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REMISSÃO E SENTIMENTO: A HISTÓRIA DE RUTE E BOAZ A LUZ DA SOCIOLOGIA DOS AFETOS

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Academic year: 2021

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James Washington Alves dos Santos**, Maria Chaves Jardim***

Resumo: o artigo em questão aborda duas temáticas que vão dar sentido a história do

livro de Rute, a saber: a remissão e o sentimento afetivo. Ambas as características darão sentido à vida das personagens deste livro. Para além de um simples relato histórico, o que esta em jogo é a percepção de que acima da lógica do interesse pessoal e da manutenção da tradição é possível vermos o tema da afetividade tomar as cenas históricas narradas. Por isso fazemos uso de uma pesquisa biblio-gráfica sobre o livro de Rute, buscando evidenciar os aspectos da lei mosaica que tratam diretamente do cuidado com os pobres e do direito de propriedade, inse-rindo neste contexto as temáticas do reconhecimento e do afeto com elementos em que se entrelaçam as questões econômicas, culturais e politicas.

Palavras-chave: Remissão. Sentimentos. Religião.

É

comum para aqueles que são leitores do livro sagrado judaico cristão, a Bíblia, colocar-se diante de tal escrito como elemento de revelação de um Deus me-tafisico e poderoso que fala por si mesmo e por meio de patriarcas, profetas e profetisas, sacerdotes, apóstolos e porque não dizer apóstolas (enfatizamos neste último ponto o papel controverso de Maria Madalena). Por isso transbordam em suas páginas exortações, conselhos, sermões e atos milagrosos. Além disso, o amor (o afeto) como tratado em suas páginas é um amor em muitos casos

reve-REMISSÃO E SENTIMENTO:

A HISTÓRIA DE RUTE E BOAZ À LUZ

DA SOCIOLOGIA DOS AFETOS*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 21.07.2018. Aprovado em: 10.09.2018.

** Doutorando em Ciências Sociais (UNESP). Mestrado em Sociologia (UFAL). Graduação em Ciências Sociais (UFAL). Professor de Sociologia (IFAL). E-mail: james.was@hotmail. com

*** Pós-Doutorado na Fondation Maison des Sciences de l´Homme (FMSH-Paris). Doutora em Ciências Sociais (UFSCar). Mestrado em Engenharia de Produção (UFSCar). Gradu-ação em Ciências Sociais (UFSCar). Professora no Departamento de Sociologia (UNESP, Araraquara). E-mail: majardim@fclar.unesp.br

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lador tanto de um pai celestial benevolente para com seus filhos desamparados, porém incisivo em suas correções, bem como o de filhos sedentos por um “amor de pai”, não concretizado em excelência por progenitores que diante da vida, em muitos casos, não teriam dado a atenção devida, ou a carinho, ou os bens de que seus filhos necessitam ou almejam.

Deste modo o artigo em questão visa abordar a temática do amor na Bíblia e mais propriamente no livro de Rute, relacionando esta narrativa com as questões da remissão e do sentimento, colocando Sociologia e tradição religiosa frente a frente uma a outra. A primeira das características mencionadas neste artigo (a remissão) aparece aqui logo no início do livro quando três mulheres se co-locam como as protagonistas da história. São elas Noemi e suas duas noras: Rute e Orfa. Na situação descrita temos a primeira como judia de nascimento e as outras duas como membros da tribo dos moabitas (HENRY, 2004, p. 453). Como todos os homens desta família haviam morrido, cria-se um dilema exis-tencial com bases eminentemente sociais e culturais. Elas estavam literalmente desamparadas e precisariam recorrer ao processo de remissão (aceitação de retorno a Israel, retomando o direito de propriedade) como forma de encontra-rem amparo social (ALANATI, 2008; LOPES, 2005; MESTERS, 1987). No segundo aspecto (o sentimento) entra o papel masculino nesta situação. Uma vez voltando à sua terra natal, Noemi acompanhada apenas de sua nora Rute, encontra em um homem chamado Boaz a possibilidade de se reinserir dentro da comunidade judaica por meio da recomposição familiar (a lei do levirato). Contudo, mais que um procedimento formal é possível ver nas atitudes de Boaz algo acima de protocolos (MESTERS, 1991). Este elemento confere a história uma demonstração de como a legitimidade do papel e da vida feminina estava condicionada ao amparo politico e jurídico do masculino, sem o qual sua vida social não existiria. Porém, o desenrolar da história vai mostrar que o possível cálculo racional das vantagens mútuas não se aplica. Para além das regras formais e dos contratos explícitos, Boaz se coloca numa posição em que diante das dificuldades do processo de remissão para com Noemi e Ester ele transpõe pelo menos três questões:

