• Nenhum resultado encontrado

Religião e Mística: Elementos Constituintes das Lutas Camponesas no Brasil

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Religião e Mística: Elementos Constituintes das Lutas Camponesas no Brasil"

Copied!
20
0
0

Texto

(1)

carolina teles lemos**

RELIGIÃO E MÍSTICA:

ELEMENTOS CONSTITUINTES DAS LUTAS CAMPONESAS NO BRASIL*

resumo: neste artigo nos ocupamos com o lugar e o papel da religião e da

mística enquanto elementos presentes nas lutas dos movimentos de lutas camponesas. Nossa análise aponta para a concepção de que a religião e a mística, pelo seu potencial de mobilizar as pessoas na busca de melhorias para si e para os outros, desempenham um papel dinamizador também no enfrentamento de questões relacionadas com as injustiças e desigualdades sociais. Sinais desse papel podem ser percebidos na presença histórica do elemento religioso e da mística nas lutas camponesas tanto em períodos mais antigo da história do Brasil como na atualidade. Tal presença se percebe tanto por parte dos/as trabalhadores/as envolvidos/as nessas lutas como dos/as agentes de pastoral que nelas estão inseridos, na condição de líderes ou de intelectuais orgânicos.

Palavras-chave:

Religião. Mística. Lutas camponesas. Acampados. Agentes de pastoral.

n

os debates sobre o lugar e o papel da religião e da mística enquanto elementos presentes nas lutas dos movimentos sociais na atualidade vemos diversos posicionamentos dos debatedores. Para alguns, a religião e a mística representam um empecilho às lutas, pois desempenham um papel amortizador quanto aos impactos dos acontecimentos referentes às injustiças e desigualdades sociais, resultando em redução do

(2)

poten-cial de enfrentamento dessas questões tanto pelos movimentos sociais quanto pelas pessoas em particular; para outros a religião e a mística, pelo seu potencial de mobilizar as pessoas na busca de melhorias para si e para os outros, desempenham um papel dinamizador também no enfrentamento de questões relacionadas com as injustiças e desigual-dades sociais; para outros ainda, religião e mística respondem apenas às questões de foro íntimo, não tendo nada a dizer nem como amor-tizadora nem como motivadora para as lutas sociais. e os movimentos sociais de luta pela terra, que lugar dão à religião e à mística? ou, melhor colocando a questão: que lugar ocupam a mística e a religião no caso das lutas pela terra no Brasil? no texto que segue, buscamos responder a essas questões. Para realizar tal tarefa, vamos explicitar os conceitos de mística e de religião, bem como destacar o lugar de tais elementos nas lutas camponesas; o segundo tópico aborda a presença histórica do elemento religioso e da mística nas lutas camponesas em períodos mais antigo da história do Brasil; em seguida, vamos evi-denciar como, no caso das lutas concretas dos movimentos sociais no campo, os/as trabalhadores/as envolvidos/as nessas lutas vivenciam e explicitam a compreensão que têm da mística e da religião; por fim, chamaremos à cena os/as agentes de pastoral que estão inseridos nas lutas camponesas, na condição de líderes ou de intelectuais orgânicos, para que nos falem de sua própria mística.

a “mÍstica” e a reliGiÃo como Um Direito Do/a camPonÊs/a

Forman (1979, p. 273), em sua análise sobre o campesinato brasileiro, apreende muito bem o papel da mística no contexto das ações, lutas e organizações no campo:

Mesmo nos movimentos políticos contemporâneos mais secularizados, as crenças religiosas desempenharam um duplo papel. Assim, para o alistamento de camponeses e trabalhadores rurais em associações sindicais e polí ticas e na sua mobilização para uma ação política di reta era preciso que seus organizadores soubessem ma nipular os símbolos religiosos, dando-lhes novo signi ficado.

também José de souza martins, em uma entrevista ao centro de estudos e ação social (ceas), am plia esta visão, afirmando que uma das

(3)

reivindicações dos camponeses é o direito à sua própria mística. Para martins

os setores mais avança dos da Igreja têm muita dificuldade em aceitar o catoli cismo popular, o misticismo, etc. Uma das rei vindicações claras e óbvias das populações do campo é a reivindica ção ao direito de ser mística, de ter uma outra visão da religião, da religiosidade, inclusive uma outra visão de Deus. Temos ignorado isso, em nome dos nossos valores, das nossas preocupações mais ra cionais, que são menos emocionais. A população está reivindicando inclusive isto: o direito de ser mís tica. Se a gente chama isso de alienação, ela está reivindicando inclusive o direito de ser alienada1.

Pelas afirmações anteriores, vimos que, além de destacar a necessidade da mística para os camponeses, os autores fazem uma crítica à forma como os movimentos sociais se posicionam em relação a ela. essas afirmações ainda fazem sentido no contexto dos movimentos sociais organizados em torno das lutas camponesas atuais? Vamos, nos itens que seguem, tentar responder a essa questão iniciando por esclarecer os conceitos de mística e de religião.

alguns autores definem religião como religiosidade, uma adesão a crenças e a práticas relativas a uma igreja ou instituição religiosa organizada, e diferenciam-na de espiritualidade, a relação estabelecida por uma pessoa com um ser ou uma força superior na qual ela acredita (lUKoF, 1992). a nosso ver, a conceituação de religião inclui tanto os aspectos individuais como os institucionais, podendo esses aspectos ocorrerem juntos ou apenas ocorrer aquilo que é mais comum ser denomina-do como espiritualidade, ou seja, um fenômeno apenas individual, identificado com aspectos como transcendência pessoal, sensibilidade ‘extraconsciente’ e fonte de sentidos para eventos na vida (sieGel,

et al., 2001). entre os tantos conceitos de religião encontrados, o que

mais se aproxima da perspectiva que vislumbramos em nossa análise parece ser o que segue: religião é

uma estrutura de discursos e práticas comuns a um grupo social referentes a algumas forças sobrenatu rais, personificadas ou não, múlti plas ou uni-ficadas, tidas pelos crentes como anteriores e superiores ao seu ambiente natural e social, frente às quais os crentes expressam certa dependência e diante das quais se consideram obrigados a um certo comportamento em

