A Literatura Clássica
ou os Clássicos na Literatura:
Presenças Clássicas
nas Literaturas de Língua Portuguesa
Volume III
coordenação científica: Cristina Pimentel e Paula Morão
Paula Morão
2
Cristina Pimentel | Paula Mourão
A Literatura Clássica
ou os Clássicos na Literatura:
Presenças Clássicas
nas Literaturas de Língua Portuguesa
Volume III
A Literatura Clássica ou os Clássicos na Literatura
Índice
Cristina Pimentel | Paula Morão, Palavras prévias. . . 17
Maria do Socorro Fernandes de Carvalho,
Introdução ao Estudo do Conceito Retórico de Modelo . . . 9
Maria Luísa de Oliveira Resende, Leituras renascentistas de Luciano:
o prólogo da Comédia Aulegrafia de Jorge Ferreira de Vasconcelos. . . 25
Ricardo Nobre, “E perdoe-me a ilustre Grécia e Roma”:
sobre história antiga n’Os Lusíadas, de Luís de Camões. . . 37
Luís Miguel Ferreira Henriques, A Cena Típica da Cruz. . . 51
Maria do Céu Fraga, Um poema a quatro mãos: Faria e Sousa comentador e poeta. . . 65
Marcelo Lachat, A consolação da poesia em
sonetos morais de D. Francisco Manuel de Melo. . . 81
Arnaldo do Espírito Santo | Cristina Costa Gomes, Presença dos Clássicos nas
Cartas de Tomás Pereira, S.J. (1646-1708). . . 93
Zulmira Santos, As margens do texto e a herança clássica:
a segunda edição de O Feliz Independente (1786) de Teodoro de Almeida. . . .107
Cíntia Martins Sanches, A produção e a tradução de tragédias em decassílabo português e o estilo tradutório de Cândido Lusitano para o Édipo de Sêneca . . . 123
Ana Rita Figueira, Os Antecedentes da Guerra de Tróia em
A Bella Helena de Mendes Leal. . . 135
Abel do Nascimento Pena, Eloquência e liberdade: Demóstenes e a Oração da Coroa nas versões de Latino Coelho e de Vieira de Almeida. . . 147
Ana Paula Pinto, A presença da Antiguidade Clássica
nos relatos memorialísticos da ficção queirosiana . . . 169
Miguel Filipe Mochila, Presença e vontade do classicismo em Eugénio de Castro. . . 193
Patrícia Soares Martins, A Arena Pagã do Barão de Teive: Para uma Leitura
Paula Morão
6
Pedro Braga Falcão, Quando regressam os deuses?
Para uma teologia das odes de Ricardo Reis. . . .221
António Cândido Franco, O Espírito Bárbaro Cristão e o Demónio Ciceroniano:
Aspectos do São Jerónimo de Teixeira de Pascoaes . . . .237
Cristina Abranches Guerreiro, Ecos de Dáfnis e Cloe em
A Via Sinuosa de Aquilino Ribeiro . . . 245
Marina Pelluci Duarte Mortoza, Safo na Grécia, Faustino no Brasil:
a solidão da noite alta. . . 253
Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, Auroras e manhãs homéricas no Sertão de Rosa (I). . . 267
Maria José Ferreira Lopes, Cuius est ueritas?
