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O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO: A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

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Academic year: 2021

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Luis Martínez Andrade**

Resumo: este texto aborda a importância da teologia da libertação como crítica moderna da modernidade. Ao analisar algumas teses dos teólogos Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff, procuraremos entender as contribuição desta corrente teológica não somente no plano sociopolítico, mas também em seu aspecto geo-epistêmi-co. Por consequência, sustentamos que a Teologia da Libertação é um antece-dente fundamental do que hoje se conhece como “perspectiva decolonial”. Por outro lado, tratamos de mostrar a “afinidade eletiva” entre a crítica de Walter Benjamin da modernidade e aquela realizada pelos teólogos latino-americanos. É necessário dizer que assumimos seriamente a proposta de Walter Benjamin presente em sua tese Sobre o conceito de história que enfatiza que a Teologia deve estar à serviço da luta dos oprimidos pela sua libertação. Nesse sentido, a Teologia da Libertação já faz parte do arsenal teórico e discursivo das vitimas desta modernidade/colonialidade realmente existente.

Palavras-chave: Teologia da Libertação. Modernidade. Colonialidade do poder. Teoria Crítica. Perspectiva decolonial.

D

urante a segunda metade do século XX, uma corrente de pensamento de cará-ter subversivo surgiu na América Latina. Inspirado nos movimentos populares e na luta dos oprimidos, a teologia da libertação, enquanto expressão teórica e intelectual do “cristianismo da libertação” (LÖWY, 2000), desenvolveu – e desenvolve ainda hoje – uma crítica da formação social hegemônica, isto é, da civilização capitalista, moderna, liberal e burguesa.

O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO:

A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

EM UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 20.03.2018. Aprovado em: 14.06.2018.

** Pesquisador e pós-doutorando no Collège d’études mondiales. Fondation de la Maison des Sciences de l ‘Homme. E-mail: luisma_andrade@hotmail.com.

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Observamos, desde os primeiros escritos dos principais representantes dessa corren-te (Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Enrique Dussel, dentre outros), uma denúncia contra a dinâmica assassina da modernidade capitalista. O fim das ditaduras militares, a transição para a democracia e a chegada ao poder de governos ditos progressistas, modificou de fato o contexto sociopolítico e cul-tural ao qual havia eclodido a teologia da libertação, sem que desaparecesse, entretanto, as estruturas de dominação e exploração; muito pelo contrário, a “colonialidade do poder” – para retomar a expressão forjada pelo sociólogo Aníbal Quijano – contribui não somente para a consolidação da distância entre o centro e a periferia, mas também para a destruição da natureza.

No final da década de 1990, também se desenvolveu uma nova corrente de pensamento conhecida como “decolonial”. Composta por historiadores, sociólogos, filó-sofos e autores da área de semiótica latino-americanos e latino-americanas, a chave Modernidade/Colonialidade1 procura compreender a imbricação – e as

sequelas – da modernidade, do capitalismo e da colonialidade. Se não se pode falar de crítica decolonial na perspectiva da teologia da libertação sem risco de anacronismo, é possível identificar uma linha tênue entre ambas as correntes. Nosso objetivo é, pois, de mostrar que a teologia da libertação é um antece-dente epistemológico e geo-histórico da “perspectiva decolonial”.

O QUE É A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO?

Segundo o sociólogo Michael Löwy (1998, p. 53), a teologia da libertação é em pri-meiro lugar “um conjunto de escritos”; mesmo mantendo um olhar sobre o “divino”, ela tem como ponto de partida específico a racionalidade. Assim, a teologia da libertação é um discurso construído que tem como referência os elementos que constituem o seu locus, isto é, entre outras coisas, a opção preferencial pelos pobres, a crítica da idolatria do Mercado, do “pecado estru-tural” e a denúncia profética das injustiças.