• A formalidade da tradição judaica;

• O ethos judaico frente a como se portar com estrangeiras;

• e a criação de um afeto que não se configura como comportamento calculado, gerando assim um laço social intertribal, dentro de uma construção que liga duas histórias de vida distintas.

É nesta configuração social que trabalharemos as questões levantadas por este livro, fazendo uso de uma pesquisa bibliográfica tendo como apoio metodológico a Sociologia dos Afetos numa perspectiva do fortalecimento dos laços sociais diante de barreiras da tradição, cultura e economia.

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A VERDADEIRA RELIGIÃO: CUIDAR DOS ÓRFÃOS E DAS VIÚVAS?

No período apostólico, Tiago em sua epístola responde de forma contundente a ques-tão sobre qual seria a forma da religião cristã se portar diante dos problemas sociais. Ele afirma que o procedimento correto seria cuidar dos órfãos e das viúvas (Tg 1, 27). Neste sentido, cabe salientar que os conflitos travados por Israel desde o seu período tribal, passando pela instituição do reinado e o do-mínio romano sobre suas terras, certamente desencadearam reflexos agressi-vos quanto à manutenção e sobrevivências das famílias. Portanto, se levarmos em conta o período tribal da época de juízes1, contexto em que se ambienta o

livro de Rute (Rt 1,1), bem como a época apostólica com Tiago, veremos o de-samparo de crianças e mulheres como fator problemático da história israelita. Em relação ao cuidado especifico com as víuvas, o livro de Rute, que é o texto que analisamos neste artigo, parece guardar em termos de integração social um contraponto interessante em relação período em que fora inserido dentro da história de Israel. Isso pelo fato de que sua visão mais caritativa, inclusive, colocando em questão o tratamento dado às viúvas, busca não apenas questio-nar formas de comportamento, mas imprimir uma série de valores que consta-vam na lei Israelita por meio de Moisés. Isso faz sentido na medida em que o livro de Rute aborda apenas de maneira implícita o aspecto moral do livro de Juízes enquanto expressão do declínio moral de Israel (em relação à obediên-cia ás regras instituídas e os dilemas existenobediên-ciais de suas personagens), assim como fora com Sansão, Jefté, Gideão, Baraque, etc., para dar mais destaque ao aspecto da integração social e da solidariedade em termos sociológicos, enquanto reforço dos laços sociais (DURKHEIM, 2010).

Desta maneira o livro de Rute se coloca como uma resposta direta não só em relação a situação de órfãos, viúvas e pobres mais também problematiza as relações entre o povo de Israel e os estrangeiros que compartilhavam a mesma região da mesopotâmia. Em termos culturais este contato com moabitas, edonitas, sidônios, entre outros, sintetizava uma ambiguidade: a tensa relação entre o eu/ outro. O Israelita por lei tinha uma série de regras de conduta e de “pureza” a cumprir e em muitos casos a união matrimonial e o contato com povos estrangei-ros eram os fatores acusados de provocar o desvirtuamento da conduta. Por outro lado a própria historia de Rute lançará não da ideia de que o desvirtuamento do caráter nestes contatos culturais não é regra, haja vista o bom relacionamento com Noemi e a vinda de Rute junto ela para o meio de Israel. Esta seria então uma forma de lançar as raízes de uma doutrina bíblica sobre a igualdade e a justiça social (KRAMER, 2002; STEINMETZ, 1996), em meio há uma serie de leis que “dificultavam” a manutenção de uma interação que mantivesse Israelitas e estrangeiros em situação de mediação cultural, como coloca Montero (2006).

