XXVI ENCONTRO NACIONAL DO
CONPEDI BRASÍLIA – DF
DIREITO URBANÍSTICO, CIDADE E ALTERIDADE
FLAVIA PIVA ALMEIDA LEITE
ROSÂNGELA LUNARDELLI CAVALLAZZI
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D597
Direito urbanístico, cidade e alteridade [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI
Coordenadores: Flavia Piva Almeida Leite; Rosângela Lunardelli Cavallazzi; Valter Moura do Carmo - Florianópolis: CONPEDI, 2017.
Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-439-6
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Tema: Desigualdade e Desenvolvimento: O papel do Direito nas Políticas Públicas
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XXVI ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI BRASÍLIA – DF
DIREITO URBANÍSTICO, CIDADE E ALTERIDADE
Apresentação
Apraz-nos apresentar os vinte e um trabalhos selecionados para publicação que foram
apresentados no Grupo de Trabalho Direito Urbanístico, Cidade e Alteridade apresentado no
XXVI Encontro Nacional do CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Direito realizado em Brasília, entre os dias 19 a 21 de julho de 2017. O Grupo propiciou
excelente oportunidade para debater o grande número de instrumentos jurídico-urbanísticos
previstos no Estatuto da Cidade e a visão do tratamento da propriedade urbana e da função
social no ordenamento brasileiro. De forma resumida, os trabalhos apresentados por este
Grupo com a indicação de seus autores.
Esta obra inicia-se com o trabalho de Flavia Sousa Garcia Sanz, intitulado “A
APROPRIAÇÃO DO TERMO SUSTENTABILIDADE POR INTERESSES
CAPITALISTAS NAS CIDADES E O PAPEL DOS MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS
E DA CULTURA POPULAR NO SEU ENFRENTAMENTO”, em que a autora analisa a
influência de interesses econômicos sobre aspectos sociais e ambientais na construção da
cidade e o antagonismo destas duas forças: as do capital e as dos movimentos sociais urbanos
na construção das cidades sustentáveis.
No artigo “A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA – DA EVOLUÇÃO
HISTÓRICA À APLICAÇÃO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA”, Ana Carolina
Bueno Ferrer e Rafael Rodrigues de Andrade discutem o instituto da função social da
propriedade urbana e sua aplicação atual a partir da evolução do conceito de propriedade.
Na sequência, Thiago Ribeiro de Carvalho discute as questões relativas à demora na
prestação judicial e à busca pela agilidade na prestação jurisdicional no trabalho “A
IMPORTÂNCIA DA TUTELA PREVENTIVA NA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO E CULTURAL”.
A seguir, Luiza Gaspar Feio e Lise Tupiassu apresentam o trabalho “A IMPORTÂNCIA DO
PODER LOCAL PARA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A PARTIR DA
ANÁLISE DO INSTRUMENTO ‘ICMS ECOLÓGICO’” em que ressaltam o papel do Poder
Local para efetivação dos Direitos Humanos com a finalidade de expor as transformações
À Luz do advento do Estatuto da Metrópole, Jean Alves e José Carlos de Oliveira debatem
em “A NECESSIDADE DA GOVERNANÇA INTERFEDERATIVA DOS SERVIÇOS
PÚBLICOS DE SANEAMENTO BÁSICO NAS REGIÕES METROPOLITANAS”. A
gestão associada no âmbito das regiões metropolitanas viabiliza a universalização e a
equidade, uma vez que os municípios menos favorecidos são compensados com os aportes
dos municípios maiores (subsídios cruzados).
No artigo “A OCUPAÇÃO DA ZONA RURAL COM FINS URBANOS, O
ORDENAMENTO TERRITORIAL PELO MUNICÍPIO E A CIDADE SUSTENTÁVEL”,
Marcos Prado de Albuquerque e Patrícia Cavalcanti Albuquerque debatem sobre a ocupação
da zona rural com fins urbanos e o ordenamento territorial pelo município a partir das
funções socioambientais da propriedade e da cidade, e do direito à cidade sustentável,
conforme diretrizes do Estatuto da Cidade.
Já em “A PARTICIPAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA PROTEÇÃO URBANÍSTICA”,
Ariel Augusto Pinheiro dos Santos e Júlio César de Souza abordam o Poder Judiciário como
um ator na proteção ambiental e urbanística, impedindo assim que o particular pratique
determinadas atividades lesivas. Da mesma forma, tratam do papel do Judiciário em evitar
que haja uma regressão normativa em suas dimensões.
A participação da sociedade civil no processo de elaboração e implementação do Plano
Diretor é apreciada no texto “ASPECTOS DA PARTICIPAÇÃO NO PROCESSO DE
ELABORAÇÃO DO PLANO DIRETOR MUNICIPAL”. A autora Ana Cláudia Milani e
Silva, para garantir a aplicação do princípio da Gestão Democrática, identifica as limitações
do modelo participativo e a relevância do Plano Diretor. Destaca a necessária gestão
democrática da cidade sem, contudo, deixar de afirmar que, a contrário senso, na prática, não
garante a democracia do processo, logo a importância do papel do Executivo municipal, da
Câmara de vereadores. Em conclusão, ressalta que o Plano Diretor municipal deve estar em
consonância com os ideais de uma cidade sustentável e igualitária.
O tema do direito à moradia é analisado por Elizabeth Maria Campbell Neto Machado
Peralta e Paulo Lage Barboza de Oliveira com o título “ACESSO à MORADIA EM CABO
FRIO: INSTRUMENTOS URBANÍSTICOS E SUA EFETIVIDADE”. Estudam a
implantação de programas de habitação de interesse social na cidade de Cabo Frio
privilegiando o Plano Diretor. A função social da propriedade pública e privada também é
objeto de estudo visando à efetividade dos instrumentos jurídico-urbanísticos. Ressaltam que
o Plano Diretor de Cabo Frio já conta com quase 11 anos de idade e propõem que a imediata
permitir ao Poder Público uma maior capacidade de intervir no sentido do cumprimento da
função social da cidade e da propriedade.
