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A santidade feminina a partir de um processo de canonização e de um processo inquisitorial: os casos de Clara de Assis e Guglielma de Milão

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A santidade feminina a partir de um processo de canonização e de um processo inquisitorial: os casos de Clara de Assis e Guglielma de Milão

Andréa Reis Ferreira Torres*

A política papal ao longo do século XIII pode ser caracterizada por uma tendência à centralização do poder que se fez notar em diversos instrumentos jurídicos surgidos no período, como, no caso de nossa pesquisa, os processos de canonização e inquisição. Como parte de nossas reflexões no sentido de analisar a santidade feminina a partir de dois documentos produzidos na Península Itálica, na segunda metade do século XIII, o Processo de Canonização de Santa Clara de Assis e o Processo Inquisitorial contra os Devotos e as Devotas de Santa Guglielma, neste trabalho apresentamos algumas considerações a respeito dessa documentação, sobre o contexto em que foram produzidas e sobre as possibilidades de analisar a santidade feminina por meio de seus registros.

Acerca do contexto sobre o qual nos debruçamos agora, é possível perceber que o desenvolvimento da vida urbana por volta do final do século XII fez surgir uma nova gama de movimentos religiosos, sobretudo relacionados aos ideais de pobreza evangélica e à pregação itinerante. Tais movimentos eram formados, sobretudo, por leigos que buscavam novas formas de manifestar sua religiosidade (BOLTON, 1985: 63), dando espaço para a vivência de uma espiritualidade associada à vida apostólica e que, logo, fazia proliferar uma insatisfação com a Igreja, caracterizada pela sua corrupção e opulência.

Durante o século XIII surgiram, então, as ordens mendicantes, o espaço privilegiado para viver de acordo com o ideal de pobreza evangélica e, ainda assim estar inserido no seio da Igreja. Essas ordens acabaram por receber apoio papal justamente por sua posição intermediária e mediadora entre a Sé romana e a religiosidade propriamente urbana. Logo, o papado viu nos mendicantes fortes aliados na execução de seus objetivos centralizadores, uma vez que estes estavam habilitados a exercer a pregação itinerante e viver em pobreza, sem, contudo, escapar à ortodoxia e eram, ainda, como no caso dos Dominicanos, capazes de combater a heterodoxia.

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2 A preocupação do papado com os novos movimentos religiosos e os desvios doutrinários levaram à implementação de um sistema jurídico inquisitorial, concentrado nas mãos dos Frades Predicadores, mas esta medida não era isolada. Dentro das iniciativas papais de centralização e abrangência de seu exercício de poder, outros aparatos jurídicos foram criados ou tiveram suas atividades ampliadas e desenvolvidas. Além da prerrogativa de decidir quais crenças e práticas poderiam ser consideradas heréticas, o papado também buscou reservar para si o direito de investigar a fama de santidade de um candidato ao reconhecimento oficial, antes sob a responsabilidade dos bispos atuantes na região de origem ou de atuação do santo em questão (ARNALDI, 2002: 583).

O Processo Inquisitorial

No caso da instituição inquisitorial, é importante destacar que suas ações no final do século XIII, com o surgimento dos tribunais próprios, levaram a uma virada na identificação geral da heresia e do herege. Para o trabalho do historiador, a consolidação de uma instituição policial-judiciária, que teve o papel de perseguir homens e mulheres por ela acusados de práticas desviantes, acabou muitas vezes por impor uma realidade a tais acusações, já que a perseguição e a consequente punição daqueles considerados hereges garantiu uma materialização objetiva e inquestionável do caráter herético de um grupo dentro de determinada sociedade (NOGUEIRA, 2011: 340).