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Em relação à história em questão, esta trata da vida de Rute, membro da tribo dos moabitas e segundo Ferreira (2013, p. 502): “uma personagem que reúne três elementos fundamentais sobre as questões sociais e concomitantemente, a tríplice categoria protegida por Deus: ela é uma mulher estrangeira, pobre e viúva”. Sua história é contada como um elo de mediação cultural em que os elementos e os costumes israelitas e estrangeiros que não se anulam. Repor-tando a Halbwachs (2013) e Bosi (2004), Rute aparece também como um ele-mento histórico e simbólico que remonta uma memória. Há que se dizer que esta personagem liga dois mundos distintos provocando a reação de quem lê, na medida em que a imagem que se apresenta ao fundo é da exclusão dos mais pobres, independente de filiação tribal e que a lei não dava conta de conter estas disparidades.

Segundo as prescrições contidas no Pentateuco, haviam regras que regiam não só a vida econômica, mas toda a vida social. “Em Israel as espigas ou os feixes de espigas, as uvas e as azeitonas deixados nos campos após a colheita eram destinadas ao órfão, à viúva e ao estrangeiro, que assim tinham algo para po-der comer (Lv 19,9-10 e Dt 24,19)” (FERREIRA, 2013, p. 503). Em termos de especificação das regras há que considerar as seguintes práticas ligadas a colheita (WOLPO, 2010, p. 92, apud FERREIRA, 2013, p. 503):

• “Leket: Uma ou duas espigas que caírem da mão durante a ceifa não devem ser recolhidas e sim deixadas para que os pobres as recolham;

• Shichechá: Quem esqueceu as espigas ou feixes de espigas no campo durante a colheita, não pode voltar para pegá-los e sim deixar para os pobres. A mesma lei é válida para os pomares e vinhedos;

• Peá: O dono da terra ao colher no seu campo não deve ceifá-lo todo e sim deixar um pouco de colheita nas extremidades para os necessitados. A peá também deve ser deixada nos pomares e vinhedos;

• Peret: Uma uva ou duas que se desprendem de um cacho na hora da colheita, devem ser deixadas;

• Olelot: São cachos pequenos, cujas uvas são separadas que também devem ser deixadas.”

A questão aqui é lembrar a ideia de soberania divina e salientar apenas o usufruto da terra por parte dos Israelitas. Por isso que a compreensão sobre a justiça social ligada ao campo pode ser decomposta em dois fatores: a questão do uso da ter-ra pater-ra sobrevivência própria e familiar e a necessidade de partilha do próprio fruto da terra. Não se fala aqui de divisão de terras, mas de possibilidade de manutenção da vida dos pobres via concessões abertas na lei. Neste cenário, Israel funcionava em torno daquilo que Durkheim (2014), chamava de consen-sos lógicos, portanto sedimentados na moralidade e uma cosmologia própria de se entender o mundo. Politicamente este é um reforço à ideia de soberania

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divina, na medida em que o soberano tem o direito de posse e os demais mem-bros da sociedade o direito de usufruto.