Segundo François Houtart (2005), a teologia da libertação nasceu de uma tripla dinâmica. A primeira do contexto eclesial e, em particular, do Concílio Vaticano II, que definiu “a igreja como povo de Deus e não como uma instituição hierárquica”, dando assim aos leigos o seu lugar nas comunidades dos fiéis. Em segundo lugar, o contexto intelectual provou ser crucial no momento em que a teoria da dependência forneceu, em paralelo, novas ferramentas analíticas para as ciências sociais da América Latina que não deixaram os teólogos da libertação indiferentes2. Como observa Löwy (1998,

p. 92), “essa nova visão influenciaria diretamente a cultura sociorreligiosa do cristianismo da libertação gerando uma forte convicção de que a solução para os países latino-americanos residia não tanto na modernização tecnológica,

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mas na mudança social.” A terceira mudança diz respeito ao fracasso do desenvolvimentismo como um modelo de desenvolvimento social. Este fracasso marcará o início da introdução massiva de capital estrangeiro acompanhada de uma desnacionalização das economias locais.

É assim que, ao mesmo tempo, assistimos ao estabelecimento de ditaduras militares ou civis. Faz-se necessário mencionar a esse respeito que o processo de exploração massiva da Amazônia começa sob a liderança dos governos militares (1964-1985) e que foi apoiado pela ideologia do progresso. Assim, o desmatamento da Amazônia passou de 1% em 1970 para 14% em 1998, uma área equivalente ao território francês (MELO, 2010, p. 282).

A crítica do desenvolvimentismo3, um dos elementos chave da teologia da libertação,

serviu para desmitificar o discurso das elites latino-americanas, denunciando uma crença econômica que contribui com o aumento das desigualdades sociais que é justificada pela ideia do progresso. Esta crítica dos efeitos da moderni-zação em si também implica uma atitude diferente em relação a natureza. Por isso, todos os “megaprojetos” deveriam ser avaliados de acordo com critérios ecológicos e, evidentemente, critérios sociais.

Não podemos compreender as mudanças sociopolíticas e culturais das últimas décadas na América Latina sem sublinhar o papel da teologia da libertação na criação de comunidades eclesiais de base, na formação de quadros, no engajamento nos movimentos sociais (o movimento dos trabalhadores rurais sem terra), a participação às lutas de libertação (Revolução Nicaraguense), etc. A teolo-gia da libertação se tornou uma referência inevitável e uma fonte inesgotável para o pensamento crítico universal. Para além das convicções pessoais, ela é considerada, tanto por crentes quanto por militantes não crentes, como um discurso de emancipação, pois ela insiste no fato de que a divisão fundamental não é a oposição entre os crentes e ateus, mas entre opressores e oprimidos. 1492: A OCULTAÇÃO DO OUTRO

O nascimento da modernidade é ainda tema de importantes debates. Alguns autores acreditam que sua epifania teve origem no Renascimento. Outros a situam na Revolução Francesa ou ainda na Revolução Industrial. A História se desen-volve sempre no interior da Europa, excluindo assim os outros povos no pro-cesso de construção da subjetividade moderna. É por isso que Enrique Dussel propôs que a conquista da América fosse articulada em torno da lógica da internacionalização do capitalismo e da configuração do sistema-mundo, mas também que a modernidade (como a produção de uma subjetividade particu-lar), o capitalismo (como acumulação das terras dos indígenas) e o processo de colonização da América Latina estejam sincronizados (DUSSEL, 1992). Este

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é o primeiro sinal da vontade hispano-lusitana de poder. A razão como ins-trumento de dominação determina, portanto, a partir do século XV, uma nova ontologia. A máxima “Dios esta en el cielo el Rei esta lejos, yo mando aquí” exprime um momento transcendental da subjetividade ocidental moderna4.

Leonardo Boff (2004, p. 100-1) enfatiza o fato de que a noção de dominium terroe está ligada à visão colonizadora ocidental. Mesmo antes da “vontade de poder” (Wille zur Macht) nietzschiana como expressão do homem moderno, o Papa Nicolau V (1947 – 1955), em sua encíclica Romanus Pontifex, prometia aos reis de Portugal o domínio do mundo. Alguns anos mais tarde, o Papa Alexan-dre VI, com a encíclica INTER CAETERA (1493), dava aos reis de Castela e Leão (hoje uma comunidade autônoma espanhola) as mesmas atribuições. Se-gundo Boff, o termo antropocentrismo é o que melhor resume a antropologia imperial e antiecológica. Como vimos, a conquista e a colonização da América determinaram não somente a subjetividade moderna, mas igualmente a expansão do capitalismo (ANDRADE, 2016).

