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Caminhos aporéticos de uma civilização em extinção : a filosofia como vita contemplativa e filosofia da terapia

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS. CAMINHOS APORÉTICOS DE UMA CIVILIZAÇÃO EM EXTINÇÃO A FILOSOFIA COMO VITA CONTEMPLATIVA E FILOSOFIA COMO TERAPIA RICARDO MANUEL DOS SANTOS CORREIA Tese orientada pelo Prof. Doutor Paulo Borges, especialmente elaborada para obtenção de grau de Mestre em Filosofia. 2017.

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(3) Índice Abstract Introdução I - Surgimento da filosofia enquanto filosofia 1.1 - Os três mal-estares da modernidade 1.2 - "A filosofia antes da filosofia" 1.3 - O filósofo: aparecimento da definição 1.4 - Filosofia como modo de vida 1.5 - Parrêsia, a coragem da verdade II - Metanóia 2.1 - Para uma metamorfose espiritual (inspirada) em Agostinho da Silva 2.2 - Deus para Agostinho da Silva 2.3 - A cisão 2.4 - O Cristianismo e o Culto do Espírito Santo 2.5 - Vislumbre do Mundo a Haver 2.6 - Economia do decrescimento 2.6.1 - O decrescimento: uma utopia concreta 2.7 - Crítica 2.7.1 - O idealismo de Fichte e Hegel 2.7.2 - Materialismo e idealismo enquanto concepções opostas 2.8 – Ética no taoísmo 2.8.1 - Abstinência do espírito 2.8.2 - Os vícios e abusos perturbadores da virtude 2.8.3 - Os oito vícios relativos ao homem 2.8.4 - Os quatro abusos relativos aos negócios 2.9 - Desenlace III - Esgotamento 3.1 - Falatório, curiosidade e ambiguidade 3.2 - A queda 3.3 - O esgotamento como libertação Bibliografia. p.5 p.9 p.12 p.12 p.18 p.21 p.22 p.26 p.34 p.34 p.39 p.41 p.45 p.50 p.56 p.59 p.64 p.67 p.71 p.80 p.82 p.83 p.83 p.85 p.87 p.89 p.91 p.92 p.98 p.103.

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(5) Abstract Nossa pesquisa foca a actualidade e a perda de sentido no mundo pós-moderno, a posição e papel da filosofia neste cenário de vida acelerada resultante da crença iluminista num progresso contínuo da humanidade que, para nós, levou o humano a perder o sentido espiritual da vida. Através dos estudos filosóficos e textos de filósofos pretendemos convidar a uma reorientação mais prática no uso destes textos, i.e., aplicar na vida comunitária as ideias neles contidas com a intenção de transformar o humano no seu modo de estar na vida, na sua relação com os outros e com a Natureza na qual está integrado. Consideramos a via para um melhor uso da filosofia se faz pela recuperação da filosofia enquanto modo de vida num sentido de terapia para alma humana, enquadrada num modo de estar que referimos como vita contemplativa. Isto para devolver ao humano uma vida espiritual portadora de sentido. Filosofia académica puramente abstracta aparenta garantir um lugar de honra no quadro das ciências humanas, mas ao invés deste mero lugar de honra pretendemos a recuperação da filosofia como modo de vida para evitar a sua própria extinção ou ser relegada a uma posição museológica separada da vida comunitária. Notre recherche se concentre sur l'actualité. et la perte de sens dans le monde. postmoderne, la position et le rôle de la philosophie dans ce scénario de la vie accélérée résultant de la croyance des Lumières en une progression continue de l'humanité qui, pour nous, a conduit l'humain à perdre le sens spirituel de la vie. A travers les études philosophiques et les textes de philosophes nous avons l'intention d'inviter vers une réorientation plus pratique dans l'utilisation de ces textes, i.e., appliquer dans la vie communautaire les idées qui y sont contenues dans la l'intention de transformer l'humain dans sa manière d'être dans la vie, dans sa relation avec les autres et avec la Nature dans laquelle il est intégré. Nous considérons que la voie vers un meilleur usage de la philosophie, cela se fera à travers, la récuperération de la philosophie comme mode de vie dans uns sens de théraphie de l'âme humaine, encadrée dans un manière d'être que nous appelons vita contemplativa. Ceci pour rendre à l'humain une vie spirituelle avec de sens. La philosophie académique purement abstraite semble garantir une place d'honneur dans les sciences humaines, mais au lieu de cette simple place d'honneur nous voulons récupérer la philosophie comme mode de vie pour éviter sa propre extinction ou être relégué à une position muséologique séparée de la vie communautaire..

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(7) Para Sílvia Botelho, por acreditar e com o seu amor fazer descongelar uma alma e um coração.

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(9) Introdução O estudo que apresentamos tem como alvo repensar através de exemplos o papel da filosofia na actualidade. Vivemos uma época que coloca em causa a função e a utilidade da filosofia, o que no nosso entender torna interessante um revisitar da origem da filosofia seguido de uma análise ao que denominaremos de mal estar da modernidade. Escolhemos para o estudo acerca do aparecimento da filosofia, Pierre Hadot. O pensador francês, especialista da filosofia da antiguidade. O que nos faz escolher este filósofo: Hadot1, apoiado na sua vasta experiência académica, irá orientar-se para relembrar ao público contemporâneo uma definição de filosofia que se tornou pouco visível ao longo do tempo. Portanto, pretendemos realizar um estudo sobre a filosofia a partir da sua origem, para reflectir o papel da mesma ao longo do tempo. Focando-nos na sua história, no modo como esta virá a ser parte constituinte de um determinado modo de estar na Vida dos Homens. Procurando assim dar voz a esta corrente que vê na filosofia uma atitude indissolúvel da vida do praticante e da relação deste com o mundo em que está inserido. Nesta viagem pretendemos revisitar o conceito de filosofia. Consideramos que se dá pouca atenção à reflexão da filosofia enquanto filosofia. Especialmente, no âmbito do campo do ensino da filosofia. O ensino da filosofia tem sido feito através da apresentação aos alunos das diferentes filosofias. Uma vez estabelecido um programa, segue-se esta rotina de colocar os alunos em contacto com sistemas filosóficos de diferentes autores. Uma vez os alunos tenham adquirido. o. conhecimento. das. mesmas,. segue-se. a. examinação. verificativa.. Habitualmente, exige-se aos alunos através de um exame escrever uma dissertação mostrando saberem as temáticas e problemáticas tratadas e desenvolvidas por cada um dos diferentes autores. Por fim, o aluno deve ainda mostrar capacidade crítica reflexiva acerca de um determinado problema filosófico. Contudo, há algo que não é habitual ensinar aos alunos – o carácter espiritual 2da filosofia. Este escrito intenciona pensar a filosofia nesta sua vocação espiritual. A nossa peregrinação começará na Filosofia Antiga, mas não será restrita a nenhuma época particular. Na nossa proposta estamos em fase com alguns pensadores, que buscam um retomar da filosofia num sentido espiritual. Esta busca é mesmo um exercício pouco apreciado 9 1 Hadot P., Qu'est-ce que la philosphie antique?, Saint-Amant, Gallimard, 2011 (doravante PhA) 2 A espiritualidade é a propensão humana para uma busca pelo sentido da Vida. Neste quadro entendemos a espiritualidade como ligado à educação (da pessoa humana). Quando referirmos espiritualidade, estamos ao mesmo tempo a evocar a ideia de uma certa forma de ser e estar advinda da educação orientada para o auto-conhecimento..

