Vanessa de Faria Berto. Amélia é quem era mulher de verdade? – Um estudo acerca de
relações de gênero, representações e violência simbólica no cotidiano das comunidades de
bairro de Marília-SP (1980-2004). (UNESP/ Marília – pós-graduanda).
1. Apresentação da pesquisa
1.1. O surgimento de sua idéia principal.
Muito provavelmente, a primeira dificuldade encontrada pelo pesquisador que se dedica a um objeto tão complexo – qual seja, a condição feminina em uma sociedade determinada – é a que envolve a “invisibilidade” das mulheres diante do que é oficial. Não por acaso, a historiografia atual, enfrentando uma crise dos modelos tradicionais, vê-se diante da necessidade de rever seus discursos, baseados na universalidade das versões, bem como, e principalmente, de dar espaço e voz aos sujeitos que até então transitavam nas margens da construção histórica. Entre tais indivíduos, destacam-se a “descoberta” da mulher enquanto agente social de fato e a inclusão dos estudos acerca do feminino na abordagem de gênero (MATOS: 2000).
Os trabalhos historiográficos sobre a mulher, em franca ascensão nos últimos anos,
procuram privilegiar outros conteúdos e questões que abordam a participação feminina não
somente em grandes espaços históricos, como a política e o trabalho, mas ainda nas
microfísicas do cotidiano, atentando para as formas como as mulheres se aproveitaram de
lacunas, brechas e incoerências das práticas sociais, políticas e culturais vigentes para criar
resistências frente à sua submissão. Ganham destaque, também, a análise do papel feminino
no âmbito familiar, seus padrões de comportamento, inclusive sexual, sua educação, seus
códigos construídos a partir de preconceitos por vezes fundamentados em discursos de
cunho médico e jurídico. Todo esse processo contribuiu por trazer à luz experiências
históricas de inquestionável relevância e recuperar testemunhos femininos perdidos em
relações múltiplas (BURKE: 1992).
Nesse sentido, nossa pesquisa vem corroborar com tais exigências de conhecer e analisar a participação das mulheres nos mais diversos processos da História do seu humano, uma vez que nossa principal finalidade consiste em refletir acerca das questões da condição social feminina que surgiram a partir de nossa inserção na realidade concreta de determinadas comunidades de bairro de nosso município. Tal inserção deu-se basicamente por conta do desenvolvimento de nossa pesquisa junto ao G.U.T.O. – Grupo de Pesquisa e de Gestão Urbana de Trabalho Organizado – que desenvolve um projeto em políticas públicas, financiado pela FAPESP, intitulado “A Geografia do Crime de Marília – Diagnósticos para uma ação social comunitária”(UNESP/ Marília) e cuja principal finalidade era exatamente estreitar as relações entre Universidade e Comunidade.
Foi desse modo que pudemos observar a ascensão de um fenômeno positivo - um
“novo feminismo”, se assim o podemos chamar, presente no cotidiano das mulheres,
especialmente das oriundas dos grupos populares. Esse “feminismo” não se restringe
apenas à preocupação com o reconhecimento formal dos direitos femininos, embora isso
não seja menos importante, mas verificamos que, em suas ações efetivas, as mulheres
buscam articular responsabilidades e privilégios coletivos. Ao se preocuparem consigo
próprias, com sua condição feminina particular, as mulheres levam em conta também a
condição de seus filhos, seus parentes, amigos e vizinhos, como se a existência plena destes
significasse fator determinante para sua própria satisfação.
No alvorecer do século XXI, a problemática que se impõe é que as mulheres, de
receptoras de benefícios, têm-se se colocado na posição de conquistar e promover justiça
social. Pesquisas comprovam a importância de sua atuação e de sua capacidade de
superação e liderança em grupos de base, em localidades rurais, em associações de
moradores. Nestas organizações, cujas ações incidem diretamente em seguimentos
populares, as mulheres têm feito a diferença no que concerne ao resgate da arte e da cultura,
da educação alternativa, da auto-estima e, por tudo isso, da cidadania.