(4)

sociedade com seus semelhantes (MADURO, 1983, p.31) e criam um sis tema de relações (culto) entre os ho mens e essas forças (deuses)

(Por-telli, 1984, p. 21).

no caso dos camponeses, pensamos que o que está sendo reivindicado é seu jeito próprio de viver suas crenças e práticas religiosas, indepen-dentemente de estarem ou não inseridos nas lutas camponesas. a reivindicação desse direito foi por muito tempo criticada pelos agentes dos

movimentos sociais nos mais diferentes setores que entendiam que as crenças e práticas religiosas reforçavam a alienação em que viviam as massas populares. no entanto, alguns pesquisadores e agentes percebiam a intensa presença do elemento religioso no cotidiano das pessoas e viam por bem valorizar esse elemento como um potencializador das lutas populares, entre elas, das lutas camponesas. entre estes, cito o pensamento de otto maduro (1983) que nos diz que as reli giões não necessariamente constituem um obstáculo à autonomia das classes subalternas, pois sob determinadas condições so ciais, e dada uma determinada situação interna do campo reli gioso, certas práticas, dis-cursos e institui ções religiosos de sempenham, em sociedades de classes, um papel favorável ao de senvolvimento autônomo de certas clas ses subalternas e ao forta lecimento de suas alianças contra a dominação. isto se dá, principalmente, quando o sistema religioso das classes subalternas

torna explícitas as relações de do minação, dessacralizando as classes dominantes e apresen tando as lutas contra a dominação como inspi-radas pelas for ças sobrenaturais e metassociais.

a compreensão de que a religião pode desempenhar a função de media-dor ativo de uma classe subalterna para que passe de um grau, em sua consciência de classe, para um grau superior, bem como o de ser canal de organização autônoma ou de mobilização das classes subalternas foi sendo construída e/ou absorvida por teólogos como leonardo Boff e Frei Betto. os referidos teólogos articularam essa construção naquilo que denominaram como a mística do militante cristão.

Para Boff e Frei Betto (2005, p. 33-52) as palavras mística, evocando mistério, caráter incomunicável de uma realidade ou intenção, e espiritualidade, referida ao que não tem arrimo na vida material, têm sido associadas à experiência religiosa. a partir da teologia da libertação2, que nos anos 70 abriu caminho para a aproximação entre fé e política, mística, espiritualidade (e religiosidade, em sentido amplo) passaram a ser

(5)

con-sideradas experiência globalizante que não desvincula espiritualidade e ação, ética e responsabilidade pelos destinos humanos e da sociedade. no mesmo sentido afirma marcelo Barros (2002, p. 2) que “mistério”, e daí

vem a palavra “mística”, é o segredo que motiva o mais profundo da vida do crente. e esse segredo, diz ele, não é apenas intelectual. não é apenas ideológico. É de amor.

isto porque os cristãos acreditam que Jesus de nazaré resolveu abrir o mis-tério mais profundo do reino de Deus para todo mundo que quiser apaixonar-se por este projeto em sua vida pessoal e para o universo todo. este é o núcleo da fé, sem o qual tudo o mais perde o sentido. embora estes teólogos tenham destacado a experiência religiosa e, com ela,

articulado a crença no Deus judaico-cristão, uma vez que esta é a di-vindade pregada pela teologia da libertação, vemos que nem sempre é assim que ela é entendida pelos agentes das lutas camponesas. Há vezes em que a mística não se associa necessariamente a necessidade de crença em alguma espécie de divindade, como é o caso da mística praticada pelos agentes do movimento dos trabalhadores sem terra (mst) e da comissão Pastoral da terra (cPt) ou outros movimentos que se ocupam com a luta pela terra.

nesses espaços a mística é entendida muito mais como o mistério, aquele caráter incomunicável de uma realidade ou intenção que impulsiona as pessoas a lutarem por maior justiça nas relações no campo; e a transcen-dência, aquilo que não tem arrimo na vida material, característica da espiritualidade, não necessariamente se refere ao reino de Deus, mas à concretização de relações mais respeitosas entre os seres humanos entre si e entre os seres humanos e a natureza. sendo assim, nesses espaços o que eles denominam como mística e espiritualidade se aproxima mais da concepção de uma fé que reflete, conforme afirma Derrida (2000), ou de uma espiritualidade secularizada, como afirma sauer3. Para Derrida (2000, p. 11-89) na religião se cruzam duas experiências, dois

veios ou duas fontes: a experiência da crença (o crer ou o crédito, o fiduciário ou o fiável no ato de fé, a fidelidade, o apelo à confiança cega, o testemunhal sempre para além da prova, da razão demonstrativa, da intuição) e a experiência do indene, da sacralidade ou da santidade. Para o referido autor a religião é sempre a resposta e a responsabilidade

prescrita, ela não se escolhe livremente, em um ato de pura e abstrata vontade autônoma (DerriDa, 2000, p. 41). ela implica liberdade, vontade e responsabilidade, mas sem autonomia. Quer se trate de

(6)

sacralidade, de sacrificialidade ou de fé, o outro faz a lei, outra é a lei, entregar-se ao outro, a qualquer outro e ao completamente outro. será essa concepção de religião e de mística a que orienta e motiva os militantes nas lutas camponesas? ou melhor, como se articulam, então, nas lutas camponesas, os projetos de melhoria nas suas condições de vida, a mística, a vivência de suas crenças e práticas religiosas? a constrUÇÃo Do “reino messÂnico” enQUanto lUGar Da resistÊncia inFinita na HistÓria Do Brasil Para Derrida (2000, p. 29-30) para se entender a religião, duas pistas se abrem:

o messiânico e a chóra (lugar limítrofe, espaço denso de possibilidades e de significados). sendo que messiânico, para o autor, significa mes-sianicidade (abertura ao futuro ou à vinda do outro como advento da justiça; fé sem dogmas, que avança no risco da noite absoluta) sem messianismo (sem horizonte de expectativa nem prefiguração profética).