O crescimento de determinados grupos heréticos, que ganharam muita notoriedade, como é o caso dos cátaros, fez com que o papa Inocêncio III voltasse a atenção efetiva para a questão dos desvios doutrinais realizados por grupos como esses e, consequentemente, para a promoção de iniciativas que os combatesse. Nessas circunstâncias, ganham especial destaque Domingos de Gusmão e sua ordem de frades Pregadores. Sua atuação teve o ponto de partida em 1203, quando, junto ao bispo de Osma, Diego de Azevedo, que desempenhava uma missão diplomática no sul da França, Domingos, então cônego Agostiniano, entrou em contato com cristãos convertidos ao catarismo (LAWRENCE, 1994: 8). Posteriormente, Domingos esteve envolvido em diversas missões evangelizadoras que teriam lhe conferido a

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3 certeza da necessidade de um apostolado mais ativo e que o motivou a fundar uma nova instituição religiosa.

Já em 1215, no IV Concílio de Latrão, Domingos, obteve a aprovação oral da Ordem que passava a se chamar Ordem dos Irmãos Pregadores e que, segundo a exigência feita no cânone XIII deste mesmo concílio de que as novas casas religiosas deveriam adotar uma regra já aprovada, escolheria seguir a Regra de São Agostinho, a qual já fazia parte da experiência religiosa de Domingos (LAWERENCE, 1994: 71).

No ano seguinte, já sob o pontificado de Honório III, a Ordem foi reconhecida pela bula Religiosam vitam e os dominicanos foram efetivamente estabelecidos como pregadores que tinham como missão principal a conciliação entre a atividade apostólica e a doutrinária. Seu lema estaria estabelecido então somo Contempla aliis tradere, a perfeita junção entre pregação da palavra e vivência da pobreza evangélica (VICAIRE, 1964: 152).

O modo como a Ordem dos Predicadores se constituiu os colocou em relação direta com os objetivos universalizadores e centralizadores da cúria romana. Assim, tendo os frades se posto sob a obediência papal, passaram a integrar o corpo eclesiástico como parte de um sistema legal e administrativo. Durante o pontificado de Gregório IX (1227-1241), os dominicanos, sobretudo por seu exímio conhecimento teológico, foram postos a serviço do poder papal como evangelizadores, missionários, penitenciários, titulares de dioceses e inquisidores, sendo todas essas atividades marcadamente relacionadas ao combate às heresias (FALCI, 2008: 67-68).

Gregório foi um dos papas mais atuantes no que concernia ao combate às heresias no século XIII, tendo como principal marca a ênfase no uso da força contra os desvios, atitude que teve seu ápice em 1231 com a incorporação ao direito canônico da legislação imperial que determinava a fogueira como pena a ser imposta aos hereges condenados pelo clero secular (DUFFY, 1998: 115).

Assim, o recorte temporal sobre o qual agora nos debruçamos apresenta um movimento no sentido da consolidação das ações empreendidas pelos inquisidores, bem como o aperfeiçoamento de suas técnicas e a intensificação de suas atividades.

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4 A questão do reconhecimento da santidade configurava-se como um problema para o papado desde o final do século IX, quando, pela primeira vez o papado limitou o poder de atuação dos bispos na decisão da aceitação de um santo, exigindo que, para que se desse o reconhecimento, suas virtudes e milagres fossem previamente analisados por um concílio geral. No século seguinte, houve ainda um caso de intervenção papal no reconhecimento da santidade de St. Ulric, para o qual o papa João XV emitiu uma bula, posteriormente enviada os bispos da França e da Alemanha, decretando que o santo deveria ser solenemente venerado (VAUCHEZ, 2005: 22).

Já durante o século XI, tornou-se uma prática mais comum o envio de petições à Roma para requisitar a autorização de um culto, até que no tempo de Alexandre III foi defendida pela primeira vez a ideia de que o papado deveria ter a exclusividade do direito de reconhecer oficialmente a santidade (GONZÁLEZ FERNANDEZ, 2000: 176).

