• Nenhum resultado encontrado

DE LEIRIA A SÃO LUÍS: UMA TRAVESSIA POR CIDADES DE PAPÉIS*

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "DE LEIRIA A SÃO LUÍS: UMA TRAVESSIA POR CIDADES DE PAPÉIS*"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

DE LEIRIA A SÃO LUÍS: UMA

TRAVESSIA POR CIDADES DE PAPÉIS*

Monica Figueiredo

Universidade Federal do Rio de Janeiro

* Recebido em m arço de 2005.

* O p resen te trab alh o faz p arte do projeto de pesquisa patrocinado pela Fundação Universitária José Bonifácio, a tra v é s do P rê m io A n tô n io L u ís Vianna, recebido em 2004.

RESUMO: Análise do romance realista-naturalista, partindo da aproximação de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz, e O mulato, de Aluísio Azevedo. Revisão do caráter crítico da literatura oitocentista.

Palavras-chave: Eça de Queiroz, Aluísio Azevedo, rom ance realista- naturalista.

ABSTRACT: Analysis o f realist-naturalist romance, from the approach o f Father A m aro's crime, o f Eça de Queiroz and The m ulatto, o f Aluíso Azevedo. The revisión o fth e criticai character ofnineteenth century literature.

Keywords: Eça de Queiroz, Aluísio Azevedo, realist-naturalist romance.

Sei que às vezes uso Palavras repetidas Mas quais são as palavras Que nunca são ditas?

Já não me preocupo Se eu não sei por quê

As vezes o que eu vejo quase ninguém vê E eu sei que você sabe

Q uase sem querer

Que eu vejo o m esm o que você.

("Quase sem Q uerer". Dado Villa-Lobos, Renato Russo, Renato Rocha) A memória talvez seja mesmo um interm inável em baraçar de fios e, por estes dias, um poema de Drummond se fez presente de forma insistente todas as vezes em que tentei, sempre vencida, iniciar este texto.

"Q u ad rilh a"1 é um destes poem as que todos nós conhecem os, apesar de não lem brarm os com o, se calhar porque a sua aparente estru tura sim plória é capaz de recu perar aquele m esm o encanto produzido pelas cantigas de roda, apesar de habilm ente esconder a terrível e sarcástica verdade revelada nos últimos versos: o amor pode acabar num casam ento com qualquer "J. Pinto Fernandes/ que não

1 C ito : Jo ã o am av a T eresa qu e am av a R a im u n d o / q u e am av a M aria qu e am ava Joaquim que am ava Lili/ que não am ava ninguém ./João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,/Raim undo m orreu de desastre, M aria ficou para tia,/ Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes/ que não tinha entrado na história."

(D R U M M O N D , 1976, p .19)

provided by Universidade de Brasília: Portal de Periódicos da UnB

(2)

tinha [sequer] entrado na h istória". M as foi na ca su a lid a d e am o ro sa q u e u n iu , p ara d ep o is separar, Teresa, Raim undo, M aria, Joaquim e Lili que acabei por en con trar o m ote de que tanto p recisav a para com eçar m eu texto. P lagiando Drum m ond, pretendo m ontar a minha quadrilha, formada por Émile Zola, Eça de Queiroz e Aluísio A zevedo que, por am or à estética n atu ralista, a n d aram à ro d a de c rim e s, de p a d re s e de m ocinhas quase indefesas. Num tempo em que a intertextualidade não era reconhecidam ente um recurso estrutural da narrativa, num tempo em que a .originalidade era ainda um a crença, o plágio ganhava ares de crime. Desprezando a cronologia d as d u as o b ra s, am b as p u b lic a d a s em 1875, M ach ad o de A ssis fo i a q u e le que p rim e iro levantou a h ip ótese de que O crim e do Padre Amaro era “uma im itação" do rom ance de Zola, O erro do abade M ouret2. Claro está que Machado se serve do Padre Amaro para ratificar o que dirá depois sobre a proxim idade, a seu ver gravemente m ais in com p eten te e p lag iad o ra, de M ad am e Bovary com O Primo Basílio. Estas afirm ações levam Eça de Q ueiroz, no prefácio da edição de 1880 do Padre Amaro, a defender-se de maneira irônica e corrosiva da acusação levantada pelo já ilustre escritor brasileiro. Diz Eça:

Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade córnea ou uma má fé cínica poderia sem elhar esta bela alegoria id ílica [O erro do abade M ouret], a que está m isturado o patético drama de uma alma m ística, ao Crime do Padre Amaro que, como podem ver neste novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clérigos e de

2 A rtigo crítico publicado em 16.04.1878 na revista Cruzeiro.

beatas tram ada e m urm urada à sombra de uma velha Sé de província portuguesa. (2000, p. 13)

Para além dos possíveis crimes engendrados pelo clero vitoriano, parece ser o plágio o elo que une os três autores. Separado por um oceano e longe da paisagem eu ropéia, A lu ísio A zevedo publica no Brasil, em 1881, O m ulato. Ao criar personagens que tanto podem ser com erciantes grosseiros, racistas cruéis, beatas em pedernidas, vizinhos difamadores, quanto padres desprovidos de qualquer caráter, o autor constrói uma cidade provinciana, afogada em v ícios, sufocada pelo calor, onde "tudo estava concentrado e adormecido"

(OM, p. 17)3, de fato muito próxim a da Leiria de Eça de Queiroz:

A Praça da A legria ap resen tava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e janela, ouviam -se gem er os arm adores enferrujados de uma rede e uma voz tísica aflautada, de mulher, cantar em falsete a "gentil Carolina era b ela"; do outro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de m adeira, sujo e seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de m oscas, apregoava em tom muito arrastado e melancólico:

"Fígado, rins e coração!". Era uma vendedeira de fatos de boi. As crianças nuas, com perninh as to rta s p elo co stu m e de c a v a lg a r as ilh a rg a s maternas, as cabeças avermelhadas pelo sol, a pele crestada, os ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam , em pinando papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atrav essav a a ru a, su an d o v erm elh o , afogueado, à sombra de um enorme chapéu-de-sol.

3 Para as citações do texto, usarei a abreviação OM , seguida das p ág inas ind icadas.

Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, n. 20, ano 14, 2005, p. 77-86

(3)

Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gem id os hum anos, m ovim entos irascív eis, m ordiam o ar q u eren d o m ord er os mosquitos. (...) Às esquinas, nas quitandas vazias, ferm entava um cheiro acre de sabão da terra e aguardente. (O M , p. 17)

Leitor confesso da obra queiroziana até então publicada, Aluísio Azevedo será considerado pelos olhos da crítica vindoura um eco da voz do autor português4. No entanto, a seu tempo, o livro é recebido com um quase total silêncio por parte da crítica, mas rapidamente se torna um recordista de vendas, causando um verdadeiro escândalo na cidade de São Luís (capital da então Província do Maranhão), que precipita a mudança do autor para o Rio de Janeiro. A revista Civilização é a única a publicar um longo artigo crítico5, assinado por um de seus redatores m ais ilustres, Euclides Faria, onde nem autor nem obra são poupados:

Para que o autor de O mulato nos desse a medida exata do seu realismo, devia abandonar

4 Segu nd o A frânio C outinho: "H á que pôr em relevo neste ponto uma influência das m ais profundas e vastas que atuaram na m en talid ad e literária b rasileira do tem po: a do escritor português José Maria Eça de Queiroz. (...) Em 1875, publicava Eça de Q ueiroz O crim e do Padre A m aro, e pouco depois O P rim o B asilio (1878). Era a realização da e stética realista- naturalista na ficção, e através deles e da ligação constante que m anteve com o Brasil pela im prensa e pela relações com o m undo literário, a figura fascinante de Eça situou-se como um dos nomes tutelares da vida intelectual brasileira. Sua influência na literatura se fez sentir em toda a parte nas obras surgidas e n tão , e m u ito tem p o d e p o is a in d a se p o d e v e rific a r, na te m á tica , na m a n e ira , n o e s tilo , na iro n ia . D e n tro d essa atmosfera, a literatura evolui no Brasil do Rom antismo para o Realism o-Naturalismo. Por volta de 1880 a transform ação está efetuada e começaram então a aparecer os prim eiros frutos. É de 1881 O M ulato de A luísio A zeved o." (1983, p. 194) 5 Artigo publicado em 23 de julho de 1881.

essa vidinha peralvilha de escrevinhadelas tolas.