Chóra, afirma Derrida (2000, p. 29), nunca chegará a se professar em

uma ordem religiosa e nunca se deixará sacralizar, santificar, humanizar, teologizar, cultivar, historializar. radicalmente heterogênea em relação ao santo e ao sagrado, ao são e ao salvo, nunca se deixa indenizar; é o lugar da resistência infinita e não o da tolerância, uma vez que esta está sobrecarregada de conotações cristãs.

Percebemos, no caso da lutas camponesas, que essas duas perspectivas da experiência religiosa se encontram. as lutas camponesas apresentam-se, assim, tanto como o messiânico quanto como a chóra. nela, um dos mitos que é acionado como conteúdo-referência é o mito do paraíso, como o lugar predestinado por Deus às pessoas que vivem segundo seus mandamentos. no entanto, a hermenêutica presente na leitura desse mito é a já adotada anteriormente pelos movimentos messiânicos presentes nos mais diferentes lugares e tempos da história do Brasil (QUeiroZ, 1976, p. 164ss).

De acordo com a referida hermenêutica, o pa raíso é um lugar onde as relações sociais se in vertem totalmente, isto é, lá as pessoas que sofrem neste mundo gozarão de plena felicidade, enquanto os ricos e explorado res de hoje serão seus serviçais.

em tal perspectiva, ao contrário da ideia tradicional, o paraíso não repre senta o lugar da igualdade social, mas da inversão das clas ses so-ciais, em outras palavras, é o lugar da desforra dos explorados de hoje.

(7)

estes é que terão o poder de mandar, te rão suas mesas fartas, muita saúde, alegria, festas, roupas bonitas, poderão viver sem trabalhar, conviverão com seus amigos etc. tudo isto na presença de Deus. essa concepção não é nova na história do Brasil. os primeiros cronistas e

missionários que aqui passaram já assinalaram para a presença de certa efer vescência religiosa em tribos tupis-guaranis nos primei ros tem pos da colonização. na descrição de Queiroz (1976, p. 164-175), profetas indígenas iam de aldeia em aldeia apresentando-se como a reencarna-ção de heróis tri bais, incitando os índios a abandonar o trabalho e a dançar, pois os “novos tem pos”, que instalariam na terra uma espécie de idade do ouro, es tavam para chegar4. exemplificarei esta reação dos indígenas com algumas citações de maria isaura Pereira de Queiroz (1976). entre os movimentos migratórios citados por maria isaura, estão os de 1562, na Bahia, com três mil índios.

ainda na Bahia, na região do rio real, onde a fome e a doença exterminaram os ín dios aldeados pelos Jesuítas, e o restante fugiu para a flo resta, por volta de 1600, tupinam bás migraram em três tropas, em busca do paraíso terreal; em 1605, determinado pajé promoveu a migração de perto de doze mil índios que, saindo de Pernambuco, foram em direção da ilha de maranhão, onde outros já se tinham refugiado procu rando escapar aos portugueses. em 1609:

uma encarnação do demônio ou Jurupari apare ceu aos tupinambás, tam-bém em Pernambuco, propondo-lhes meios para se libertarem dos brancos e porem fim às condi ções penosas em que se encontravam; prometia-lhes que se o seguissem, levá-los-ia para o paraíso terrestre dos caraíbas e dos profetas. O povo foi atrás dele em um número superior a sessenta mil... Afirmava o líder que era chegado o momento de nativos retomarem o lugar dos senhores, escravizando os brancos; por isso Deus o enviara a pregar. O ídolo que adoravam liberta ria os fiéis do cativeiro, passando os brancos dali por diante a trabalhar, e os que recusassem seriam trans formados em árvores e pedras (QUeiroZ, 1976, p.169).

assim, nestes primeiros séculos de colonização, movi mentos indí genas sincréticos violentos e não violentos enri queceram a paisa gem religiosa e povoaram as reações de resistên cia à violência que lhes estava sendo imposta. como a distribuição eqüitativa das terras não acontecia, premidos pelas

(8)

do próprio estado, os campone ses foram aos poucos tentando assumir sua própria história e organizando-se de diversas maneiras, ao arrepio da lei, para lutar pelo seu chão.

essas reações às vezes tiveram um caráter apenas de protes tos, como no caso dos cangaceiros, no nordeste, entre 1870 a 1940; o movimento dos Balaios, no maranhão, de 1838 a 1841. outras vezes apresentaram ca racterísticas de protestos religiosos, como é o caso dos movi mentos messiânicos5 que surgiram nesse período.

Um exemplo do segundo caso ocorreu em canudos, em 1870 quando, sob a liderança messiânica do monge antônio conse lheiro, as lutas cam-ponesas assumiram a fórmula mística de busca da terra prometida. reuniram-se 30.000 camponeses que viviam e trabalha vam em regime de comunismo primitivo. tudo era bem comum. acaba ram formando uma cidade que ganhou o nome de Belo monte.

a república é que foi ajustar contas com aqueles cam poneses “monarquistas”. os três primeiros ataques do exér cito regular foram repelidos com êxito. mas o combate era desigual porque os camponeses estavam isolados. atacados por 10.000 ho mens, sucumbiram à grande superioridade do fogo.

