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Maquinismo e filosofia: o nascimento da questão da técnica

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Academic year: 2020

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MAQUINISMO E FILOSOFIA: O NASCIMENTO DA QUESTÃO DA TÉCNICA Machinism and philosophy: the birth of the question of technique

Eduardo Ramalho Rotstein

Pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRJ; Orientação Prof. Dr. Fernando Rodrigues

RESUMO: A questão da técnica tem despertado um interesse crescente do mundo intelectual

nas últimas décadas em razão das transformações sociais e dos desafios éticos suscitados por inventos no campo da informática e da biologia. No intuito de iluminar os pressupostos do debate atual serão retraçadas, nesse artigo, a origem histórica da questão da técnica e das principais posições filosóficas assumidas diante da mesma. A partir das investigações históricas de Pierre-Maxime Schuhl descobre-se, em primeiro lugar, que a técnica entra decididamente na pauta do debate filosófico a partir de dificuldades originadas fora do âmbito intelectual, relacionadas à difusão das máquinas e ao nascimento da grande indústria no século XIX. Em segundo lugar, pode-se mostrar que foi sob a consideração dos efeitos ambíguos do maquinismo que se formaram as linhas mestras de interpretação que até os dias de hoje constituem a matriz da filosofia da técnica. Posições como otimismo ou pessimismo, humanismo ou fatalismo, nas quais incorre amiúde o questionamento mais recente da técnica, podem ser encontradas nas reflexões de escritores utopistas e de filósofos como Ernst Kapp e Oswald Spengler entre meados do século XIX e o início do século XX.

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INTRODUÇÃO

Quem lê a transcrição da célebre conferência “A questão da técnica”, de Martin Heidegger, é amiúde tomado de perplexidade por não reconhecer na interpretação ali desenvolvida o menor traço do que o senso comum entende por técnica. Ocasionalmente, porém, o hermetismo do texto se rompe nas passagens que mencionam de modo vago um debate pré-existente a respeito do tema. Alude-se criticamente a posições como a de aceitação ou de recusa apaixonada da técnica, ou ainda à cegueira em se a considerar algo neutro. Fala-se também de uma representação corrente de técnica, dita “antropológica e instrumental”, a qual serve de ponto de partida para a interpretação ontológica (HEIDEGGER, 1954/1962, p.6). No esforço de identificar os autores e rastrear as correntes com as quais Heidegger dialoga sob o véu do anonimato foi possível enfim ganhar uma visão de conjunto não apenas do meio intelectual ao qual reage a sua abordagem peculiar da questão da técnica, mas também do contexto mais amplo em que se deu o próprio nascimento desta.

A relevância do tópico histórico para os debates mais recentes acerca da técnica é endossada pelo fato, frequentemente constatado em diversas regiões fenomênicas, de que aquilo que participa na gênese de algo persiste até os momentos tardios de seu devir. Sendo assim, pretende-se aqui iluminar os elementos que configuram o campo atual da Filosofia da Técnica por meio de uma revisão tanto das condições históricas de nascimento da sua questão definidora quanto das posições teóricas primeiramente assumidas diante desta. Espera-se, por fim, que essa revista histórica possa contribuir para situar o pensamento de Hans Jonas entre as linhas-mestras que emanam da tradição.

A QUESTÃO DA TÉCNICA E O PROBLEMA COM A MÁQUINA

A questão da técnica teve o seu nascimento com a difusão da técnica maquínica pela Europa ocidental no início do século XIX. Essa declaração de nascimento num momento relativamente recente e bem preciso subentende que a questão da técnica, tal como está posta desde então até os dias de hoje, não equivale à interrogação “o que é a técnica?”. Interrogação semelhante já havia sido feita na Antiguidade por Platão e Aristóteles em suas considerações sobre a téchne1. No entanto, o que faltava ali e parece ser fundamental para a formação da questão

1 A interrogação acerca da téchne entre os gregos está ligada, em linhas gerais, ao esforço de hierarquização das

atividades humanas conforme o seu valor cognitivo. Trata-se de saber a que distância as téchnai se encontram, por um lado, do conhecimento científico (epistème) e, por outro, da empiria característica dos ofícios manuais. Também importa determinar se a formação do caráter ou exercício das virtudes éticas deixa-se pensar como técnica ou depende em algum grau de tal atividade. Em Platão encontramos a interrogação acerca da técnica nos diálogos Íon

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propriamente dita é o sentido de urgência. Este implica a convicção de que a técnica é um fator decisivo para a sorte do gênero humano sobre a terra; a convicção de que a história da humanidade está estreitamente entrelaçada com a do desenvolvimento técnico e, portanto, pensar a técnica é tarefa de primeira hora.