Dois retratos memorialistas pós-modernos da imperatriz Agripina. . . 277
Isabel Pires de Lima, Vergílio Ferreira: Declinações da presença dos clássicos. . . 299
Rosa Maria Goulart, Vergílio Ferreira: a cultura dos “poetas mortos”. . . 313
Ana Seiça Carvalho, Sobre o envelhecimento: visões de Marco Túlio Cícero
e de Vergílio Ferreira num esboço comparatista . . . 323
José Pedro Serra, Enquanto um mundo cai, Um deus passeando pela brisa da tarde. . . 333
Francisco Saraiva Fino, Catástase e Ruína -- Entre Synésius de Cirene
e João Miguel Fernandes Jorge. . . 345
José Cândido de Oliveira Martins, Metamorfoses de Narciso na poética de Nuno Júdice. . . 355
Rosa Costa, O regresso aos clássicos em “Canto marítimo” e “A infinita fiadeira”. . . 367
Ana Isabel Correia Martins, Uma Viagem à Índia:
itinerâncias melancólicas de um (anti)-herói clássico. . . 377
Cristina Costa Vieira, A Rocha Branca, de Fernando Campos:
uma imagem heterodoxa de Safo?. . . 389
Testemunhos
Teolinda Gersão . . . 403
Lídia Jorge. . . 409
“E perdoe-me a ilustre Grécia e Roma”:
sobre história antiga n’Os Lusíadas, de Luís de Camões
Ricardo Nobre*
Desde cedo, os comentadores d’Os Lusíadas preocuparam-se em identificar as fontes de que Camões se serviu para escrever a obra. Por conseguinte, são eles que mostram que o con-fronto das acções protagonizadas pelos Portugueses com as dos Antigos foi um tópico usado por autores como Garcia de Resende, António Ferreira, Fernão Lopes de Castanheda, João de Barros ou Duarte Pacheco Pereira. Com efeito, este autor, no Esmeraldo de situ orbis (IV 3), admitia que “muita parte dos famosos feitos de Alexandre Magno e dos Romanos ficam muito
abaixo em respeito desta santa e grande conquista”1. Se, na Antiguidade, não houve general
que chegasse mais perto da Índia que Alexandre nem império mais extenso do que o de Tra-jano, eles tornam-se os melhores exemplos para serem usados na argumentação do poeta qui-nhentista, reivindicando o seu silenciamento diante do assunto proposto, que lhes é “mais alto”. No entanto, a ordem “Cale-se de Alexandro e de Trajano / A fama das vitórias que
tive-ram”2será muitas vezes quebrada ao longo do poema3, de tal maneira são comuns as
A Literatura Clássica ou os Clássicos na Literatura
*Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Estudos Clássicos | rnobre@letras.ulisboa.pt 1Palavras recordadas por Epifânio da Silva Dias (1916: ad loc.), a propósito da terceira estrofe d’Os Lusíadas. 2Lus. 1.3.3-4 (todas as citações poéticas deste ensaio provêm d’Os Lusíadas). Os desafios da edição da obra camoniana
são conhecidos (Gonçalves 2002: 197-257): utilizo a edição de Costa Pimpão (Camões 2000), comparada com a edi-ção príncipe da Biblioteca Nacional (Camões 1572) e com a de Epifânio da Silva Dias (Camões 1916), actualizando a ortografia. As dúvidas foram resolvidas pelo vocabulário de Rebelo Gonçalves (1966), que segui sem escrúpulo.
3Tamen (2015: 19) recorda, aliás, que “o Canto X é nem mais nem menos que uma reescrita céptica do Canto I, quer
dizer, uma recaída do Canto I: e tudo começa de novo, sem que [...] nada se tenha esquecido ou aprendido”. Sobre o tema da superação, v. Rocha Pereira (2012: 110-111).
aproximações dos feitos portugueses aos dos antigos gregos e romanos – dimi-nuindo-lhes embora a importância em face do “peito ilustre lusitano”, esta é uma forma eficaz de definir e explicar o alcance do sucesso dos Portugueses, pelo recurso
a exemplos que todos admitiam como magníficos4. Analisando exclusivamente as
ocorrências em que personalidades históricas da Antiguidade são mencionadas ou aludidas por perífrases ou antonomásias n’Os Lusíadas, pode adiantar-se este con-junto de dados: predominam as personalidades romanas e, por consequência, as fon-tes da historiografia latina, em particular Tito Lívio; as personalidades históricas gregas presentes n’Os Lusíadas não obrigam ao conhecimento dos historiadores gregos, pois, de modo geral, foram os escritores romanos que fizeram a sua fama.
Por outro lado, fazendo valer os quatro planos em que Jorge de Sena5 estrutura a
obra, pode indicar-se o seguinte: as menções feitas no plano do poeta têm a parti-cularidade de se situar no início (proposição e dedicatória), no meio (termo do canto V) e no fim do poema; é no referido passo do canto V que se situa a única vez em que os Portugueses são vistos negativa e criticamente em comparação com a
Antigui-dade6; no plano mitológico, percebe-se que os deuses (Júpiter, Vénus e Baco)
de-batem o futuro dos Portugueses exclusivamente em função do passado protagonizado pelos Romanos; previsivelmente, as comparações entre Portugueses e Antigos si-tuam-se de preferência no plano da história de Portugal, tendo por narradores Vasco da Gama (nos cantos III e IV) e Paulo da Gama (canto VIII); há também uma ocorrência casual no plano encaixado da história no decorrer da viagem (por ocasião do
episó-dio dos Doze de Inglaterra, no canto VI7) e, inseridas no episódio da Ilha dos
Amo-res, as profecias da ninfa (que pertencem tematicamente à história de Portugal, embora, estruturalmente, Jorge de Sena (1980: 119) as considere no plano dos
38 Ricardo Nobre
4Esta formulação não ignora que o contraponto entre exemplo grego e romano tem origem em Plutarco. A epopeia
ca-moniana mantém esse equilíbrio (Pereira 2011: 928), mas acrescenta-lhe figuras exemplares da história de Portugal.