outra campanha da vigilante república contra camponeses “monar-quistas” foi a do contestado, de 1912 a 1916. De novo sob a liderança de um místico “curandeiro e benzedor”, o ex-militar José maria. mas o caráter de classe da luta já é mais franco e pronunciado que o de canudos. essas lutas sob liderança messiânica traduzem seu cará ter espontâneo e refletem o isolamento das massas camponesas na re-sistência permanente ao latifúndio.

essa forma de experienciar a mística acima descrita seria o que Derrida de-nomina como a abertura ao futuro ou à vinda do outro como advento da justiça; fé sem dogmas, que avança no risco da noite absoluta. afirma Derrida (2000, p. 12) que na trajetória do debate, na história da

historicidade da religião há que se encontrar uma forma de considerar uma história do mal radical, de suas figuras que nunca se limitam a ser figuras e que sempre inventam um novo mal. isto porque sabemos que a perversão radical do coração do homem (Kant) não é uma só, nem dada de uma vez por todas. a escritura representa perfeitamente o caráter histórico e temporal do mal radical. e, pelo que vimos, o mal radical enfrentado pelos indígenas e camponeses em luta era a carência de possibilidades mínimas de sobrevivência. sendo assim,

(9)

somente a construção de um reino messiânico poderia lhes devolver essas possibilidades.

o mito Da “terra Para toDos” e a salVaÇÃo Do “mal raDical”

a mística das lutas camponesas se aproxima da afirmação de Derrida (2000, p. 70), quando o autor afirma que a mesma lógica que fornece uma fonte comum entre religião e ciência se faz presente na concepção de salvação: salvar a vida, salvar o vivente como o intato, o indene, o salvo, que tem direito ao respeito absoluto, à retenção, ao pudor. Para o autor este postulado coloca uma questão: por um lado está o respeito

absoluto pela vida, o “não matarás”, por outro lado, até mesmo para garantir este princípio, há a necessidade do sacrifício. essa mesma dinâmica se percebe nos momentos mais fortes de conflitos das lutas camponesas: para defender a vida, muitas vidas correm o risco de serem, e muitas vezes são, sacrificadas.

É na concepção da luta pela vida que se inserem as lutas pelas transformações nas relações sociais que se estabeleceram no Brasil nas últimas décadas do século XX. em 1978 o Brasil foi sacudido pela greve histó rica dos metalúrgicos do aBc Paulista. os trabalhadores rurais não foram tes-temunhas passivas des ses acontecimentos. entraram na luta, iniciando sua orga nização para conquistar a terra em suas regiões de moradia, resistindo ao êxodo e à migração e denunciando a concentra ção da terra (torrens, 1992).

a repercussão foi imensa. os lavradores começaram a or ganizar-se em nume-rosos municípios. contavam com a ajuda de vá rios sindicatos. eram animados pelo trabalho da Pasto ral da terra e pelas comunidades eclesiais de Base (ceBs).

afirma torrens (1992) que, em Janeiro de 1985, em curitiba, Paraná, acon-teceu o pri meiro congresso dos trabalhadores rurais sem terra, com a pre sença de 1.500 delegados vindos de todos os estados. tam bém es tavam presentes representantes de lavradores organiza dos do Peru, equador méxico e Bolívia.

as posições e princípios formulados nesse encontro fo ram: que a terra seja para quem nela trabalha; que a reforma agrária seja feita sob o con-trole dos trabalhadores; que os trabalhado res rurais tenham o poder de decidir sobre como se vai dividir as terras e cultivá-las e também

(10)

sobre as formas de titulação; que o governo legalize todas as terras que fo rem ocupadas; os trabalhadores rurais que ocuparem as terras devem criar suas leis e organismos (torrens, 1992, p. 79).

a reação violenta do latifúndio não se fez esperar. Um in ventário parcial6, de iniciativa dos trabalhadores rurais sem-terra apurou 1.100 assassinatos no campo entre 1964 e 1985. o número de vítimas au-menta de ano para ano. em 1982, foram assas sinados 58 trabalhadores rurais; em 1983 já são 98 mortes no campo. em 1984, são eliminados 128 trabalhado res da roça e em 1985 o número de mortes sobe para 222. só nos primeiros 4 meses de 1986 são assassinados 115 pobres do campo.

embora o número de assassinatos tenha diminuído, a realidade de conflitos e mortes no campo continua nos anos que marcam a virada do milênio. apresentamos a seguir duas tabelas em que aparecem os números de conflitos e de assassinatos no campo, bem como o número de pessoas (camponeses e lideranças de movimentos camponeses) envolvidas nos conflitos:

tabela 1: conflitos de movimentos camponeses de 1995 a 1999

1995 1996 1997 1998 1999

conflitos 554 750 736 1.100 983

assassinatos 41 54 30 47 27

Pessoas 381.086 935.134 506.053 1.139.086 706.361

Fonte: cPt (2004, 2004, p. 12).

tabela 2: conflitos de movimentos camponeses de 2000 a 2004

2000 2001 2002 2003 2004

conflitos 660 880 925 1690 1.801

assassinatos 21 29 43 73 39

Pessoas 556.030 532.772 451.277 1.190.578 1.083.232

(11)

Pelas afirmações das pessoas acima apresentadas e pela descrição da intensidade das lutas camponesas, com o resultado de violência acima descrito, podemos perceber que não é a inconsciência da dureza da realidade que leva os camponeses à luta, mas sim, ao contrário, a esperança da superação do mal radical das injustiças sofridas (tabelas 1 e 2). ou seja: eles lutam porque crêem na mudança e crêem na mudança porque lutam. e é isso que significa a experiência de uma “fé que reflete”.

no caso das lutas camponesas, a mística é alimentada por diversos

mitos e símbolos e por ideias-chave presentes na cultura popular

e na tradição bíblica. Um exemplo é que, em nossa pesquisa

7 (lemos, 1994, p. 98), uma afirmação que perpassa as respostas das lavradoras e lavradores entrevistados/das é a de que a terra é para todos. nessa insistência transparece um dos principais mitos que justi fica e sustenta a lutas camponesas hoje, o mito da criação, no qual Deus, ao criar a terra, povoou-a com as outras cria turas e deu ao homem para que cuidasse dela e nela se multipli casse. eis o que afirmou José, um dos membros do acampamento de sem terras em tamarana, Paraná:

acho que ele (Deus) dá força para nós, acho que nós não tamos fazendo pecado em invadir terra, porque Deus deixou a terra para todos; Eu acho que tem que ser assim, né, porque antes Deus deu a terra prá todos, não escolheu pessoa, os podero sos que caçaram pra eles (lemos, 1994, p. 147).

