Roa Bastos: reflexões sobre o roteiro cinematográfico
Rosana Cássia Kamita (UFSC)
Roa Bastos destaca algumas considerações básicas antes de iniciar a discussão sobre os roteiros cinematográficos no texto “Reflexiones sobre el guion cinematográfico”, o qual integra a publicação de seu roteiro Hijo de Hombre. Elas se referem a três fatores principais. Primeiramente, o fato de que a expressão cinematográfica tem alternado, ao longo dos anos, uma aproximação e um distanciamento da literatura. O roteiro cinematográfico é um registro verbal que dará origem a uma linguagem eminentemente visual. Isso remete à segunda questão, ou seja, a reflexão sobre as especificidades do cinema, o que, conforme o autor pondera, corrobora com a postura dos que defendem um cinema “puro”, considerado em sua essência e não-dependente de outras manifestações artísticas. Neste ponto cumpre destacar que para além das relações de dependência e hierarquização, convém pensar em termos de diálogo entre as linguagens, conceito bastante utilizado ao se discutir a questão. Por último, Roa Bastos aponta a intervenção da indústria cinematográfica, sendo possível inferir a crítica do autor a um sistema que rege as produções cinematográficas, as quais, muitas vezes, “se rendem” aos interesses econômicos, o que implicaria, em certa medida, na autonomia da criação. O entendimento, sob o ponto de vista do senso comum, seria o de que o cinema seria a arte do entretenimento massificado.
As relações de Roa Bastos com o cinema se iniciam em meados do século XX e
sua contribuição para a roteirização contou, segundo suas próprias informações, mais
com roteiros recusados do que aceitos e filmados. O acervo se compunha de mais de
uma dezena de “livros de cinema” não filmados, que o autor assim classifica por
considerar uma obra mais extensa e sedimentada do que o roteiro: “Todos eles me
levaram anos de investigação e de laboriosos trabalhos de encenação, porque me
agradava ver sobre o papel a futura película ‘projetada’ em todos os seus detalhes, ao
menos tal qual a imaginava eu.” 1 Por fim, lamenta que ele mesmo os tenha incinerado preventivamente por motivos políticos.
Quando Roa Bastos discorre sobre as relações entre cinema e literatura e, tangencialmente, sobre os roteiros, ele busca a aproximação com André Bazin, que destaca uma pretensa hierarquização, motivo de reflexão em “Por um cinema impuro – defesa da adaptação”, texto seminal para essa discussão. Em um jogo de ambigüidades, no qual, ao referir-se à adaptação o autor utiliza termos como “defesa” e “cinema impuro”, Bazin já se mostra preocupado com a ameaça que poderia representar para a jovem arte – o cinema – a aproximação com a literatura e seus séculos de tradição. Essa preocupação se manteve ao longo do tempo por parte de outras pessoas, sendo a adaptação considerada por muitos como “menor” ou “secundária”.
Ao adotar uma perspectiva histórica do cinema, Roa Bastos mostra a alternância entre considerar-se o roteiro como fundamental para a realização do filme assim como propostas que advogam uma liberdade de filmagem, inclusive com a abolição do roteiro. O que se percebe nessa discussão é o fato de considerar-se o roteiro como o elo maior entre literatura e cinema e sua eliminação poderia, pretensamente, garantir ao cinema sua autonomia artística, ou, ao menos, que não possuísse essa dimensão literária em sua realização. Em suas palavras: “[...] a busca do cinema puro, despojado de toda estética alheia, ou seja, de toda a linguagem que não fosse a genuinamente cinematográfica.” 2 Mas o movimento que alimenta as relações entre literatura e cinema parece “ignorar” essas condições e segue sua trajetória. Como destaca o próprio autor:
“No entanto, a contradição entre a linguagem verbal e a imagem visual iria subsistir durante muito tempo nos domínios do cinema com perturbadoras conseqüências de hibridismo para a linguagem fílmica.” 3
São considerações que se mantêm ainda hoje, como se pode perceber pelas palavras de José Carlos Avellar:
1
BASTOS, Augusto Roa. Mis reflexiones sobre el guión cinematográfico y el guión de Hijo de Hombre.
