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EDUCAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS E JUSTIÇA SOCIAL

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Academic year: 2020

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ELIANA BORGES FLEURY CURADO** VALDIR MARTINS PEREIRA***

JOEL ANTÔNIO FERREIRA****

A

Campanha da Fraternidade de 2019, da Conferência Nacional dos Bispos do Bra-sil (CNBB), tem como tema “Fraternidade e Políticas públicas”. Essa investigação caminha no espírito dessa campanha, ou seja, no entendimento de que a vida em comunidade requer a participação de todos/as, a fraternidade, a cooperação e a justiça, possí-veis na efetivação dos direitos sociais, políticos e civis que são e só podem ser os mesmos para todos. Nesse sentido, é importante que a efetivação de políticas públicas orientadas para a melhor vida possível, direito de todos nós, tenha como destino final e fonte de seu próprio engenho a preparação de jovens para o exercício pleno da cidadania.

Resumo: o presente artigo se propõe a investigar, sob o olhar da Filosofia, da Sociologia e da

Teologia, respectivamente, a relação entre políticas públicas e educação, entendendo-as como promotoras de justiça social, em conformidade com o espírito da Campanha da Fraternidade de 2019, Fraternidade e Políticas Públicas. Pretende-se demonstrar que políticas públicas efetivas envolvem necessariamente um sistema educacional orientado para a socialização, a formação profissional, a inclusão social e, sobretudo, para o exercício da cidadania, que implica na virtude civil do respeito à diferença e na virtude cristã do amor ao próximo.

Palavras-chave: Justiça Social. Educação. Fraternidade. Humanidade.

* Recebido em: 17.02.2019. Aprovado em: 29.05.2019.

** Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás. Bacharel e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. Professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e do Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás. E-mail: curadoeliana@gmail.com

*** Mestre em Sociologia e professor assistente de Sociologia da Escola de Formação de Professores e Humanidades na PUC Goiás. E-mail: vmartinspereira@gmail.com.

**** Pós-doutor pela Universidade de Georgetown de Washington DC. Doutor pela UMESP de S. Bernardo do Campo. Mestre pelo Instituto Bíblico di Roma. Professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

E-mail: joelantonioferreira@hotmail.com

EDUCAÇÃO, POLÍTICAS

PÚBLICAS E JUSTIÇA SOCIAL*

DOI 10.18224/frag.v29i1.7157

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Quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil definiu o tema “Fraternidade e Políticas Públicas” e o lema “Serás libertado pelo direito e pela justiça (Is 1,27)” é porque os bispos acreditam que o Reino de Deus pode acontecer na explicitação da ‘convivência’ como novo modelo de sociedade. Propondo essa visão do Reino, a Campanha da Fraternida-de 2019 é uma crítica ao moFraternida-delo neoliberal que domina o país. Ela quer discutir a necessidaFraternida-de e a busca de ‘mudanças’ radicais na concepção do trabalho e do lazer, da educação e da cultura, dos impostos e das responsabilidades sociais dos cidadãos. Nesse sentido, há uma crítica severa dos bispos do Brasil ao afirmarem que uma nova sociedade surge com a participação de todas as pessoas e não por meio de leis e decretos (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2018, p. 99).

Este texto escrito em seis mãos quer ajudar na reflexão sobre as “Políticas Públicas” que podem ser efetivadas dentro do espírito da fraternidade, a partir de uma visão da educa-ção transformadora.

VISÃO FILOSÓFICA

Propomo-nos a tratar, nesse artigo, da conexão necessária entre políticas públi-cas e educação, com vistas à promoção da justiça social. Para tanto, devemos perguntar, como ponto de partida, o que entendemos como política e por que é necessário que ela exista. A terceira pergunta que deve ser respondida, para que possamos prosseguir em nossa investigação, é: políticas públicas são mesmo necessárias? Por fim, devemos ainda perguntar por que a existência de políticas públicas requer necessariamente que essas políticas não se desvinculem de um projeto educacional mais abrangente, que tenha em vista conteúdos for-mal e qualificação profissional, mas que não se esqueça de que a vida em sociedade requer o respeito mútuo e a cooperação.