É nessa abertura para o reconhecimento e diálogo com o ‘outro’ – com os homens,
com os negros, com os idosos, com as crianças, com os homossexuais... – estabelecendo
um sistema de convivência onde o conceito de poder não seja visto como algo estático, mas
possa ser redefinido e posto em movimento – que a observação e o acompanhamento da
ação feminina poderá permitir a identificação do caminho a ser seguido na busca por
possíveis mudanças nos campos público e privado.
1.2. Os objetivos principais da pesquisa.
De acordo com a introdução à nossa pesquisa, exposta acima, podemos dizer que, de forma geral, nosso principal objetivo é conhecer e refletir acerca do cotidiano das mulheres dos segmentos populares da população de da cidade de Marília, além de buscar trazer à tona suas táticas de sobrevivência e de luta, relacionando-as com os processos históricos (e universais) de resistência das mulheres frente à sua opressão, também histórica.
Embora, em um primeiro momento, possamos formar uma idéia geral sobre nosso objeto de estudo – mulheres moradoras de bairros periféricos do município, portanto, em sua grande maioria, pobres, chefes de família, que vivem precariamente de trabalhos informais e temporários – é nossa finalidade saber realmente “quem são” essa mulheres: Onde moram? Como vivem? Com quem? Em que trabalham? O que pensam do mundo e de si mesmas?
Ressaltando que sua luta pela sobrevivência se dá, geralmente, em meio a redes de solidariedade e de vizinhança, entre os quais se destacam as Associações de Moradores e os Centros Comunitários de Bairro – e que são essenciais frente ao sistema de poder e à estrutura de dominação que oprimem tais
mulheres – pretendemos analisar também a relação das mulheres com essas instituições, sua participação e influência política em tais entidades e vice-versa, ou seja, como essas associações também contribuem para condicionar sua vidas.
Por fim, é nosso objetivo, ainda, entender qual o real significado desse processo de luta pela sobrevivência – e, por que não, das tentativas de emancipação política – diante da história de luta das mulheres, na modernidade, por condições de vida e de oportunidades mais justas. Diante de nosso objeto de estudo, o que observamos é que as mulheres têm feito a diferença no que diz respeito à necessidades básicas que, supostamente, deveriam ser supridas pelo Estado.
2. Pressupostos teóricos e metodológicos da pesquisa.
2.1. O Gênero condiciona nosso método de análise.
No que tange aos pressupostos teórico-metodológicos da presente pesquisa, faz-se
necessário denotar – mesmo que, talvez, já esteja óbvio – que nossos estudos se apóiam em
uma abordagem de gênero.
A categoria de análise gênero, introduzida pelas intelectuais no início da década de
oitenta – uma vez que, ainda nos anos setenta, não havia instrumentos metodológicos para
dar conta da emergência das mulheres enquanto sujeitos sociais, históricos e econômicos,
principalmente a partir da segunda metade do século XX – imediatamente surtiu “efeitos”;
inicialmente, a categoria começou a ser usada para mostrar a discriminação sofrida pelas
mulheres em todos os níveis, uma fase vinculada a uma certa obsessão pela denúncia.
Contudo, logo procurou-se um aprimoramento metodológico que permitisse a recuperação
dos mecanismos das relações sociais entre os sexos e as contribuições de cada qual ao
processo histórico, na tentativa, assim, de abrir-se a possibilidade de recobrarmos a
experiência coletiva de homens e mulheres no passado, em toda a sua complexidade.
Ao criar um instrumental teórico que possibilita, ao mesmo tempo, a análise do
global e a retenção de singularidades, presentes na vida cotidiana, os estudos de gênero, ao
mesmo tempo em que destacaram o papel feminino na história da condição humana do
século XX, finalidade primeira pela qual a categoria foi criada, também deram conta da
existência de opressão das diversas naturezas colocadas pela história, abrindo campo para a
análise de modos de vida e expressões culturais, de relações familiares, étnicas e de
amizade entre mulheres e entre mulheres e homens, da construção de laços de
solidariedade, das formas de comunicação e de perpetuação das tradições, das lutas até
então marginalizadas nos estudos históricos.