A CRÍTICA DO CAPITALISMO COMO RELIGIÃO

A teologia da libertação, considerada como um discurso crítico de perspectiva eman-cipatória, foi fundamental no processo de desfetichização dos discursos hege-mônicos. Graças a um olhar subversivo e profético sobre diversos aspectos da sociedade moderna, por exemplo, a sacralização do mercado, o messianismo tecnológico, o mito do progresso ou a ideologia do desenvolvimento, esta te-ologia libertadora desvendou o caráter sacrificial do sistema hegemônico. Se não resta dúvidas de que a teologia da libertação não constitui uma corrente homogênea de pensamento, defendemos, contudo, que sua matriz ou núcleo ético-mítico-ontológico (Paul Ricouer) foi forjada por um locus crítico liber-tador. Em virtude desse locus, Jung Mo Sung (2008, p. 34) explica de maneira magistral o impacto da teoria da dependência nas mediações analíticas dos teólogos da libertação. O autor divide os teóricos da dependência em dois grupos principais: aqueles que sustentam que o desenvolvimento não é viável dentro do sistema capitalista e preconizam a necessidade da revolução socia-lista (Theotônio dos Santos, Rui Mauro Marinho e André Gunder Frank) e aqueles que se opõe a essa tese (Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Aníbal Pinto, Osvaldo Sunqel e Enzo Falleto). As diversas tendências teóricas que determinam suas ferramentas de análise refletem igualmente na exegese sociorreligiosa dos teólogos da libertação.

Desde o final dos anos 1980, os teólogos da libertação realçam o caráter de idolatria do capitalismo. Em suas visões, o problema central na América Latina não é o ateísmo, mas a idolatria que cultua um falso Deus. Assim, teólogos como Pablo

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Richard, Severino Croato, Jorge Pixley, Franz Himkelammert, Hugo Assmamm desenvolveram uma reflexão sobre o caráter fetichista próprio do capitalismo, retomando em um novo olhar a temática weberiana da luta dos deuses5.

Segundo esses teólogos, todo sistema de opressão requer a criação e o estabelecimento de ídolos que legitimam as desigualdades e as injustiças. Ao se inscreverem em um regime de desigualdade, a teologia - ou qualquer outra teoria social – cumpre uma função de legitimação ou de crítica; a teologia nesse sentido não é somente uma concepção epistêmica do sagrado6, mas igualmente um campo

de luta. Não existe denúncia profética sem formação social antagônica. Segun-do Pixley (1989, p. 57-77), a diferença entre Deus e os falsos íSegun-dolos se dá no processo de libertação. Notemos, ainda, que os teólogos da libertação susten-tam que, em certos casos, esta libertação pode ser violenta. Não se deve ver nessa consideração uma apologia da violência, mas sim a tomada de consciên-cia do papel que desempenha a violênconsciên-cia subversiva da profeconsciên-cia como palavra de Deus que culpa, critica e denuncia a estrutura de opressão.

Por sua vez, Hinkelhammert e Assmann mostraram a pertinência e o forte potencial da “teoria do fetichismo” de Marx. Segundo eles, é necessário compreender o capitalismo não somente como um sistema de aparências fetichizadas, mas também como uma religião da vida cotidiana. Analisando o binômio econo-mia e teologia, estes teólogos localizam os traços do discurso econômico para mostrar os impactos no meio social e no ecossistema. Na visão destes autores, a economia é uma forma de teologia secular que possui seus apóstolos e teó-logos. Ao estudar os principais postulados da teoria econômica liberal e suas noções transcendentes (a mão invisível, o equilíbrio geral e o mercado total) os teólogos desvendam o aspecto religioso escondido sob o discurso científico e secular da economia.

Assmann e Hinkelhammert percebem na economia capitalista um processo de idola-tria. Esta economia tem consequências nefastas não somente para os humanos, mas também para a natureza, tornando o lucro o critério formal de decisão. Os teólogos da libertação retomam a crítica do fetichismo de Marx para analisar a lógica do capital, ou seja, sua dinâmica de morte. Neste sentido o capitalismo é anti-ecológico e, portanto, contra a vida.