Outro conceito importante que aparece no texto bíblico é a Shemitá como mencionado por Araújo (2011), Kirschbaum (2004) e Ferreira (2013). Especialmente para Ferreira (2013, p. 503), “a shemitá ocorre a cada sete anos na Terra de Israel. Durante este ano sabático, a Terra de Israel não poderia ser cultivada e as dividas eram perdoadas, o que fosse colhido devido ao curso natural da terra deveria ser compartilhado”.Contudo, durante o calendário judaico já existiam uma série de festividades que ordenavam a vida judaica, entre elas cabe menção aqui à festa das colheitas (pentecostes), além das festas rituais como a do tabernáculo, das tendas e da páscoa, isso dentro do calendário concernente ao antigo Israel. Em termos ritualísticos, Israel tem uma vasta gama de tradições que trabalham no sentido de montar uma forma de estrutura moral que abarca aspectos tanto inter-nos como exterinter-nos da vida de cada membro desta sociedade, constituindo aquilo que Goffman (2018) chama de instituições toais. Que estabelecem uma forma de controle micro/macro mesmo que dentro de suas “engrenagens” as linhas de comportamento individuais possam parecem discrepantes das regras em geral.

Figura 1: Ciclo do ano judaico. Fonte: http://www.nunes3373.com/news

Quanto ao Shemitá, Ferreira (2013, p. 503) comenta que: “quando se inicia este sétimo ano, todos os empréstimos e dívidas são cancelados. Além disso, todos eram ‘obrigados’ a emprestar ao necessitado, dinheiro e alimentos sem juros além de destinar uma parte da safra para a ajuda aos pobres”.

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Isso chega a se configurar como uma espécie de doutrina social dentro do judaísmo, mas se fossemos entender assim, caberia deixar claro que isso estava ‘‘codi-ficado” através dos escritos de Moises (no pentateuco). É interessante perce-bermos como partir desta codificação de regras é possível fazer uma religião dos livros, dos códigos, das normas. Assim se separam virtualmente o direito de propriedade do direito de uso, permitindo aos pobres em período especifico poderem usufruir do solo para alimentar-se (BONDER, 1990).

Contudo, não há relatos de casos em que haja (pelo menos neste livro) uma proibição explicita a mendicância nos campos de Israel. O que é mostrado é um caso de benevolência frente à fome que alguns israelitas e estrangeiros passavam. Os conflitos com tribos e nações vizinhas, os riscos de roubo da colheita e as enfermidades pereciam criam um ambiente possivelmente desfavorável e consequentemente uma situação social cada vez mais precária. Ir ao campo e mendigar é a solução mais direta, pelo menos ao problema da fome; mas não é mostrado se no caso de Rute aquele teria sido o primeiro lugar em que teria tentado encontrar comida. Diante de varias possibilidades, a história nos co-loca que Rute acaba indo mendigar no campo pertencente a Boaz, membro da família de Elimelec, o marido falecido de Noemi (Rt 2,2). Após conhecê-la, Boaz dá instruções para que os seus servos não perturbem Rute. Isso já mostra uma forma de aproximação inicial que não fica clara no texto, pelo menos em suas motivações iniciais e para além das proximidades familiares, que na verdade nem eram com Rute e sim com Noemi. Em meio a esta situação se-gue uma indagação mencionada por Ferreira (2013, p. 504): “se Boaz era um parente próximo, não caberia a ele proteger Noemi sem que ela dependesse de Rute para sobreviver, ou seja, ter o que comer? Aqui começa a se colocar uma situação que vai além das obrigações formais do judaísmo antigo.”

Segundo Ferreira (2013, p. 503, 504) duas possibilidades entram em cena: “Boaz toma tais atitudes de proteção, por conta do parentesco com Noemi e sensibiliza-do pela dedicação de Rute à sogra ou havia algum tipo de constrangimento causado aos pobres nos campos ou até mesmo uma violência e uma série de abusos para com as mulheres?”. É possível que a relação de parentesco entre Boaz e Noemi possa sim ter facilitado os laços e a possibilidade de Boaz ser um remidor das duas mulheres em questão. Contudo, não se pode esvaziar a possiblidade de sentimento afetivo que é justamente uma das principais pro-postas defendidas neste texto. Ou mesmo, que um sentimento afetivo tenha se gerado pela forma como Rute se apresenta a ele, provocando uma junção entre o proteger e o cuidar. Poderíamos dizer que estes fatores provocaram a reação de Boaz?