“DIREITO À CIDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A SEMART CITY”, da autoria
de Daniel Machado Gomes e Nicolas Arena Paliologo, constitui o tema que aborda o
conceito de cidade inteligente e a relevância da tecnologia. Propõe conceituar a cidade
inteligente e apontar os requisitos para a sua implementação prática em face do Direito à
Cidade. O estudo também considera a relevância do acesso amplo à tecnologia digital
mediante políticas públicas. Conclui que as cidades inteligentes não estão reduzidas a uma
tendência tecnológica e, finalmente, afirmam que a cidade inteligente é o resultado da
combinação entre a tendência tecnológica e as necessidades políticas, econômicas e sociais.
Émilien Vilas Boas Reis e Edson Roberto Siqueira Jr, no contexto histórico de migração e
formação de cidades, indagam sobre a viabilidade da sustentabilidade no caso das cidades
brasileiras. Assim, com o título “DIREITOS HUMANOS, MIGRAÇÃO E
SUTENTABILIDADE DAS CIDADES BRASILEIRAS” realizam a investigação, segundo
uma abordagem interdisciplinar, considerando o meio ambiente como direito fundamental.
Analisam também o conceito de ideologia para abordarem a questão da efetividade dos
Direitos Humanos. Consideram essencial a efetividade dos direitos fundamentais na
perspectiva da equidade social. Concluem no sentido da necessária ação do Estado Brasileiro,
por meio de políticas públicas para a promoção dos direitos humanos fundamentais.
“O ESTUDO DE CASO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL NO
MUNICÍPIO DE CONTAGEM MG - PATRIMÔNIO INDUSTRIAL E EXPANSÃO
IMOBILIÁRIA” realizado por Jesmar César da Silva enfrenta o conflito inerente entre a
sociedade de mercado e proteção ao Patrimônio Cultural. Adota a concepção de Patrimônio
como essencial à vida, construído e vinculado à história dos grupos sociais. Denuncia o
equívoco de considerar a população regida pela lógica do mercado e, por consequência, o
Patrimônio Cultural como mero produto para de consumo.
Analisa o caso do Empreendimento Oasis localizado no município de Contagem MG e
constata, de forma coerente, a violação do texto constitucional.
Com o título “GOVERNANÇA INTERFEDERATIVA NAS ENTIDADES
METROPOLITANAS FEDERATIVAS”, Edson Ricardo Salene e Renata Soares Bonavides
supramunicipais, especialmente as regiões metropolitanas reconhecidas como governança
interfederativa. O estudo destaca Zoneamento Ecológico-Econômico e também inclui o caso
da AGEM – Baixada Santista à luz do Estatuto da Metrópole.
Ressalta, por fim, o grande desafio da aprovação do PDUI (Plano de Desenvolvimento
Integrado da Região) em lei estadual.
A aplicabilidade de instrumentos jurídico-urbanísticos prevista no Estatuto da Cidade é
analisada por Felipe Jardim da Silva e Luciana Grassano de Gouvêa Melo no ensaio IPTU
PROGRESSIVO NO TE: APLICABILIDADE NO NORDESTE DO BRASIL. Qualificado
como uma sanção prevista na Constituição Federal da República de 1988 e no Estatuto da
Cidade indutora do cumprimento da função social da propriedade. Os autores concentram o
estudo empírico nas capitais do Nordeste do Brasil e concluem que, apesar dos avanços
legislativos, o IPTU, o instrumento não é aplicado na prática nas cidades objeto de estudo,
resultando, portanto, urgente a revisão/regulamentação deste e dos seus códigos
complementares.
Na sequência, Nadja Karin Pellejero e José Ricardo Caetano Costano, no artigo intitulado
“MORADIA PARA QUEM? UMA REFLEXÃO SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS
DIRECIONADAS À QUESTÃO DA MORADIA DE RIO GRANDE/RS", fizeram uma
análise sobre os impactos das políticas públicas direcionadas à habitação implementadas nos
últimos anos no município de Rio Grande-RS.
No artigo "MULTIDIMENSIONALIDADE DO DIREITO À CIDADE NO ESTATUTO DA
CIDADE”, Jussara Romero Sanches e Miguel Etinger De Araújo Júnior analisam o
desenvolvimento urbano contemporâneo tendo como base, no âmbito internacional, bem
como no âmbito interno, o Direito à Cidade. Para tanto, apresentam uma reflexão sobre os
contornos que o Direito à Cidade possui, para compreender sua complexidade e sua
multidimensionalidade.
A seguir, Irene Celina Brandão Félix, por meio do trabalho “O ESTATUTO DA CIDADE E
A GARANTIA AO DIREITO À MORADIA ADEQUADA”, faz uma análise das normas
procedimentais e a possibilidade de criação de políticas públicas introduzidas pelo Estatuto
Em sua apresentação do trabalho intitulado “O ESTATUTO DAS CIDADES, A
PARTICIPAÇÃO POPULAR E A GESTÃO URBANA DEMOCRÁTICA", Glauce Suely
Jácome da Silva aborda a participação como forma de controle social, sobretudo através dos
Conselhos, visando o desenvolvimento das cidades.
Por sua vez, André Luiz Costa e Rossana Marina De Seta Fisciletti apresentam no artigo “O
VALOR DA FUNÇÃO SOCIAL EM TEMPOS INCERTOS: PANACEIA OU UTOPIA”
uma análise sucinta da questão da especulação imobiliária e sua relação com o poder público,
observando a função social sob a perspectiva do proprietário, bem como a dos menos
favorecidos, que, em razão dos “avanços” das leis, os excluem da possibilidade de aquisição
da propriedade.