A idolatria é concebida como a manifestação de símbolos religiosos que legitimam o poder fetichizado, cuja manipulação necessita de sacrifícios para consolidar a mística da morte. Os falsos deuses (aqueles do mercado total) exigem a imo-lação dos pobres. Consequentemente, “o essencial é a prática da ‘religião eco-nômica’; seus rituais e seus lugares sagrados devem ser buscados na realização prática das exigências da economia do mercado, e não mais prioritariamente nos templos religiosos tradicionais” (ASSMANN; HINKELAMMERT, 1993, p. 178).

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Produto da modernidade, a teologia da libertação assume à sua maneira os valores atribuídos ao Iluminismo, sendo fortemente hostil aos elementos que configu-ram a sociedade industrial burguesa (acumulação per se, consumo frenético, racionalidade instrumental, individualismo exacerbado). Reconhecendo seu legado da modernidade, a teologia da libertação encontra em sua aproximação com as ciências sociais os argumentos para uma dura crítica à “modernidade realmente existente”, ou seja, contra a modernidade hegemônica que degrada os povos não-ocidentais e a natureza enquanto sujeitos sem direitos (objetos). A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO, ANTECEDENTE DO PENSAMENTO

DECOLONIAL

É necessário considerar que continuamos a nos apropriar da perspectiva forjada pela chave modernidade/colonialidade mesmo sendo crítica a ela, pois entendemos que esta crítica moderna da modernidade feita pelos teólogos da libertação é um pré-requisito não negligenciado das teses principais da chave decolonial. Podemos argumentar a partir de vários exemplos: 1. Modernidade, capitalismo e colonialidade são fenômenos intimamente relacionados; 2. A colonialidade (do poder, do ser, do saber e do fazer) não é uma sequela da modernidade, mas seu elemento constitutivo; 3. A conquista da América (ontologicamente expressa em l’ego conquiro dos conquistadores) configurou a subjetividade moderna, a “vontade de poder” hispano-lusitana implantada a partir do século XVI criou, em detrimento dos povos não-ocidentais, um novo pano de fundo para as relações sociais estabelecidas na América Latina; 4. Colonialismo e colonialidade são distintas, sendo que a primeira se refere à dominação imposta por um país, uma nação ou um povo sobre outro - trata-se de uma experiência histórica - enquanto a colonialidade surgiu no contexto onde o sistema-mundo-moderno, de Wallerstein, já estava posto; 5. Imposta pela dinâmica do capitalismo, um tipo particular de racionalidade (econômico-instrumental) se apresenta como a razão por excelência. Esta forma de racionalidade reduziu os povos e a natureza à condição de coisas. É por isso que a racionalidade econômico-moderna se opõe a uma racionalidade ambiental dos povos indígenas e das comunidades camponesas, chamada de Suma Qamaña ou “buen vivir”.

Para o sociólogo Ramón Grosfoguel, um dos representantes da perspectiva Modernida-de/Colonialidade, a teologia da libertação contribuiu na América Latina para a produção de um pensamento anti-hegemônico. Antes da emergência do mar-xismo ortodoxo, a teologia da libertação entendeu que a cultura popular tem uma estrutura mítica e um imaginário próprio, estrutura crucial na produção do pensamento crítico. Segundo Grosfoguel, para produzir o projeto político anti-hegemônico, a cultura popular é fundamental. Assim, a perspectiva

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mar-xista ortodoxa que considera a religião como “o ópio do povo” se inscreve muito bem no projeto eurocêntrico. Enquanto aponta os limites da primeira geração de teólogos da libertação - a saber a obliteração do sujeito colonial racializado (sujeto colonial racializado) já que na teologia da libertação os pobres possuem uma dimensão de classe mas não de gênero7 ou de raça -

Grosfoguel reconhece os debates atuais no interior dessa corrente teológica. Por sua vez, os teólogos Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff constataram as

implica-ções da “modernidade” no contexto latino-americano. A teologia da libertação é uma crítica moderna da modernidade: contando com as contribuições das ciências sociais, estes teólogos desvelam os mecanismos da exploração e da dominação estabelecidos desde a Conquista. É assim que eles assimilaram em seus discursos as ferramentas analíticas propostas pela Teoria da dependên-cia: a relação centro-periferia para designar o “pecado estrutural”; o modo de exploração que privilegia a mais-valia absoluta para denunciar a “violência estrutural”, para citar alguns exemplos. O marxismo enquanto teoria crítica foi, ao mesmo tempo, incorporado ao locus discursivo desses teólogos.