Vá para a foice e o machado! Ele que tanto ama a natu reza, que não crê na M etafísica nem respeita a religião, que só tem entusiasmos pela saúde do corpo e pelo real sensível ou material, d evia ab and onar essa vid inh a de vad io escrevinhador e ir cultivar as nossas ubérrimas terras. À lavoura, m eu estúpido! À lavoura!

P recisam os de b raços e não de prosas em romances! Isto sim é real. A agricultura felicita os indivíduos e enriquece os povos! A foice! e à enxada! Res non verba. (AZEVEDO: s/d, p.13)

P esso a lm en te, ach o que não se pod e comparar o talento literário de Eça de Queiroz com a oscilante e esforçada obra de Aluísio Azevedo.

O que m e im p o rta aq u i resg a ta r, a tra v és da

aproximação deste dois romances - de certa forma,

am bos são textos de estréia autoral, ao m esm o

tempo que fundadores de uma estética realista-

naturalista tanto no Brasil quanto em Portugal - ,

é um a id éia já qu ase p erd id a, d efen d id a por

A ntonio Candido em um ensaio seu datado de

1966: "Literatura de dois gu m es" (1989 pp. 161-

198). D e sfa z e n d o u m a su g e stã o c rític a de

inspiração rom ântica, o ensaísta refuta a "idéia

enganadora de que a literatura foi aqui produto do

encontro de três tradições culturais: a do português,

a do índio e a do african o". Defendendo que a

influência do índio e do negro foi exercida num

plano folclórico, Antonio Candido acredita que,

na lite ra tu ra e scrita - m a n ife s ta ç ã o cu ltu ra l

fundam entalm ente branca - a presença indígena

e negra influíram não com o produtoras, mas sim

como modificadoras de uma sensibilidade literária

hegemonicamente portuguesa e, conseqüentemente,

européia. Por outras palavras, "o que houve não

(4)

foi uma fusão prévia para form ar uma literatura, mas m odificação do universo de uma literatura já existente, importada com a conquista e submetida ao processo geral de colonização e ajustamento ao Novo Mundo" (1989, p. 165). Leyla Perrone-Moisés ajuda-m e a ratificar A nton io C andido quando lem bra, a partir de Kristeva e de Bakthin, que as influências não podem constituir um exem plo de recepção passiva, ao contrário, elas devem ser, a priori, um exercício produtivo de confronto com o ou tro, "se m qu e se e s ta b e le ç a m h ie ra rq u ia s valorativas em termos de anterioridade-posterioridade, o rig in alid ad e-im itação " (1990, p. 94). De todo modo, o que os dois críticos parecem crer é em um resgate de uma certa visão antropofágica defendida p ela m o d e rn id a d e de O sw ald de A n d rad e, definida como sendo "an tes de tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o alheio, desem bocando na devoração e na absorção da alteridade" (1990, p. 95).

A b an d o n an d o de vez os co n ceito s de

"c ó p ia ", "im ita çã o " ou "p lá g io ", este trabalho pretende, antes, investigar com o Aluísio Azevedo devorou Eça de Queiroz. Claro está que o atraso e a falta de desenvolvim ento econôm ico estimulam

"a cópia servil de tudo quanto a moda dos países adiantados oferece", avisa Antonio Candido (1989, p. 156). Se Eça de Q ueiroz conseguiu encontrar - ainda que de dentro de sua sensação de desvalia diante de uma Europa industrializada e culturalmente efervescente - um discurso que o distinguiu e que legitimou não só a si como criador, mas também a nação (re)criada por ele através da escrita, foi porque não transform ou - como alguns fizeram - as diferenças portuguesas numa forma tacanha de regionalismo que, ao invés de afirmar uma identidade nacional, estava m ais interessada em oferecer "à

sensibilidade européia o exotism o que ela tanto desejava" (CÂNDIDO: 1989, p. 157).