(10) por alguns académicos, os quais limitam a filosofia ao conhecimento das coisas. Isto significa: descrição dos eventos humanos 3. Nós consideramos que a filosofia sendo isso, não se esgota nesta mera acumulação de erudição 4. Há algo mais a ser considerado, este mais será o objecto da nossa exposição. Seremos então acompanhados nestaa fase inicial por Pierre Hadot, que serve este nosso propósito de verificar o modo como a filosofia se desenvolveu. Acerca da compreensão das coisas: é preciso apreendê-las no momento em que surgem, i.e., aparecimento da filosofia. O que nos motiva é o observar do mundo: a filosofia tornou-se numa construção de erudição e mero acumular de conhecimento. O ensino desta reflecte perfeitamente esta facto. Os alunos são convidados a decorar os temas tratados pelos filósofos e conhecer as soluções que estes terão pensado para cada problema. Esta realidade em si não contém nenhum mal, mas a nosso ver é mais pobre, por ser sem a vertente espiritual. Ao longo dos séculos, especialmente, na época que nos é mais próxima, a filosofia viu-se ser separada em vários novos ramos, remetendo esta para um papel cada vez mais desprovido de conexão com a vida humana comunitária. Entenda-se esta desconexão como sendo a da filosofia convencional, enquanto uma mera teoria abstracta separada do mundo prático. Não é nosso objectivo estudar o que terá desviado a filosofia da sua função espiritual. Quiçá, o surgimento do cristianismo tenha algo a ver com isto 5. A filosofia que seria uma proposta para adoptar uma atitude e postura no ser/estar no mundo, viu-se relegada a uma mera análise de conceitos 6. Isto é, analisar os conceitos no interior do cristianismo, que assumiu o lugar da filosofia enquanto modo de vida. Não exploraremos este caminho, só o mostramos para o interessado reflectir nele. É com esta intenção que iremos recordar um modo de filosofia que consideramos urgente reavivar. Enquanto método para a filosofia assentar com mais firmeza nessa antiga função terapêutica. Também, veremos, a filosofia sempre teve um compromisso com a verdade, será 10 3 Filosofia para nós tem um papel transformador do humano e não fica limitada a uma descrição superficial do humano enquanto ser vivo pensante na sua relação com outros humanos e com o mundo no qual vive. 4 Para nós, Filosofia, não se restringe a uma história do pensamento mostrada através de citações eruditas, nem a uma acumulação de conhecimento sem outro fim que esta acumulação. Aqui, chamamos a atenção para a distinção artificalmente criada no meio académico entre Filosofia puramente especulativa e Filosofia Sapiencial. Nós consideramos a separação uma artificialidade a ser superada através da recuperação da Filosofia como modo de vida ao serviço da comunidade e acessível a todos os humanos. Esta mesma posição tem Mónica Cavallé na sua obra, Arte de Vivir, Arte de Pensar, Iniciación al Asesoramiento Filosófico, Bilbao, Editorial Desclée, 2009. 5 Cristianismo veio substituir-se à filosofia como modo de vida (constituída por uma diversidade de propostas), trornando-se a única orientação tolerada ao longo de muitos séculos. 6 Filosofia torna-se uma ferramenta explicativa de conceitos e da doutrina cristã, por exemplo: Trindade, Deus tronado Homem, natureza dos anjos, etc..

(11) apoiado neste mesmo compromisso que iremos expor caminhos alternativos a um modelo dominante. Quer seja no campo espiritual, económico ou em qualquer outra actividade humana. O nosso foco terá mais incidência na espiritualidade e na economia. Por considerarmos que o primeiro é o fundamental para qualquer princípio de mudança interna do humano. No segundo, por verificarmos que a actividade económica não é separada dos modos de vida doentios em que vivemos. Para repensarmos um modo espiritual, escolhemos Agostinho da Silva. Este pensador serve o propósito de pensarmos o mundo como uma unidade. Ao passo que para a economia teremos em Serge Latouche o nosso centro. Iniciaremos o estudo com a apresentação dos mal-estares da modernidade, a partir do filósofo Charles Taylor. Escolhemos este autor por estarmos de acordo com o diagnóstico proposto. Taylor já indicia o que está em falta na sociedade contemporânea. O mal estar é em grande medida a falta de sentido. Este ponto acerca do sentido acompanhará o estudo na sua totalidade. Iremos finalizar este estudo com uma análise a reforçar os motivos do mal-estar humano, mas já indiciando um caminho mais claro para sair deste mal-estar. Esta saída virá justificar ainda com mais força a nossa escolha de começar por lembrar o passado. O estudo tem entre outras motivações que serão expostas ao longo do mesmo, usar de uma certa forma de filosofia para fazer o leitor pensar a si mesmo. A partir daqui, fazer com que todos nós nos questionemos, quer sejamos filósofos ou leigos – a filosofia serve para alguma coisa na nossa vida?. 11.

(12) I - Surgimento da filosofia enquanto filosofia 1.1 – Os três mal-estares da modernidade Charles Taylor fala-nos de três mal-estares na modernidade. Ele entende este mal-estar como sendo traços característicos da cultura e da sociedade contemporânea percebidos como regressivos ou como decadência. 7 Precisamente, nós observamos um mundo de anúncio constante de crise, desde vivermos os finais dos tempos à decadência. Houve até quem clamasse o fim da história. Decidimos portar um olhar sobre estas caracteristicas, para verificar se há mesmo uma decadência ou um chamamento de um devir por realizar. Neste estudo, a nossa posição será a de haver um projectar por um devir a concretizar. Temos noção da história, na qual sustentamos: sem haver um passado, não pode haver presente, e muito menos haverá um rumo ao futuro. Mais adiante, na terceira parte, acerca do esgotamento, verificaremos esta sensação de aparente desintegração da sociedade contemporânea. A qual classificamos como o domínio de um reino do que é efémero. Os três mal-estares na modernidade são então os seguintes: a) O individualismo8 Este é tido como uma das grandes conquistas da modernidade. Trouxe-nos a possibilidade de cada pessoa definir como pretende viver a sua própria vida. Liberta-nos das relações sagradas transcendentais e religiosas, i.e., da ideia de Deus e da religião como fontes orientadoras de sentido. Esta individualidade é em si protegida pela lei civil. Ela veio libertar o homem, mas terá sido bem sucedida? Não, se a considerarmos inacabada. Taylor diz-nos: alguns pensam que esta liberdade está inacabada. Porque as necessidades económicas, as estruturas familiares ou as hierarquias tradicionais restringem em excesso a nossa liberdade. 9 Nós concordamos com esta tese. Na parte II iremos desenvolver aspectos acerca das características essenciais da liberdade, buscando caminhos novos. Taylor fala-nos ainda do outro lado: a liberdade trouxe-nos um desenraízamento. Os nossos ancestrais tinham uma ideia de sentido e de pertença a algo que os transcendia. 10 Nós consideramos estas duas posições como complementares. No nosso entendimento, 12 7 8 9 10. Taylor C., La malaise de la modernité, Charlotte Melançon (trad.), Cerf, Paris, 2008 (doravante MM). p.9 CF MM p.10 CF Ibidem p.10 CF Ibidem p.10.

(13) o homem ao adquirir a liberdade individual, inclinou-se mais para um certo estado de queda. Entende-se por queda uma tendência a afastar-se de um estado mais originário. Neste estado, o homem estava integrado em si mesmo, na relação de si com o mundo. O seu mundo, a sua existência, ia além de si mesmo. Portanto, o ganho da liberdade individual trouxe junto um acentuar maior da desorientação e da perda de sentido. Os homens quebraram os elos ou deixaram de ver estes elos que os ligam uns aos outros. No paroxismo desta queda, os homens nem se dão conta da sua própria interioridade na relação com o mundo exterior. Recortará o mundo em pedaços descontinuados, aos quais faltará uma certa coesão. Em suma, a liberdade individual, sendo uma boa conquista humana, trouxe a fragmentação da vida humana. Isto ocorre pela falta de um sentido. Esta fragmentação e descontinuidade, entendemo-la como a perda de uma certa alteridade. O homem, desligado de algo superior a si mesmo, é levado a perder um contacto com o exterior. Este exterior constituído de outros homens diferentes de si. Deixa de fazer parte de uma comunidade, de uma época, para passar a pertencer só a si mesmo. Faltará ao homem um destino. Sobrando-lhe excesso de presente. Um presente sem projecção de sentido. Só sentirá o prazer, numa busca incessante pelo mesmo (idêntico) e este acabará por saturar a vida do indivíduo. Este homem fechado em si, na sua individualidade narcisista, desenvolve um eu desmesurado, ao qual tudo e todos se deverão submeter. Contudo, a realidade não o satisfará, pois os outros agirão do mesmo modo. Será um choque de homens em relação sem real individualidade. Nisto está o paradoxo, toda a liberdade acaba sendo nenhuma liberdade. b) A razão instrumental11 A razão instrumental leva a um desencantamento do mundo. Sobre o desencantamento do mundo, podemos ler um artigo de Guy de Maupassant, "Adieu mystères"12, in Le Gaulois, de 8 Novembro de 1881. Guy de Maupassant é um escritor francês do final do século XIX, ainda época de grande entusiasmo pela ideia de progresso. Qual progresso podemos perguntar? O do conhecimento, mais precisamente, o das ciências. Vivia-se na enorme crença desta ideia de progresso da humanidade. A primeira guerra mundial, de 1914-1918, viria a temperar, mas não desaminar este entusiasmo. Stefan Zweig escreveria a sua obra, o mundo deontem. Se esta conturbada de mudança de século mostrou-se ruinosa para a ideia de 13 11 CF MM p.12 12 Adieu mystères, in Le Gaulois, de 8 de novembro de 1881. Maupassant.free.fr/chroniq/mysteres.html (doravante Gaulois)..