O ponto sutil desta história é justamente a relação existente entre lei e afeto. Pela lei, Boaz não teria nenhuma relação direta com a situação de Rute a não ser que há

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pedido expresso de Noemi. Contudo, a história parece se desenrolar com Rute tomando a iniciativa em situações que influenciam a vida das duas (a busca por comida, a aceitação perante o povo e a busca por compaixão). Por outro lado, Boaz não parece se preocupar com aquilo que Zelizer (2009) chama de duali-dades perigosas, no que se refere a classificar Rute dentro de categorias como: casada/viúva; nativa/estrangeira; pura/anátema. Apesar do texto não explicitar seus sentimentos, Boaz parece estar envolvido afetivamente por Rute através de um reconhecimento por ela não ter procurado outros homens mais jovens do que ele, nem ter usado de maneira interesseira de sua hospitalidade. O PREÇO DO RESGATE: UM SENTIMENTO AFETIVO

O aspecto formal da situação, atenta para o fato de que Boaz estaria na posição de alguém que pode ajudar em termos formais, pelo fato de ser membro da fa-mília de Elimelec. Neste sentido, ele se enquadra como um possível remidor, (mesmo que pela história seja possível constatar que ele não seja o único, nem o primeiro a ter direito sobre tal tarefa). Sua função era preservar o direito de propriedade concernente a sua família, utilizando para isso de seus próprios recursos para ajudar a um parente mais pobre (Lv 25,29). A motivação deste tipo de ato não era colocar sob sua responsabilidade uma propriedade alheia, mas preservar que tal bem fosse vendido à outra pessoa. Segundo Ferreira (2013, p. 504), a lei do resgate estabelecia dois pontos principais:

“Se alguém, por motivo de empobrecimento, fosse obrigado a vender a sua terra, então o parente mais rico tinha a obrigação de “resgatá-la”. Ou seja, ele devia comprá-la não para si mesmo, mas para dá-la ao parente pobre impossibilitado de fazê-lo (Lv 25,23-25);

• Se alguém, por motivo de empobrecimento, via-se obrigado a vender-se a si mesmo como escravo, o parente mais próximo tinha a obrigação de “resgatá-lo”. Ou seja, ele devia pagar a soma necessária para que seu irmão recobrasse a liberdade (Lv 25,47-49). Esse parente próximo era chamado de “resgatador” (em hebraico, goel). O objetivo da lei do resgate era defender e fortalecer a família no sentido amplo.”

Em termos de organização familiar, a tentativa era de preservação da terra via núcleos familiares, contudo, isso não evitava a concentração e o monopólio do poder o que resultava em tentativas de se evitar sempre que possível à acumulação de terras bem como a própria compra de pessoas para atuarem como servos e servas. Isso era fato em várias das províncias dos israelitas. Desta situação é possível pensar que a amizade e solidariedade entre Noemi e Rute colocam a tona questões emergenciais: a resolução da questão econômica e da questão social, que na verdade se resumiam ao fato de terem meios de como se

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alimen-tarem e retomarem a sua propriedade e o restabelecimento do núcleo familiar e a condição de convivência e aceitação em Israel.