A primeira pergunta, a saber, o que entendemos como política, deve ser respondida pelo exame do próprio termo: a palavra “política”, politiká, origina-se do grego clássico, cuja raiz, “pólis”, “polí”, significa “muitos” e “multidão”. Politiká também se refere ao que é público e ao que é do público, ou seja, o que é próprio da vida em comum e o que pertence à pólis, à multidão, ao quantitativo. O termo também se refere à atividade do politikós, o cidadão, respon-sável pela administração e pela condução da cidade (PEREIRA, 1998, p. 468). Como adjetivo, a palavra politiká designa ainda qualidade cívica e, por extensão, a capacidade de se viver em comunidade. Assim, política, em seu sentido mais amplo, indica tanto a participação dos indi-víduos que vivem em uma comunidade e sua administração, quanto o exercício da cidadania.

Esses sentidos, intimamente conectados, nos permitem responder à segunda per-gunta que foi feita, a saber, por que é necessário que haja política. Se entendemos a política como o que diz respeito à vida em comum, sendo esta causa e efeito daquela, podemos con-cluir que a política é necessária porque a comunidade, sendo por definição plural, é também fonte de diversidade de opiniões e de interesses. Estes, por sua vez, geram conflitos que devem necessariamente ser apaziguados. Se não houvesse conflitos, talvez a política não fosse neces-sária. É exatamente esse o sentido da comparação que o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) faz entre a arte do governar e a arte da navegação: a navegação segura é o objetivo que todos no navio almejam e devem cumprir, ainda que os marinheiros se diferenciem uns dos outros em relação às habilidades pessoais e, em razão dessa distinção, assumam diferentes tarefas (POLÍTICA, 1276b, p. 26-29)1.

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Ainda que o apaziguamento definitivo dos contrários ou, por outra, a solução final dos conflitos não seja possível em um mundo em que a diversidade deve ser preservada como um valor em si, a sobrevivência coletiva e individual depende necessariamente do estabeleci-mento de uma ordem que beneficie a cidade e cada um de seus cidadãos (POLÍTICA, 1283a, p. 35).

A vida em comunidade, alerta Aristóteles, citando o poeta Focilides (séc. VI a.C.), é mais feliz quando “o melhor está no meio termo” (POLÍTICA, 1296a). No que diz respeito à política, isso significa evitar a riqueza em excesso ou a pobreza extrema. Em outras palavras: o filósofo já havia concluído que a sociedade mais igualitária é mais feliz. Eis a resposta à tercei-ra pergunta. A equidade como justiça de Estado, por assim dizer, passa necessariamente pelo estabelecimento de políticas públicas que sejam capazes de minimizar perdas, reparar danos, assistir aos desassistidos e proteger os desprotegidos, a fim de promover a máxima igualdade material possível.

Considerava Aristóteles que a justiça pública (o politikón dikaión) exige de cada cidadão o ajuste de sua conduta à lei e ao critério de igualdade. Ainda que a isonomia pre-tendida pelo filósofo não fosse para todos (POLÍTICA, 1280a, p. 2-14), o que é próprio da época em que viveu e das limitações dessa época, importa ressaltar que o melhor governo, no entendimento do filósofo, deve permitir a plena realização da natureza humana e de seu potencial. Nesse regime, a educação das crianças tem lugar de destaque, o que nos permite responder à última pergunta que fizemos.

A educação para a cidadania torna possível o apaziguamento de boa parte dos con-flitos que são próprios da vida em comum e, portanto, o estabelecimento da justiça social, que Aristóteles define como “o bem dos outros” (ARISTÓTELES, 1130a). É função da educação tornar os homens bons. Dessa missão ela não pode se furtar. “O principal trabalho da política é educar as crianças de modo que elas se tornem capazes de levar uma vida boa, de acordo com sua própria escolha” (NUSSBAUM, 2009, p. 249). Mas a educação, como exercício da virtude política, deve partir do poder público. Diz o filósofo:

Tendo a cidade um único fim, é evidente que a educação deve necessariamente ser uma e a mesma para todos e que o cuidado posto nela deve ser tarefa comum e não do foro privado... O exercício do que é comum deve ser também realizado em comum (POLÍ-TICA, 1337a, p. 20).

Ao observar a Educação como uma Política Pública, parece salutar perguntar o que é uma política pública e porque a educação o é, tendo o olhar dirigido para a contempora-neidade.

Após olhar a educação a partir da filosofia aristotélica, é preciso dar um passo a mais para se perceber como, a partir da sociologia, não a sociologia funcionalista (da ordem), mas a sociologia conflitual/dialética que apresenta o aspecto transformador da educação.