No artigo “OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS: UM INSTRUMENTO PARA
CONCRETIZAÇÃO DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES”, os autores Carolina
Souza Castro e Carlos Henrique Carvalho Amaral demonstram que as Operações Urbanas
Consorciadas constituem um importante instrumento no planejamento urbano, vez que
permitem a flexibilização da legislação urbanística vigente em prol de uma melhor
adequação com a realidade local.
Finalmente, com o intuito de finalizar as discussões acerca desse novel diploma normativo,
Ana Luiza Novais Cabral e Samuel Fernandes Dos Santos apresentam o trabalho intitulado
“PRIMAZIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIAS
PÚBLICAS EM ALTERAÇÃO E REFORMA DO PLANO DIRETOR MUNICIPAL”, no
qual fazem uma análise da participação popular nas audiências públicas para alterações
legislativas e reformas do plano diretor municipal por meio da gestão democrática descrita
expressamente na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade.
Por fim, os organizadores e coordenadores do Grupo de Trabalho DIREITO
URBANÍSTICO, CIDADE E ALTERIDADE parabenizam e agradecem aos autores dos
trabalhos que compõem esta obra pela valiosa contribuição científica de cada um, o que por
certo será uma leitura interessante e útil à comunidade acadêmica. Reiteramos a satisfação
em participar da apresentação desta obra e do CONPEDI, que se constitui, atualmente, no
mais importante fórum de discussão e socialização da pesquisa em Direito.
Profª. Drª. Flávia Piva Almeida Leite (FMU)
1 Especialista em Direito do Consumidor pela Unipê; Mestranda do Programa em Desenvolvimento Regional da Universidade Estadual da Paraíba.
1
O ESTATUTO DAS CIDADES, A PARTICIPAÇÃO POPULAR E A GESTÃO URBANA DEMOCRÁTICA
THE STATUTE OF CITIES, POPULAR PARTICIPATION AND URBAN DEMOCRATIC MANAGEMENT
Glauce Suely Jácome da Silva 1
Resumo
O debate sobre a questão urbana é razoavelmente novo no Brasil. A discussão deste tema, do
ponto de vista jurídico, veio ser contemplada apenas com a Constituição de 1988 que dedicou
um capítulo inteiro à política urbana, reconhecendo a função social da propriedade e
regulando o planejamento como instrumento do desenvolvimento das cidades. Ao pressupor
que o planejamento público é resultado de tensões e conflitos e, considerando que a
população pode contribuir para a descentralização do poder do Estado, este artigo abordará a
participação como forma de controle social, sobretudo através dos Conselhos, visando o
desenvolvimento das cidades.
Palavras-chave: Direito, Desenvolvimento urbano, Participação: conselhos, Políticas públicas
Abstract/Resumen/Résumé
The debate on the urban question is fairly new in Brazil. The discussion of this theme, from a
legal point of view, has been included only with the Constitution of 1988 that devoted an
entire chapter to urban policy, recognising the social function of property and regulating the
planning as a instrument of the cities development. To assume that the public plan is a result
of tensions and conflicts and, whereas the population can contribute to the decentralization of
State power this article will address the participation as a form of social control, through the
Councils, to the cities development.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Law, Urban development, Participation, Councils, public policy
1
Introdução
A Constituição Federal de 1988 é traço marcante da conquista da
(re)democratização no Brasil. A partir da Carta Magna, um conjunto de direitos sociais é
valorizado e definido como prioridade, isto como resultado de um processo histórico de
destacada mobilização social, articulação política e acumulação de forças em que o
envolvimento dos cidadãos para escolha e definição na legislação dessas garantias foi
fundamental.
Com vistas a afirmação da democracia enquanto modelo de governo, a
Constituição de 1988 institucionaliza a gestão participativa, orientando que os mais diversos
temas e questões sociais sejam amplamente discutidos e as decisões sobre a ação do Estado
guardem compromisso com o consenso resultante das divergências e interesses em pauta, ou
seja, o gerenciamento deixa de ser centralizado, limitado e exclusivo, para envolver o cidadão,
de modo transparente e descentralizado.
É um novo modelo estruturante do Estado brasileiro, no aspecto da gestão pública,
o qual viabiliza uma aproximação estratégica das questões sociais, debate e tratamento
adequado das demandas por meio de políticas públicas.
Neste contexto, o presente artigo pretende avaliar a importância do Direito para
assegurar a participação popular e efetivar o planejamento e desenvolvimento das cidades, de
forma democrática.
Faremos inicialmente uma leitura sobre a formação das cidades brasileiras e o
aspecto da negativa da rua, onde as pessoas se distanciam das questões coletivas e isso
dificulta o envolvimento e mobilização em torno dos problemas sociais. Em seguida,
buscaremos demonstrar a importância da Constituição brasileira de 1988 para efetividade da
gestão urbana de forma participativa e democrática, sobretudo na consolidação dos conselhos
gestores como mecanismos de participação e decisão sobre políticas públicas. Também
faremos um estudo sobre o Estatuto das Cidades como instrumento garantidor do novo
modelo de gestão, que deixa de ser centralizado e exclusivo da autoridade governamental e
exige a interação com a sociedade e seus diversos organismos e, por fim, abordaremos o papel
dos Conselhos para garantia de um processo decisório transparente e próximo da realidade das
cidades.
Ao abordar sobre a importância dos Conselhos como ambientes propícios à
governança democrática, demonstraremos alguns obstáculos para o desenvolvimento pleno
das finalidades destes colegiados, o que torna o presente estudo inspirador na medida em que
já indica novos questionamentos no contexto do Direito como instrumento importante para as
transformações sociais.
1.2 A formação das cidades brasileiras e a participação no processo de desenvolvimento
urbano.