Da Antiguidade à Modernidade ocorreram mudanças significativas não somente no interior do fazer técnico, mas também, e paralelamente, no modo como o recepcionou o círculo restrito dos eruditos e pensadores. Em Maquinismo e filosofia examina Pierre-Maxime Schuhl a lenta transformação mental concluída no século XVIII graças a qual as artes mecânicas foram resgatadas do lugar depreciado a que até o fim da Idade Média haviam sido relegadas na oposição com as artes liberais. À luz da nova mentalidade, as artes mecânicas não mais deveriam ser identificadas com o penoso e rotineiro labor manual das classes servis, nem mais inteiramente dissociadas da investigação teórica e dos lazeres estudiosos, atividades consideradas pela tradição como as verdadeiramente dignas de um homem. Os moinhos de água e de vento, as soluções de engenharia obtidas por Leonardo da Vinci e as navegações de longa distância convenciam os sábios de que a ocupação com instrumentos e aparatos, embora envolvesse os procedimentos tateantes típicos de toda aplicação prática, não redundava na ignorância acomodada e autossuficiente dos ofícios rotineiros e, longe de atar os homens às tarefas materiais da vida, permitia-lhes um maior alívio de seu fardo (1938/1955, pp.39-45).

Surge assim a ideia de uma ciência capaz de diminuir os sofrimentos humanos através do melhoramento das técnicas, o ideal por assim dizer de “uma magia natural e benfazeja”. Essa é a ideia de Francis Bacon, para quem o conhecimento da natureza e de suas leis dará aos homens o poder de subjugá-la; do mesmo Bacon que lhes quer ensinar a serem “os obreiros de sua própria fortuna, os artesãos de seu destino”, e que “sonha com uma Nova Atlântida”, na qual haveria “mil inventos maravilhosos” a tornar “a vida mais fácil e larga” (SCHUHL, 1938/1955, p.115f). Tal é também a ideia de Descartes, que embora baseie num “idealismo matemático” a sua concepção da nova ciência, entrevê nesta uma orientação análoga à de Bacon: aplicar as noções gerais da física a problemas particulares com vista ao bem de todos, buscar uma “filosofia prática”, pela qual as forças e os elementos conhecidos pelo homem encontrarão um emprego benéfico (SCHUHL, 1938/1955, p.50).

No entanto, o otimismo crescente com que a atividade técnica foi recepcionada ao longo de quase quatro séculos começou a arrefecer com o nascimento da grande indústria no século XIX. Quando as máquinas – esses mecanismos de funcionamento autônomo que ainda numa

(2011), Górgias (1972a, 449d-452a, pp.279-289) e Philebo (1972b, 56b-58d, pp.403-411). Em Aristóteles, ela figura, entre outros, no capítulo primeiro do livro Alfa da Metafísica (1989, 981a) e no sexto livro da Ética a Nicômaco (1998, 1139a-1140b, pp.26-36).

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fase incipiente de desenvolvimento haviam feito Descartes sonhar com a liberação dos homens dos trabalhos pesados (SCHUHL, 1938/1955, pp.51f;116) – justamente quando as máquinas atingiram um nível de aprimoramento suficiente para o seu emprego generalizado, irromperam fenômenos que contrabalançavam os ganhos alcançados e abrandavam as expectativas nelas depositadas havia muito tempo. Nesse contexto de expansão da máquina e da indústria erguem-se as primeiras vozes que, ao assumirem para si a tarefa de sanar as mazelas do progresso técnico, buscam consequentemente entender as causas do problema a partir de uma reflexão sobre o fenômeno técnico em geral.