5Sigo a proposta de Jorge de Sena [1980], originalmente publicada em 1961.
6Trata-se da veemente censura ao desinteresse dos Portugueses pelas letras. A crítica surge também na Elegia V
(ed. H. Cidade): “Nunca Alexandre ou César, nas confusas / Guerras, deixaram o estudo em breve espaço; / Nem armas da ciência são escusas” (Camões 1985b: 221, vv. 1-3); cf. Ode VII (ed. H. Cidade): “Mas altos corações, dinos de império, / Que vencem a Fortuna, / Foram sempre coluna / Da ciência gentil: Octaviano, / Cipião, Ale-xandre e Graciano, / Que vemos imortais” (Camões 1985b: 143, vv. 15-21).
76.68.7-8. Sobre os serviços que Magriço prestou, o narrador Vasco da Gama conta: “Um francês mata em campo,
que o destino / Lá teve de Torcato e de Corvino”. As referências explícitas a Tito Mânlio Torcato (Liv. 7.9-10) e Marco Valério Corvino (Liv. 7.26) justificam-se pelo duelo que cada um deles travou contra um inimigo em maior van-tagem inicial porque mais robusto e corpulento.
deuses8) sustentam várias comparações entre os senhores do Oriente e os Gregos e
Romanos. O modelo convocado para a expressão comparativa tem em conta principal-mente, mas não só, a natureza das acções guerreiras, a extensão do império e o poder mi-litar alcançado pelos Portugueses. Por fim, outro elemento relevante é o facto de as aproximações à história antiga serem tematicamente coerentes em cada uma destas di-visões, ou seja, no plano mitológico é mais comum uma referência generalizante do tipo Portugueses / Romanos (ambos sob a égide dos mesmos deuses) e no plano da história de Portugal uma particularização dos indivíduos (por exemplo, D. Afonso Henriques compa-rado a César ou Alexandre9; D. Nuno Álvares Pereira, a Cipião). A isto se pode chamar decoro.
Atendendo a estes pontos preliminares, o presente ensaio procura estudar, nos con-textos ligados ao plano da história de Portugal, os momentos em que os heróis por-tugueses são comparados a personalidades históricas antigas, atitude que se
surpreende desde o início da obra10. Com efeito, no oferecimento do poema a D.
Se-bastião, o poeta apresenta alguns dos protagonistas da história de Portugal que em nada ficam atrás de heróis idênticos de outras nacionalidades: “Pois se a troco de Carlos [...] / Ou de César, quereis igual memória, / Vede o primeiro Afonso, cuja lança / Escura faz qualquer estranha glória” (1.13.1-4). O tertium comparationis entre Júlio César e D. Afonso Henriques está ligado à habilidade militar, metonimicamente su-gerida pela lança, mas a perícia guerreira é a justificação para escurecer a glória de estrangeiros, ou seja, o que está em causa é ainda o silêncio que deve cobrir a memória do passado (a que os já mencionados “cesse” e “cale-se” dão expressão).