Assim, a originalidade da teologia da libertação está em ter realizado uma leitura al-ternativa da história, ou seja, do ponto de vista das vítimas da “modernidade”. Essa leitura a contrapelo, numa perspectiva benjaminiana do termo, implica tanto a identificação das estruturas de dominação quanto o reconhecimento da ótica dos vencidos da história. No que concerne às estruturas de dominação (expressão do pecado estrutural, a propósito), Gustavo Gutiérrez sublinha a ligação entre o individualismo e a ideologia moderna burguesa na qual o capi-talismo se vê como o regime econômico natural para o ser humano. De acordo com ele, sob a ideia de uma associação livre entre indivíduos iguais, o “con-trato social”, esconde a verdadeira distinção entre proprietários dos meios de produção e proprietários da força de trabalho, reforçando o fator que produz estas desigualdades (GUTIÉRREZ, 1986, 171-2).

De fato, Gustavo Gutiérrez mostra notavelmente como a descoberta do mundo novo no século XV foi não somente um fator decisivo no desenvolvimento do capita-lismo em marcha, mas também um fator desestabilizador do quadro teológico. A América Latina nasceu dependente, sua libertação será possível quando os movimentos populares destruírem as estruturas coloniais em vigor8.

Se o primeiro momento constitutivo da “colonialidade do poder” nasceu no século XVI no contexto de La Conquista e da evangelização, ela recebeu um segundo fôle-go no início do século XIX na ocasião em que a elite branca criola(de origem europeia e pele notadamente menos escuras) assumiu o controle do aparelho de dominação, o Estado, que levou a uma reconfiguração da pirâmide social, diferenciando os indivíduos e mantendo os indígenas e os negros em sua base. Assim, a raça enquanto categoria de poder contribuiu com a recomposição da

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sociedade latino-americana. Se a “colonialidade interna do poder” beneficiou os grupos criolos e mestiços com peles menos escuras, os indígenas e negros permaneceram na exterioridade ontológica do sistema. Além disso, a reconfi-guração da “colonialidade do poder” não é estranha à lógica do capital, pelo menos para aquilo que é articulado entre o centro e a periferia. Nesta pers-pectiva, as contribuições de Immanuel Wallerstein9 e Samir Amin lançam luz

sobre a articulação entre o capital multinacional e o Estado liberal.

Desde o início, Gustavo Gutiérrez assume a necessidade de fazer entender as vozes da-queles que não são considerados seres humanos pelo sistema: as classes explo-radas, as raças marginalizadas, as culturas desprezadas que em ultima analise são, segundo eles, “não pessoas”10. A Teologia da Libertação reconhece nos

“ausentes da história” a dívida ainda não paga dessa modernidade burguesa. Para Gutiérrez, a história da humanidade foi até o presente escrita “por uma mão branca”, pelos setores dominantes.

A história do cristianismo, escreve ele, foi também escrito por uma mão branca, ocidental, masculina e burguesa. Assim, nos faz recuperar a memória dos “cris-tos flagelados das Índias”, seguindo a expressão que Bartolomeu de Las Casas usou para falar dos índios do continente americano e que se aplica a todos os pobres, vítimas das mazelas deste mundo. Esta memória é vivenciada nas ex-pressões culturais, na religião popular, na resistência às imposições do aparelho eclesiástico. Memória de um Cristo presente em cada homem faminto, sedento, prisioneiro ou humilhado; presente nas raças menosprezadas e nas classes ex-ploradas (GUTIÉRREZ, 1986, p. 216).