VISÃO SOCIOLÓGICA

Vivenciamos uma discussão marcadamente ideológica dos assuntos sociais, fruto do atual processo social brasileiro, em que as discussões sobre temas tão importantes, como a educação, não são pensadas do ponto de vista objetivo, racional e propositivo, mas com um

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cunho marcadamente ideológico transvertido de um discurso anti-ideológico, por exemplo. Nesse cenário, os defensores de uma escola tradicional, confessional e liberal propõem a reti-rada de qualquer autor que pense criticamente a realidade social brasileira porque o acusam de fazer uma discussão partidária2.

Evocam uma neutralidade ausente, na sua defesa e no seu posicionamento partidá-rio, tipicamente da defesa da ‘ordem’, onde o pensamento tradicional, confessional religioso e intolerante é classificado como normal, correto e ideal para a sociedade.

Ao pensar este fenômeno social, gostaríamos de utilizar das concepções de Repre-sentação Social e Ideologia para lançar luz sobre o tema proposto.

A abordagem da Representação Social é marcadamente durkheimiana. Ao referir-se a esse conceito Minayo (1988, p. 90) demonstra como ele tem o mesmo sentido de representação coletiva apresentado por Durkheim. Para este clássico da Sociologia, na leitura dessa autora as representações coletivas se referem “a categorias de pensamento através dos quais determinada sociedade elabora e expressa sua realidade”. Essas categorias estão ligadas e transformadas em “fatos sociais” e estes são, na opinião dela, passíveis de observação e interpretação. Desta forma, a observação irá revelar, na perspectiva durkheimiana, “que as representações sociais são um grupo de fenômenos reais, dotados de propriedades específicas e que se comportam também de forma específica” (MINAYO, 1988, p. 90).

Dessa forma, a conclusão da autora é de que a sociedade pensa. Todavia, Moscovici (1978) percebe as teorias de representações sociais como tendo um significado específico, “tanto na medida em que ela possui uma contextura psicológica autônoma como na medida em que é própria de nossa sociedade e de nossa cultura” (1978, p. 45) sendo, desta forma, teorias que interpretam o real e o elaboram. Assim, o real e o dito têm prioridade na abor-dagem dessa categoria, na direção do determinismo social, investigando, dessa forma, a via institucional num sentido amplo da Política Pública da Educação na sociedade brasileira.

Essa não foi a categoria escolhida para a abordagem do tema proposto, uma vez que pretendemos investigar as visões sociais em disputa sobre a temática da educação como uma das políticas públicas. E, como na exposição de um desses pontos de vista há a utilização de discursos carregados de elementos ideológicos, com o objetivo de dominação social, mesmo quando essa questão, em tese, está sendo veementemente negada, procuramos desvendar as contradições internas constitutivas desse discurso. Também a inversão de valores sociais nele presente, bem como revelar a dissimulação das diferenças sociais encobertas pelo discurso ideológico que apresenta a educação como uma escola sem partido, sendo ideal e neutra, o que parece ser a diretriz central.

Para o entendimento da temática da educação como política pública, lançamos mão da concepção de ideologia em Marx. Todavia, consideramos que esse conceito (ideologia) tem seu início antes da abordagem marxista, o que nos motiva, pois, a retomar alguns desses con-ceitos, elaborando um breve histórico da formulação orientadora desta interpelação.

A criação do conceito ideologia foi do filósofo francês Destrutt de Tracy, em 1801 no livro Eléments d’Idéologie. Discípulo dos enciclopedistas, posicionava-se contra o império napoleônico, a igreja católica e a metafísica; acreditava no progresso das ciências aplicadas e que isso promoveria uma nova moral social. Na visão de Michael Löwy, a ideologia, para de Tracy, era “um subcapítulo da zoologia” (1992, p. 11). Comentando o formulador inicial, Marilena Chauí a define então como “uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das ideias calcadas sobre o próprio real” (1990, p. 25). Enquanto Augusto Comte, em Cours de

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Philosophie Positive, seguindo a concepção germinal, apresenta-a, segundo a leitura de Pereira (2001, p. 40), primeiro como

um exercício de observação da filosofia e das ciências aplicadas, como a biologia, […]; em segundo lugar, significa na interpretação de Chauí a coleção geral das ideias da época, englobando nessa segunda acepção a opinião popular, ou a reflexão sistemática do período. Assim, nesta concepção positivista, a separação entre o pensar e o agir na ação huma-na estão postas, sendo o primeiro momento superior ao segundo. Aqui o momento ideoló-gico ocorre, sendo a teoria restrita à organização das ideias de forma hierárquica e não como na primeira interpretação, como explicação da vida humana e dos fenômenos naturais. Em Durkheim (2014), são propostas a neutralidade e o afastamento do observador em relação ao fenômeno observado para evitar que os estudos fossem influenciados por pré-noções ou resíduos preconceituosos. Essa postura, por sua vez, é ideológica ao sobrepor a ciência às in-venções pessoais.