Gilberto Freyre, na obra Casa Grande e Senzala, estabelece uma compreensão da
sociedade brasileira e da formação da identidade nacional a partir da análise de aspectos
culturais, do cotidiano das pessoas. Para Freyre, a vida brasileira se constitui inicialmente em
torno da casa-grande e, depois vai se configurando através do sobrado. Em razão disso,
teremos “a repercussão sociourbanística (sic) da negação do espaço público, graças a primazia
da casa, na configuração espacial da cidade brasileira contemporânea” (LEITÃO, 2009, p.
33).
Lúcia Leitão (2009) parte deste entendimento para analisar aspectos da cidade,
identificando o problema da perda da urbanidade como característica fundamental no contexto
atual. Se a cidade são as próprias pessoas, qual a razão para que se fechem em suas casas, se
isolem atrás de grandes muros de concreto e grades e não se preocupem com as questões
coletivas? Uma negação do espaço público, uma rejeição caracterizada a partir do processo de
formação da sociedade brasileira, notadamente afirmada em torno da vida centralizada no
ambiente privado, no recinto doméstico.
Neste contexto, historicamente, o espaço de morar foi associado à distinção social
e configurado para separar as classes. A casa-grande trazia este aspecto, pois apartada da
senzala, possibilitava ao senhor de engenho, a qualificação e diferenciação dos escravos e
edificadas de modo a se destacar na paisagem social, era a própria representação do poder.
Posteriormente, os sobrados assumem a forma da casa-grande no processo de formação
urbana brasileira, onde habitar um sobrado significava ter prestígio na sociedade. Também
erguidos na parte alta para representar um patamar mais elevado, os sobrados representavam o
poder no contexto urbano nacional.
Nessa forma de morar, os aspectos da separação provocam também
comportamentos que devem ser considerados. As relações sociais ocorrem no interior da
residência, os senhores se reúnem na casa-grande, as famílias se congregam nos sobrados,
com isso, há um claro afastamento e negação da rua e a valorização do espaço doméstico
torna-se traço característico das cidades.
A família patriarcal, ao construir relações sociais no interior de suas casas,
fortalece consideravelmente as desigualdades, com o encontro apenas entre os semelhantes,
com a aproximação dos pertencentes ao mesmo grupo social de forma exclusiva. Com isso,
no Brasil, a rua já nasce desqualificada como espaço importante de trocas, de construção e a
busca de uma sociedade igualitária e de valores comuns vai ficando cada vez mais distante,
tornando-se comum reproduzir que a coisa e/ou o indivíduo da rua não são dignos de
consideração. Para Leitão (2009, p. 35) “há uma relação entre o modo hostil como o ambiente
construído foi socialmente produzido e experimentado naquele momento específico da
realidade brasileira e a forma e função que ele desempenha atualmente”.
Assim, não consideradas importantes, mas problemas da rua, as demandas
públicas, mesmo afetando a todos, não alcançam mobilização e força necessária à construção
de políticas, porque as pessoas encontram-se isoladas e acomodadas em seus ambientes
privados, no que Lúcia Leitão (2009) chama de domicilidade.
Analisando através do período moderno, é possível verificar que essa
segmentação dificultará o debate sobre os “problemas urbanos” no Brasil, na medida em que a
ausência ou negação do espaço público tolherá a apropriação sobre a questão social e
participação para o planejamento das cidades.
O urbanismo brasileiro (entendido aqui como planejamento e regulação urbanística) não tem comprometimento com a realidade concreta, mas com uma ordem que diz respeito a uma parte da cidade, apenas. Podemos dizer que se trata de ideias fora do lugar porque, pretensamente, a ordem se refere a todos os indivíduos, de acordo com os princípios do modernismo ou da racionalidade burguesa. Mas também podemos dizer que as ideias estão no lugar por isso mesmo: porque elas se aplicam a uma parcela da sociedade reafirmando e reproduzindo desigualdades e privilégios. (MARICATO, 2000, p. 122)
Neste sentido, a exclusão urbanística é uma característica marcante das cidades
brasileiras em razão do impasse gerado no processo de formação, tendo clara a divisão de
classes e a segregação territorial gerada pela lógica burguesa. Um desses problemas, por
exemplo, é a crise hídrica que atinge as cidades. A má distribuição da água (recurso natural)
sempre provocou descontentamentos, principalmente no nordeste do Brasil, região das
maiores desigualdades do país. No entanto, a repercussão do assunto só ganhou grandes
proporções agora, visto que o problema vem ameaçando o bem-estar das elites. Trata-se da
segregação das classes sociais, na qual o homem se torna vítima do próprio homem. Os
problemas dos pobres urbanos são ignorados por uma sociedade alienada pelos valores
individualistas implantados pelo sistema capitalista.
Desse modo, a influência da elite no planejamento das cidades - uma elite que
esforça-se em manter-se longe das questões sociais – passa a promover uma intervenção
governamental distante da realidade e de seus problemas e assim, a habitação social, o
saneamento básico, o transporte público, problemas comuns das cidades brasileiras, não são
enfrentados corretamente porque as ideias construídas a partir dos planos estão longe da
realidade.
Não é por falta de Planos Urbanísticos que as cidades brasileiras apresentam problemas graves. Não é, também, necessariamente, devido a má qualidade desses planos, mas porque seu crescimento se faz ao largo dos planos aprovados nas Câmaras Municipais, que seguem interesses tradicionais da política local e grupos específicos ligados ao governo de plantão. (MARICATO, 2000, p. 124)
Quando a população de modo geral não participa do processo de análise das
questões que lhe são reais e cotidianas e quando os encaminhamentos atendem apenas aos
interesses de determinada classe, o planejamento fica distante da ação dos governos e, nessa
lógica, os problemas persistem, porque não há um diálogo com a cidade real e assim, não há
encaminhamento concreto para as demandas.
1.2 A participação como mecanismo de gestão democrática das cidades na Constituição de
1988
Para dialogar com a sociedade, é preciso reconhecer os atores e sua inserção nos
espaços, compreender os problemas reais vividos pela população, sem preconceitos e com
perspectivas, para assim, projetar ações claras, efetivas e aproximadas à realidade.