“E perdoe-me a ilustre Grécia e Roma”: sobre história antiga n’Os Lusíadas, de Luís de Camões
8O ensaísta argumenta que, quando são relatados, não constituem referências ao passado, mas ao futuro. Trata-se
de comparações genéricas, feitas por Vénus (dirigindo-se a Cupido), entre as “lusitânicas fadigas” (9.38.1) e as “antigas / Obras de meus romanos” (9.38.5-6, com que se relaciona a Eneida, 1.657-688); das profecias feitas pela Ninfa a respeito do futuro dos portugueses no Oriente, que merece demorada descrição, sendo nomeadas várias per-sonalidades (governadores, vice-reis e outros guerreiros) ligadas ao sucesso português na Índia e suas acções mi-litares. O principal é Duarte Pacheco Pereira, o “grão Pacheco, Aquiles lusitano” (10.12.4), inigualado “no márcio jogo” (10.19.5), a propósito de quem se enunciam as palavras que constituem o verso que dá título a este ensaio (10.19.8), antes de ser comparado a Milcíades (vencedor dos Persas, em Maratona), Leónidas (herói das Termó-pilas; em 10.21.3 fala-se em “quatro mil lacedemónios”, em vez dos trezentos da História), Horácio Cocles (len-dário) e Quinto Fábio Máximo Cunctator: guerreiros antigos que conseguiram vitórias contra as primeiras previsões (sobre eles e sobre as fontes historiográficas antigas, v. Gonçalves 2002: 126). O vice-rei da Índia D. Lourenço de Almeida, “Outro Ceva” (10.30.7: centurião das hostes de Júlio César na guerra contra Pompeio; cf. Suetónio, Vida
de César, 68), é comparado pela Ninfa, em nível de igualdade, com “qualquer romano antigo” (10.26.4). 9Borges de Macedo (1979: 105-106) lembra que a comparação de D. Afonso Henriques com Alexandre Magno vem
também em Jorge Ferreira de Vasconcelos. O macedónio é comparado, com desvantagem, a D. João III no so-neto 57 (ed. H. Cidade): “sustentar, mais que adquirir se estima” (Camões 1985a: 219).
Apesar dos sucessos militares que o tornaram famoso, o primeiro monarca voltará a ser evocado no canto III a propósito da enorme derrota frente ao adversário: é a oca-sião de evocar Pompeio Magno. Também este teve uma carreira militar exemplar, es-tendeu a sua glória por vários espaços geográficos e povos, acabando por ser derrotado por Júlio César em Farsalo ou, como diz perifrasticamente o poema
ca-moniano, “campo emátio”11. Em comum, Afonso e Pompeio têm ainda o facto de o
vencedor ser seu familiar por afinidade: Pompeio Magno tinha sido casado com a filha de Júlio César, e a filha de D. Afonso Henriques, D. Urraca, casara com o rei de Leão, Fernando II, em 1165.
Epifânio da Silva Dias encontra reproduzidas nas estrofes 3.71-73 o discurso de Pom-peio no livro II de Farsália. Com efeito, a acumulação das referências toponímicas da ex-tensão geográfica, a descrição dessas regiões, montanhas e rios por meio de adjectivos meteorológicos e mitológicos encontram-se nesse poema de Lucano. Recordo unica-mente a última destas três estrofes:
E posto, enfim, que desd’o mar de Atlante Até o cítico Tauro, monte erguido, Já vencedor te vissem, não te espante Se o campo emátio só te viu vencido; Porque Afonso verás soberbo e ovante Tudo render, e ser despois rendido. Assi o quis o conselho alto celeste12,
Que vença o sogro a ti e o genro a este.
Na comparação com o modelo antigo, Afonso não tem pior fortuna, pelo que fica ga-rantida a superioridade do caso português. Com efeito, esta é a estratégia utilizada para que a gente lusitana não seja considerada inferior aos Antigos: a comparação faz-se or-dinariamente em favor dos Portugueses, por isso, quando não podem superar os me-lhores, são evocados os piores exemplos da história antiga. Um caso do uso eficaz desse modelo encontra-se no mesmo canto III – ao mencionar D. Sancho II, rei que havia de ser deposto pelo Papa em 1245, em favor do irmão, futuro D. Afonso III, o nar-rador argumenta (3.92):
40 Ricardo Nobre
11Adjectivo derivado de Emátia, a região da Macedónia onde se situa Farsalo. A derrota de Pompeio e sua
localiza-ção são igualmente referidas na Ode IV (ed. H. Cidade; Camões 1985b: 132).
12Sobre a pontuação, v. Gonçalves (2002: 220).
Não era Sancho, não, tão desonesto Como Nero, que um moço recebia Por mulher e despois horrendo incesto Com a mãe Agripina cometia; Nem tão cruel às gentes e molesto, Que a cidade queimasse onde vivia;
Nem tão mau como foi Heliogabalo13,
Nem como o mole rei Sardanapalo.