Podemos recorrer à perspectiva de Derrida (2000, p. 11) para entender a mística da lutas camponesas. segundo o referido autor, há que articular o discurso sobre a religião a um discurso sobre a salvação (o são, o salvo, o indene, o santo, o sagrado, o imune).

Para Derrida a ideia de salvação está relacionada com a ideia do mal (o mal hoje, presentemente): identificando o mal se terá acesso ao que pode ser a figura e a promessa da salvação para o nosso tempo e para a sin-gularidade do religioso que está de volta.

nessa perspectiva, de qual mal buscam salvar-se os protagonistas da lutas camponesas? Visam eles libertar-se dos males de uma política agrária e agrícola que, há séculos, favorece sempre uma classe privilegiada no campo e os deixa desamparados, mas busca libertar-se, acima de tudo, da concentração injusta da terra nas mãos dos latifundiários e de todas as conseqüências dessa concentração: fome, doenças, falta de moradia, de trabalho, violências e assassinatos.

(12)

a certeza de que a promessa de Deus se realizará é alimentada pela mística cotidiana da lutas camponesas. Para os que estão envolvidos nessas lutas, tanto é verdade que a terra feita por Deus é para todos que, Deus até “já deu” provas concretas de que está lutando com eles. em um confronto com a polícia, o jeito que “Deus lutou” foi man dando uma forte chuva. esta chuva favoreceu os/as sem-terra, pois inutilizou as bombas de gás da polí cia, além de atolar os ônibus em que estes vieram, facili tando a mobilidade dos/as acampados/das que estavam acos tumados a conviver com a mesma. eis a narrativa de D. isabel, membro de um acampamento em ibema, Paraná, quando perguntei a ela se sabia da ocorrência de algum milagre ocorrido no acampamento:

me lembro da questão do dia 28 de dezembro. O confronto com a polícia a gente não esperava nada, todo mundo dor mindo, de repente o batalhão chegou. O pessoal se pe gou na organização e com fé e coragem enfrentou os ho mens. Deus nos ajudou muito. O dia tava bonito e Deus logo mandou chuva para nos ajudar. A chuva judiou de nós mas judiou mais deles. A bomba de gás mesmo não ia funcionar com a chuva. Aquele dia para nós foi muito importante, uma data inesquecível (lemos, 1994, p. 85).

sendo assim, se para Derrida (2000, p. 12) o mal é a abstração radical que se dá em diferentes lugares: máquinas, técnicas, tecnociência, transcendência teletecnológica, para os sem-terra e para todos os que lutam para perma-necer na terra e dela sobreviver, o mal é a não possibilidade de acesso a ela. afirma o autor que, para se falar da religião, é necessário pensá-la a partir de

potências de abstração e dissociação, como desenraizamento, desloca-lização, desencarnação, formadesloca-lização, esquematização universalizante, objetivação, telecomunicação (DerriDa, 2000, p. 12). Vemos que é nessa situação que as pessoas que lutam pela terra vivenciam sua mística. e o fazem não como forma de abstração, mas como forma de encarnação, de experiência, de envolvimento na superação daquilo mesmo que os faz desenraizados, deslocalizados.

Para entender a relação entre religião e razão, Derrida (2000, p. 20) retoma o pensamento de Kant, e afirma que na origem e trajetória dessa relação a imagem da terra prometida pode ser o vínculo essencial entre a promessa do lugar e a historicidade.

no caso da mística das lutas camponesas, o mal radical (a injustiça) apresenta sua cara bem explícita: as pessoas não têm a terra e são agredidas

(13)

quan-do buscam conquistá-la. se a escritura representa o caráter histórico e temporal do mal radical, a memória do sofrimento vivenciado nas lutas relata a busca de superação desse mal. ela também está muito presente nas celebra ções, mas já agora transformada em símbolo de vitó ria, pelo fato de ser compreendida como parte do processo das lutas camponesas. na narrativa que segue, percebemos essa perspectiva. o sr. sebastião, acampado em ibema, Paraná, nos conta sobre os fatos que mais marcaram, para ele, no decorrer das lutas:

a missão que fazia tipo procissão e rezamos o sofri mento quando chegamos aqui, o temporal que enfrenta mos. Os pisto leiros que enfrentamos, a polícia que en frentamos, o despejo até com metralhadora, tudo. Só por Deus pra vencer; e a celebração da entrada, porque a gente sofreu tanto na quela entrada, a gente agradece a Deus a permanência aqui na área e pede que ele ajude a manter nosso obje tivo (lemos, 1994, p. 73).

esta visão de que o sofrimento é também vi tória está muito li gada ao mito da terra prometida, segundo o qual, para que os israelitas a conquistassem, teriam que derrotar todos os povos que a esti vessem ocupando. assim como eles sofreram nessas lutas, atual mente não pode ser diferente com as(os) sem-terra.

afirma Derrida (2000, p. 42) que religião se refere a resposta, a sacramento e testemunho. esses elementos compõem uma raiz comum entre a religião e a razão crítica e tecnocientífica, ou seja, religião e razão têm a mesma fonte. ambas se desenvolvem a partir do recurso à garantia testemunhal do todo performativo que compromete a responder tanto diante do outro quanto a respeito da performatividade performante da tecnociência. a mesma fonte única divide-se maquinalmente, au-tomaticamente e opõe-se reativamente a si mesma. essa reatividade é um processo de indenização sacrificial, ela tenta restaurar o indene que é ameaçado por ela própria.