(14) progresso, esta ainda iria ter dias de idolatria pela frente 13. A crise económica de 1929 constituiu um novo choque anti-entusiasmo progressista. No entanto, viria a ser a segunda grande guerra mundial a mostrar todo o potencial destruidor do desenvolvimento tecnológico e científico. O progresso ainda continuaria a fazer-se sentir na sua desmesura intrínseca. A Europa no pós-guerra teria o chamado período dos trinta anos gloriosos, durante o qual se assistiu a um enorme desenvolvimento e crescimento económico. A expansão do capitalismo a todo o globo, após a queda da URSS permitiu persistir na ideia de progresso ilimitado, quando este já começava a definhar na Europa 14. Em 2008, de novo, a crise, a saber, o colapso do sistema financeiro nos EUA. Este iria atingir o resto do globo nos anos sequentes. Perante este contínuo aparecer de sinais, proporemos uma alternativa ao sistema capitalista mais adiante deste estudo. Embora os poderes instituídos rejeitem haver alternativas, estas existem. Porém, a dificuldade de a implementar está mais no modo estrutural do nosso pensamento, do que nas ideias em si mesmas. Isto significa: falta um realizar uma metamorfose espiritual no mundo. Como levar em frente esta mudança de um modo de pensar, é uma tarefa que aos filósofos se lhes exige. Nós temos vindo a alertar, apresentar sintomas. Não descuremos de apontar horizontes de sentido. O interessante é definirmos se queremos agir com consciência ou deixarmo-nos viver como servos desta realidade actual. Retornando ao artigo do Maupassant. Este, sendo homem do seu tempo, também foi um dos entusiastas pela ideia de progresso. Mostrou a admiração pela expansão das descobertas científicas. Disse Maupassant: "marchons en avant, toujours en avant, démolissons les croyances fausses, abattons les traditions encombrantes, renversons les doctrines séculaires sans nous occuper des ruines" 15. Nesta passagem vemos o espírito de uma época, que se irá enraízar nas modas e costumes das gerações vindouras – o de um cultuar o progresso, ilimitado e contínuo. Contrapondo a um desligamento do passado. I.e., fazendo tábua rasa. Havendo uma fé, quase religiosa e inabalável na ciência, ao mesmo tempo 14 13 Em rigor, vivemos ainda num mundo crente do progresso continuado. Apesar de todas as calamidades, não conseguimos sair deste modo de pensar e devoção a um fim vazio como é a própria ideia de progresso. Entendemos vazio, neste caso, como sendo ausência de conteúdos. Aqui jaz o problema: sem nenhuma linha orientadora, os homens sentem-se desorientados. 14 O progresso por nós criticado vai de par com a ideia de crecimento ilimitado inerente ao capitalismo, portanto é a esta ideia de crescimento ilimitado que nos referimos ao falar de progresso. Embora haja sinais a indicar haver mais estaganação que crescimento, ainda se persiste na crença de crescimento constante. O desemprego permanente nas sociedades capitalistas é um destes sinais da incapacidade de prover oferta de trabalho para todos. O desemprego permite entre outras coisas criar ciclos de ilusório crescimento, i.e., quando há umaquebra de produção a posterior recuperação por mais ténue que seja será percepcionada como crescimento ao qual se chama recuperação económica. 15 CF Gaulois..

(15) menosprezando as tradições, que se viam como obstáculos ao progresso. Continua Maupassant: "d'autres viendront qui déblaieront; d'autres, ensuite que reconstruiront; puis d'autres encore qui redémoliront; et d'autres toujours qui rétabliront". 16 Guy de Maupassant está a apresentar a cosmovisão de um mundo que se vai criando e recriando, através de uma construção e desconstrução. Mas, para nós, consideramos que, sem o passado, esta reconstrução será sem referência, não haverá um farol que oriente num rumo qualquer. Por este motivo, sustentamos a importância da tradição cultural. Quando falarmos da nossa primeira proposta para uma mudança de pensamento, utilizaremos a tradição cultural milenar de que dispomos, o cristianismo. Isto não significa que nos prendemos a crenças desajustadas e desactualizadas para com a realidade. Significa sim, um dar continuação, um reescrever da criação actualizando-a. Este ponto de tentar a permanência de uma continuidade é fulcral na nossa proposta global deste estudo. Termina o seu artigo, Maupassant, desta forma: "car la pensée marche, travaille, enfante; tout s'use, tout passe, tout change, tout se modifie. Les idées ne sont pas de nature immortelle que les hommes, les bêtes et les plantes. Et, pourtant, comme elle vous tient souvent, cette tendresse coupable pour les croyances anciennes qu'on sait menteuses et nuisibles!"17 De facto, esta é também a nossa posição. Crenças que se mostrem prejudiciais devem ser descartadas do seu uso, mas isto faz-se num quadro de historicidade. Só na história daremos conta do que é ou não prejudicial. Portanto, o recriar das ideias, é uma actualização do velho. Há uma fonte, ao passo que os entusiastas do progresso tendem a esquecer deste detalhe. É num quadro como o descrito que o mal estar de uma instrumentalização da razão se nos apresenta. I.e., na crença de um progresso na ciência sem qualquer fim delimitado e definido. E, acresce, numa busca do maximizar do prazer dos indivíduos para a qual a razão acaba orientada. A razão tomará a seu cargo, assim, uma função de um princípio servil do progresso continuo e desligado de um passado. Deste modo, indica-nos Taylor: a instrumentalização racional ameaça tomar possessão total das nossas vidas. As decisões que outrora seriam tomadas em referência a outros critérios18, virão a utilizar-se de critério do eficiência e de relação de custos e benefícios 19. Para, deste modo, acrescentará Charles: "les fins autonomes qui devraient éclairer nos 15 16 17 18 19. CF Gaulois CF Idem Exemplo: os valores morais religiosos. CF MM p.13.