No caso português oitocentista, o exótico não foi co n stru íd o nem por ín d io s, nem por palm eiras, m as antes originou -se do profundo descom passo português através do uso folclórico que m u itas v ezes se fez do p ob re cam p on ês descalço e do pequeno rio que corria por uma aldeia. O bom gosto de Eça não perm itiria nada parecido. Por isso, se o seu Portugal era o país de Amaro, de Basílio, de Carlos Eduardo, de Dâmaso, de Teodorico e de André Cavaleiro, também era o país do Abade Ferrão, de Sebastião, de Afonso da Maia, de João da Ega, de Jacinto, e, principalmente, de um Gonçalo Mendes Ramires, síntese paradoxal de uma nacionalidade que não era nem melhor e nem pior do que nenhuma outra, apenas era, como tantas, repleta de complexos - porque históricos - problemas.

Por outro lado, apropriando-se, como seu talento permitia, do discurso crítico e muitas vezes corrosivo de Eça de Q ueiroz, A luísio A zevedo abriu mão dos "sab iás" e das "virgens dos lábios de m el" para tentar (re)criar um Brasil de mestiços, de incultos e de desfavorecidos, marcados de perto pelos v ícios e pelas doen ças. A tado de form a inflexível aos ditames da escola naturalista, o autor de O cortiço não foi capaz de humanizar nem seus person agen s, nem seus tem as, m as conseguiu perceber - e isto não pode ser negado - que o Brasil estava m uito longe de ser apenas um país de índios à moda inglesa, de m ártires de pele escura e de portugueses sem nenhum , ou quase nenhum , caráter. A verdade é que, por não saber lidar com a necessária diferença e com a salutar ambigüidade, Aluísio Azevedo tentou fotografar um Brasil ainda sem retrato, procurando desqualificar a paisagem social construída pela literatura romântica, muitas

Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, n. 20, ano 14, 2005, p. 77-86

(5)

v ezes e x a g e ra n d o n as co re s , d e rra p a n d o no exagero, em baralhando-se num a idealização às a v e ssa s, firm a n d o -s e co m o um p erso n a g em romanticamente dúbio que poderia ter nascido da pena q u eirosian a. A ssu m in d o um tom m uitas v ezes irado, longe de qualquer distanciam ento em ocional, A luísio A zevedo utilizar-se-á de seu p erso n ag em R aim u n d o p ara e x o rc iz a r o seu descontentam ento em relação ao país:

E na brancura daquele caráter im aculado b ro to u , e s fe rv ilh a n d o lo g o , um a n in h ad a de v erm es d e stru id o re s, on d e v in h am o ó d io, a vingança, a vergonha, o ressentim ento, a inveja, a tristeza e a m aldade. E no círculo do seu nojo, im placável e extenso, entrava o seu país, e quem este p rim eiro p o v oo u , e quem en tão agora o governava, e seu pai, que o fizera nascer escravo, e sua mãe, que colaborara nesse crime. "Pois então de nada lhe valia ter sido bem educado e instruído;

de n ada lhe v a lia ser b om e h o n e sto ? ...P o is, n aq u ela o d io sa p ro v ín c ia , seu s co n terrâ n eo s veriam nele, eternamente, uma criatura desprezível, a quem repelem todos do seu seio?"...E vinham-lhe então, nítidas à luz crua do seu desalento, as mais rasteiras perversidades do Maranhão; as conversas de porta de botica, as pequeninas intrigas que lhe chegavam aos ouvidos por interm édio de entes ociosos e abjetos, a quem ele nunca olhara senão com desprezo. (O M , p. 222-223)

O desenvolvim ento do espírito científico nunca foi tão visível e propagandeado como aquele experimentado a partir de 1870. O positivismo de Auguste Comte, a teorização sobre a evolução das espécies de Spencer, o am bientalism o de Taine, a revolução biológica liderada por Darwin fizeram com que o acon tecim en to m ais im p ortante da

h istó ria da cu ltu ra do sé cu lo X IX fo ss e "a con v ergên cia da b iolog ia e da so ciolo gia, que derram ou por toda a parte, na observação e na interpretação da vida, a atitude ev olu cionista"

(COUTINHO: 1983, p. 183). A postando todas as fichas no progresso e no desenvolvimento técnico- científico, finalmente o futuro parecia ser possível no século XIX. No entanto, é de dentro da euforia oriunda pela prom essa de m odernidade que o hom em oitocentista percebe que a hum anidade não m elhorou e, graças a um gradual m ovim ento de infração, toda a crença eufórica nas conquistas e nas m elhorias conseguidas é reduzida a uma desalentada ressaca de ordem histórico- cultural.