nos espaços das lutas camponesas o sacramento e o testemunho são ex-pressados de diferentes formas nas celebrações por eles vivenciadas. celebrar os acontecimentos da luta se torna importante como fator alimentador da mística, pois como afirma Benincá (1987, p. 97-106), se através do simbólico, o ri tual con seguir transformar a assembléia numa comunidade onde os par ticipantes, abdicando dos seus critérios individuais de dis cernimento, assumirem a visão de mundo celebrada

(14)

na ação li túrgica, terá, então, conseguido sua eficácia. esta eficá cia, porém, exige do fiel participante uma avaliação moral de suas práticas sociais e políticas, simbolicamente reves tidas com rou pagem religiosa, à luz dos princípios morais da visão de mundo do ritual.

no caso das lutas camponesas, a força do ritual é um fator alimentador. nele se faz presente a memória dos momentos fortes da luta. ao narrar os momentos que consideram significativos, as lavradoras e lavrado res fornecem elementos que nos ajudam compreender a mística e a força que os mantém unidos nos momentos mais fortes dos confli tos. e eles não foram poucos e nem fáceis de serem enfrentados, como destaca D. olinda ao falar sobre o quê, na perspectiva dela, teria sido um momen-to significativo nas lutas. embora a narrativa seja um pouco longa, a transcrevemos toda, para destacar a riqueza de informações nela contida.

O mais significativo foi o momento que houve a polí cia, porque houve um crescimento maior e melhor em termos de or ganizações. O pessoal, quando estava le vantando, a polícia chegou, por volta das 6:30h. da ma nhã. Com poucas palavras o pessoal já estava unido, tentando resistir a polí cia. Eram em torno de 700 a 800 po liciais contra mais ou menos 1.500 a 2.000 pes soas. Um grupo guarneceu a parte da cerca, levando foice, água para se pro teger contra bomba de gás. Le varam também bomba de gasolina, que foi cons truída na hora. E a terra foi nossa arma. E houve orações de uma companheira adventista que rezou o tempo todo. As mulhe res ficaram juntas fazendo comida para alimentar as crianças. Era falada uma palavra de ordem, que era ocupar, resistir e produzir. Ao meio dia, conseguimos afastar os policiais e fo mos percebendo que estávamos com a vitória. Eu sinto que houve uma vitória para os camponeses, e todos os sem-terra de todo Paraná e do Brasil. Se eles conseguissem dominar nóis seria uma derrota para todo o país. Para nós foi um marco histó rico da luta, que é sempre lembrado pelas famílias da comunidade de Cristópolis (nome dado ao acampamento) (lemos, 1994, p. 109).

essa narrativa pode ser entendida à luz do pensamento de Derrida (2000, p. 20) que, a partir do pensamento kantiano, afirma que só existem duas famílias de religião, duas fontes ou dois troncos: a religião de mero culto, que procura os favores de Deus, mas essencialmente não age, limita-se a ensinar a oração e o desejo. o homem não tem que se tornar melhor, ainda que seja pela remissão dos pecados; ou a religião

(15)

moral, que visa a boa conduta da vida; comanda o saber, dissociando-o do saber o qual lhe está subordinado, e prescreve o tornar-se melhor agindo para tal fim exatamente a partir do seguinte princípio: não é essencial nem necessário que alguém saiba o que Deus faz ou fez para sua salvação, mas antes o que ele mesmo deve fazer para ser digno dessa ajuda. trata-se de uma “fé que reflete”. essa é a fé que percebemos nas pessoas que lutam pela terra.

a mÍstica como eXPressÃo De Uma “FÉ QUe reFle-te”: o caso Dos aGentes lÍDeres nos moVimentos sociais camPoneses

referindo-se às lutas camponesas do século XX, segundo sauer (1993, p. 20), a realidade de violência no campo, gestada pelo autoritarismo de um modelo agrícola e agrário brasileiro concentrador, gerou uma indignação ética em amplos se tores da igreja. esta indignação ética foi um dos moto res propulsores do envolvimento e apoio de setores das igrejas às lutas populares no campo. tais setores, in fluenciados e res paldados pelos pressupostos teórico-teológicos da teologia da libertação e pelos avanços eclesiais, desenvolveram uma militân cia pastoral e fize ram com que as igrejas respondessem com ati tudes de so lidariedade e denúncia proféticas, através de docu mentos e manifestos oficiais.

a perspectiva levantada por sauer se aproxima da forma de compreensão de Derridá, quando trata da mística a modo de “fé que reflete”.

tal perspectiva é melhor percebida nos depoimentos dos agentes de pastoral que atuam nos acampamentos e assentamentos de sem terras no sul do Brasil. os agentes de pastoral são pessoas que atuam em nome de suas igrejas ou da cPt, junto aos acampados/as, com a intenção de contribuir na organização e no forta lecimento da luta pela terra. em nossa análise, os colo camos na categoria dos intelec tuais orgânicos, seguindo o conceito dessa categoria oferecido por Gramsci8.

celmo, um dos agentes de pastoral ligado à cPt, atuante nos acam-pamentos de trabalhadores sem terra em ibema e tamarana, Paraná, assim se coloca frente à luta cotidiana pela terra: “se existe um Deus no qual eu acreditei, e eu es tou lutando, então eu estou fazendo o que Deus quer. se ele não existe, eu fico feliz igual. Porque estou con tribuindo para que as coisas mudem e os outros sejam fe lizes” (lemos, 2004, p. 124).