Esta proposta esta inserida no bojo de medidas tomadas pelo papado em busca por uma reforma que se demonstraria em aspectos espirituais, bem como institucionais da Igreja. Este movimento foi ganhando contornos mais claros ao longo dos séculos seguintes e atingiu seu auge no século XIII, quando a sistematização de aparatos jurídicos permitiu uma maior eficácia do controle papal sobre questões como a santidade. Sendo assim, os processos de canonização são uma nova forma de sistematização jurídica aplicada à investigação e à análise dos indícios de virtudes e milagres (TEIXEIRA, 2013: 135).

Clara, Guglielma e seus Processos – considerações comparativas

O Processo de Canonização de Santa Clara foi elaborado a partir dos depoimentos colhidos no Convento de São Damião, pelo bispo de Espoleto, de 24 a 29 de novembro de 1253, tendo a bula de canonização sido emitida em 1255. O processo apresenta os testemunhos de quinze damianitas e 5 leigos acerca da via da Clara de Assis. Clara viveu de 1194 a 1253 e foi a fundadora do ramo feminino da ordem Franciscana. Nascida de uma família da baixa nobreza de Assis, rompeu com os laços familiares e ingressou para a vida religiosa, buscando seguir os ideais de são Francisco, sobretudo relacionados à pobreza

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5 evangélica. Posteriormente atuou como superiora no convento de São Damião, onde reuniu um grande número de irmãs, a elaborou para elas uma forma de vida inspirada pelos ideais franciscanos. No que concerne a nosso objeto aqui, a construção de sua santidade, alguns fatores chamam a atenção. Acerca da ação papal com relação ao reconhecimento da santidade dessa santidade, vale destacar a enfática determinação do papado em fixar tal reconhecimento. Inocêncio IV, aos presidir seus ritos funerais, tinha a intenção de celebrá-los como Ofício das Santas Virgens, uma solenidade dispensada apenas em honra de santas já reconhecidas. Tendo sido persuadido a evitar essa atitude pelo cardeal Rainaldo, futuro Alexandre IV, não tardou, após isso, em promover a abertura do processo de canonização de Clara, o qual se tornou um dos mais rapidamente finalizados do período, além de ter tido a particularidade de ter uma bula papal como iniciadora do processo (PEDROSO, 1994).

Já o texto inquisitorial foi concluído em 1300, em Milão, e produzido pelo tribunal controlado pelos Frades Predicadores atuantes na região do vale do rio Pó. Seus registros tratam da repressão ao grupo de devotos de Guglielma. Ela teria nascido por volta de 1210, na Boêmia e se mudado para Milão em torno de 1260, acompanhada por um filho. Quanto às suas origens, a maior parte dos historiadores que analisaram o processo considera correta a alegação, feita por um dos devotos no processo, de que ela seria a filha do rei Otakar I e logo, irmã de santa Inês de Praga, mas essa ascendência é tema de controvérsias, sobretudo por não existirem documentos diretos que a comprovem. Ao chegar a Milão ela teria se instalado numa casa nos arredores da abadia de Chiaravalle, reunindo um grupo de devotos bastante heterogêneo, que incluía os próprios monges cistercienses da abadia, irmãs humiliatas da casa de Biassono e leigos pertencentes à alta sociedade milanesa da época. O grupo, após a morte de Guglielma, em 1282, foi perseguido sob a acusação de heresia, fundamentada na alegação, feita por alguns dos membros do grupo, de que Guglielma seria a encarnação do Espírito Santo e ressuscitaria para instaurar uma Igreja incorrupta e igualitária, garantindo a inclusão e salvação de todos, inclusive judeus e sarracenos (BENEDETTI, 1998).

Entendemos os dois processos como oriundos do contexto acima apresentado e, a partir daí, podemos identificar algumas característica específicas aos dois documentos, relacionadas à sua estrutura e formulação. A identificação dessas características, que convergem ou divergem ao longo da análise, pode ser uma chave para alcançar o objetivo

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6 central de nossa pesquisa que tem como eixo central a santidade feminina tal como representada nos registros dos dois processos.