Em A Ideologia Alemã Marx (MARX; ENGELS, 1989), ao formular suas reflexões, critica a noção hegeliana de inversão entre a realidade material e a consciência presente na for-ma de percepção do estudioso da mesfor-ma. Defende, na visão de Pereira, a não “separação entre as condições sociais e históricas, por um lado, e a elaboração das ideias sobre essa realidade, por outro” (PEREIRA, 2001, p. 41). Se o princípio de inversão está presente em toda a Ideo-logia, para Marx, “os homens e as suas relações aparecem como numa câmera obscura, virados de cabeça para baixo. Esse processo decorre tanto de seu processo histórico de vida quanto a inversão dos objetos na retina decorre do seu processo imediatamente físico” (MARX,1989, p. 193). Assim, a inversão é uma ideologia quando o nosso ponto de partida é a consciência, e não a realidade material. Destarte, os “problemas da humanidade não são as ideias errôneas, mas as contradições sociais reais e aquelas são consequências destas” (PEREIRA, 2001, p. 42).

As atividades materiais limitadas exercidas pelos homens os tornam incapazes de resolver, na prática, essas contradições, tendendo a projetá-las, segundo a leitura de Pereira, “nas formas ideológicas de consciência, isto é, em soluções puramente espirituais ou discur-sivas que disfarçam ou ocultam efetivamente a existência e o caráter dessas contradições” (PEREIRA, 2001, p. 43). Continua esse estudioso a refletir, a partir da leitura de Marx, que a ocultação dessa distorção ideológica “contribui para a sua reprodução e, portanto, serve aos interesses da classe dominante”, aplicando-se a função justificadora da ideologia, “por privilégio, à relação de dominação oriunda da divisão em classes sociais e da luta de classe” (PEREIRA, 2001, p. 43), conclui nosso interlocutor.

Ao voltar à temática da Educação como política pública e a disputa existente em torno deste assunto, percebem-se, claramente, as contradições sociais sendo ocultadas através do discurso de que a escola deve ser sem partido, ou seja, deve estar ausente de críticas à reali-dade social e política da vida real do estudante e o professor deve se ater somente ao conteúdo. Onde está a contradição? Ela se encontra no interesse dos donos do capital em esconder que a realidade é contraditória, sendo formada por classes sociais em constantes disputas, tendo di-ferentes oportunidades de acesso aos recursos públicos e à distribuição da riqueza produzida. A partir da reflexão sociológica, é preciso ter consciência de que o educando precisa ter sua consciência sempre em atitude crítica. O educando tem que ter voz e espaço no seu

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processo de aprendizado. Como a Campanha da Fraternidade 2019, pelas políticas públicas, quer garantir e colocar em prática os direitos adquiridos de todos os cidadãos, a educação tem que estar atenta e forte nessa aliança libertadora.

VISÃO TEOLÓGICO/BÍBLICA

É preciso, após a visão da filósofa e do sociólogo, ter o olhar teológico/bíblico da prática pastoral dos “cristianismos originários” e compreender como se levava a sério a frater-nidade e a justiça social. Significa entender que as políticas públicas, naquele tempo do im-pério romano que desrespeitava os milhões de seres humanos (escravos), foram assumidas nas experiências cristãs, completamente antagônicas ao modo de produção escravagista romano. A experiência da justiça social e do amor fraternal foi vivenciada por grupos dos cristianismos originários.

Hoje, iluminados pela postura da CNBB diante das políticas públicas, é preciso compreender que o sistema educacional, particularmente, na Pontifícia Universidade Católi-ca de Goiás e, especialmente na Escola de Formação de Professores e Humanidades, oriente-se para a socialização, para a inclusão social, para a formação profissional a fim de que o exercício da cidadania seja experienciado na ética do respeito a todas as diferenças e iluminado pelo anúncio bíblico do amor, fundamentalmente, aos marginalizados e desprezados da sociedade. É preciso, então, olhar uma experiência simétrica do Novo Testamento para se compreender a seriedade dos primeiros cristãos.