A Constituição Federal de 1988 inaugura um novo momento no Brasil. A
democratização é reconstruída a partir da intensa luta popular e este contexto de mobilização
e debates favorece a possibilidade de introdução no texto constitucional lei maior da nação
-da necessi-dade de tratar a questão pública através -da participação popular.
A reconstrução da democracia no país foi um processo histórico demorado e
turbulento que uma vez superado, indicou no sentido de respeitar a participação de todos os
movimentos para organização e afirmação nos novos direitos e garantias. Mais uma vez,
situando Gohn (2004):
O aprofundamento da democracia levou à construção das propostas de democracia participativa, entendida como iniciativas de produzir novas formas de distribuição dos recursos nas quais as prioridades sejam as necessidades sociais e não os cálculos
econômicos advindos das necessidades de lucro do mercado. A dimensão e o significado desta mudança são enormes porque não se trata apenas de “inserir o povo” em práticas de gestão pública, como ingenuamente preconizam as propostas da democracia com participação comunitária nos anos 80, quando a idéia da participação vinculava-se à apropriação simples de espaços físicos. Trata-se agora de mudar a ótica do olhar, do pensar e do fazer; alterar os valores e os referenciais que balizam o planejamento e o exercício das práticas democráticas. Partir das necessidades sociais significa adotar posturas que têm como meta práticas de inclusão social, pois o universo de abrangência dos demandatários são os excluídos socioeconomicamente, ou os excluídos de direito [...]. (p. 60/61)
A (re)conquista democrática do direito ao voto, resultado da luta pelas “Diretas
Já”, permite o exercício da cidadania através da escolha dos representantes pelo povo, mas
também favorece a possibilidade da presença popular nas decisões da cidade, o que sugere um
fortalecimento do debate sobre a Reforma Urbana.
A cidadania, portanto, não significa apenas o direito ao voto, mas um
protagonismo maior para o exercício de prerrogativas e garantias, além da possibilidade de
participação nos grandes debates sociais para construção das políticas públicas. De modo que,
ao menos no aspecto formal da legislação, já se considera um avanço a consideração sobre a
importância da participação social em um país onde, historicamente, às elites sempre coube o
poder de decisão.
De maneira clara, no texto constitucional, na parte que trata dos princípios básicos
da ordem constitucional, temos a cidadania como aspecto fundamental para a construção dos
objetivos da República e isso tem importância considerável porque
Princípios constitucionais fundamentais são diretrizes imprescindíveis à configuração do Estado (...). Refletem os valores abrigados pelo ordenamento jurídico, espelhando a ideologia do constituinte, os postulados básicos e os fins da sociedade. (BULOS, 2015, p. 281)
A cidadania é um princípio fundamental da ordem constitucional e no contexto da
perspectiva de Estado assumida pela Carta Constitucional de 1988, representa participação na
vida democrática brasileira com soberania popular, liberdade e direitos políticos.
A Constituição exalta, em vários dispositivos, o valor da cidadania como condição
para a formação do Estado democrático. No tocante à gestão das cidades, a cidadania
participativa se mostra relevante quando a Constituição Federal insere o Capítulo da Política
Urbana, compreendendo as questões urbanas dentro de um contexto sociopolítico e
econômico, tendo como foco principal, a questão social. Neste tópico, a Constituição prevê
que o Plano Diretor é um instrumento obrigatório para Municípios com mais de 20.000
habitantes e institui a função social da cidade, sendo que para assegurar o espaço urbano com
segurança e bem-estar, o direito à moradia, à infraestrutura e ao saneamento básico, a
participação popular é essencial.
A cidade vai se alargando fora do contexto da lei porque o planejamento não
atende as autênticas necessidades da população e aspectos como o comércio informal, a
moradia inadequada e a insegurança tendem a se ampliar. Uma injustiça urbana causada pela
debilidade operacional decorrente de falha nos planejamentos, de modo que, pela ausência de
política pública, as pessoas ficam sujeitas às desigualdades sociais, com dificuldade de acesso
aos serviços essenciais e limitadas no exercício de sua cidadania.
Assim, a mobilização social para um planejamento que corresponda à realidade é
fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, o processo de
formulação coletiva de ideias permite uma ação mais efetiva para enfrentamento dos
problemas reais, “(...) o plano urbano deve ser a expressão democrática da sociedade, se se
pretende combater a desigualdade.” (MARICATO, 2000, p. 180)
Portanto, a sociedade civil e suas formas de organização e manifestação vem se
modificando ao longo do tempo e a participação popular nas ações de planejamento urbano,
Neste contexto, também se modificam, apresentando avanços ou retrocessos em função da
diversidade política que o país atravessa.
1.3 O Estatuto da Cidade e a democratização da gestão urbana
O Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) é mais um movimento tendente a
estabelecer normas de ordem pública e interesse social para viabilizar uma política urbana
pautada a partir da participação social. Aprovado em 2001, como todo ordenamento jurídico,
o Estatuto é resultado de disputas sociais e políticas que envolvem interesses divergentes,
relacionados sobretudo ao uso e domínio do solo urbano, mas que se estabelece como um
instrumento para regulamentar a Política Urbana nacional com foco na participação da
sociedade em geral.
O Estatuto da Cidade evidencia (...) a importância da gestão democrática municipal como um mecanismo implementador do princípio da dignidade da pessoa humana. Diante da constatação da situação de desequilíbrio vivenciada na grande maioria das cidades, em que grande parte dos habitantes permanece à margem da infra-estrutura e dos serviços públicos municipais (gerando conceitos como cidade formal – incluídos – e cidade informal – excluídos), a gestão democrática municipal mostra-se um importante instrumento nas mãos da cidadania a fim de reverter este estado de coisas, a partir de sua participação na aprovação coletiva dos projetos para a cidade. Pleiteia-se, com essa nova política urbana, o direito de cada cidadão em participar
do planejamento a respeito do desenvolvimento da cidade, garantindo que ela seja sustentável para esta e para as futuras gerações. (SANTIN; MARAGON, 2008, s/p)
Porém, o grande desafio das cidades e dos gestores é o cumprimento da orientação
legal, garantindo a mobilização em torno de temas relacionados à cidade e assegurando a
pauta do desenvolvimento urbano de forma democrática através da participação dos mais
diversos setores da sociedade.