Segundo Ferreira (2013, p. 504) “Noemi traça um plano e Rute segue as suas orienta-ções, pois Noemi tem como ideia levar Boaz a cumprir a lei do resgate (Rt 3,2-6).” Neste caso o resgate de propriedade e o cumprimento da lei do levirato, guarda por si mesmos pontos bem específicos. Comparando ao caso de Tamar (Nora de Judá, que também buscava recompor sua família), ela havia recebido promessa de que quando o filho mais novo de Judá pudesse casar, ele seria es-posa dele, garantindo assim a manutenção familiar, algo que não ocorreu, por isso ela toma a atitude de vestir-se como prostituta montando um plano para conquistar Judá. Já o caso de Rute é diferente, pois Boaz não oferece resistên-cia ao se aproximar dela, além disso, ele não a toma por mulher antes de se casarem. Não há portanto, como afirmar que o “plano” tenha saído da forma como planejado, pois o casamento entre os dois aconteceu sem que um erro em termos de conduta e tradição, “forçasse” tal união. O que vemos é Boaz protegendo Rute de um constrangimento moral, permitindo que ela dormisse a seus pés, mas que logo pela manhã voltasse para casa.

Para Ferreira (2013, p. 505) este ponto da narrativa coloca uma questão: “Rute quer que Boaz cumpra a lei do levirato ou a lei do resgate? Ou as duas, usando de per-suasão para isso? Como Boaz exercerá o direito de resgate e sua possibilidade de executar a lei do levirato.” Uma coisa seria pensar a devolução da terra para Noemi e Rute via pagamento e devolução, outra coisa é pensar a restituição de uma configuração familiar atingida pelos eventos de morte dos três homens que estavam naquela família (BRENNER, 2002; SILVA, 2002). Não havia relação direta entre os dois aspectos.

Segundo a tradição em Israel e sua Lei, quando um homem vem a falecer sem deixar descendentes diretos (filhos), o seu irmão poderá desposar a viúva, contudo, esse ato é mais para dar continuidade à linhagem do marido, do que propria-mente dar amparo à esposa viúva. Lembramos a possibilidade da carta de divórcio, comentada e repudiada por Jesus (Mt 19, 1-12), como exemplo de forma de dissolução do casamento no meio judaico. Isso coloca uma condição mais vulnerável para mulher dentro da lei. Voltando a questão do levirato, quanto acontecia do irmão do falecido assumir a esposa deste, o nome dado a tal acordo era “casamento por levirato”. Contudo, em casos em que não en-volvia um irmão, mas um parente próximo, isso também era possível. Um dos fatores para isso era a preservação do nome, ou era a possibilidade de resgate e bens e reconstituição familiar.

Na condição em que se encontrava Boaz, para além dos acordos que teve de fazer para concretizar sua intenção de se casar com Rute. Era preciso um esforço em se certificar de que ele de fato poderia sem prezuízo as leis de Israel,

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colocar--se como o goel desta situação. No entanto, ele descobre existência de outro homem que devera ser consultado. Uma vez que o parente mais próximo que Boaz se recusa a ser o remidor, Boaz fica com o caminho livre para se unir a Rute. Se fosse apenas pela questão da restituição da terra sem casamento, o primeiro goel poderia ter se responsabilizado, mas parece aqui haver certo esforço de Boaz por unir as duas questões em torno de si mesmo.

Neste sentido a obrigação da restituição da terra mais a questão do casamento pa-recia algo pessoal que Boaz estava disposto a cumprir. Não era só a compra do campo que estava em jogo. A preservação do nome do falecido também parecia não ser nem um empecilho, nem um incomodo para Boaz, visto que o filho que nascera de Rute e Boaz na verdade seria herdeiro de Malon (falecido marido de Rute). Em terno se sujeitado a tal tarefa, Boaz se coloca a porta (ou portão) da cidade, segundo Ferreira (2013, p. 505), “é o lugar onde o povo se reúne para tratar das questões do seu cotidiano (temas sociais, administrativos, comerciais e até mesmo religiosos)”. Foi neste cenário que Boaz tomou co-nhecimento de que poderia ser o remidor que traria Rute e Noemi para o meio social de Israel.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem do Livro de Rute pode ser considerada além de uma costura das questões sociais ligadas com a lei mosaica, algo que perpassa a ideia sobre o amor (e o afeto) dentro das páginas bíblicas. Constata-se então, por intermédio da tra-jetória de Rute, como foi apresentada, que uma mulher pagã, aceita por Boaz através da lei do Levirato tem a sua história inclusa no cânone judaico sendo considerada, nas palavras de Ferreira (2013, p. 505) “como uma prosélita ideal (Dt 10,19)”, o que faz que “a genética não é o fator primordial no judaísmo, mas sim a crença e a prática dos mandamentos” (SCARDELAI, 2012). Assim, a história de Rute está em sintonia com a abordagem sociológica, que consi-dera que a cultura se sobrepõe aos fatores biológicos.