Todas as informações consagradas a Nero são descritas por Suetónio em termos bas-tante próximos destes (Vida de Nero, 28), pelo que é necessário admitir que o biógrafo é uma das fontes de história antiga n’Os Lusíadas, ao lado de Lucano e de Tito Lívio. Com efeito, deste historiador, como já demonstrou Francisco Rebelo Gonçalves (2002: 123), há muitos exemplos de influências concretas: não só são tipicamente livianas as estratégias de figuração do chefe militar (realizando a síntese entre força e sabedoria ou prudência, capaz de antecipar acontecimentos), como da historiografia antiga virá a propensão moralista “das digressões reflexivas ou sentenciosas que se encontram es-parsas pel’Os Lusíadas”. O mesmo camonista relaciona, aliás, a matéria que estou aqui a tratar como resultado da leitura de autores como Xenofonte, Plutarco, Salústio, Tito Lívio ou Valério Máximo, concluindo que deles aprendeu Camões “a lição particular [...] sobretudo em lembranças avulsas ou a referência aos grandes exempla da tradição heróica” (Gonçalves 2002: 123).
Igualmente devedoras da leitura directa ou indirecta desses escritores são as infor-mações sobre estratégias militares, comportamentos do exército enquanto personagem colectiva e dados concretos sobre as grandes batalhas. Assim, no reinado de D. Afonso IV, depois da batalha do Salado, e em consideração ao excepcional número de tes, o poeta convoca, uns atrás dos outros, exemplos de batalhas famosas pela mor-tandade (3.116):
Não matou a quarta parte o forte Mário Dos que morreram neste vencimento, Quando as águas co sangue do adversário
“E perdoe-me a ilustre Grécia e Roma”: sobre história antiga n’Os Lusíadas, de Luís de Camões
13Sobre esta acentuação, v. Gonçalves (2002: 229). Nas redondilhas, o poeta conta sobre ele uma anedota:
“He-liogábalo zombava / Das pessoas convidadas, / E de sorte as enganava, / Que as iguarias que dava / Vinham nos pratos pintadas” (Camões 1985a: 89).
Fez beber ao exército sedento; Nem o peno, asperíssimo contrário Do romano poder, de nascimento, Quando tantos matou da ilustre Roma, Que alqueires três de anéis dos mortos toma.
Os mortos na batalha contra os Mouros são, portanto, quantificados em relação ao ele-vado número de baixas na batalha de Águas de Sêxtio (hoje Aix, na Provença), cuja fonte
principal é Plutarco14, e na batalha de Canas, sendo relativamente simples perceber em
“alqueires três de anéis dos mortos” o latim de Eutrópio (Brev. 3.11), tres modios
anu-lorum aureorum Carthaginem misit, apesar de Tito Lívio ter também um impressivo
re-lato da batalha, uma das mais marcantes da segunda guerra púnica (Liv. 21-49). Na continuação da narrativa da história de Portugal feita por Vasco da Gama ao rei de Me-linde, faz-se referência à perseguição de D. Pedro aos assassinos de D. Inês de Castro. Pretendendo vingar-se, o monarca firmou uma aliança com o rei de Castela; o “con-certo” previa que em ambos os países haviam de ser detidos os inimigos dos dois Pe-dros, tal como o pacto celebrado no primeiro triunvirato (3.136):
Não correu muito tempo que a vingança Não visse Pedro das mortais feridas, Que, em tomando do Reino a governança, A tomou dos fugidos homicidas; Do outro Pedro cruíssimo os alcança, Que ambos, imigos das humanas vidas, O concerto fizeram duro e injusto Que com Lépido e António fez Augusto.
Submete-se o rigor histórico à liberdade poética e à eficácia comunicativa, pois Octa-viano ainda não era imperador, altura em que assume o título de Augusto, mas este é um nome mais facilmente reconhecido pelo leitor.