Por tudo isso, podemos ousar dizer que a categoria gênero vem acrescentar e
complementar a categoria classe social, criada por Marx em meados do século XIX, uma
vez que a primeira, para além dos “oprimidos” que emergem para as ciências sociais com a
introdução de classe, traz à luz da história uma multidão de “oprimidos dentro da hierarquia
dos oprimidos”, abrindo espaço para a descoberta de relações de poder não mais restritas
apenas a homem x capital.
Verificamos assim que o gênero inicialmente criado para analisar as desigualdades
entre os sexos, pôde estender-se para a questão das diferenças dentro da diferença, o que
contribuiu para a emergência de alegações desafiadoras do sentido uniforme da classe
denominada “as mulheres”.
“Na verdade, o termo ‘mulheres’ dificilmente poderia ser usado sem modificação: mulheres de cor, mulheres judias, mulheres lésbicas mulheres trabalhadoras pobres mães solteiras foram apenas algumas das categorias introduzidas Todas desafiavam a hegemonia heterossexual da classe média branca do termo ‘mulheres’ argumentando que as diferenças fundamentais da experiência tornaram impossível reivindicar uma identidade isolada. A fragmentação de uma idéia universal de ‘mulheres’ por raça, etnia, classe e sexualidade estava associada a diferenças sérias no interior do movimento das mulheres sobre questões que variavam desde a Palestina até à pornografia. As diferenças cada vez mais visíveis e veementes entre as mulheres questionavam a possibilidade de uma política unificada e sugeriam que os interesses das mulheres não eram auto-evidentes, mas uma questão de disputa e de discussão.” (SCOTT: 1992).
E é justamente a definição de Joan Scott para o conceito sobre a qual apoiamos
nossa investigação: uma categoria de análise que rompe com o determinismo biológico e
afirma a historicidade das distinções sociais entre os sexos, nega a crença em categorias
binárias universais e compreende a idéia de que não é possível uma análise do feminino em
um universo exclusivamente feminino, pois este só se define em relação ao masculino. E
vice-versa. Para além das críticas aos estudos de Gênero, muitas feitas pelos próprios
pesquisadores da área, a categoria subsidia, sim, teórica e metodologicamente, nossa
análise. Contudo, visamos sempre ultrapassar seu uso descritivo, no qual o conceito é
apenas mais um associado aos estudos relativos às mulheres, e buscamos sua força de
análise, capaz de questionar e, quiçá, transformar paradigmas históricos.
2.2. As tentativas de se fazer uma descrição densa
Como já foi dito anteriormente, uma das finalidades principais dessa pesquisa é a
análise dos discursos e das práticas que emergem do cotidiano dos Conselhos Comunitários
de Bairro de Marília, enfatizando as questões relacionadas às mulheres. Para conhecer esse
universo específico que façamos “trabalho de campo”, o que em Antropologia significa
pesquisa qualitativa, observação e investigação. A abordagem qualitativa aprofunda-se no
mundo dos significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não
captável em equações, médias e estatísticas.
Contudo, para além de fazermos um registro de acontecimentos e impressões, de
relatarmos como a pesquisa de campo foi realizada, de deter-nos na experiência de estar
com as mulheres que constituem nosso objeto de estudo, de conversar com elas,
entrevistá-las, aprender mais sobre seu modo de vida, para além de tudo isso, é nossa intenção realizar
uma “descrição densa” desse universo.
Partindo de um trabalho anterior de Gilbert Ryle, Geertz cunhou a expressão descrição densa para designar a prática em si da pesquisa antropológica, baseada, em geral, na etnografia. Geertz comenta que a etnografia não é uma questão de métodos, mas sim, estabelecer relações, selecionar informantes,
transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante. Ou seja, ele se recusa a enveredar por uma discussão meramente tecnicista, como ocorre com alguns autores quando se propõem a refletir sobre essa prática, uma vez que a análise procura entender e conectar sentidos.
A descrição densa é um tipo de descrição de situações, em geral bastante cotidianas,
em que estão em jogo os sentidos socialmente atribuídos às ações em contextos específicos.
Por outro lado, esta atribuição deve ser alvo de algumas problematizações, pois as
descrições implicam na produção de estratégias de leitura/ interpretação pelo pesquisador,
na operação de cortes e na eleição de um informante ou de um grupo determinado.