Embora a crítica da modernidade em Leonardo Boff (1986) não esteja ausente em seus primeiros escritos – como por exemplo em seu livro sobre François d’Assise – é em América Latina: da conquista a nova evangelização que há de forma mais perceptível uma crítica radical da modernidade do ponto de vista colonial. É evidente que o 500o aniversário da “descoberta” teve um impacto considerável sobre este teólogo. Partindo da constatação de que a sociedade sofre uma crise estrutural em virtude de uma crise hegemônica ao qual a classe burguesa é o sujeito histórico portador do projeto da modernidade, ele decifra esta crise da seguinte maneira: “a raiz antológica desta crise, explica ele, deve ser pesquisada de modo mais profundo na realidade e no tempo” (BOFF, 1986, p. 20).

Tendo como base a Teoria Crítica (notadamente os trabalhos de Max Horkheimer, de Herbert Marcuse e Erich Fromm), ele identifica os elementos do ethos burguês – o desejo de ganho, de acumulação e de poder – que vão estabelecer uma outra relação com a natureza, a ciência, e a técnica, tornando assim instrumentos colocados aos

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serviços da produção ad nauseam de mercadorias, na medida em que a natureza é despojada de “sua função terapêutica e humanizadora”11.

Não se trata de uma recusa reacionária da modernidade, mas sobretudo de um ques-tionamento acerca de sua dinâmica destruidora que possibilita a produção da mais-valia, a racionalidade instrumental e o crescimento ilimitado que minam os homens e a natureza. O fato de que a razão de tornou “um grande sistema de dominação do mundo”, é devido, segundo Boff, à apropriação do projeto revolucionário da modernidade pela classe burguesa no século XVI. É ainda com o cogito cartesiano, observa ele, que a hegemonia do logos sobre eros e o phatos se estabelece. Leonardo Boff reabilita François d’Assise enquanto modelo alternativo de estar-no-mundo. O fato é que sua crítica se distingue da crítica pós-moderna ao enfatizar a importância de um projeto histórico para a transformação radical da sociedade.

Obcecada pelo desejo de ganho e acumulação, a sociedade moderno-burguesa prioriza a razão instrumental que visa a produção de mercadoria – e, sendo necessário sublinhar, de falsas necessidades. Em detrimento das condições naturais da reprodução social, a modernidade se estrutura em um mecanismo de visa a exploração incessante no homem, onde a coisificação e a mercantilização da natureza andam de mãos dadas. Boff identifica dois paradigmas ou maneiras de estar-no-mundo: estar acima das coisas e, em oposição, estar com elas. Esta distinção tem consequências não somente éticas, mas também ecológicas, pois

na perspectiva do homem moderno, esta maneira de estar acima das coisas resulta de uma relação de dominação da natureza. É evidente que os povos precisam da natureza para assegurar sua reprodução. Entretanto, a destruição da Terra e o esgotamento dos recursos naturais, com o objetivo de produzir valor de troca e mercadorias fúteis, evidenciam a lógica necrófila do sistema. Boff coloca no centro do debate a voz das vítimas da colonização e da cristianização.

Trata-se de compreender a denúncia da injustiça histórico social vivida pelos oprimidos.

A invasão, escreve ele, significou o maior genocídio da história da humanidade [...]. Hoje em dia esse processo continua em dois terços da população que passa fome, na destruição ecológica ao qual os pobres e os indígenas são as primeiras vitimas, que também estão ameaçadas de extinção devido a dívida externa, que representa o novo tributo que as nações subdesenvolvidas devem pagar aos seus antigos e novos mestres (BOFF, 1992, p. 10).

Vamos parar nessas linhas que são de uma profundidade acurada para tentar analisá-las à luz da teoria crítica e do pensamento decolonial.

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a crítica da modernidade/colonialidade proposta pela teologia da libertação e aquela encontrada em Walter Benjamin. Em nossa opinião, a crítica benjaminiana da lógica mortal da modernidade capitalista mostra justamente que o pensamento crítico, mesmo se ele parte de um “lugar de enunciação” determinado, é ainda poderoso. Nesta perspectiva, um verdadeiro projeto emancipador não pode desconsiderar as contribuições do pensamento crítico europeu.