A verdade é que a desesperança, que na virada do século se refletirá na arte sob o nome de D e ca d e n tism o , su rg e e m b rio n a ria m e n te do pessim ism o n atu ralista. A estética n atu ralista, através do apego ao científico, conseguira explicar o passado, entender o presente e vislum brar o futuro. Então, por que a literatura produzida criava personagens tão em paredadas, condenadas desde a origem a um destino fatídico do qual não podiam escapar? Se o hom em era, pela prim eira vez, um organism o conhecido, porque d issecado física e emocionalmente, por que as personagens do romance naturalista já nasciam viciadas, irremediavelmente adoecidas e donas de sensibilidades debilitadas?

Se o rom ance naturalista ansiava pela denúncia - racional e objetiva - da verdadeira face do homem, por que não foi capaz de apostar em sua redenção?

Como um "d eu s" feroz e pouco reflexivo, a lógica naturalista crucificou a hum anidade em nom e da salvação da verdade científica que a legitimava.

S alv ag u ard ad a e ra tifica d a , p o rém , p ara que serviria uma ciência que, ao fim e ao cabo, era incapaz de salvar seus "filh o s"?

Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, n. 20, ano 14,2005, p. 77-86

(6)

Assim, e de outro modo não seria: o mundo criad o pela lite ra tu ra n a tu ra lista é in ósp ito e desconfortável. Se a sombra da Sé de Leiria encobre soturnam ente toda a cidade, m arcando os limites asfixiantes que im obilizam os seus habitantes6; a São Luís de Aluísio Azevedo é tam bém um lugar de difícil permanência. As descrições que recriam a cidade brasileira exaltam o mesmo provincianismo esmagador que Eça flagrou em seu livro, ou seja, a vizinhança perigosa e intriguista, a corrupção das autoridades governamentais; o poder manipulador do clero, o preconceito social, a calúnia e a difamação com o eternas am eaças, enfim , um corpo social formado por uma pequena burguesia a todo momento violentada pelo olhar censor que tudo cerceia e condena. A cidade m aranhense fa la através do ruído da gente sim ples e desprovida de qualquer

6 C ito Eça de Q u eirós: "E ra en tão n os fins de A gosto. Na longa alam eda m acadam izada que vai jun to do rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam -se vestidos claros de senhoras passeand o. Do lado do A rco, na corren teza de c a s e b r e s p o b r e s , v e lh a s fia v a m à p o r ta ; c ria n ç a s su ja s brincavam pelo chão, m ostrando os seus enorm es ventres nus;

e galinhas em redor iam picando vorazm ente as im undícies esquecidas. Em redor do chafariz cheio de ruído, onde cântaros arra sta m so bre a p e d ra , cria d a s ra lh a m , so ld a d o s, com a fa rd e ta s u ja , e n o rm e s b o ta s c a m b a d a s , n a m o ra v a m , m eneando a chibata de ju n co; com o seu cântaro bojudo de barro equilibrado à cabeça sobre a rodilha, raparigas iam -se aos pares, m eneando qu adris; e d ois oficiais ociosos, com a farda desapertada sobre o estôm ago, conversavam , esperando,

"a ver quem v iria ". (...) Q u an d o o crep ú scu lo d esceu , uma la m p a rin a lu ziu no n ich o do sa n to , p o r cim a do A rco ; e defronte iam -se alum iando um a a um a, com um a luz soturna, as jan elas do hospital. (...) Eram qu ase noves horas, a noite cerrara. Em redor da Praça, as casas estavam já adorm ecidas:

das lojas debaixo da A rcada saía a luz triste de candeeiros de petróleo, entreviam -se dentro figu ras sonolentas, caturrando em cavaqueira, ao balcão. A s ruas que vinham dar à Praça, to rtu o sas, ten eb ro sas, com um lam p ião m o rtiço , p areciam desabitadas. E no silêncio o sino da Sé dava vagarosam ente o toque das alm as" (CPA , pp. 24-25). U sarei para as citações do texto, a abreviação CPA, seguida da indicação das páginas.