Concordamos com Ferreira (2013, p. 506), quando esta afirma que “o livro de Rute nos ajuda a resgatar e reafirmar o constante respeito ao estrangeiro fazendo Israel lembrar-se que foi estrangeiro e cativo na terra do Egito e sua libertação foi uma ação de Deus.” Portanto, o Livro de Rute tende a unir temas como os “direitos humanos” e as “questões sociais”, além da questão da benevolência que o afeto mútuo pode produzir para além das convenções sociais e a força da lei. Além disso, o Livro de Rute resgata as leis que problematizam a situação de viúvas e órfãos e abrem uma perspectiva de inclusão politica e social. A história de Rute estabelece homologia com a leitura que a Sociologia reivindi-ca para se pensar o debate sobre gênero, na medida em que este texto também

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toca um conjunto de temas bastante caros à Sociologia, tais como cultura ver-sus direito, direito verver-sus afeto. Ademais, a questão de gênero, do emigrante e da inclusão politica e social seguem como temas clássicos para essa disciplina. Portanto, o objetivo desse artigo foi mostrar, a partir do livro de Rute, a possi-bilidade de diálogo entre Sociologia e tradição religiosa.

REMISSION AND FEELING: THE HISTORY OF RUTE AND BOAZ THE LIGHT OF SOCIOLOGY OF AFFECTS

Abstract: the article in this issue addresses two themes that will make sense to the history of the book of Ruth, namely: remission and affective feeling. Both fea-tures will make sense to the life of the characters in this book. In addition to a simple historical account, what is at stake is the perception that above the logic of personal interest and the maintenance of tradition it is possible to see the theme of affectivity take the historical scenes narrated. For this reason, we make use of a bibliographical research on the book of Ruth seeking to highlight the aspects of the Mosaic Law that deals directly with the care of the poor and the property right, inserting in this context the themes of recognition and affection with elements that intertwine the economic, cultural and politi-cal issues.

Keywords: Remission. Feelings. Religion.

Nota

1 Lideranças tribais que poderiam unificar as 12 tribos de Israel em caso de guerra contra um inimigo comum ou mesmo julgar e representar apenas uma delas.

Referências

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ARAÚJO, Gilvan Leite de. História da festa judaica das Tendas. São Paulo: Paulinas, 2011. BONDER, Nilton. Pessach: um manual. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

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BÍBLIA Sagrada de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 2001.

BRENNER, Athalya (Org.). Rute a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2002. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

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FERREIRA, Cláudia Andréa Prata. O livro de Rute: uma leitura sobre o discurso e as relações de poder. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 45, n. 2, p. 496-509, set./dez. 2013. GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2018. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2013.

HENRY, Matthew. Comentário bíblico de Matthew Henry. 4. ed. Rio de janeiro: CPAD, 2004. KRAMER, Pedro. Origem e legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. São Paulo: Paulinas, 2002.

LOPES, Mercedes. O livro de Rute. Ribla: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, São Bernardo do Campo, v. 20, n. 52, p. 37-52, junho 2005.

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SCARDELAI, Donizete. O escriba Esdras e o Judaísmo: um estudo sobre Esdras na tradição judaica. São Paulo: Paulus, 2012.

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Imagem

Figura 1: Ciclo do ano judaico.

Referências

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