Em primeiro lugar, parece interessante salientar que ambos os processos apresentam um instrumento bastante característico deste momento das formulações canônico-jurídicas, a saber, o inquérito. Este pode ser entendido como uma forma sistemática de se alcançar a verdade. E a afirmação e legitimação de uma verdade faziam parte do projeto papal de ampliação do seu exercício de poder. O inquérito, assim, assume a forma de um instrumento que permite “reunir pessoas que podem, sob juramento, garantir que viram, que sabem, que estão a par” de uma determinada situação, o que levaria à comprovação de algo que aconteceu em um passado próximo (FOUCAULT, 2002: 72). Tal comprovação, alcançada a partir de agentes e questionamentos advindos do poder central, do papado, faz com que a verdade se torne um canal de exercício de poder, capaz de abranger toda a cristandade.

Outra observação que concerne aos dois processos se refere ao perfil dos depoentes. Certas características do processo, e da forma como os depoentes eram conduzidos, podem apontar para um certo tipo de “estereótipo inquisitorial” (GINZBURG, 1991: 206), uma vez que no caso da acusação de heresia, as perguntas dos inquisidores e a ameaça do uso da força podem levar a uma série de respostas que, em uma análise superficial, pareceriam estar caminhando sempre a favor da sentença final. No caso da canonização, as testemunhas não estão sob nenhum tipo de ameaça, mas estão previamente unidas no propósito de reafirmar a santidade de uma pessoa de seu convívio ou de quem ouviram falar (TEIXEIRA, 2013: 143).

Cabe, então, de acordo com nossa proposta teórico-metodológica, analisar o texto de forma que tais estereótipos possam ser desconstruídos, com o objetivo de compreender os sentidos atribuídos pelos depoentes em seus testemunhos, sem, com isso, buscar uma reconstrução de crenças e práticas, tal como na proposta de Ginzburg.

A análise da santidade feminina nos dois processos, de canonização e inquisição, depende justamente da identificação de tais estereótipos de uma leitura desconstrutiva sobre elas para que o objeto venha à tona. Assim, compreender a forma como os dois documentos foram produzidos e que forças estavam em ação nesta produção poderá abrir espaço para uma análise da santidade feminina em dois documentos que, em princípio, são tão diferentes.

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7 Bibliografia

ARNALDI, Girolamo. Igreja e Papado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002. V. 1, p. 567-589.

BENEDETTI, Marina. Io non sono Dio: Guglielma di Milano e i Figli dello Spirito santo. Milano: Edizioni Biblioteca Francescana, 1998.

BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1985.

______ (Ed.). Milano 1300. I processi inquisitorial contro le devote e i devoti di santa Guglielma. Milano: Libri Scheiwiller, 1999.

DUFFY, Eamon. Santos e pecadores. História dos papas. São Paulo: Cosac & Naif, 1998.

FALCI, Priscila Gonsalez. Os martírios na construção de santidades Genderificadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 2008.

FOREVILLE, Raimunda. Lateranense IV. Vitória: Eset, 1973.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro, 2002.

GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. In: ____. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991. p. 203-14.

GONZÁLEZ FRENANDEZ, Rafael. El culto a los Mártires y Santos en la cultura Cristiana. Origen, evolución y factores de su configuración. Kalakorikos, n. 5, p. 161-185, 2000.

LAWRENCE, C. H. The Friars. The impact of early mendicant movement on Western society. New York: Longman, 1994.

MERLO, Grado. G. Contro gli eretici. La coerzione all’ortodossia prima dell’inquisizione. Bologna: Il Mulino, 1996.

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8 NOGUEIRA, C. R. F. Resenha de ZERNER, Monique (Org.). Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, n. 62, p. 339-342, 2011.

PEDROSO, J. C. Fontes Clarianas. 3ª ed. Petrópolis: CEEPAL, 1994.

TEIXEIRA, Igor S. Os processos de canonização como fontes para a História Social. Signum, Cuiabá, n. 2, v. 14, p. 131-150, 2013.

VAUCHEZ, Andre. Sainthood in the later Middle Ages. Cambridge: University Press, 2005.

Referências

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