O filho de D. Pedro I é conhecido como um monarca dominado pela paixão por aquela cuja memória Fernão Lopes havia de perpetuar como a aleivosa, D. Leonor Teles. Com efeito, D. Fernando, o “fraco rei [que] faz fraca a forte gente” (3.138.8), terá sido levado pelo “amor desatinado”, que “os peitos fortes enfraquece” (3.141.1), como revelam
42 Ricardo Nobre
14Vida de Mário, 21, onde diz que os mortos foram mais de cem mil. O acontecimento foi também relatado por Floro, 1.38.
tantos exemplos do imaginário clássico evocados: ao amor sucumbiram os míticos He-lena e Hércules, além de Ápio, Tarquínio, Marco António e Aníbal (3.140.1-4 e 141):
Do pecado tiveram sempre a pena Muitos, que Deus o quis e permitiu: Os que foram roubar a bela Helena, E com Ápio também Tarquino o viu. [...]: E pois, se os peitos fortes enfraquece Um inconcesso amor desatinado, Bem no filho de Almena se parece
Quando em Onfale15andava transformado;
De Marco António a fama se escurece
Com ser tanto a Cleopatra16afeiçoado.
Tu também, peno próspero, o sentiste Despois que ũa moça vil na Apúlia viste.
Os dois últimos acabam, assim, por configurar um grupo com Pompeio, atrás mencio-nado por outro motivo, na medida em que também os mais excelentes generais conhe-ceram grandes derrotas.
Não é importante descrever com minúcia a história de cada uma destas figuras, mas é de sublinhar que as fontes históricas para cada um desses episódios são coerentes com as que já antes foram identificadas: Tito Lívio relata como, em 450 a. C., o decênviro Ápio Cláudio se suicidou depois de acusado de ter violado Virgínia (Liv. 3.44-58), e expõe que Sexto Tarquínio, filho do rei Tarquínio Soberbo, violou a mais casta das mulheres, Lucré-cia, acto de que resultou a expulsão dos reis de Roma (Liv. 1.57-60). Epifânio da Silva Dias (1916: ad loc.) sugere que a história de Aníbal pode ter como fonte Petrarca, mas, tendo acontecido depois da batalha de Canas, outra fonte possível é de novo Tito Lívio, embora o historiador forneça menos informações sobre a jovem da Apúlia (menciona-se apenas o luxo que aí deteve Aníbal, dando tempo às tropas romanas de se reorganizarem). A história do relacionamento entre Marco António e Cleópatra tem diversas fontes, das
quais se salienta Plutarco (Vida de Marco António)17. Na verdade, no início do canto VI,
“E perdoe-me a ilustre Grécia e Roma”: sobre história antiga n’Os Lusíadas, de Luís de Camões
15Sobre esta acentuação, v. Gonçalves (2002: 231). 16Sobre esta acentuação, v. Gonçalves (2002: 229 e 233-234).
17A composição “ABC em motes” nomeia várias figuras ligadas à Antiguidade (históricas e mitológicas), entre elas,
a mesma Cleópatra, fazendo referência todavia ao momento da morte da rainha egípcia: “Cleópatra se matou, / Vendo morto a seu amante; / E eu por vós, sem ser constante” (estrofe CC, Camões 1985a: 167).
o poeta descreve os festejos e a alegria na despedida dos Portugueses de Melinde e menciona um episódio narrado pelo historiador grego. É de salientar que a alusão a Cleópatra (mencionada lageia por pertencer à dinastia de Lago) tem uma interpretação positiva, visto que o verbo “enganar” está usado em contexto que se identifica com uma brincadeira feita a Marco António, ou, como admite Epifânio da Silva Dias (1916: ad loc.), com o sentido de “seduzir” (6.2):
Com jogos, danças e outras alegrias, A segundo a polícia melindana, Com usadas e ledas pescarias
Com que a lageia António alegra e engana: Este famoso rei, todos os dias
Festeja a companhia lusitana, Com banquetes, manjares desusados, Com frutas, aves, carnes e pescados.
Este episódio insere-se, todavia, no plano da viagem, pelo que se retoma o plano da história de Portugal e o reinado de D. Fernando.
A prova de que o comportamento deste monarca foi prejudicial ao Reino encontra-se explicada pouco depois, no início do canto IV: quando o rei morre, e depois de o Conde Andeiro ter sido assassinado, D. Leonor Teles toma o partido da filha, defendendo o di-reito da esposa do rei de Castela em assumir o trono. Pelas palavras do poeta, a rainha--viúva posiciona-se contra a pátria, entregando-a ao inimigo – facto tão horrível que deve levar ao esquecimento (reactivando no poema o tópico da memória) das maiores atrocidades que aconteceram na Antiguidade Romana (4.6):
Podem-se pôr em longo esquecimento As cruezas mortais que Roma viu, Feitas do feroz Mário e do cruento Sila, quando o contrário lhe fugiu18:
Por isso Lianor, que o sentimento Do morto conde ao mundo descobriu, Faz contra Lusitânia vir Castela, Dizendo ser sua filha herdeira dela.