(16)

o depoimento desse agente pode ser entendido à luz do pensamento de Derrida (2000), ao afirmar que Kant, para definir a fé que reflete, recorre à lógica de um princípio simples: para nos comportarmos de forma moral, é necessário proceder como se Deus não existisse ou já não estivesse interessado pela nossa salvação.

Pelo que podemos perceber no depoimento do agente acima citado, a falta de certeza sobre a existência de Deus não se configura como um grave problema à sua mística, uma vez que o que ele deseja mesmo são as mudanças, ou seja, a superação do mal radical que traz a infelicidade à população camponesa.

talvez essa experiência pudesse ser melhor compreendida à luz da referência feita por Derrida (2000, p. 22) ao pensamento de Hegel. afirma o autor que, para Hegel, a verdade da religião é o saber absoluto. a religião dos tempos modernos será fundada no sentimento de que o próprio Deus morreu. as filosofias dogmáticas e as religiões naturais devem desaparecer, e a mais serena liberdade, em sua mais elevada totalidade, deve ressuscitar da maior dureza, da mais empedernida impiedade, do vazio da mais grave privação de Deus.

o alimento da mística das lutas camponesas é buscado nos textos bíblicos pelos seus protagonistas. Para o agente do meio rural, a palavra bíblica tem no seu contexto um sentido de interpretação do sofrimento e es-perança, a partir do jeito de ser e viver do homem e da mulher pobre e agricultora. Daí a prática das lutas camponesas ser associada ao jeito profé tico dos agentes bíblicos e as suas dimensões de perceber a atuação de Deus na história e na proposta de um novo homem e uma nova mulher, com dignidade e justiça, pois como afirma antônio, um dos agentes de pastoral “o projeto final que a gente tem como cristão de um novo céu e uma terra deveria come çar por aqui e a luta pela terra é um dos jeitos de concretizar” (lemos, 2004, p. 199).

Basicamente podemos perceber, nas respostas, que os/as agentes entendem como sendo a mensagem de sua religião a questão da solidariedade e do apoio às lutas camponesas. Por outro lado, também podemos perceber que o tema da defesa da vida tem um pa pel fundamental nas suas atividades, sendo que o fundamento desta defesa passa pelo direito de acesso à terra, pelo espírito comunitário, pela busca da união. a afirmação bíblico-teológica de que a terra é de Deus, portanto, é de todos, foi a mais usada pelos agentes de pastoral, para explicitar a mensa-gem da religião na lutas camponesas: “Prá mim começa pela Bíblia, que

(17)

a terra é de todos e Deus não criou a terra para uns enquanto outros não têm o que comer, morar, sobre viver. eu tenho muito claro que Deus quer a terra para to dos” (PaUlo apud lemos, 1994, p. 86). Vimos, portanto, que um dos principais elementos motivadores da prática

sócio-religiosa que envol ve o agente de pastoral no meio rural é a palavra bí blica que, segundo eles, tem no seu contexto um sentido de interpretação do sofrimento e esperança, a partir do jeito de ser e viver do homem e da mulher pobre e agricultora. Daí a prática ser associada ao jeito profé tico dos agentes bíblicos e as suas dimensões de perceber a atuação de Deus na história e na proposta de um novo homem e uma nova mulher, com dignidade e justiça.

iDeias conclUsiVas

como entender as lutas camponesas sem ter presente a mística que a sus-tenta? sem perceber o papel importante da memória de todas as lutas anteriores na alimentação das lutas atuais? a memória coletiva, e no caso, a memória que se expressa na mística das lutas camponesas, cons-titui um dos mais poderosos agentes de solidariedade social. Utiliza símbolos cheios de sentido. as recordações evocadas por esses símbolos estão carregadas de afe tividade comunitá ria, são fonte de comunhão psíquica e quase biológica; ofe recem uma explicação, ou pelo menos uma racionali zação da situação atual; por último, propõe lições para o fu turo. É o suficiente para contribuirem para a solidariedade das pessoas envolvidas nas lutas, para chamarem seus membros à participação e para orientá-los na ação individual e coletiva.

Para Derrida (2000, p. 20-8), em relação às diferentes forças de abstração presentes na sociedade, a religião encontra-se ao mesmo tempo no an-tagonismo reativo e na supervalorização reafirmadora. ela encontra-se onde o saber e a fé, a tecnociência e a crença, o crédito, a fiabilidade, o ato de fé estiveram sempre comprometidos, ou seja, no cerne da aliança de sua oposição. Deste estado, resulta a aporia do sem saída. no caso da lutas camponesas, vejo que é exatamente aí que se alimenta a

esperança de se encontrar uma saída; ou seja, as pessoas que lutam pela terra não desconhecem os riscos que correm (está aí a história dos companheiros para alertá-los para isso); não desconhecem também a desigualdade presente no jogo de forças que marca as lutas (são os que têm e podem tudo contra os materialmente despossuídos); eles

(18)

não ignoram também as contradições presentes nas relações internas de suas organizações, nas competições e lutas pelo poder interno, nas fragilidades humanas de quem está na luta, mas fazem desse conhe-cimento o alimento para se conquistar a superação dessa situação. reliGion anD mYstic: comPonents oF Peasant strUGGles in BraZil

Abstract: in this article, we study the place and role of religion and mysticism while elements present in struggles of movement of peasant. Our analysis points to idea that religion and mysticism, by their potential to mobilize people in search of improvements to themselves and others, play a leading role in tackling issues, related with social injustices and inequalities. Signs of this role can be perceived in historic of religious presence in peasant struggles by older periods of Brazil history as today. This presence, if realizes both on parts of workers, involved the pastoral peasant wherre they are inserted how leaders or organic intellectuals.

Keywords: Religion. Mysticism. Peasant struggles. No-lands, pastoral agency.

notas

1 José de souza martins. entrevista no caderno do ceas, n. 136, p. 10.

2 lowy (2000, p. 8) afirma que a teologia da libertação é muito mais profunda e ampla que uma mera corrente teológica, como muitos a vêem. Para o autor, ela é “um vasto movimento social, que propomos chamar de ‘cristianismo da libertação’, com consequências políticas de longo alcance”.