É que a lógica do governante convencional (…) tende a satisfazer as pressões por realizações “em tempo real”, de ressonância na opinião pública, o que os torna presa fácil de técnicos que, embora competentes em sua especialidade, via de regra apresentam-se desarmados política e ideologicamente, e os conduz a uma postura acomodada diante dos constrangimentos políticos, institucionais e financeiros decorrentes da herança neoliberal remanescente. Daí o bom desempenho se reduzir, com poucas e raras exceções (sic), a fazer mais e melhor do mesmo, além de reproduzir, com ligeiras variações, os métodos conservadores de relacionamento entre governo e população. (SIQUEIRA, 2011, p. 108)
A questão é que há um conflito claro entre o ordenamento jurídico e a realidade
social, como aponta Ermínia Maricato (2000). Na Constituição Federal e no Estatuto da
Cidade temos a defesa da função social da propriedade, porém, há uma cultura afirmada em
valores burgueses, especialmente no aspecto do domínio particular da propriedade, a qual
fortalece a desigualdade social. Diante dessa ambiguidade, o Estatuto da Cidade ainda está em
processo de consolidação, com grandes dificuldades para implementação e aplicação.
O Estatuto destaca a importância da reforma urbana para o desenvolvimento
econômico e social das cidades e o uso da propriedade em prol do bem coletivo, da segurança
e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. Em suas diretrizes gerais, o
Estatuto da Cidade estabelece que:
Art. 2º. (...)
II. A gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano
Não paira dúvidas de que, a nova ordem constitucional brasileira, afirmando o
Estado nacional como democrático, traz uma ênfase expressiva para orientação de uma nova
cidadania. Este indicativo, sinaliza numa sociedade onde seus membros são sujeitos de
direitos, mas também têm papel fundamental para construção democrática de segurança
desses direitos. Daí a necessidade de espaços públicos para consolidação da democracia, pois
a falta de problematização em torno das razões pelas quais os direitos fundamentais do
cidadão não são plenamente exercidos pode proporcionar um avanço na formação da
consciência cidadã.
O Estatuto da Cidade estabelece a gestão democrática, garantindo a participação da população urbana em todas as decisões de interesse público. A participação popular está prevista e, através dela, as associações representativas dos vários segmentos da sociedade se envolvem em todas as etapas de construção do Plano Diretor – elaboração, implementação e avaliação – e na formulação, execução e acompanhamento dos demais planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano municipal. Está fixada, ainda, a promoção de audiências públicas. Nelas, o governo local e a população interessada nos processos de implantação de empreendimentos públicos ou privados, ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, podem discutir e encontrar, conjuntamente, a melhor solução para a questão em debate, tendo em vista o conforto e a segurança de todos os cidadãos. (OLIVEIRA, 2001, p. 8)
Na medida em que esses espaços vão se consolidando, é possível estabelecer
arenas de debates sobre os mais diferentes interesses. Quando estes espaços passam a ser
regulados é possível viabilizar a mediação dos diversos conflitos em questão e a construção
de consensos, o que não implica em ausência de conflito, em dimensão democrática.
Habermas (1984) considera que a esfera pública representa uma dimensão do
social que atua como mediadora entre o Estado e a sociedade. A esfera pública é parte
integrante do processo de democratização com o fortalecimento da sociedade civil organizada
e da sociedade política. É espaço de transparência e de prestação de contas, portanto, também
um espaço de controle da ação do Estado.
Diferente de ser apenas um espaço público (GOHN, 2004) como um local onde os
cidadãos se encontram, que pode ser uma praça por exemplo, a esfera pública é um lugar de
mediação institucional da participação organizada da sociedade civil e de representantes da
sociedade política. Este ambiente de debate sobre os problemas sociais está longe de ser
considerando um espaço sossegado, ele é, por natureza, contraditório, já que envolve
interesses dos mais diversos.
Para viabilidade e execução de ações, projetos e programas que atendam à cidade,
é preciso ouvir a população que, convivendo com os problemas urbanos e necessidades
cotidianas, tem a possibilidade de empoderar uma atuação efetiva, um plano mais real
(MARICATO, 2000), em que o processo de elaboração seja espaço da construção de uma
arena democrática que concentre conflitos e facilite diálogos com vistas à definição de
políticas próximas às peculiaridades locais.
É notório que participação popular aperfeiçoa a cultura democrática das cidades.
Esta participação se desenvolve na atualidade em dois aspectos: a participação cidadã e a
participação social. Ao tratar de participação cidadã como categoria central, Gohn considera
que,
(…) no início deste milênio, a participação cidadã focaliza outros sujeitos sociais: não apenas as camadas populares, advindas da comunidade organizada, genericamente denominada como “povo” pelo senso comum, mas os cidadãos como um todo, a sociedade em geral, independente de classe social. O conceito de participação cidadã está lastreado na universalização dos direitos, na ampliação do conceito de cidadania além da dimensão jurídica e numa nova compreensão sobre o papel e o caráter do Estado, remetendo a definição das prioridades das políticas públicas a partir de um debate público. O princípio que orienta a participação passa a ser ético, ligado a idéia dos direitos sociopolíticos dos cidadãos. (2004, p. 58)
Há, portanto, um novo cenário político onde não apenas a sociedade civil é
responsável pela mobilização para participação, mas também age para a articulação dos
cidadãos, do próprio Estado e dos agentes políticos.