(16) vies ne soient éclipsées par le désir d'accroîte au maximum la productivité" 20. Não havendo um horizonte de devir clarificado, cai-se neste fim indicado. Progresso pelo progresso. Num maximizar da produção e eficiência como a finalidade da actividade humana. Taylor indicará o campo económico, actividade exemplo claro desta consequente orientação do uso da razão para a máxima eficiência. Tornando-se necessário um crescimento constante. A justificar deste modo: as desigualdades económicas e o pouco cuidado com o meio ambiente.21 Posteriormente, apresentaremos caminhos alternativos a esta necessidade de crescimento económico. Proporemos reflectir, para o efeito, um novo modo de pensar a organização social, no qual o homem não será mais medido por um valor monetário. Este primado da instrumentalização da razão, também se manifesta no modo como se desenvolve a tecnologia. Em detrimento de um maior contacto humano, será a eficiência técnica a ditar como se processarão as relações sociais humanas. Agostinho da Silva acreditava no progresso tecnológico, em como este levaria o homem a uma maior liberdade. Entendemos que a tecnologia por si só não é suficiente. Isto porque vivemos numa sociedade da produção e crescimento. O que nos leva a colocar a questão: quando ou quanto será suficiente? Nunca. Nós caindo na desmesura, advinda deste modelo da máxima produção e eficiência, ficamos presos a uma engrenagem que continuará a exigir o sacríficio e destruição humanos e de recursos naturais. Este ponto levar-nos-á a reflectir a necessidade de haver mais qualquer coisa. Maupassant, embora entusiasta do progresso, também ele dará conta de um certo malestar daqui resultante. No final do seu artigo apologista da ciência e do progresso, diznos: "quand je sors la nuit comme je voudrais pouvoir frissoner de cette angoisse qui fait se signer les vieilles femmes le long des murs des cemitières, et se sauver les derniers superstitieux devant les vapeurs étranges des marais et les fantasques feux follets, comme je voudrais croire à ce quelque chose de vague et de terrifiant qu'on s'imaginait sentir passer dans l'ombre! Comme les ténèbres des soirs devaient être plus noires autrefois, grouillantes de tous ces êtres fabuleux! Et voilà que nous ne pouvons plus même respecter le tonerre, depuis que nous l'avons vu de si près, si patient et si vaincu." 22 O escritor dá conta de um sentimento de perda de algo. Como o título do artigo nos indica, esta coisa é uma perda do mistério na vida. A ciência ao iluminar o mundo, vai 16 20 MM p.13 21 CF MM p.13 22 CF Gaulois.

(17) afastando o manto do que era velado ao entendimento racional cientifico. Maupassant antecipa um mal que nós interpretamos como referente ao desconhecido. Sendo este, algo a haver no futuro. Só aquilo que está por vir contém em si mistério. A queda do mundo incerto, transporta-nos a este sentimento de perda do viver para um fim que se nos escapa. No nosso entender, aqui subjaz uma dose latente de niilismo. Não nos espanta que, o homem inclinado para a perda de projecção de futuro, caindo no niilismo, i.e., numa vida sem sentido, em simultâneo se adorne dos prazeres no presente como a finalidade última. Podendo deste modo ir adiando a consciência da sua própria mortalidade. A vida humana realiza-se no presente, só que faz-nos humanos este arco temporal de, surgindo do passado, projectarmos o amanhã. c) O individualismo e a razão instrumental O terceiro mal-estar reúne o individualismo e a razão instrumental nas consequências desta relação entre os dois.23 No ponto dois vimos um tipo de economia a surgir como factor determinante das nossas vidas. Enquanto no ponto um deu-se a ascensão de um certo narcisismo, i.e., o indivíduo que se tem a si mesmo como o centro e o fim. O que levará à mencionada busca pelo prazer como um fim em si. Outra consequência do individualismo é o divórcio dos cidadãos com a política. Estes preferem cuidar das suas vidas, ao invés de uma activa participação política. A consequência é levar o cidadão, perante um político colocado pelo governo e/ou o Estado a sentir-se impotente face ao poder político e/ou do Estado. Na prática significa a perda da liberdade. Tomando a mesma noção de Taylor referente a cada um destes mal-estares, teremos: no primeiro mal-estar há uma perda de sentido; no segundo mal-estar vemos o eclipar dos fins; e, no terceiro mal-estar, temos a perda da nossa liberdade. 24 O que nos iremos propor desenvolver mais à frente são caminhos de possibilidade alternativos com vista a enfrentar e quiçá superar o mal-estar resultante da modernidade.. 17 23 CF p.16 24 CF p.18.

(18) 1.1 - "A filosofia antes da filosofia"25. As palavras da família da filosofia só apareceram no século V a.c. e a sua definição filosófica só foi feita no século IV a.c. por Platão. Quer este ou Aristóteles, e mesmo toda uma tradição da história da filosofia, apontam como sendo filósofos os primeiros pensadores gregos do século VI a.c., na periferia da zona de influência grega. Mais exactamente, nas colónias da Ásia menor. Sendo na cidade de Mileto onde surgiu Tales de Mileto, um dos antigos sábios, célebre por ter previsto o eclipse solar. Junto com ele seguiram-se Anaximandro e Anaxímenes. Este movimento do pensamento iria estender-se às outras colónias gregas, na Sicília e no sul de Itália. Através de Xenófanes de Cólofon e Pitágoras da ilha de Samos que emigraram para Itália. Progressivamente, desenvolve-se na Sicília e no sul de Itália um pólo de actividade intelectual. Deste surgirão Parménides de Eleia e Empédocles de Agrigento na Sicília26. Estes pensadores tinham em comum a proposta de uma explicação racional do mundo, o que constitui uma viragem decisiva na história do pensamento. Demarcam-se dos anteriores por apresentarem uma explicação racional do mundo. Anteriormente, as cosmogonias eram do tipo mítico. Isto significa uma cosmovisão descritiva das forças e fenómenos da natureza, de um modo personificado. Apresentando uma história do mundo como luta entre entidades personificadas. A intenção é o de manter uma certa continuidade e ordem no mundo. Destinava-se, dentro desta continuidade, a manter a memória dos ancestrais e das origens. Recordar a criação do mundo, a criação do homem e a criação do povo. Se pensarmos com atenção, está longe de ser um modo de pensar a menosprezar, como parece ser hábito no nosso tempo. Falamos do esquecimento do passado, daquilo que é antigo para só dar lugar ao novo. O que acaba sendo uma renovação sem continuidade. Estes homens pensaram o haver mundo, seguindo-se do haver homens e por fim o haver povo. Mostrando não somente um grau elevado de consciência de si mesmo, como da relação de si mesmo com o mundo e com outros homens. Porém, consistia ainda num modo limitado de consciência. Em rigor, nesta distância de milénios que nos separa destes nossos ancestrais não podemos especular certezas. Serão os gregos já por nós referenciados a apresentar uma teoria racional explicativa acerca do mundo, substituindo o pensamento mítico. Contudo, verifica-se uma 18 25 CF Hadot P. Qu'est-ce que la philosophie antique, (doravante PhA) pp.27-34 26 Em rigor este período caracteriza-se como de transição, i.e., a passagem de uma explicação mítica do mundo a uma explicação racional do mundo não apaga de imediato traços do pensamento mítico nos pensadores gregos que buscavam por uma explicação racional do mundo,.

(19) determinada continuidade relativa ao modo ancestral mítico de pensar. Chamamos a atenção do leitor para este detalhe. Não é mero esmiuçar de um pequeno grão de poeira. Ao longo do nosso estudo iremos lembrar a importância da continuidade no tempo. Isto em detrimento de uma posição de ruptura com o passado. Entenda-se, mesmo num corte com o passado há continuidade. A pretensão do contrário ou o esforço de esquecer e negar o elo com a história passada, dará origem a uma perda de sentido. Como nos refere Pierre Hadot: os novos pensadores gregos conservarão o esquema ternário, que estruturava as cosmogonias míticas. Eles propondo uma nova teoria para a origem do mundo, do homem e da cidade. Verificamos então este paralelo. No pensamento mítico e no pensamento racional há a preocupação de explicar o haver mundo e o haver homens. Também há um paralelo entre explicar a origem do povo, isto é, da comunidade relativo à origem da polis grega. Esta teoria é racional por ela procurar explicar o mundo como uma luta entre realidades físicas27 e o predomínio de uma sobre as outras. Esta transformação radical é manifestada na palavra physis, que significa o começo, o desenvolvimento e o resultado do processo pelo qual a coisa se constitui. O que os gregos buscam é, portanto, a physis universal. Compreender o aparecimento das coisas, como estas se desenvolvem. Em suma, procuram por aquilo que é. A esta busca intelectual os gregos chamam investigação 28. Trata-se de uma busca por conhecer as causas de cada coisa, a razão de estas surgirem. E as causas porque estas existem ou perecem.29 A filosofia veio também dar seguimento e resposta a uma preocupação e interesse dos gregos, a paideia. Os gregos mostravam grande importância no cuidado de formar a sua juventude. Especialmente, os jovens orientados para um destino de excelência, aretê, requerida pelo sangue da classe a que pertenciam, a classe dos nobres. Mais tarde, na filosofia, esta excelência viria a ser chamada de virtude. Designava-se assim o possuir-se uma alma nobre. Esta educação exercia-se no seio da classe social. Os adultos transmitiam as qualidades consideradas necessárias à formação dos futuros cidadãos. O ensino fazia-se através da apresentação de modelos, que personificavam as qualidades tais como a força física, a coragem e o sentido de dever. Os gregos desenvolviam novas modalidades de ensino, conforme as necessidades. Uma atitude que no nosso tempo, mais uniformizado, e ainda, da máxima eficiência tende a evitar cuidar de pesar. Isto é, o 19 27 CF PhA p.29 28 CF Idem 29 CF Fédon 96a.