Em um relatório publicado em 1929 na revista alemã Die Literarische Welt, consagra-do ao livro de Marcel Brion Bartolomeu de Las Casas Pai consagra-dos Índios, Walter Benjamin não somente identifica o discurso contraditório do cristianismo em relação aos indígenas ou, como diz Löwy (2010, p. 15), “a dialética moral do cristianismo”, mas também destaca a vontade de poder dos europeus no alvorecer da modernidade. Benjamin (2010, p. 129) escreve assim: “A história colonial dos povos europeus começa como o evento revolta da conquista da América que transforma o mundo recém-conquistado em uma sala de tortu-ras”. Esta implacável denuncia da Conquista é enfatizada por duas razões. Pri-meiro, porque esse filósofo, marxista convicto e confesso12, captura o caráter

destrutivo da modernidade, em outras palavras, a violência exercida sobre os indígenas em nome de uma promessa de redenção da parte de seus algozes – uma violência que não somente permitiu uma acumulação de riquezas sem precedentes e beneficiou aos países europeus no sistema-mundo, mas se apre-senta também como libertadora, ou seja, como necessária. Segundo, porque ao considerar de um outro ângulo, Benjamin mostra que a Conquista simboliza o primeiro holocausto da modernidade. A tese que considera a Conquista espa-nhola como primeiro holocausto da modernidade ganhou destaque especial-mente nos anos 1990. Assim, Boff (1992, p. 51) escreve: “A América Latina é um capítulo da história expansionista europeia. 1492 marca o início político e econômico da modernidade”.

Para Benjamin (2002, p. 840), a modernidade é considerada “um tempo infernal”. Ao longo de toda obra do filósofo, pode-se distinguir uma crítica radical da moder-nidade enquanto expressão da civilização industrial-burguesa, mas esta crítica é romântica e revolucionária e não reacionária13. É preciso considerar o fato de

que ela visa igualmente o conceito de progresso, pois segundo Benjamin deve-mos basear esse conceito a ideia de catástrofe. Então, emprestando as palavras do escritor sueco August Strindberg, Benjamin (2002, p. 491) afirma que “o inferno não é algo que nos aguarda, mas a vida que levamos aqui”. Portanto, é necessário interromper o continuum da história para não deixar as coisas continuar como antes...

Ao propor uma leitura a contrapelo da história da modernidade, no sentido benjaminia-no do termo, os teólogos e as teólogas da libertação analisam tanto os mitos

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como os discursos que justificam a opressão dos pobres e a aniquilação das culturas. Com base nas contribuições das ciências sociais, a teologia da liber-tação explica as contradições e os antagonismos próprios da formação social atual, mostrando que todo sistema é histórico e pode consequentemente ser transformado. Não é por acaso que esta teologia afirma que os pobres (e as vítimas) são os sujeitos de sua própria libertação, destacando o papel da práxis na transformação da sociedade.

CAPITALISM AS RELIGION. LIBERATION THEOLOGY AND “DECOLONIAL TURN”

Abstract: this text addresses the importance of liberation theology as a modern criti-que of modernity. By analyzing the theses of Gustavo Gutiérrez and Leonardo Boff, we will attempt to give an account of the contribution of this theological current in the socio-political plane as well as in its geo-epistemic aspects. We insist that liberation theology is a fundamental antecedent in what is now known today as the “decolonial turn”. We also try to highlight the “elective affinity” between Walter Benjamin’s critique of modernity and that of Latin American theologians, noting the former’s Theses on the Concept of History that posits theology in the struggle of the oppressed for their liberation. In this sense, the theology of liberation services theoretical and discursive weaponry for the victims of this really existing modernity / coloniality.

Keywords: Liberation theology. Modernity. Coloniality of power. Critical Theory. De-colonial turn.

Notas

1 Empregamos o termo chave porque não se trata de um grupo propriamente dito. Podemos igualmente chamar de “projeto Modernidade/Colonialidade” ou de “coletividade de argu-mentação Modernidade/Colonialidade” (RESTREPO; ROJAS, 2010).

2 Acerca disso, ver os capítulos 1 e 3 do livro útil e interessante do teólogo Jung Mo Sung (2008). 3 O termo desenvolvimentismo (desarrollismo) tem como referencia a ideologia do

desen-volvimento na América Latina, a crítica do progresso autoevidente.