No livro dos Atos dos Apóstolos (At 2,42-47) do evangelista Lucas, tem-se a apre-sentação de como era a vida de uma comunidade cristã. Era um grupo unido e orante (VIDI-GAL, 1985, p. 70). O texto diz assim:

42 Eles se mostravam assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão, à fração do pão e às orações. 43 Em todos eles havia temor porque os apóstolos realizavam muitos prodígios e sinais. 44 Todos os que abraçaram a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas. 45 Vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos conforme a necessidade de cada um. 46 Diariamente unanimemente frequentavam o templo, e nas casas partiam o pão, tomando alimento com alegria e simplicidade de coração. 47 Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. Cada dia o Senhor acrescentava à comunidade outras pessoas que iam aceitando a salvação.

Vê-se no texto uma utopia que estava viva desde o início dos cristianismos originá-rios. Percebe-se a comunhão entre os que tinham alguma coisa e os que não tinham. Lucas estava olhando a comunidade a partir dos pobres (COMBLIN, 1988, p. 105). Alguns pontos são apontados para mostrar que a utopia era real.

Havia uma comunhão, na práxis: os cristãos “vendiam” o que tinham e “repartiam os seus bens” colocando tudo em comum. O livro dos Atos dos Apóstolos conta uma experi-ência de certo Barnabé que “vendeu o campo que possuía, trouxe o dinheiro e o colocou aos pés dos apóstolos” (At 4,36-37).

O que sustentava as comunidades? Na origem pode ter sido o “ensinamento dos apóstolos” (v. 42), aqueles que viveram e ouviram Jesus. Com isso, as comunidades se susten-tavam com as palavras de Jesus.

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A “comunhão” (v. 42) era explicitada no “colocar em comum todas as coisas” (v. 44). Percebe-se que Lucas faz questão de mostrar como os cristãos eram solidários uns com os outros.

Quando se fala da “fração do pão” (v. 42) estava se referindo à ceia eucarística (1 Cor 10,16; At 20,7). Quando foram surgindo os diversos grupos dos cristianismos originá-rios, a eucaristia era celebrada como parte de uma refeição comunitária, onde todos os pre-sentes levavam um pouco de alimento para ser partilhado (1Cor 11,17-34).

As “orações” (v. 42), além do templo, eram feitas ou individualmente, ou nas “ca-sas” (v. 46), criando um jeito novo de orar. Era nas residências que os cristãos celebravam a memória de Jesus. Faziam com “alegria e simplicidade de coração” (v. 46). É importante mostrar como os apóstolos testemunhavam o Evangelho com “prodígios e sinais” (v.43). Isso fazia com que todos fossem bastante “unidos” e partilhassem o que tinham (v. 44). O texto mostra que a grande preocupação era com os pobres. Eles “repartiam o dinheiro entre todos conforme a necessidade de cada um” (v. 45). Era uma comunidade orante (v. 47) e eram todos “estimados pelo povo” (v. 47).

É interessante apontar o “povo”, porque quando começarem as perseguições aos cristãos, o povo não ficou do lado das autoridades, mas do novo grupo de cristãos (COM-BLIN, 1988, p. 108). O povo (pobres, mendigos, aleijados) legitimou os cristãos.

Se em Atos dos Apóstolos foi apresentada a experiência da comunhão (koinonía), da união dos cristãos (omothymadón) e da partilha dos bens materiais (VIDIGAL, 1985, p. 70), entende-se porque os cristianismos originários superaram a barreira das desigualdades sociais (At 4,34), realizando o modelo igualitário (Dt 15,4).

A Doutrina Social da Igreja nasceu das Sagradas Escrituras e da fé viva da Igreja (CNBB, 2018, p. 59). O texto bíblico (At 2,42-47) faz inspirar a Doutrina Social, mostrando que a utopia humana é, exatamente, a comunhão dos irmãos, a unidade de todos os mem-bros, a solidariedade e partilha com os excluídos e a construção do igualitarismo. Quando a CNBB decidiu enfrentar o tema da “Fraternidade e Políticas Públicas” e apresentou o lema “Serás libertado pelo Direito e pela Justiça”, ela quis mostrar que a “cidadania” e o “bem co-mum” são, também, sinais de fraternidade (CNBB, 2018, p. 60). O texto de Atos dos Apósto-los mostrou que nas comunidades cristãs havia o programa do “repartir” com os mais simples, de tal modo, que não havia necessitados entre eles (At 2,45). A dignidade humana estava acima de tudo. O bem comum era o motor da comunidade.