charm e, transpira uma insalubridade que a tudo contam ina e abafa num calor que tira do homem comum qualquer resquício de lucidez. Com o um corpo deteriorado, o espaço urbano e seus habitantes são dissecados de form a anatôm ica:

N o d ia im e d ia to , R a im u n d o deu um passeio ao Alto da Carneira; no outro dia foi até S. Tiago; no outro percorreu a Praça do M ercado;

foi três ou quatro vezes ao Rem édios; repetiu a visita aos pontos citados e - não tinha mais onde ir. Meteu-se em casa, disposto a cultivar as relações familiares do tio e visitá-las de vez em quando, para se d is tra ir; m as, p o sto lh e re p e tis s e m com insistência que o M aranhão era uma província m uito h o sp ita leira , com o é de fato, rep arava d esp eitad o que, sem p re e por toda a p arte, o recebiam constrangidos. Não lhe chegava às mãos um só convite para baile ou para sim ples sarau;

cortavam muita vez a conversação, quando ele se aproxim ava, tinham escrúpulo em falar na sua presença de assuntos aliás inocentes e com uns;

enfim - isolavam-no, e o infeliz, convencido de que era g ra tu ita m e n te a n tip a tiz a d o p o r tod a a província, sepultou-se no seu quarto (...) Todavia, uma circunstância o intrigava, e era que, se os chefes de família lhe fechavam a casa, as moças não lh e fech av am o co ra çã o ; em so cied ad e o repeliam todas, isso é exato, mas em particular o ch am av am p ara a a lco v a . R a im u n d o v ia -se provocado por várias dam as, solteiras, casadas e v iú vas, cuja lev ian d ad e ch egav a ao ponto de mandarem-lhe flores e recados, que ele fingia não receber, porque, no seu caráter educado, achava coisa ridícula e tola. (OM , p. 111)

Não se pode dizer que em O crime do Padre Amaro Eça de Queiroz tenha sido menos duro em

Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, n. 20, ano 14, 2005, p. 77-86

(7)

relação à composição do espaço urbano. No entanto, a narrativa queiroziana ganha em interesse e em estilo porque cria o que aqui chamo de respiradouros.

Eça percebeu a tempo - precisamente a partir de seu décimo capítulo - que o leitor precisaria de um certo arejamento que o fizesse suportar o limite histórico- social experimentado pelas personagens. Para tanto, valeu-se da ironia que, apelando muitas vezes para o ridículo, produziu um enviesado efeito de humor, de todo ausente na narrativa de Aluísio Azevedo. E através do riso que Eça faz com que a sua cidade de papel se torne crível e suportável aos olhos do leitor, um riso que, talvez historicamente, Aluísio Azevedo não pudesse devorar. Em Hello Brasil!, Contardo Galligaris afirma:

Se entende que o povo brasileiro não se divide em colonizadores e colonos. Poderíam os dizer que cada um tem em si um colonizador e um colono, mas ainda seria psicológico e impreciso. O certo seria dizer que, no discurso de cada brasileiro, seja qual for a sua história ou a sua posição social, parecem falar o colonizador e o colono, (s/d, p. 16)

"O colonizador é aquele que veio im por a sua língua a uma nova terra, ou seja, ao mesmo tempo dem onstrar a potência paterna e exercê-la longe do p a i" (C A LLIG A R IS: s/d, pp. 16-17).