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18Epifânio recorda, neste passo, a síntese de Floro (2.9), mas deve ainda mencionar-se Plutarco (nas vidas de Mário e Sula).
Esta tomada de posição levaria ao combate entre as forças de D. João, mestre de Avis, e as tropas castelhanas, em Aljubarrota. Da resistência, sobressai, como exemplo que todos devem seguir, a personalidade de D. Nuno Álvares Pereira, que mobiliza as tropas com uma arenga militar típica na tradição historiográfica antiga. O seu discurso é
rece-bido como foi o de Cipião Africano19, como ficará conhecido e com quem o
condestá-vel mantém inequívocas semelhanças (4.20): Bem como entre os mancebos recolhidos
Em Canúsio, relíquias sós de Canas20,
Já pera se entregar quási movidos21
À fortuna das forças africanas, Cornélio moço os faz que, compelidos Da sua espada, jurem que as romanas Armas não deixarão, enquanto a vida Os não deixar ou nelas for perdida.
Repito que a principal fonte historiográfica sobre as guerras púnicas é Tito Lívio (22.50--53), mas, tal como recorda Epifânio da Silva Dias (1916: ad loc.), Valério Máximo (4.8.2 e 5.6.7) também narra estes acontecimentos protagonizados por Públio Cornélio Cipião. A 14 de Agosto de 1385, na batalha de Aljubarrota, do lado dos Castelhanos também combateram portugueses; não é, porém, novidade que tal aconteça, se se recordar a história de Roma (4.32):
Eis ali seus irmãos contra ele vão (Caso feio e cruel), mas não se espanta, Que menos é querer matar o irmão, Quem contra o rei e a pátria se alevanta. Destes arrenegados muitos são No primeiro esquadrão, que se adianta Contra irmãos e parentes (caso estranho), Quais nas guerras civis de Júlio <e> Magno22.
“E perdoe-me a ilustre Grécia e Roma”: sobre história antiga n’Os Lusíadas, de Luís de Camões
19O relevo dos Cipiões para o engrandecimento de Roma é reconhecido no soneto 52 (ed. H. Cidade), em cuja
pri-meira estrofe se lê que “Os reinos e os impérios poderosos / Que em grandeza no mundo mais cresceram, / Ou por valor do esforço floresceram, / Ou por varões nas letras espantosos” (Camões 1985a: 216).
20Valério Máximo, 4.8.2.
21Pelos argumentos de Cecílio Metelo.
Colocando a pátria acima de todos os interesses pessoais, o narrador lança uma após-trofe aos antigos e célebres traidores – Sertório, Coriolano e Catilina (4.33):
Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano, Catilina, e vós outros dos antigos Que contra vossas pátrias com profano Coração vos fizestes inimigos: Se lá no reino escuro de Sumano Receberdes gravíssimos castigos, Dizei-lhe que também dos Portugueses Alguns tredores houve algũas vezes.
Apesar de a principal fonte antiga sobre a conjuração de Catilina ser a acusação de Cí-cero, Camões, aparentemente, está mais próximo de Salústio (Bellum Catilinae). Seria de esperar que, em defesa dos valores portugueses, se recordasse, por exemplo, que Cí-cero nega a Catilina o título de romano, pois um cidadão de Roma nunca atentaria con-tra a sua pátria. Os testemunhos das oucon-tras histórias são Tito Lívio (2.39-40) sobre Márcio
Coriolano (que veio a mover guerra contra Roma) e Plutarco sobre Sertório23,
persona-lidade que, quando referida noutros contextos, assume um protagonismo positivo, pois colocou-se contra Roma do lado da causa lusitana.