Ouvindo os apelos dos últimos papas que se dedicaram às questões sociais, entende-se que é preciso, a partir dos grandes princípios sociais, buscar a prática trans-formadora inerente à fé cristã. Assim, como foi visto no texto de Atos dos Apóstolos (At 2,42-47), que a preocupação com a justiça era o centro da vida comunitária, o pensa-mento social da igreja, hoje, também faz um apelo para que a igreja, povo de Deus em marcha, não fique à margem da luta pela justiça, que se preocupe com a construção de um mundo melhor e se oriente para uma ação transformadora que brota do coração amoroso de Jesus Cristo (PAPA FRANCISCO, 2014, p. 182-183). Um agrupamento de direitos econômicos, sociais, políticos e civis precisam ser reconhecidos, respeitados, harmonizados pela autoridade pública em vista do “bem comum” (PAPA JOÃO XXIII, 1963, n. 60-66). Os bispos da Inglaterra e País de Gales (CEIPG, 1997, p. 691-723) veem o bem comum como na contribuição de todos, “no interesse da justiça e na pers-pectiva da opção pelos pobres”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Campanha da Fraternidade 2019 sobre “a fraternidade e políticas públicas” pro-põe, concretamente, que se aja com os destinatários. Quem são eles?

Pessoas em situação de rua; crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade so-cial; povos e comunidades indígenas e quilombolas; trabalhadores sem-teto; mulheres e homens encarcerados; pessoas com necessidades especiais; doentes; vítimas de violências; catadores (as) de materiais recicláveis; comunidades e paróquias; pessoas que, de acordo com a realidade local, necessitam de solidariedade e ações de acolhimento, escuta e mobilização para efetivação dos direitos (CNBB, 2018, p. 98).

Outro destinatário, sem dúvida, hoje, como escreveu o Papa Francisco (2015), na Laudato Sì, é a luta ecológica no cuidado da Mãe Terra.

O texto de “Fraternidade e Políticas Públicas” que tem como lema “serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1,27) chama a atenção de que “uma nova sociedade não acon-tece por meio de leis e decretos, mas com a participação de todas as pessoas” (CNBB, 2018, p. 99), amparadas no direito e na justiça, na luta contra as desigualdades.

O texto dos Atos dos Apóstolos (At 2,42-47) mostrou que a utopia do igualitarismo foi possível quando os primeiros cristãos repartiam os seus bens e tinham tudo em comum. Naquela experiência, a partir da fração do pão e das orações, os mais necessitados eram os protagonistas. Tudo era de todos. Era uma experiência absolutamente diferente dos modos de produção escravagista romano.

Os princípios da doutrina social da igreja colocam a “dignidade da pessoa huma-na”, especialmente dos pobres, como foco do projeto de transformação, baseado na justiça. Com isso, a busca deve ser incessante para fortalecer a “cidadania” e o “bem comum”. Então, a “fraternidade” que existiu entre os primeiros cristãos precisa ser o programa dos cristãos de hoje.

O Evangelho só tem sentido se a práxis for assumida por todos, inclusive pelos educadores. Como? “Buscando o bem comum; a partir da justiça e do amor, vivendo a fra-ternidade; evangelizando e promovendo os irmãos, especialmente, os mais abandonados, na busca de uma sociedade justa e solidária” (CNBB, 2018, p. 102).

EDUCATION, PUBLIC POLICIES AND SOCIAL JUSTICE

Abstract: this paper has the purpose to investigate, under a Philosophical, Sociological and The-ological point of view, the relation between public policy and education, understanding them as a path to achieve social justice. The spirit of this article is the one that guides the 2019 Fraternity Campaign of the Catholic Church, “Fraternity and Public Policy”. We will demonstrate that Public Policy is necessarily related to an educational system oriented to the process of socialization of the individuals, their professional formation and social engagement and, the most important thing, an educational system oriented to the citizenship itself that implies the civil virtue of the respect to the difference and the religious virtue of love for the humanity.

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Notas

1 Onde aparecer esse tipo de citação significa que estamos seguindo o Manual de Como Citar Aristóteles. Como pode ser conferido em: https://opostodeperdido.wordpress.com/2017/07/08/como-citar-aristoteles/ 2 É bom lembrar ao leitor que esse artigo está sendo publicado em 2019. De fato, essa temática de uma linha

governamental que quer se afastar do ‘espírito crítico’ da educação tem sido muito forte e polêmico.

Referências

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COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos (Vol. I: 1-12). Petrópolis: Vozes, Metodista, Sinodal, 1988. (Comentário Bíblico).

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Referências

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