3 sauer sugeriu essa concepção quando, por minha solicitação, reagiu a este texto. 4 Uma apresentação dos principais movimentos religiosos das tribos indígenas desse

período encontra-se em Queiroz (1976, p. 164-216).

5 Para uma melhor compreensão do que sejam movimentos messiânicos, sua caracterização e dinâmica interna, ver Queiroz (1976, p.25-45).

6 Um dossiê detalhado da violência no campo entre 1964 a 1986 encontra-se em: assassinatos no campo: crime e impunidade (1964-1986). movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, 1987.

7 trata-se de pesquisa de campo empírico, realizada em cinco acampamentos de trabalhadores/as sem terra, localizados em diferentes municípios do estado do

(19)

Paraná. a pesquisa foi em forma de entrevistas, com questões abertas. os sujeitos da pesquisa foram acampados/as que reivindicavam a realização da reforma agrária no Brasil, e agentes de pastoral que atuavam nas áreas ocupadas. o material coletado foi analisado e apresentado em forma de dissertação de mestrado em ciências da religião, pela UmesP, em 1994.

8 Gramsci (1985, p. 3) os conceitua como agentes que procuram, de um modo orgânico, dar homogeneidade às organizações populares e consciência aos seus sujeitos de sua função social e polí tica. no caso dos/das agentes de pastorais, como intelectuais orgânicos, atuam junto aos acampados, persua dindo-os a continuarem na luta, buscando uma fundamentação teórica, religiosa ou social para dar compreensão às suas lutas políticas.

referências

Barros, marcelo. Mística, utopia e valores do militante popular. conversa com 300 dirigentes do mst em um curso nacional em Goiânia – Go, em 18/07/2002. Disponível em: <www.empaz.org.br>

BenincÁ, elli. Conflito religioso e práxis. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em ciências da religião da PUc-sP, 1987. mimeogr. Frei Betto; BoFF, leonardo. Mística e espiritualidade. 6. ed. rio de Janeiro: Garamond, 2005.

cPt. comissão Pastoral da terra. conflitos no campo: Brasil, 2004. Goiânia, 2004, p. 12.

DerriDa, Jacques. as duas fontes da religião. in: Vattimo, Gianni; DerriDa, Jacques (orgs.). A religião. são Paulo: estação liberdade, 2000.

Forman, schepard. Camponeses: sua participação no Brasil. são Paulo: Paz e terra, 1979.

GramscHi, antonio. concepção dialética da história. tradução de carlos nelson coutinho. rio de Janeiro: civilização Brasi leira, 1985.

lemos, carolina teles. Concepções e práticas da religiosidade popular no acampamento

de Sem-Terras do Paraná. Dissertação (mestrado) – instituto metodista de ensino

superior, são Bernardo do campo, 1994. mimeogr.

lUKoFF, D. toward a more culturally sensitive Dsm-iV (psychoreligious and psychospiritual problems). The Journal of Nervous and Mental Disease, n. 180, p. 673-682, 1992.

(20)

maDUro, otto. religião e luta de classes. 2. ed. tradução de clarêncio neotti e ephraim Ferreira alves. Petrópolis: Vozes, 1983.

mst. Assassinatos no campo: crime e impunidade (1964-1986). 2. ed. são Paulo: Global, 1987.

Portelli, Hugues. Gramschi e a questão religiosa. são Paulo: Paulinas, 1984. QUeiroZ, maria isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. 2. ed. são Paulo: alfa-omega, 1976.

saUer, sérgio. Inserção e prática pastoral das igrejas: acampamentos e assentamentos. são Paulo: loyola, 1993. (cadernos da cPt, n. 6).

sieGel, K.; anDerman, s. J.; scHrismsHaW, e. W. religion and coping with health-related stress. Psychology and Health, n. 16, p. 631-653, 2001.  

torrens, João carlos sampaio. Alianças e conflitos na mediação política da luta pela

terra no Paraná. Dissertação (mestrado em Desenvolvimento agrícola) – Universidade

Federal do rio de Janeiro, rio de Janeiro, 1992. mimeogr.

* recebido em: 16.03.2011. aprovado em: 30.03.2011.

** Doutora em ciências sociais e da religião pela Universidade metodista de são Paulo. Professora titular na Pontifícia Universidade católica de Goiás. experiente na área de sociologia, atuando principalmente nos seguintes temas: religião, catolicismo, tradições culturais, gênero e cristianismo.

Imagem

tabela 2: conflitos de movimentos camponeses de 2000 a 2004

Referências

Documentos relacionados

Neste trabalho, bancos de dados com estatísticas dos times da NBA foram criados para fazer modelagens com a aplicação de técnicas como Regressão Linear, Regressão Logística,

A paciente em estudo, contudo, fez-se uma exceção a esses achados, pois mesmo estando encaixada no grupo de potencial risco para toxicidade ingestão > 150 mg/Kg

O Departamento de Controle de Qualidade é o responsável pela revisão dos resultados de testes e da documentação pertinente ao produto (determinação de componentes / materiais,

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

LVT APFCAN-Associação de Produtores Florestais dos Concelhos de Alcobaça e Nazaré SF 02-16B 2004 LVT APFCAN-Associação de Produtores Florestais dos Concelhos de Alcobaça e Nazaré

After this matching phase, the displacements field between the two contours is simulated using the dynamic equilibrium equation that bal- ances the internal

Considerando a importância dos tratores agrícolas e características dos seus rodados pneumáticos em desenvolver força de tração e flutuação no solo, o presente trabalho

A simple experimental arrangement consisting of a mechanical system of colliding balls and an electrical circuit containing a crystal oscillator and an electronic counter is used