Finalmente, pelo interesse das fontes de que Camões se terá servido, recordo um topos bastante famoso na tradição historiográfica clássica: o sacrifício pela pátria. Codro, Ré-gulo, Cúrcio e a família dos Décios são exemplos de heróis que entregaram a vida por uma causa superior, sendo evocados na celebração do cativo de Fez. No reinado de D. Duarte, a derrota das tropas lideradas pelo infante D. Henrique em Tânger conduziu à de-tenção de diversos nobres portugueses: a sua libertação estava prometida se Portugal en-tregasse Ceuta aos Mouros e, como penhor da promessa do irmão, D. Fernando ficou refém. Dada a importância daquela praça, Ceuta manteve-se portuguesa, e D. Fernando permaneceu o resto da vida em cativeiro – recebendo o título de “Infante Santo”. N’Os
Lusíadas, o episódio é assim descrito (4.53):
Codro, porque o inimigo não vencesse, Deixou antes vencer da morte a vida, Régulo, por que a pátria não perdesse,
46 Ricardo Nobre
23Na Vida de Sertório.
Quis mais a liberdade ver perdida: Este, porque se Espanha não temesse, A cativeiro eterno se convida:
Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto, Nem os Décios leais fizeram tanto.
Se, no exemplo anterior, Camões se terá afastado do texto de Cícero (ignorando-o, por-ventura), aqui o orador pode ser a sua principal fonte, mesmo que por via indirecta: “Quando os Dórios iam invadir a Ática,” – lembra Epifânio da Silva Dias (ad loc.) – “o oráculo predisse-lhes que ficariam vencedores, se não matassem o rei daquele país. [...] Codro, último rei de Atenas, sacrificando-se pela pátria, entrou disfarçado no acam-pamento inimigo e aí foi morto”, de acordo com as Tusculanas (1.48.116). Do mesmo modo, pode encontrar-se referência ao cônsul Atílio Régulo no De Officiis (1.39): “O cônsul Atílio Régulo estando preso em Cartago, foi enviado a Roma pelos Cartagineses a persuadir ao senado que entregasse os cativos que lá tinham: o qual chegado a Roma aconselhou com instância ao senado que nem cativos entregasse nem a paz se con-sentisse; para o que soube dar tais razões que o senado movido delas outorgou o pare-cer de Régulo” (Dias 1916: ad loc.).
Havendo outros momentos que correspondem à questão aqui levantada, não a proble-matizam, podendo dizer-se que o seu tratamento poético e retórico é semelhante e que não há inovações quanto à elucidação das fontes – assuntos a que os comentários de Faria e Sousa (1972), Epifânio da Silva Dias (Camões 1916), Costa Pimpão (Camões
2000) ou a Micrologia Camoniana (Barreto 1982) dão excelente resposta24–, julgo poder
concluir-se que a Antiguidade ajuda a construir o sentido da leitura d’Os Lusíadas: os ele-mentos da história antiga que estruturam a mensagem de grandiosidade da história de Portugal nos planos do Poeta, da viagem, da história e dos deuses, exemplos provindos das narrativas de Tito Lívio, Salústio, Valério Máximo, Suetónio, Plutarco ou do poema de Lucano, podem ser vistos como a forma mais eficaz de celebração da sua enorme grandeza. Todos conhecem e comemoram as civilizações antigas, mas, quando compa-radas com o sucesso dos Portugueses, celebrados por Luís de Camões, elas empalide-cem porque, afinal, conseguiram muito pouco. Tratar-se-ia de uma forma de explicar ao mundo – apelando à memória da tradição colectiva do Ocidente, reconhecível por todos
“E perdoe-me a ilustre Grécia e Roma”: sobre história antiga n’Os Lusíadas, de Luís de Camões
24Sem esquecer os contributos de Maria Helena da Rocha Pereira (2011) (trabalho mais recente e com referências
a estudos anteriores), Fernandes (2006), Costa Ramalho (1990) ou, também em mitologia, Vítor Aguiar e Silva (1999: 155-162). Para outras fontes, v. Rodrigues (1979).
– o motivo por que se deve consagrar Portugal como uma nova potência. Além disso, como se procurou demonstrar, a transformação da fonte histórica em texto literário não implica necessariamente uma ficcionalização de factos. Com efeito, apesar de a litera-tura estar isenta de critérios de verdade, o rigor histórico é reclamado pelo próprio Vasco da Gama (em Lus. 5.23.8: “tudo, sem mentir, puras verdades”), o que constitui uma efi-caz simulação do real25.
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48 Ricardo Nobre
25Estudos de Borges de Macedo (1979: 12) demonstram que, n’Os Lusíadas, “o relato dos acontecimentos
[histó-ricos] também é fiel, implicando minúcia, sem deixar de estar sujeito às exigências do conjunto”.
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