Asunción: RP Ediciones, 1993, p. 12-13. A tradução dos excertos foi por mim realizada.
Trad. Todos ellos me llevaron años de investigación y de laboriosos trabajos de puesta em escena, porque me gustaba ver sobre el papel la película futura “proyetada” em todos sus detalles, al menos tal qual la imaginaba yo.
2
Ibid., p. 16.
Trad. [...] la búsqueda del cine puro, despojado de toda estética ajena, es decir, de todo lenguage que no fuera el genuinamente cinematográfico.
3
Ibid., 18.
Trad. Sin embargo, la contradicción entre el linguaje verbal y la imagen visual iba a subsistir durante
mucho tiempo en los domínios del cine com perturbadoras consecuencias de hibridez para el lenguaje
fílmico.
Um romance cinematográfico? Um roteiro de cinema literário? A partir deste texto escrito para ser lido como um filme (não para se transformar em filme, mas para ser lido como um filme) é possível imaginar um roteiro escrito como se não quisesse ser filmado, mas somente lido?
Imaginar o roteiro cinematográfico como gênero literário? Um gênero inacabado, imperfeito, incompleto, que só se realiza por inteiro fora de si mesmo, que de fato só aparece quando desaparece, o roteiro é uma literatura às avessas? Literatura que passa sem deixar marcas? Cinema de outra maneira?
Esta literatura às avessas deixa marcas no cinema? Deixa marcas na literatura? 4
Segue-se outro, de Bella Jozef, com inquietações similares:
Roteiro: conjunto de notas, esboços não autônomos, mas constitutivos de um elemento, disforme ou vivo, o do filme por fazer; ou sólida trama cinematográfica, vigorosa, autônoma, da que logo nasce um filme medíocre; ou esqueleto para obras cinematográficas válidas (Bergman), recolhidos em um tomo, em que, “obras em si literárias” carecem de
“força poética e conceitual” e só a imagem cinematográfica os recupera como elemento necessário para a obra definitiva; roteiros que são obras poeticamente autônomas, “gênero” literário novo. 5
Para outros, não há dúvida:
Geralmente, ao final de cada filmagem, encontram-se roteiros nas latas de lixo do estúdio. Ali estão rasgados, amassados, sujos, abandonados.
Raras são as pessoas que guardam um exemplar, mais raras as que os encadernam ou os colecionam.
Dito de outra forma, o roteiro representa um estado transitório, uma forma passageira destinada a se metamorfosear e a desaparecer, como a larva ao se transformar em borboleta. Quando o filme existe, da larva resta apenas uma pele seca, de agora em diante inútil, estritamente condenada à poeira. Se for publicado – o que ocorre às vezes – , não se tratará de um roteiro, mas sim de uma narrativa recomposta depois do filme. 6
4
AVELLAR, José Carlos. O Chão da Palavra: Cinema e Literatura no Brasil. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 2007, p. 67.
5
JOZEF, Bella. A máscara e o enigma – A modernidade: da representação à transgressão. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006, p. 399.
6
CARRIÈRE, Jean-Claude e BONITZER, Pascal. Prática do roteiro cinematográfico. Trad. Teresa de
Almeida. São Paulo: JSN Editora, 1996, p. 11.
Caso se considere o roteiro como um meio meramente instrumental para a produção do filme, diminui-se o valor da escrita dramática. Muitos levaram ao pé da letra a expressão “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” e desvalorizam até hoje o trabalho com o roteiro. Isso é algo que já deveria estar superado, uma vez que sabemos que Glauber Rocha sempre valorizou o texto, sendo ele mesmo romancista, contista e em seu acervo depositado no museu Tempo Glauber encontram-se vários argumentos e tratamentos de roteiros. A frase foi romântica e emblemática para o contexto histórico do Cinema Novo, mas deixou uma espécie de herança que se mantém nos dias de hoje.