Pode-se dizer, portanto, que a questão da técnica, enquanto inquirição teórica plenamente consciente da importância de seu objeto para a sorte da humanidade, nasce em meio à urgência em resolver dificuldades concretas suscitadas pelo progresso técnico. Antes do infortúnio das máquinas no século XIX havia entre pensadores da Modernidade apenas um deslumbramento diante das possibilidades técnicas, o que é por certo necessário, mas não suficiente para disparar um questionamento sério e radical. Com efeito, a técnica só se tornou uma questão para os filósofos porque a máquina havia se tornado um problema para a gente comum.

A AMBIGUIDADE DA TÉCNICA NA ERA DAS MÁQUINAS

Mas em que consiste propriamente o problema que deu nascimento à questão da técnica? Esse problema, evidenciado com a expansão das máquinas no século XIX, poderia muito sensatamente ser intitulado o problema da ambiguidade da técnica. Por um lado, o largo emprego das máquinas preencheu a expectativa, que alguns visionários do passado haviam depositado nelas, de que facilitariam as tarefas materiais da vida. Elas levaram a um incremento sem precedentes da produção de bens úteis e à diminuição de seu preço, tornando possível o abastecimento de um grande contingente populacional. Um dado levantado pelo economista político Werner Sombart revela o efeito quase prodigioso da introdução massiva das máquinas na vida europeia no século XIX. Desde o início da história europeia no século VI até o ano 1800 – portanto em doze séculos – a Europa jamais havia ultrapassado a cifra de 180 milhões de habitantes. De 1800 a 1914, no período aproximado de um único século, a população europeia salta de 180 a 460 milhões (SOMBART apud ORTEGA Y GASSET, 1930/2016, p.120).

Essa abrupta proliferação de homens deve-se à diminuição da taxa de mortalidade conjugada ao aumento da de natalidade, ambos frutos da facilitação do acesso de bens à população; em suma: o maquinismo foi um fator decisivo, senão o principal responsável pelo crescimento do nível de vida da população europeia. Pense-se apenas que um homem de classe

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baixa habitando um centro urbano europeu no século XIX tem acesso a utensílios e víveres que na Idade Média estavam vedados a muito fidalgo, ou então noutros tempos eram privativos de uma elite.

Por outro lado, a expansão inédita das máquinas trouxe uma série de consequências desfavoráveis, que naturalmente não haviam sido previstas e para as quais tampouco se havia preparado. Tais prejuízos são percebidos com nitidez crescente no curso do século XIX, manifestando-se nos níveis material, social e moral. Ficaremos em apenas três exemplos dessas consequências indesejáveis a fim de dar uma ideia da multidimensionalidade do problema com a máquina.

A primeira e mais rapidamente sentida consequência do maquinismo foi a desocupação maciça dos trabalhadores concomitantemente a um incremento sem precedentes na escala de produção. Resultado: muitos bens despejados sobre um mercado com poucos consumidores, ou seja, crise de superprodução.

Outra consequência, pouco menos vistosa, foi a transformação no modo como desde há milênios se trabalhava. Houve, mesmo, uma degradação do trabalho. Diferente do artesanato, em que o artefato obedece e se conforma aos movimentos do trabalhador, no trabalho fabril este tem de se ajustar ao funcionamento do mecanismo, convertendo-se ele próprio numa espécie de autômato.

Mais grave é uma consequência insidiosa do maquinismo que parece nascer tão somente da natureza deste, sem maior participação de contingências exteriores como legislação trabalhista em vigor ou a ganância do patronato: A expansão das máquinas dá-se em um processo imperioso e irrefreável, o qual avança em cadeia sobre todos os níveis de produção, transformando paisagens e ameaçando ecossistemas até então intocados. Contudo, a onipresença paisagística da técnica esconde o fato ainda mais drástico de que as máquinas logo se tornaram o pressuposto da vida moderna, o fator sem o qual teria sido impossível a multiplicação sem precedentes da população e a manutenção desta num nível elevado de vida. Com a expansão das máquinas tem-se pela primeira vez a clara impressão de que os inventos são para os homens tão cogentes quanto uma necessidade natural, algo por relação ao qual eles se sentem em dependência vital. Se repentinamente as máquinas fossem suprimidas ou parassem de funcionar, o grande contingente populacional que se nutre e se mantém por elas teria a sua vida literalmente impossibilitada.

