamente quebrados, em plena efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de Dona Plácida. Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse mundo? (Cap. 144)

A utilidade de Dona Plácida, para Brás, se deu apenas pelo fato de ela ter ajudado em seu relacionamento com uma mulher casada. Ou seja, para o membro da alta sociedade, a função da agregada foi de existir unicamente para colaborar com a sua infidelidade. “Utilidade relativa, convenho; mas que diacho há absoluto nesse mundo?”

Segundo Schwarz (2000, p. 48), a obra de Machado põe a nu “o caráter sistemático destas afrontas, em cujas implicações o descompromisso da classe dominante brasileira para com os seus dependentes e também para com a própria norma burguesa se teatraliza e expõe radicalmente, até a última consequência, sem fugir a culminações abjetas.” Este fato, como todo o romance, aclara a “correspondência entre o estilo machadiano e as particularidades da sociedade brasileira, escravista e burguesa ao mesmo tempo” (SCHWARZ, 2000, p. 10).

Com efeito, as Memórias póstumas de Brás Cubas manifestam-se como um instrumento de análise social na medida em que apresentam uma sociedade cheia de mazelas e problemas sociais, regida por leis contraditórias e desumanas, em favor de uma pequena, mas dominante, parcela da população. Machado de Assis, ao inovar no uso de recursos de escrita e método, inaugurando o realismo, propõe uma leitura crítica e analítica da realidade no Brasil, o que consegue, não sem brilhantismo, através de seu Brás Cubas.

Considerações finais

Uma vez que se configura sob os moldes realistas, a obra Memórias póstumas de Brás Cubas se apresenta como explicação da realidade brasileira. Como foi dito, a elite agrária se sustentava através da mão-de-obra escrava e, em consequência disso, toda a estrutura social gravitava em torno dessa estrutura produtiva, essencialmente servil.

Nessa sociedade, Machado de Assis apresenta a condição de classe do escravo, descrito na figura de Prudêncio, como mera mercadoria de composição dos modos produtivos. Comparados a máquinas, animais e objetos – ou seja, propriedade privada –, os negros estão submetidos às vontades de seus senhores. Tal relação de dominação é sintomática, porque se por um lado os escravos são tratados como sub-humanos, como coisas, por outro são eles quem produz toda a riqueza de seus senhores e, no limite, fazem a sociedade funcionar.

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16 Não obstante, a própria condição da classe pobre, dita livre, encontra-se indiretamente dependente da escravidão, já que a manutenção do escravismo do Brasil dificultou o desenvolvimento do capitalismo. O novo sistema socioeconômico, pautado pelo capital, precisa de elementos básicos para se formar, como mercado interno e mão-de-obra livre. Como ainda não há nenhum desses elementos no Brasil, pelo menos em intensidade significativa, a classe dos agregados e dependentes, desprovidos dos meios de produção e sem poder vender sua força produtiva, também fica a mercê da elite dominante, como é o caso de Dona Plácida.

Mostrando as incoerências da sociedade escravista, explicitadas nos contrastes entre a situação de escravos e dependentes e a justificação e defesa de seus dominadores, Machado de Assis, usando de uma ironia gritante, e uma complexa volubilidade da personagem central, Brás Cubas, faz ferrenhas críticas à realidade, ao mesmo tempo em que convida os leitores a refletirem sobre tal situação. Com efeito, e não sem mérito, Machado é considerado o mestre do realismo no Brasil.

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Referências

BARREIRO, Carlos R.D. Memórias póstumas de Brás Cubas. CPC Educacional.

Disponível em < http://www.cpv.com.br/cpv_vestibulandos/dicas/livros/litobr0401m.pdf>. Acesso em agosto de 2011.

COSENTINO, D. V. Um múltiplo de transições: a transição para o trabalho livre em Minas Gerais. 2006. 207 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Econômico) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2006.

COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 7. ed. São Paulo: Global, 2001.

CHALHOULB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 51.

COUTINHO, Carlos Nelson. Literatura e humanismo: ensaios de crítica marxista. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 34. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

FREDERICO, Celso. Lukács: um clássico do século XX. São Paulo: Moderna, 1997. – (Coleção Logos)

LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. Seleção, apresentação e tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Klick, 1997.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 23. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 41. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. As ideias estéticas de Marx. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 34. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000.

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