Porém, é o próprio Glauber Rocha quem escreve, em carta endereçada a Carlos Augusto Calil 7 :
Gostaria de publicar estes roteiros num só volume – de umas 300 páginas – sob o título geral de “Roteiros do Terceyro Mundo” porque estes 8 filmes são referentes ao III Mundo e marcam uma fase do meu trabalho.
Se isto for possível – depois acertaremos por carta ou telefone detalhes da edição. A edição seria bom para preservar a base literária dos filmes – pois estes roteiros podem ser refilmados + televisados + montados em teatro e ainda funcionam como romances ou novelas etc. 8
Roa Bastos apresenta alguns argumentos sobre essa discussão, levando em conta que o roteiro cinematográfico tem por função servir de guia para a elaboração de um filme. O resultado na tela já não pertence ao roteiro, sendo este primário cronologicamente, mas secundário do ponto de vista artístico. Porém, ao se adotar essa postura, estaríamos novamente discutindo sobre hierarquizações, que se não servem por um lado, no caso do cinema em relação à literatura, também não deveria ser considerada dentro do próprio cinema. O roteiro não precisa do rótulo de primário ou secundário, ele integra um processo de criação. Não há motivos para atacá-lo ou considerá-lo uma ameaça. Incomoda também a reiteração de que não devemos ler os roteiros, como se isso representasse um sacrilégio, e os incautos leitores tivessem que ser alertados do perigo que correm. Os leitores geralmente já são bem crescidos e lêem os roteiros cinematográficos porque querem ler e, por incrível que pareça a alguns, a película não se queima como uma manifestação da ira dos deuses do cinema como castigo. O filme
7
Professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
8
ROCHA, Glauber. In: Roteiros do Terceyro Mundo. Org. Orlando Senna. Rio de Janeiro:
Alhambra/Embrafilme, 1985, p. 15.
permanece, assim como a liberdade que devemos ter de ler ou não o que tivermos vontade.
Uma das premissas apontadas pelo autor ao discutir sobre cinema trata-se da dimensão política que pode adquirir um filme. O engajamento nas artes sempre foi discutido, mas aspectos biográficos de Roa Bastos ensejam a dedução de que ele utilizou seus escritos como expressão de seus ideais e contando com a disseminação de suas propostas para uma intervenção na sociedade constituída. A postura dele é a de que:
Toda obra de arte que se realiza com o critério prévio de provar algo, de dar respostas ou soluções a problemas concretos de política, de moral ou da vida social, está condenada de antemão a ser um hibridismo. Mas se um artista está corretamente contextualizado na sociedade em que vive, se tem realmente algo a dizer e o diz nos termos próprios da criação artística – culta ou popular – sua obra estará “comprometida” a fundo com o destino dessa sociedade, e o que chamamos grosseiramente de
“compromisso”, “mensagem” ou “testemunho”, não será outra coisa que a autenticidade da obra de arte em si amadurecida e decantada na temperatura social que inclui o indivíduo como artista em sua originalidade e em suas diferenças no contexto de uma identidade coletiva.
Na medida em que o roteiro contribua a tudo isto, afirmará seu papel criativo no processo de elaboração de um filme. 9
A postura adotada por Roa Bastos em relação aos roteiros cinematográficos apresenta algumas nuanças. Primeiramente, ele reconhece a importância do mesmo, caso contrário, não teria escrito tantos em sua carreira. Reconhece ainda que seriam um meio para a veiculação de ideais e nisso residiria a potência do papel do indivíduo na criação artística. Porém, Roa Bastos protege a literatura e o cinema entre si. Seus argumentos encaminham o olhar para esse viés, a boa literatura e o bom cinema em si mesmos. O roteiro seria uma transição necessária, mas não imprescindível, ao cinema.
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