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Eis então a ambiguidade da técnica tornada patente com a expansão da máquina no século XIX. A máquina garante um crescimento inédito na quantidade e na qualidade de vida da população, enquanto lhe traz prejuízos e dificuldades igualmente inéditas, cujos exemplos são as crises de superprodução, a degradação do trabalho e a dependência vital em relação à técnica. Mas como o problema da ambiguidade refletiu-se na questão da técnica? Ou mais precisamente: Quais posições foram assumidas no debate teórico sobre a técnica suscitado pelo problema com a máquina?

Certas posições diante da questão da técnica estão bem delineadas desde praticamente as primeiras horas de seu nascimento. Esses autênticos tópoi se formam a partir não apenas do modo como o problema da técnica é intelectualmente elaborado, mas também por uma decisão prévia, e por vezes tácita, acerca de quais dentre as suas múltiplas dimensões receberão a ênfase. É notável a sua tendência de cristalizarem-se como pares de oposição que exercem uma atração polarizadora sobre as discussões mais recentes acerca do tema, constituindo assim uma espécie de subsolo de toda filosofia da técnica.

Para a descrição da posição mais antiga, o trabalho supracitado de Pierre-Maxime Schuhl fornece os principais elementos (1938/1955, pp.60-90). Esse tópos se formou praticamente no e com o nascimento da questão da técnica (quando ainda não havia sido cunhado o termo “filosofia da técnica”) e seus maiores porta-vozes foram os escritores ditos utópicos ou românticos, como Owen, Fourier, Michelet, Carlyle e Ruskin. Eles são a principal voz a alertar contra aqueles malefícios mais visíveis e imediatos do maquinismo, geralmente de cunho social e exemplificados na desocupação em massa e nas crises de superprodução. O essencial da posição inaugurada por esses escritores é o pressuposto de que a técnica em si não é nem um bem nem um mal; bons ou maus são os homens que a criam e utilizam, ou ainda as práticas sociais em que o fazer técnico se escora. Por isso, as suas reflexões estão investidas do afã pedagógico e legislador de reformar o homem e a sociedade, dos quais em última instância se originaria o problema da técnica. Também poderíamos chamar essa posição humanista, uma vez ela faz crer na possibilidade de purgar o desenvolvimento técnico de seus aspectos inumanos e de guiá-lo conforme ideais que pertencem à essência humana, como os de bem e de justiça.

O antípoda do humanismo consolidou-se pouco mais tarde por força dos acontecimentos extremos da Primeira Guerra Mundial e da Crise de 1929. Seu representante emblemático é Oswald Spengler, mas pode-se dizer que já Karl Marx e Ernst Kapp (quem cunhou o termo “filosofia da técnica”) incorrem em tal posicionamento. É possível também identificar certas afinidades de Heidegger com tal perspectiva. Seu pressuposto básico é o de que a técnica, sobretudo na forma moderna do maquinismo, desenvolve-se num processo impessoal que escapa

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à alçada deliberativa e decisória dos homens, ganhando por isso o caráter de um destino. Dada a autonomia do acontecer técnico, a atitude sensata diante deste seria buscar apreender a dinâmica intrínseca de seu curso, prevenindo contra o esforço baldado e enganador de guia-lo segundo as melhores intenções humanísticas. Esse tópos é comumente chamado fatalista2.

Humanismo e fatalismo nem sempre equivalem, respectivamente, a otimismo e pessimismo, termos também amiúde utilizados para designar posições assumidas diante da técnica. Se entendermos otimismo como a convicção íntima de que o curso vindouro de acontecimentos será o melhor possível para nós e pessimismo como a convicção contrária, então nem todo humanismo é otimista e nem todo fatalismo é pessimista. O humanista, que se esforça por disciplinar o uso da técnica, não possui necessariamente a certeza de que seus esforços pedagógicos ou políticos levarão ao bom fim desejado. O fatalista, convencido por sua vez da existência de uma dinâmica própria da técnica, pode perfeitamente acreditar, como Marx e Kapp, que contrariamente à catástrofe total o desenvolvimento técnico conduzirá “fatalmente” à redenção social ou ao aperfeiçoamento da humanidade.