Partindo desta prem issa, Aluísio Azevedo, em O mulato, serviu-se de um discurso de colonizador quan d o, com d esd ém e sem n en h u m hum or, recriou a São Luís oitocentista, onde não havia q u ase n ada de v a lo r. R e p e tin d o um a v isã o preconceituosa e reducionista, tratou do erotism o vivido nos trópicos com o um desvio doentio que leva à perdição. Ana Rosa, de sangue branco e legitimamente português, é seduzida pela virilidade

sensual do mulato Raim undo, o avesso m asculino de um a ce rta R ita B a ia n a , qu e m ais tard e aniquilará o português Jerônimo em O cortiço7. No entanto, como só uma m ulher brasileira poderia ser aos olhos m ascu lin os do V elho M undo, a m ulata é puro instinto sexual; ao con trário de R aim u n d o que, ap esar da h eran ça "m a ld ita "

inscrita na pele, já é lapidado por uma form ação civilizada, p orqu e g en u in am en te eu rop éia. No Brasil dos oitocentos, o m ulato tem de m orrer, afinal deslocado das leis naturalistas, Raimundo deseja construir, num mundo em que qualquer João Romão ainda deseja possuir e conquistar:

Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. C abelos m uito pretos, lustrosos e crespos, tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. (...) Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão;

falava em voz baixa, distintamente, sem armar ao efeito; vestia-se com seriedade e bom gosto, amava

7 Segundo Luís Dantas: "Jerônim o, atraído por Rita, renova de uma certa forma a experiência mítica do europeu, confrontado p ela p rim eira v ez co m a terra a m erica n a . T a lv ez até a am bivalência da sedutora e da terra que a secreta, suaves e letais, ao mesmo tempo magníficas e repugnantes, aí esteja para nos recordar com força esse caráter duplo de todo sonho e de toda experiência do exotism o. M as o que se evidencia em O co rtiço é que a união en tre essa filha dos tróp ico s e o seu conquistador branco não resulta em qualquer efeito fundador, ou construtor, assim como os românticos haviam exaltado. Não existe absolutamente no texto de Aluísio qualquer celebração da fusão das duas raças. O encontro de Jerônim o e Rita Baiana tem como conseqüência aquilo que André Gide afirmava pertencer ao domínio do rom ance realista-naturalista: é uma história de desleixo gradativo. (...) E tão-somente uma história sombria de aviltam ento, característica dessa obsessão pelo fracasso que m arca a ficção natu ralista." ( 1990, p. 460-461)

Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, n. 20, ano 14,2005, p. 77-86

(8)

as artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política (...) Raimundo perdia-se em conjeturas (...) era liquidar os seus negócios, vender os seus bens e - por aqui é o caminho! O Rio de Janeiro lá estava à sua espera! "Abriria, ao chegar lá, o seu escritório, trabalharia e, ao lado da mulher com quem casasse e dos filhos que viesse a ter, nem sequer havia de lembrar-se do passado!" (OM, pp. 50-52)

"O colono é quem , vindo para o Brasil, viajou para outra língua, abandonando a sua língua m aterna" (...) e "procura aqui, um novo pai que interdite, e de repente o reconheça" (CALLIGARIS:

s/d, pp. 19-20). Assim, o discurso de colono também está escrito nas lin has do rom ance de A luísio Azevedo, porque só ele explica as descrições das paisagens naturais sempre tão assustadoramente m isteriosas e desconhecidas, construídas como espaços fantasmáticos que ameaçam a integridade física dos que ousam enfrentá-la8. O discurso do colon o tam bém ju stifica o excesso exp ressões portuguesas presentes na voz do narrador, bem como valida as aproxim ações inevitáveis com o texto de Eça de Queiroz, seja através da atmosfera crítica que envolve quase toda a narrativa, seja pela

"repetição" em eco de cenas clássicas de O crime do Padre Amaro e até mesmo de O primo Basílio, como é, por exem plo, a cena em que Ana Rosa ap arece pela p rim eira v ez, exp erim en tan d o a mesma preguiça e lassidão vividas por Luísa na abertura do romance queiroziano. O discurso de colono também se intensifica através da insistente

8 Cito: "O s poucos fam iliarizados com tais cam inhos tomam sem pre por p recau ção , um "p a je m ", é este o nom e que ali rom anticam ente se dá ao guia; e o pajem m enos serve para guiar o viajante, que a estrada é boa, do que para afugentar o terror dos m ocam bos, das onças que falam com assom bro os m oradores do lu g ar" (OM , p. 62).