Assim, todo o processo deve começar com a fase exploratória da pesquisa, tempo dedicado a interrogar-nos preliminarmente sobre o objeto, os pressupostos, as teorias pertinentes, a metodologia apropriada e as questões operacionais para levar a cabo o trabalho de campo. O trabalho de campo consiste no recorte empírico da construção elaborada no momento. Esta etapa combina entrevistas,
observações, levantamentos de material documental, bibliográfico, instrucional, etc. Ela realiza um momento relacional e prático de fundamental importância exploratória, de confirmação ou refutação de hipóteses e construção de teorias. Por fim, temos que elaborar o tratamento do material recolhido no campo, subdividindo-se no seu interior em ordenação, classificação e análise propriamente dita. O tratamento do material nos conduz à teorização sobre os dados, produzindo o confronto entre a abordagem teórica anterior e o que a investigação de campo aponta de singular como contribuição.
Para Geertz, os cuidados na análise do material etnográfico e a elaboração de um relatório não repousam em nossa capacidade de captar os fatos ocorridos em campo, mas sim, na interpretação que a eles damos e na forma que encontramos para reduzir a perplexidade. Comenta ainda que, ao inscrevermos o discurso social, transformamos os fatos de acontecimentos passados, que existem apenas nos momentos de sua ocorrência, em relatos, que podem ser consultados a qualquer momento, por qualquer pesquisador, o qual poderá também reinterpretá-los. Na verdade, sob esta ótica, os textos antropológicos são as construções que elaboramos, sobre as construções de outras pessoas.
Por esta razão, Geertz afirma que não é apenas o método o que determina o êxito do trabalho antropológico, mas, antes, o empreendimento e o tipo de esforço intelectual que ele representa, ou seja, “um risco elaborado para uma descrição densa” (GEERTZ:1978).
3. Considerações finais: algumas hipóteses
Estudos comprovam que, a exemplo de outros países, a cidadania da mulher brasileira torna-se mais efetiva na medida em que ela conquista poder político e social, o que lhe permite não apenas buscar usufruir seus direitos, como também promover os direitos da sociedade em geral.
Nesse sentido, nossa pesquisa, que ao abordar o cotidiano e as dinâmicas das organizações populares dos bairros de Marília-SP, nos permite “descobrir” outros processos sociais que não os formalmente conhecidos, pode – e pretende – trazer á tona um movimento de mulheres que, embora ocorra em um microespaço, obviamente não deixa de ter relação com uma estrutura maior. Em outras palavras, o movimento organizado pelas mulheres que compõem nosso objeto de estudo tem
correspondência com o processo histórico e universal de resistência das mulheres, processo através do qual estas subvertem os diversos obstáculos e traspassam as barreiras do “permitido” pelas representações culturais, rompendo com o que é tradicional e/ ou oficial.
Assim, os resultados de nossa pesquisa podem contribuir para confirmar a existência e compreender melhor as dinâmicas de uma “fenômeno positivo”, que tem se revelado principalmente no dia-a-dia de mulheres oriundas dos grupos populares, um movimento de políticas concretas que,
articulando responsabilidades coletivas, procura soluções alternativas para problemas sociais que atingem a todos os que compartilham de seu universo.
Sabemos que transformações radicais no padrão dominante de relações de gênero requerem profunda compreensão da sociedade em geral. Contudo, acreditamos que sob tal perspectiva é-nos possível entender o processo de construção da consciência de gênero (que como a consciência de classe,
também se dá dentro do processo de luta) e, dessa forma, produzir reflexões capazes de conduzir a mudanças substanciais na direção de uma sociedade menos iníqua.
Ao equacionar apelos por igualdade de oportunidades e reconhecimento social de direitos humanos à diferença e à diversidade, o movimento feminino pode contribuir para a construção de uma cultura que beneficie não apenas às mulheres. Num processo de conquistas cotidianas, o exercício do poder público pelo Feminino pode abrir espaço para o questionamento de velhos paradigmas e de verdades unilaterais, a fim de desautorizar a defesa de privilégios obtusos e colaborar com a promessa de novos tempos.
Referências bibliográficas.