(20) criar novos modos de pensar o mundo, tendo em conta os problemas do momento 30. Os gregos tinham um modo educacional em acordo com a socialização humana. No nosso tempo, as crianças e jovens continuam a aprender através de modelos. Todavia, na ausência de bons modelos ou mesmo de quaisquer modelos e de uma ideia de comunidade, que os gregos possuíam, dá-se uma disrupção da identidade. Nos capítulos posteriores compreenderemos, indirectamente, o motivo de termos começado com esta revisitação da história da filosofia. Tal como os gregos, também nós procuramos pelo princípio das coisas. Já a partir do século V a.c., com o esplendor da democracia, os gregos irão deparar-se com a necessidade de desenvolverem o domínio da linguagem. Por este atributo ser fundamental para o exercício da influência na assembleia durante os debates. Será neste ambiente social, que surgirá um movimento intelectual especializado, os sofistas, vindo para responder a esta necessidade específica. Estes viriam a ser mal vistos pelos restantes filósofos, ainda nos nossos dias, os profissionais da filosofia tendem a detestar os sofistas. Um russo viria a dizer um dia: acuse os adversários do que você faz e chameos do que você é. Sofista, no dicionário, é aquele que busca fugir à verdade e o que argumenta com argumentos falsos dando aparente corpo de veracidade ao discurso. Nós, que iremos apresentar o filósofo de um certo modo, deixamos em aberto a verificação de quem são os sofistas. Para o mistério não ser total: sendo a filosofia apresentada como um modo de vida, poderá ser filósofo quem não vive a filosofia? Mantendo as perguntas abertas, pois são para o leitor responder perante si mesmo. Importa-nos devolver alguma dignidade aos sofistas, os quais avant la lettre mostraram os limites humanos. Consideramos o sofismo como um precursor do relativismo. Embora, seja moda criticar o relativismo como algo de equivocado, nunca a nossa sociedade terá sido tão relativista. Se há algo de errado no nosso tempo, isto não é o relativismo, pois diferentes pessoas têm percepções diferentes e por consequência crenças diferentes. O problema está no oposto, pretender-se universalizar a percepção do mundo numa forma idealizada. Em suma, a filosofia veio explicar o mundo com racionalidade, encontrando limites e problemas que nós, humanos, continuaremos a explorar enquanto vivermos no planeta.. 20 30 Tendemos a adoptar modelos menos flexíveis e adaptados às nossas necessidades locais. Exemplo especulativo: adoptar o modelo educativo finalndês no sistema português..

(21) 1.2 - O filósofo: aparecimento da definição31 Não sabemos se Sócrates utilizou as palavras filosofia ou filósofo durante os seus discursos, porém no Banquete de Platão iria inspirar a definição do que é um filósofo. Dando origem a um termo definido de um novo modo 32. Filósofo é o sábio que suporta imperturbado as emoções, mais quaisquer eventos da Vida. A figura de Sócrates é para muitos dos filósofos que se lhe seguiram a referência do que é um filósofo. Seja para se lhe seguir o exemplo ou para se lhe opor. Nenhum filósofo ou qualquer pessoa que se interesse por filosofia pode evitar o encontro com este pensador grego. Ele até na sua condenação à morte serve o exemplo da vida boa. Mantendo-se firme na verdade de si aceitando o seu destino imposto pelo mundo exterior. Mas, o que entendemos por filósofo? Platão em Teeteto33 fala-nos do filósofo como um estrangeiro. Este estranhamento devese ao filósofo que não se reconhece no modo de estar. Há o modo de vida do filósofo e o modo de vida não filosófico. Este último significa o homem desorientado do modelo de elevação. Este torna-se orientado para a corrupção e a falsidade. Crescerá num modelo que busca obtenção de vantagens através do engano e da desonestidade. Começamos a ver o filósofo como distinto dos homens comuns. Contudo, este passo não deverá servir para os filósofos ou os que ensinam a filosofia se fecharem à comunidade. Uma coisa é distinguir-se, tornarem-se em modelos diferenciados, outra é omitirem a responsabilidade de liderar, sem liderar. O filósofo lidera indicando, sem nunca se deixar ir na frente de quem quer que seja. Já o famoso oráculo limitava-se a indicar a direcção sem nada afirmar. Se começamos a antever o filósofo como aquele que sabe ser ou estar na Vida, falta-nos comentar um pouco da formação que interessará o desenvolvimento nos capítulos seguintes. Um dos aspectos do educar consistia em praticar o diálogo, um método tão bem ilustrado pela figura de Sócrates. Infelizmente, muito esquecido no ensino superior contemporâneo. O professor fala, os alunos escutam. Um modelo árido e empobrecido, este. Tende-se a desvalorizar o pensar por si mesmo. Voltaremos a este assunto no coroar da criança.. 21 31 PhA pp. 70-87 32 CF PhA p.70 33 CF Teeteto 173 – 176.

(22) 1.3 - Filosofia como modo de vida A ideia da filosofia como um modo de estar na vida não é recente, mesmo se Pierre Hadot nos propõe a expressão – filosofia como modo de vida. Esta busca pela vida boa, para o qual remete a expressão de filosofia como modo de vida, sem nunca ter desaparecido tornou-se subalterna a outro modos de filosofia mais abstracta e desconectada da vida. A filosofia contemporânea não fala aos homens. Se tivermos dúvidas a respeito deste desvínculo, basta ir na rua e perguntar aos viandantes o que pensam acerca da filosofia. Esta filosofia contemporânea, é-nos apresentada, ironia do destino, como filosofia académica. Para nós o modelo actual tornou-se mais pobre, nem os antigos que considerassem a filosofia só para alguns aprovariam este fechamento da academia contemporânea face às necessidades da sociedade. Inclusive, consideremos este modelo de filosofia limitado, mesmo se o julgamos necessário e importante para uma vida intelectual saudável. Não estamos a opor-nos ao trabalho de pesquisa dos nossos colegas, só a reclamar mais atenção para outros modos de filosofia esquecidos. Se voltarmos ao passado, bem nas origens, veremos o fundador da academia admirativo do filósofo enquanto modo de estar na vida. Na República, Platão indica-nos: Pitágoras terá sido amado por ter educado os que o frequentavam. Os seus discípulos reclamaram terem a partir dele criado um modo de vida. Isto tornava-os diferentes dos outros34. Platão receberá de Sócrates o método do diálogo, a ironia e o interesse sobre os problemas de conduta da vida 35. De Pitágoras, Platão tomou o ideal de comunidade de vida entre filósofos36. Portanto, quer Pitágoras, quer Sócrates, terão sido inspiradores aquando da fundação da academia. Embora, não se saiba em que, no particular 37, o Pitágoras tenha inspirado Platão 38. A academia é portanto um lugar de formação, mais voltado para o exterior. Isto significa, para servir a comunidade. A filosofia quer-se viva e não como mera reprodução de si mesma. Esta é uma ideia a recuperar no nosso tempo. Formar filósofos menos possuidores de diplomas e mais filósofos habilitados a orientar a comunidade para a vida boa. A filosofia é para ser vivida enquanto modo de vida, não como uma profissão. 22 34 35 36 37. República 606b CF PhA p. 95 CF Ibidem Sabemos pouco acerca da proposta de Pitágoras. Porém, sabemos que Platão encontrou pitagóricos na sua viagem à Sicília. 38 CF PhA p.95.