1.4 Conselhos gestores e participação popular
Os Conselhos são referência do novo modelo de participação na gestão, são
articulados em torno de questões específicas, de forma periódica e planejada, com vistas a
formulação e implementação de uma política pública.
A principal característica deste tipo de participação é a tendência à institucionalização, entendida como inclusão no arcabouço jurídico institucional, a partir da criação de estrutura de representação nova, em termos de objetivos, finalidades, práticas e composição social. (GOHN, 2004, p. 59)
Neste sentido, os Conselhos são estruturas criadas a partir da Constituição de
1988, compostas por representantes da sociedade civil e representantes do poder público, ora
consultivos apenas, ora deliberativos, que tem como função determinante, debater questões
sociais e trabalhar no sentido de formular, acompanhar e fiscalizar as políticas públicas, visto
que são mecanismos de controle social.
O modelo de democracia participativa, delineado pela Carta Constitucional de
1988 prevê institutos vinculantes e não vinculantes, sendo que naqueles, a participação do
cidadão no processo deliberativo é determinante e o poder público não pode se escusar, já
nestes, o cidadão participa com sugestões, opiniões e críticas, mas a decisão final é sempre
das autoridades (BULOS, 2015, p. 80). Os conselhos deliberativos estão entre os principais
instrumentos de democracia participativa vinculante.
Estudo realizado por SANTOS JÚNIOR, AZEVEDO E RIBEIRO (2004)
considera que,
Consolidou-se na sociedade brasileira a percepção de que os conselhos municipais constituem instrumentos de democratização da gestão pública local e de aumento e da eficiência e da efetividade das políticas setoriais, e, por esta razão, assistimos à sua disseminação no território nacional. (p. 11)
Gera-se, neste sentido, uma grande expectativa sobre as possibilidades dos
Conselhos pós Constituição Federal de 1988, tendo em vista que, representando os interesses
da sociedade articulada junto a gestão municipal, torna-se uma arena político-administrativa
favorável a reconfiguração das decisões de acordo com as questões sociais.
Notadamente há uma nova articulação social acontecendo, um novo espaço vai
sendo estabelecido, onde o Estado deve dialogar e se relacionar com a sociedade civil com
vistas ao desenvolvimento das cidades.
Esta realidade também exigirá capacitação diferenciada dos cidadãos, na medida
em que deixam de ser apenas agentes de reivindicação, passando a debater problemas sociais,
formular políticas e controlar as ações do Estado. A gestão democrática passa, portanto, pelo
fortalecimento dos Conselhos Municipais em suas atribuições e competências, que
compreenderá além do envolvimento político, a habilitação dos conselheiros para o trato das
questões e construção da agenda.
Preocupação que se coloca aqui é a composição dos Conselhos e escolha dos
conselheiros, sejam os representantes da sociedade civil, sejam os representantes da
administração. É preciso considerar a forma como os assentos dos Conselhos são distribuídos,
tanto na perspectiva quantitativa (representatividade de organismos sociais) como na
qualitativa (conhecimento de causa). Pois, quanto mais representativo e comprometido, mais
legítimo se torna o fórum de debate e construção das políticas públicas.
A democracia participativa demanda um tipo de participação dos indivíduos e grupos sociais em termos qualitativos e não apenas quantitativos. Para isso ela tem que alcançar segmentos diferenciados, que sejam representativos tanto das carências socioeconômicas e das demandas sociais como das áreas que precisam ser conservadas para que não se deteriorem, assim como atingir grupos e agentes socioculturais que possuem identidades a serem preservadas ou aperfeiçoadas. (GOHN, 2004, p. 61)
Entretanto, por um lado, esses Conselhos precisam ser de fato representativos,
legitimamente eleitos para representarem os interesses do coletivo e, por outro, devem ser
comprometidos e envolvidos na temática pertinente para que, uma vez capazes, possam
desenvolver o debate necessário às mudanças aspiradas.
É importante destacar que, o esforço da mobilização social e participação dos
atores também passa pelas condições de funcionamento dos Conselhos para que isso possa
impulsionar os encaminhamentos necessários. Neste aspecto, definitivo, portanto, será o papel
do Direito, por meio de legislação infraconstitucional afinada com a orientação do texto
constitucional, pois um colegiado que apenas debate e constrói perspectivas, mas que não
consegue canalizar o esforço da efetividade, pouco ou ainda não representa o avanço indicado
pela lei. É preciso portanto, a definição clara de competências e os meios para viabilizar a
gestão democrática via conselhos.
O Conselho gestor de política pública deve ter a competência de pensar, discutir,
elaborar, mas também deve ter a autoridade para promover as ações necessárias ao
desenvolvimento dos projetos e programas. Segundo Gohn (2004, p. 67), “um conselho com
autonomia é um conselho soberano para debater e decidir em nome dos interesses da
maioria”.
O que ocorre, entretanto, é que na maioria das vezes quando o Conselho é
legalmente dotado de autonomia, há um processo lobista decisivo na escolha dos conselheiros
tanto da sociedade civil como da sociedade política. O que compromete a legitimidade da
representação e dessa forma, afeta, também, a qualificação da relação entre sociedade e
Estado, inviabilizando os Conselhos como meio de governança local.
[...] Um sistema de governo em que a inclusão de novos atores sociais é fundamental, por meio do envolvimento de um conjunto de organizações públicas (estatais e não-estatais) e organizações privadas. Ou seja, trata-se de um sistema que poderá envolver, entre outros, as ONGs, os movimentos sociais, o Terceiro Setor de uma forma geral, assim como entidades privadas e órgãos públicos estatais. A governança local diz respeito ao universo das parcerias, a gestão compartilhada entre diferentes agentes e atores, tanto da sociedade civil como da sociedade política, a exemplo do programa orçamento participativo e os conselhos de representantes municipais de São Paulo. (GOHN, 2004, p. 64)
Para o desenvolvimento de cidades democráticas e para a construção e viabilidade
de cidades sustentáveis, é necessário o diálogo permanente da gestão com o cidadão, através
dos setores organizados da sociedade. Este diálogo não deve ser apenas formal, ou seja,
porque a legislação determina, mas uma conversação contínua e franca sobre os problemas
que atingem a população de modo geral e as prováveis soluções para estas demandas.