4 Esta máxima foi empregada por Marianne Mahn-Lot (1996, p. 11). Parece-nos que a autora infelizmente não entendeu o verdadeiro significado e peso da frase: não se trata de uma anedota, ela é de fato a expressão de uma nova ontologia que será o pano de fundo de uma subjetividade moderna de aparência colonial.

5 Na sociologia, o conceito de luta dos deuses (Kampf der Götter) proposto por Max Weber permite compreender o politeísmo em ação nas tensões e conflitos sociais. Michael Löwy o utiliza, precisamente, para compreender o ethos político e religioso próprio do cristianismo da libertação na América Latina.

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6 Definição proposta por Dussel. Faz-se necessário informar que esta definição deve ser ma-tizada pelas proposições de Jung Mo Sung, visto que “a teologia deve ser entendida como uma hermenêutica da história que explica de maneira crítica as esperanças e as visões de mundo das correntes teóricas e sociais”.

7 O caráter assexual do “pobre” na teologia da libertação foi abordado pela teóloga Marcella Althaus-Reid. Ver Andrade (2015, p. 178-181).

8 É interessante notar que esta observação é feita quase uma década antes do postulado de Aníbal Quijano (2000, p. 201-246) segundo a qual “a América, a modernidade e o capitalismo nasceram no mesmo dia”. Naturalmente, podemos objetivar que em Quijano a raça constitui um fator econômico e político da organização do capitalismo moderno. A colonialidade do

poder articula raça, trabalho e gênero. No entanto, Guitiérrez (1986, p. 190-191) reconhece que as independências políticas do século XIX somente reatualizou o “pacto neocolonial”. 9 Immanuel Wallestein (1991) desenvolveu o conceito de sistema-mundo moderno para nomear a formação, a composição e a dinâmica do capitalismo em escala global. É numa perspectiva transatlântica e especialmente sob a influência da teoria da dependência que Wallerstein foi capaz de desenvolver suas próprias categorias analíticas, aos quais permitiram compreender e explicar a lógica do capital. Wallerstein argumenta que desde sua origem (século XVI), o

sistema-mundo gerou desigualdades estruturais entre as regiões comerciais, pois os recur-sos provenientes da América permitiram seu crescimento, bem como o estabelecimento de relações de desigualdade. Neste sentido, a América Latina se constituiu como a primeira periferia da Europa. Não podemos perder de vista, contudo, que somente no século XVIII a Europa passa a ocupar um lugar central no sistema.

10 A ideia de não-pessoa encontra-se, em nossa visão, na linha de pensamento de Frantz Fanon segundo a qual a distinção entre a zona do ser e a zona do não-ser sombreia as abordagens sociais da colônia (GUTIÉRREZ, 1986, p. 202).

11 “Apesar do entusiasmo suscitado pelas descobertas do início da revolução moderna, [a na-tureza] foi separada da vida emocional e profunda com base em arquétipos universais; ela deixou de ser uma das grandes fontes que alimentam a dimensão simbólica e sacramental da vida” (BOFF, 1986, p. 21).

12 Uma das críticas decoloniais endereçadas ao marxismo enquanto produção intelectual europeia, é a censura de sua indiferença quanto à estigmatização dos povos colonizados. É fato que há um grau de eurocentrismo em certas perspectivas marxistas com relação ao mundo periférico. No entanto, a posição benjaminiana lança uma nova luz sobre a relação entre capitalismo e modernidade. Entre a plêiade de pensadores marxistas não eurocêntricos, destacamos, sem ser exaustivos, Rosa Luxemburgo, C. L. R. James, José Carlos Mariátegui, Daniel Bensaïd. 13 Ver os trabalhos de Löwy (2007 e 2009, capítulo 6).

Referências

ANDRADE, Luis Martínez. Écologie et libération. Critique de la modernité dans la théologie de la liberation. Lausanne: Van Dieren, 2016.

ANDRADE, Luis Martínez. Religion sans rédemption. Contradictions sociales et rêves éveillés en Amérique latine. Lausanne: Van Dieren, 2015.

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Referências

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