(23) delimitada por um horário e fora do qual se despe da função. No fundo, nos nossos dias há poucos filósofos, mesmo se persiste a existência de professores de filosofia. Na nossa posição, a partir dos antigos, vemos que a filosofia consiste em adoptar um modo de vida filosófico. Esta posição pode ser verificada na República. Platão indica-nos ser essencial, pelo estudo, buscar verificar a diferenciação entre a vida boa e a vida má. Para escolher a vida boa dentre as possíveis39. Vimos então, a filosofia é adoptar um modo de vida. Mas não um qualquer e sim um que eleve o homem para uma vida melhor. Será através da prática filosófica que o homem irá exercitar-se na auto-regulação de si. Por exemplo, aprender a manter-se calmo 40. Desde cedo veremos uma preocupação de o homem preparar-se para a morte. Podemos recuar de novo no tempo, retornar à era anterior à filosofia, para dizer: algumas pessoas poderão pensar que a filosofia nasceu num belo dia de inspiração espontânea. Por assim dizer, um homem inspirado, um dia meteu-se a filosofar. Na nossa posição há uma continuidade, o fundo humano que compele para agir e buscar algo é o saber-se mortal. O tal ser para a morte de que falará um filósofo do século XX. Vejamos mesma numa era era mítica: a consciência da morte preocupava o homem. Na epopeia de Gilgamesh, dentre outros, a morte é a grande motivação deste para realizar a sua busca. Gilgamesh desejava ser imortal, vivendo a preparar-se para a morte mesmo sem o saber. No fim, quando consciente de que morreria, limita-se a olhar do alto das muralhas a cidade. Ele sabia que iria morrer, mas enquanto esse dia não chegasse teria que viver. Precisamente, aqui a pertinência da filosofia floresce e ganha toda a força. A filosofia é um modo de o homem viver bem enquanto espera pela morte. Teremos que morrer, enquanto a morte não chega há que viver. Epicuro afastou o medo da morte lembrando não fazer sentido temer o que ainda não é. Assim como uma vez a morte presente, já não importa mais a questão. Voltando a Platão, Sócrates é mostrado na hora da sua morte dizendo: a filosofia é a preparação para a morte41. Na República vemos o ênfase que pretendemos dar, isto é, enquanto não morremos há que viver. O que se pretende de uma boa maneira. Não só há esta consciência da morte, como a intenção de aproveitar a nossa existência da melhor maneira. Deste modo, temos já na República a orientação adequada: a filosofia visa como que a elevação da alma, na 23 39 República 618 b – c 40 República 604 b – c 41 CF Fédon 64 a.

(24) direcção do pensamento mais elevado e da contemplação 42. Acresce a des-pre-ocupação da alma com a morte. No fundo, já a indicar que mais do que pre-ocupados com a morte, os homens aprenderão com a filosofia a ocupar-se de viver. Adiante, quando falarmos no nosso modelo de transformação espiritual, teremos em conta este sentido de elevação e contemplação. A filosofia como modo de vida virá a ganhar maior expressão, durante o chamado período helenístico. Este período é definido como o intervalo entre a governação do Alexandre, o grande, século IV a.c. até à dominação romana no século I a.c. A expedição de Alexandre irá estender a influência grega desde do Egipto a Samarcanda e Tachkent até ao Indus. Dar-se-á o início de uma nova era, a Grécia abre-se ao mundo. O comércio intensifica-se e com ele o encontro de culturas que se irão misturar. O final deste período costuma ser apontado pelo evento do suicídio de Cleopatra em 30 a.c. É comum apresentar-se o período helenístico como de decadência 43. Daqui resulta, como aos sofistas, ainda haver nos dias de hoje uma certa desconsideração pela filosofia helenística. Todavia, este é o período mais originário e próximo dos problemas do nosso tempo. Já vimos o mal-estar do individualismo, um problema que não sendo igual, tem algo de semelhante com a desintegração da Polis grega. A perda de influência política dos cidadãos, por consequência da liberdade, levou ao acentuar do foco na interioridade do Homem. A filosofia desenvolverá toda a sua força num sentido de terapia. Será isto o modo de vida em filosofia, o cuidar de si e por arrasto e contágio dos outros. Neste contexto surgirão diversas escolas, sendo as mais famosas: estoicismo, epicurismo, cépticos e cínicos. Todas elas têm em comum a proposta de filosofia como terapia, oferecendo uma orientação e um caminho para se ser e estar na Vida. Isto é, adopta-se um modo de vida sendo na existência segundo uma determinada doutrina. Para pensarmos caminhos de possibilidade para o mundo moderno, inspiramo-nos especialmente neste período da filosofia. Olhando um tempo em que os Homens procuravam viver segundo um modelo filosófico. Deste modo tinham uma orientação de sentido auto-instituído para as suas vidas. A filosofia adquiriu neste período o destino de servir a todos ultrapassando o elitismo do platonismo ou do aristotelismo. A filosofia no seu desenvolvimento destinava-se a todos os Homens: ricos ou pobres; escravos ou livres; homens ou mulheres. Qualquer pessoa que adopte o modo de vida de Epicuro ou 24 42 CF República 486 a – b 43 CF PhA p.146.

(25) estóico era considerado filósofo44. A nós interessará o cinismo, também ele destinado à população em geral. Esta escola é, de entre as mais famosas, a que pior fama terá. Quiçá este seja o motivo para a nossa escolha. Se o cinismo terá sido fundado por Antístenes, terá em Diógenes a sua figura mais marcante. O nosso interesse particular neste movimento: o cinismo, mesmo se orientador de sentido, evitava tornar-se numa instituição formal. Isto é, fixar-se formando uma escola propriamente dita. O que nos interessa é este desapego a uma doutrina formal. Por estarmos aqui só a mostrar linhas orientadoras de possibilidade. São isto os nossos caminhos aporéticos a serem percorridos e experimentados em liberdade. Sem constrangimentos, mas engajados numa busca de verdade para a nossa existência enquanto Homens e também na nossa relação com o meio ambiente. Os cínicos servem-nos para voltarmos a pensarmos os nossos hábitos. Tendemos a uma certa acomodação, i.e., as coisas sempre foram de uma determinada forma, então cremos que sempre serão assim. Evitamos transgredir e a ruptura, crentes de que as regras sociais são indispensáveis. No nosso compromisso não seremos tão radicais como os cínicos foram, mas exigiremos a verdade. Por vezes, as coisas não mudam, porque nós não queremos mudar as coisas. Isto a começar por nós mesmos. Adormecemo-nos e entregamo-nos o nosso destino nas mãos invisíveis. É legítimo não querer mudar, desde que assumido. E isto faz-se no encontro com a verdade. Para consigo mesmo. Os cínicos e os membros das outras escolas buscaram através de uma ascese e atitude na vida: ataraxia, a ausência de perturbações; autarkeia, a independência. A ascese consistia no esforço, na adaptação às circunstâncias tais como a impossibilidade e numa postura de simplicidade ou ausência de vaidade, impudor – tuphos Os cínicos escolhiam este seu modo de vida porque consideravam o estado de Natureza, Phusis, como superior às convenções sociais 45. Nós, sendo menos radicais, concordamos com a ideia subjacente. Os cínicos mantinham espaço e o despojamento mantinha-os dispostos a encarar a vida como movimento de devir. Esta atitude é superior a uma atitude estática e cristalizada. Sendo a Vida impermanente, a atitude cristalizada arrisca a ser-se surpreendido e não estar preparado, criando em si o sofrimento. Possível devido a uma falsa crença de permanência, o que desde logo a morte contradiz. Impedindo-se de aproveitar a vida por distracção ou medo do inevitável. 25 44 CF PhA p.169 45 CF PhA p.170.