presença do conceito de servidão que, longe de ser uma prerrogativa aplicável somente a personagens negras, é, antes, uma escolha que surge repetida nas falas do b ran co p o rtu g u ê s, asso la d o por um trabalho espoliador e pela ânsia do enriquecimento rápido, subjugado no espaço de uma mais ou menos velada escravidão, como bem ilustra a trajetória de Luís Dias:

H avia, em pregado no arm azém do pai de Ana Rosa, um rapaz portu guês, de nom e Luís Dias; muito ativo, econômico, discreto, trabalhador, com uma bonita letra, e m uito estim ado na Praça.

Contavam a seu favor invejáveis partidas de tino com ercial, e ninguém seria capaz de dizer mal de tão excelente moço. Ao contrário, quase sempre que falavam dele, diziam "C oitado!" e este - coitado - era inteiramente sem razão de ser, porque ao Dias, graças a Deus, nada faltava: tinha casa, com ida, roupa lavada e engom ada, e, ainda por cima, os cobres do emprego. M as a coisa era que o diabo do homem, apesar das suas prósperas circunstâncias, impunha certa lástima, im pressionava com o seu eterno ar de piedade, de súplica, de resignação e hum ildade. Fazia pena, incutia dó em quem o visse, tão subm isso, tão passivo, tão pobre rapaz - tão besta de carga. (OM, p. 50).

Se Eça sofreu pela pequenez de seu país, por uma claustrofobia impingida por sua nacionalidade, Aluísio Azevedo teve de lidar com uma amplitude desmesurada que facilmente atemorizava. Cada um a seu modo travou, em palavras, uma luta contra o espaço, recusando qualquer forma de existência pacífica ou natural, percebendo, em discurso, que estar no m undo dói. Propositadam ente, usando

"p alav ras rep etid as", pressentiram que não há mesmo palavras "que nunca foram ditas".

Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, n. 20, ano 14,2005, p. 77-86

(9)

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond. Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

AZEVEDO, Aluísio. O mulato. São Paulo: Klick Editora, s/d.

AZEVEDO, Livro de uma sogra. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.

BRANCO, Lúcia Castello. Eros Transvestido. Um estudo do erotismo no realismo burguês brasileiro. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1985.

C A LLIG A RIS, C ontardo. Hello Brasil! N otas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo: Escuta, s/d.

CÂNDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. Rio de Janeiro:

C ivilização Brasileira, 1983.

DANTAS, Luiz. "A s arm adilhas do paraíso". In: N OVAES, Adauto (org.). O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. pp. 457- 470.

P E R R O N E -M O ISÉ S, Leyla. Flores da E scriv an in h a. São Paulo:

Com panhia das Letras, 1990.

QUEIROZ, Eça de. O crime do Padre Amaro. Lisboa: Livros do Brasil, 2000.

QUEIROZ, O primo Basílio. Lisboa: Livros do Brasil, 2000.

SA N T'A N N A , Afonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1984.

SEVC EN KO , N icolau. Literatura com o M issão. Tensões sociais e criação cultural na Prim eira República. São Paulo: Brasiliense, 1985.

ZOLA, Émile. O erro do Abade M ouret. Lisboa: Livraria Editora Guim arães, 1933.

Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, n. 20, ano 14, 2005, p. 77-86

Referências

Documentos relacionados

Assim, propusemos que o processo criado pelo PPC é um processo de natureza iterativa e que esta iteração veiculada pelo PPC, contrariamente ao que é proposto em Cunha (2006)

Fita 1 Lado A - O entrevistado faz um resumo sobre o histórico da relação entre sua família e a região na qual está localizada a Fazenda Santo Inácio; diz que a Fazenda

Jayme Leão, 63 anos, nasceu em Recife, mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança e, passados vinte e cinco anos, chegou a São Paulo, onde permanece até hoje.. Não

No código abaixo, foi atribuída a string “power” à variável do tipo string my_probe, que será usada como sonda para busca na string atribuída à variável my_string.. O

There a case in Brazil, in an appeal judged by the 36ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (São Paulo’s Civil Tribunal, 36th Chamber), recognized

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das