Mas há uma possibilidade de compreender otimismo e do pessimismo que os torna correspondentes, respectivamente, do humanismo e do fatalismo. Pois em sentido básico, o otimismo constitui-se pela convicção de que por mais duro e desanimador o diagnóstico da situação atual pode-se fazer alguma coisa para transformá-lo, isto é, o otimista acredita que ações individuais ou coletivas têm o poder de influenciar o curso dos acontecimentos históricos. Em contrapartida, o pessimismo fundamental reside em achar que o movimento histórico, em suas linhas essenciais e definitivas, é completamente indiferente ao agir humano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

2 No núcleo do pensamento de Spengler sobre a técnica, cujos registros se encontram no capítulo final de A

decadência do Ocidente (1918) e em O homem e a técnica (1931), está a ideia de que a vontade de dominar a natureza está a

tal ponto entranhada na alma ocidental que a consciência temerosa dos potenciais efeitos devastadores do maquinismo de nada adiantaria para frear a expansão deste e impedir a consumação do destino trágico dessa cultura. Marx e Kapp também enxergam uma necessidade intrínseca no desenvolvimento da técnica, ainda que sob a perspectiva positiva de um melhoramento da humanidade. O primeiro reconhece no maquinismo, cuja expansão é descrita no Capital como um processo em cadeia (1867/1968, cf. O desenvolvimento da maquinaria, pp.391-407), um momento de aguçamento do antagonismo social e um fator de superação da contradição interior ao capitalismo na marcha inexorável rumo ao apaziguamento definitivo da sociedade. O segundo enxerga no advento das máquinas um ponto alto do caminho evolutivo pelo qual o homem, conhecendo-se progressivamente por analogia com os seus próprios artefatos, atinge a autoconsciência (1877). Heidegger, por sua vez, recupera a ideia de destino em sua interpretação da atual época da técnica, encarando-o como um modo predominante de compreensão basal dos entes, um modo de “desencobrimento” sobre o qual os homens não decidem (1954/1962, p.24ff). De resto, Heidegger pensa que a tendência dominante entre os homens de se representarem como mestres da técnica é na verdade um sintoma de que ela ameaça lhes escapar do controle (1954/1962, p.6f).

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É do tipo mais básico de otimismo que precisa em boa dose a reflexão sobre a técnica, sobretudo nesses tempos em que esta exibe um poder inédito na figura da biotecnologia e da informática. Pois aceitar – como no passado o fizeram alguns dos primeiros que depararam com o maquinismo – que a técnica é um ser independente de nós, portador de sua própria dinâmica, significa tirar de si e de seus congêneres o fardo da responsabilidade perante as desgraças que dela possam advir; significa, portanto, anular-se como sujeito ético. Do extremo oposto a essa tendência algo perversa de lavar as mãos espreita por sua vez o perigo de os humanistas mais propensos à ação exagerarem na dose de otimismo ao ponto de inebriarem-se com a própria capacidade realizadora e com os seus ideais-mestres, precipitando-se num voluntarismo engajado que já não pode mais assumir o distanciamento requerido para um questionamento sério da técnica.

Em O princípio responsabilidade assume Hans Jonas o posicionamento humanista com aquela carga de otimismo indispensável às reflexões minimamente sadias sobre a técnica. A tentativa de encontrar uma ética para a civilização tecnológica seria completamente descabida, se partisse da convicção fatalista de que a técnica, e com ela a história, segue um caminho inapelável aos esforços do homem. Tal tentativa, pois, não pode senão radicar no pressuposto de que o futuro depende de alguma forma de decisões e ações feitas no âmbito da liberdade humana. Isso não leva porém ao exagero otimista que desconhece os limites do agir humano diante de grandes movimentos ou processos históricos. Jonas parece assimilar também parte dos ensinamentos emanados do fatalismo, ao reconhecer que a técnica moderna adquire uma ordem de grandeza de tal modo inédita, envolvendo uma longa cadeia de efeitos cumulativos e a impessoalidade de agentes e ações, que se projeta para fora do campo de visão e da esfera de ação dos indivíduos (1979/1984, pp.14-30). Talvez caiba a um estudo mais detido mostrar em que medida a busca de Jonas por uma ética, ainda que não mais circunscrita ao estreito raio de ação individual, seria também uma resposta às colocações fatalistas sobre a dinâmica impessoal e coercitiva da técnica moderna. Teríamos aqui mais um momento no debate iniciado há mais de dois séculos com a expansão das máquinas.

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Referências bibliográficas

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