(26) Os cínicos, mostrando o desprezo pelas regras sociais, mostram-nos as nossas possibilidades de liberdade. Ou seja, temos a capacidade de derrubar convenções para originar o mundo a haver. Começando com o exercício provocador e insolente de sendo livre, dizer tudo sem restrição. 1.5 - Parrêsia, a coragem da verdade Sobre a verdade não falaremos desta num sentido epistemológico. No entanto, defendemos a mesma num sentido de haver múltiplos modos de atingir a verdade, como Ibn Rushd demonstrou no seu tratado 46. Esta nossa referência a Ibn Rushd é outro modo de chamar a filosofia para o presente. Neste caso, por se tratar de um texto escrito como uma fatwa47, incentiva os muçulmanos, igualmente em perturbação da sua identidade e sentido, a encontrarem um modo de dissiparem os sectarismos resultantes de um estado de confusão geral da ummah48. Quiçá para deste modo evitarem a bid'a49 e a fitnah50, o que constitui na tradição islâmica um grave pecado. Acreditamos que o reatar com a tradição filosófica, no caso dos muçulmanos, a falsafa51, também ajudará a cuidar de uma comunidade em crise de sentido. Isto porque o tratado de Ibn Rushd visa não só mostrar a compatibilidade entre a religião islâmica e a filosofia, como tornar carácter obrigatório o estudo da filosofia. Outro motivo para evocarmos Ibn Rushd é a consideração de que, se a filosofia é destinada para se viver como um modo de estar/ser na vida, esta não é destinada a todas as pessoas da mesma forma. Nós temos uma posição muito crítica relativa aos profissionais da filosofia que não entendem o seu papel de promotores da filosofia junto do resto da comunidade. Consideramos uma obrigação moral a transmissão da filosofia a toda a comunidade. Para assim evitar que pessoas desinformadas e sem estudos apropriados criem a desarmonia no mundo de todos. Todavia, nós que nos focamos na filosofia antiga, não nos debruçaremos sobre o problema muçulmano. Iremos seguir acompanhados do pensador francês, Michel Foucault, para reflectir o falar verdade no discurso filosófico no interior de numa comunidade viva. E pensarmos internamente o que significa para cada um de nós este compromisso com a filosofia enquanto busca pela verdade. Se consideramos a filosofia 26. 46 Averróis, Discurso decisivo sobre a harmonia entre a religião e a filosofia, Catarina Belo (trad.), Lisboa, INCM, 2006. 47 48 49 50 51. Decreto religioso, um parecer sem força de lei. Comunidade dos crentes muçulmanos. Inovação religiosa. Dissensão e sectarismo Literalmente significa filosofia. Na tradição islâmica também se usa a palavra, kalam, para designar a filosofia. Esta significa, discurso..

(27) como modo de vida, não nos parece que seja desadequado pensarmos a nossa vida como autêntica, assim como o que nos leva a afastar da autenticidade. A esta questão regressaremos na terceira parte da dissertação. A verdade que nos importa é a de unificar o discurso e a acção. A filosofia é uma actividade abstracta junto com uma actividade concreta. Isto significa integrada no individuo, jamais poderá considerar-se a filosofia como sendo uma actividade parcial, profissional, limitada por um horário. Estes não são nem filósofos nem vivem a filosofia. Portanto, a filosofia é uma actividade integral, i.e., a tempo inteiro e como modo de vida. Neste capítulo usaremos o texto composto pelas últimas aulas de Michel Foucault no Collège de France, 198452. Pretendemos fazer uma interpretação inspirada da sua lição de abertura e na lição final, num contexto que é o próprio exemplo da vida de Foucault. Orientamo-nos para esta ideia da filosofia como modo de vida e na busca da verdade para consigo e com os outros. No saber governar a si mesmo e aos outros. No cuidar de si. A relevância é mostrar a vida de um homem que, tendo dedicado o seu tempo à filosofia, acaba mostrando pelo exemplo a sua preparação para morte 53. Sem deixar de mencionar uma certa degradação deste cuidar de si que, ao longo do tempo, será substituído por um dever de obediência ao exterior e não já a uma resposta à demanda interior de verdade sobre si mesmo no sentigo antigo dos gregos. Este é o contexto a que pretendemos dar ênfase. Foucault durante o seu último ano de aulas estava consciente da proximidade da morte. Sendo no aproximar da sua morte que Foucault começa a focar-se na filosofia como um modo de vida. Centra-se nos cínicos enquanto filosofia prática. Longe das meras cogitações, a filosofia tornava-se numa atitude que tomava perante si, a comunidade e a própria Vida. A nossa escolha ainda é justificada, pois aqui antecipamos o que veremos mais adiante acerca das percepções e crenças. Especialmente, percepções e crenças erradas em oposição a uma filosofia da verdade. O nosso foco é recordar que a busca da verdade se aplica imediatamente na vida diária. Corrige-nos, diremos mesmo, cura-nos da doença da má visão. É pela experiência pessoal que apreendemos a verdade sobre nós mesmos. Nasce desta experiência o modo como iremos constituir as nossas crenças nucleares e o modo de ser e estar na vida. Ou seja, sem o exercício da busca pela verdade, tenderemos para nos constituir com base no que o mundo exterior nos dita. Agravado destino se este mundo exterior vier a impor uma verdade. A prazo estaremos sendo obedientes, o que numa 27 52 Foucault M., Le courage de la vérité, le gouvernement de soi et des autres II, cours au collège de France, 1984, Paris, Gallimard, 2009 (doravante Le Courage) 53 Foucault irá falecer poucos meses depois de proferir estas lições..

(28) linguagem corrente se diz: seguir o rebanho no qual nos deixamos incluir sem voz, por falta de um compromisso filosófico pela busca da verdade 54. Iremos ficar centrados no termo parrêsia, sabendo-nos inspirados pelo espírito cínico, mas não teremos esta escola filosófica como objecto particular de estudo. A sua presença deve-se mais ao exemplo de homem que escolhemos para a nossa viagem. Se consideramos pertinente o estudo do cinismo, esta filosofia mais extrema na sua prática só nos serviria enquanto ponto de partida. Importa-nos reflectir de um modo limitado em torno desta ideia de falar verdade. Implicações que possa ter na vida humana, especialmente, no tempo contemporâneo. O que nos serve no cinismo na disrupção com as instituições humanas? Se nos alerta contra a conformidade e mostra um modo anárquico de nos libertarmos das convenções sociais, falta-lhe uma orientação de sentido. Isto significa, ausência de um modelo para substituir às anteriores convenções sociais. Em rigor, o cinismo possui um modo de vida a oferecer, não fosse ele uma filosofia. No entanto, a proposta cínica tende a reduzir o humano à sua mera natureza mais primária. Todavia, a nós interessa o conceito parrêsia como Foucault o apresentou nos Cours au Collège de France. Previamente, dando seguimento ao estudo de Pierre Hadot, chamamos a atenção para a originalidade de Foucault. Hadot diria a respeito do modo de filosofar de Foucault que os métodos de ambos diferiam. Foucault não seria dado à filologia, o que o levaria a ser pouco rigoroso no uso das traduções e interpretação dos textos antigos. Apontando uma divergência relativa à ética do mundo grego estar ligada ao prazer que, para Hadot, é um equívoco de Foucault. Hadot acrescentará quanto muito haverá uma ética do prazer no epicurismo, mas sobre este Foucault escreveria pouco 55. Não estamos aqui para dirimir esta divergência. O significativo é vermos Foucault, tido mais como um historiador das ideias, encarnando o papel de filósofo precisamente devido a esta divergência.. A. coragem de ousar de Foucault. Este modo de estar na vida é para nós exemplo e inspiração para esta demonstração numa dissertação de filosofia divergente da metodologia mais convencional. É um chamar à descoberta de si, do experimentar e agindo junto com o pensamento. Em simultâneo demonstramos o conceito central da nossa exposição. Ora vejamos: "Il faut pour qu'il y ait parrêsia que, en disant la vérité, on 28 54 Falamos sobre a nossa verdade verdade interior, o auto-conhecimento que cada humano é chamado a realizar para viver no caminho da virtude. O viver da verdade é o exercício de auto-conhecimento e aplicação em si do conhecimento adquirido. 55 CF Hadot P., La philosophie comme manière de vivre, Paris, Albin Michel, 2015, p.216.

(29) oeuvre, on instaure et on affronte le risque de blesser l'autre, de l'irriter, de le mettre en colère et de susciter de sa part un certain nombre de conduites qui peuvent aller jusqu'à la plus extrême violence. C'est donc la vérité, dans le risque de la violence." 56 A filosofia como modo de vida comporta um risco, especialmente, se estivermos comprometidos para com a verdade sobre nós mesmos. Podendo ir, como nos disse Foucault, até à extrema violência. Mas vejamos mais de perto a lição. Num exercício de coragem da verdade, podemos começar imediatamente pela reflexão a respeito das aulas dadas por Foucault. Estamos aqui a pensar no contexto e lugar da realização das aulas. As aulas, como o próprio indicará, poderão dividir-se entre um carácter exotérico e um carácter esotérico57. Logo de entrada temos um Foucault em fase como uma certa ideia de tradição filosófica: há uma filosofia ensinada para a comunidade pública e uma outra destinada em regime fechado e só ensinada aos especialistas. Estes últimos serão os investigadores, os professores e mestres que transmitem o ensino da filosofia. No entanto, só são filósofos os que não só tomam a cargo este trabalho de investigar e do ensino da filosofia como vivem eles mesmos engajados internamente com a filosofia. Deixaremos em aberto a pergunta: será que na nossa época, os professores de filosofia ainda vivem neste compromisso com a verdade? Suscitamos o questionar: será mais relevante a minha interpretação ou ler o texto de Foucault? Através desta pergunta promovemos a curiosidade do leitor em ler o original. Enquanto que aqui está a deparar-se com o olhar a si mesmo e verificar se é um actor na vida ou um assistente. A filosofia prática quer-se pensada e vivida e transmitida como um um modelo de vida. Compilar conceitos e amontoar erudição é importante, mas secundário. Colocadas todas estas considerações desafiadoras, vejamos o que nos é dito sobre o conceito parrêsia e a própria constituição do individuo que, acima de qualquer outro problema, constitui o núcleo da nossa reflexão 58. Omitiremos a posição de que dizer a verdade sobre si sirva para melhor se submeter aos outros. O individuo por estar em relação precisaria de transmitir o melhor possível a informação sobre si mesmo, sentindo que, conforme o modo de acolhimento, assim se constituirá a si mesmo. Isto é uma admissão de que sempre nos construímos dependentes do exterior. Não é fácil provar o inverso. Excepto se formos únicos e 29 56 Le Courage p.12 57 CF Le Courage p.4 58 Teremos como base de apoio as aulas de Foucault, mas procederemos a uma exposição própria a partir destas. A nossa reflexão parte de Le Courage pp.4-20 e pp.296-309.

(30) cortados de quaisquer elos com o exterior humano, sempre seremos dependentes deste mesmo exterior. O que importa então não é admitir se há ou não uma constante relação de poder entre o sujeito e o poder. Dito de outra forma: o submetido a alguém que manda. Ou seja, o sujeito precisará do assentimento do outro para se constituir a si mesmo. Nós admitiremos esta posição como sendo descritiva da realidade. Então, se não depende de nós haver ou não influência do poder externo na nossa vida, sobra focar-nos no espaço no qual temos liberdade. Os estóicos ou os cínicos sabiam que só temos controlo e poder de facto sobre nós mesmos, portanto, importa sabermos sobre o que não possuímos poder. A coragem da verdade implica buscar esta diferenciação. Dar-se conta da relação de sujeito e dominador externo, possibilita uma averiguação por cada uma das partes sobre como a verdade se manifesta. A esta manifestação da verdade Foucault categoriza como aleturgia59. Estamos a suscitar a atenção para o seguinte: uma expansão da consciência implica Atenção Plena sobre a relação entre as consciências. Especialmente, a dependência. Ou inter-dependência, que é mais rigoroso. O indivíduo em situação de dominação tenderá a quebrar o sujeito, i.e., aquele que é o submisso para dele retirar proveito. Ainda seremos mais finos no foco: sendo a relação inter-humana sempre activa -passiva. Por vezes, um manda, noutras este obedece. Haverá a tentação do Homem pretender posicionar-se sempre em situação de mandar no outro. Ou, vice-versa. Não fazemos juízos sobre posição de uns e de outros. Nesta manifestação da verdade, deparamo-nos com regras advindas da comunidade. Sejam regras da cultura ou da religião. Mas, como vimos observando, o olhar mais atento é sobre si mesmo. A observação de si mesmo, i.e., o auto-conhecimento revela a partir do abismo da nossa alma quem somos. Ou, se preferirmos, a nossa verdade subjectiva acerca de nós e do mundo. Por ser relevante o estudo da nossa cultura, especialmente, da religião, na parte II teremos um olhar mais voltado para o cristianismo. Isto num sentido de ser a partir dele que pensaremos a transformação de si. Todavia, antes ainda nos falta reflectir um aspecto sobre a opressão desta manifestação da verdade. Isto neste sentido que acabamos de referir: um olhar para a nossa interioridade. No entanto, esta busca interior pela manifestação da verdade iria ganhar má reputação. Ainda hoje chamamos de insolente qualquer discurso não conforme às regras. Tentaremos humilhar ou ostracizar quem se desvia das normas, apelidaremos de 30 59 CF Le Courage p.5.

(31) arrogância o desafio de pensar-se e apresentar-se diferente dos outros. Temos também em Foucault esta clarividência: "La parrêsia apparaît donc maintenant comme un comportament blâmable, de présomption, de familiarité e de confiance arrogante en soimême."60 Pretender autonomia tornou-se mal visto, abrindo-se a porta da submissão voluntária. Pior, séculos de obscurantismo a que o iluminismo não pôs fim. A modernidade trouxe excesso de entusiasmo progressista, mas pouco discernimento numa real refundação da sociedade. Retomar com a tradição da filosofia como modo de vida pode ser a cura desta doença da desconfiança de si mesmo. Os homens estão doentes, mas não notam. Trabalham sem finalidade, consomem, deambulam por aí sem se pensarem. Morrem como se nunca tivessem vivido. Faltou-lhes a filosofia – falta-lhes a filosofia. Na filosofia procura-se uma arte de vida, um modo de ser e estar consciente que leve à autonomia. No cristianismo exige-se uma penitência e obediência eterna a Deus. Quando retomarmos o cristianismo como objecto de estudo, já estaremos afastado deste enquanto relação de submissão a Deus 61. Retiraremos Deus do papel de vigilante eterno, por consequência, retiramos este papel a quaisquer dos seus representantes ou discípulos indirectos. O papel de vigilante dos outros assumirá muitas formas, nem sempre claras numa primeira observação. Servem estas palavras para chamar a atenção e convidar a uma contemplação da verdade. Deus será novamente o objecto da saudade humana, para o qual nos inclinamos. Veremos em Agostinho da Silva o que isto significa. O nosso foco principal não será o realizar boas instituições, mas deixando janelas de comunicação. Pretendemos relembrar aos Homens a sua história, cultura e religião. Os conflitos quiçá devam ser inspiradores de uma necessidade de entendimento entre os Homens. Sobretudo lembrar, a crise poderá não ser só económica nem institucional. Adiante apontaremos caminhos alternativos neste campo da economia. O problema mais proeminente é o do individualismo que defendemos resolver-se com a individualidade. O humano que se descobre a si mesmo e se constitui como único e em alteridade com o exterior, resolve o problema do excesso de idêntico (ou positividade). Ao lermos um artigo62, veremos as seguintes expressões de Kant: "conceitos sem intuições são vazios" e "intuições sem conceitos são cegas". Estas remetem-nos para uma forma fixa de ver a realidade. Tudo estaria organizado e categorizado segundo uma 31 60 Le courage p.305 61 Os muçulmanos de que falamos, têm como ponto fundante da sua religião esta submissão total e voluntária a Deus/Allah. 62 Joana Macedo Luís, "Vida metafísica e sociedade" , Philosophica 42 (2013), pp. 15-19..

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