Para isso, é indispensável o compromisso da administração, o envolvimento e
organização da população e a capacitação que permita uma leitura fiel da realidade e
tratamento adequado das questões colocadas. Não se trata de faciosidade, mas uma
necessidade de orientação para uma prática consciente de gestão pública, é assim que exige a
Lei 10257/2001.
É notório que para efetivar um projeto que indique melhoria na qualidade de vida
das pessoas, com ações que melhorem não apenas o padrão urbanístico das cidades
principalmente a modernização, mas também atendam as condições de moradia, mobilidade,
melhoria dos serviços públicos e ainda respeitem valores culturais, dependem do diálogo
governo sociedade e os conselhos, nesta perspectiva, podem ser mecanismos efetivos de
participação e controle.
É preciso respeitar a capacidade da população em entender os problemas das
cidades, de modo que o governo deve se dirigir ao povo diretamente para consulta e
direcionamento das ações, aproximando a agenda governamental dos reais problemas sociais.
Neste contexto, o Estatuto da Cidade, Lei 10257/2001 é a legislação que pauta o
plano de desenvolvimento urbano em conformidade com a Constituição Federal, ou seja,
garantindo o atendimento das funções sociais da cidade e o bem-estar de seus habitantes (art.
182 CF/1988).
Por outro lado, para assegurar que o modelo traçado pela Constituição Federal
seja realizado, para que a participação popular é a própria essência do Estado Democrático de
Direito, ditame da nova ordem constitucional são necessários mecanismos para o exercício da
democracia direta e participativa e os conselhos são exemplo claro desta dinâmica.
A Lei 10257/2001 provoca para o comprometimento de que a cidade é para os
cidadãos, portanto, a execução de um plano voltado à satisfação de interesses públicos exige
decisão política do governante e compromisso de diálogo permanente com a população, com
os grupos sociais. A legislação traz instrumentos importantes como o planejamento e o
processo de discussão, as conferências mostraram que há possibilidade de mobilizar em torno
de questões imprescindíveis à cidade e ao bem-estar da população, de modo que, a
democratização do processo de gestão da cidade é possível e é fundamental às mudanças
necessárias.
Articular e ampliar a luta pelo direito à cidade exige ações imediatas, mas também a capacidade política de estabelecimento de alianças dos movimentos urbanos com outros sujeitos individuais e coletivos, elemento fundamental na ação política dos
movimentos sociais, abrindo os horizontes da luta por direitos em direção a lutas emancipatórias. (GUIMARÃES, 2015, p. 734)
Todavia, a participação popular no processo de discussão, definição e
acompanhamento das políticas públicas seja o único meio para viabilizar o direito à cidade
-este apenas se dará efetivamente com a realização da função social da propriedade -, mas a
garantia de participação dos cidadãos na definição das ações da gestão poderá consignar
indicativos de soluções para problemáticas coletivas, além de promover aos indivíduos a
clareza de que não são apenas sujeitos de direitos, mas também corresponsáveis pelo
desenvolvimento das cidades e, por conseguinte, agentes da transformação social.
Considerações Finais
Para a Constituição Federal de 1988, os Conselhos reconfiguram a gestão pública,
tornando-a mais democrática ao permitindo a participação popular na formulação do
planejamento dialogado com a realidade, formulando políticas sociais e controlando as ações
do Estado.
No campo da participação houve avanços, na medida em que o Estado permite
uma transparência e envolvimento social em suas decisões. A sociedade também avançou para
se envolver na definição e acompanhamento das questões sociais. A mobilização e a
organicidade também progrediu, pois cada vez mais exige-se competência para representação
de interesses e participação nas decisões de gestão.
Entretanto, mesmo sendo matéria valorizada na Constituição Federal de 1988, na
realidade muitos são os entraves para que esta participação se realize de modo a aproximar a
realidade das soluções administrativas. Por um lado, a ingerência política na escolha dos
conselheiros prejudica a legitimidade para representação dos interesses coletivos, por outro, a
falta de capacitação para lidar com os problemas reais e ainda o mais complexo que é a falta
de autonomia, pois comumente os Conselhos são apenas órgãos consultivos e não instâncias
decisórias e de controle.
Portanto, merecem maior análise e reflexão os entraves, a exemplo da falta de
capacitação dos conselheiros e da intervenção externa nas escolhas dos representantes, ainda
existentes para potencializar o processo decisório com participação popular, sobretudo via
Conselhos. Para viabilizar a apropriação social e participação nos processos de definição,
acompanhamento e controle das políticas públicas e para que os Conselhos exerçam de fato
suas funções, com autonomia de ação, legitimidade na representação e capacitação para
leitura e enfrentamento das questões sociais é necessário compromisso político e orientação
legal firmes e que viabilizem a direção da legislação principal.
Ainda é intenso o controle dos espaços participativos por interesses privados ou
corporativos e a supremacia do Executivo nos Conselhos dominando o processo de decisão,
isso tudo prejudica a possibilidade de uma esfera pública capaz de discutir cuidadosamente as
demandas comuns e buscar encaminhamentos mais alinhados com as necessidades da
população e da cidade.
REFERÊNCIAS
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Acesso em 18.02.2017.
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BULOS, Uadi Lammêgo. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.
GOHN, Maria da Glória Marcondes. Movimentos sociais e educação. 7ª edição. São Paulo: Cortez, 2009.
GUIMARÃES, Maria Clariça Ribeiro. Os movimentos sociais e a luta pelo direito à cidade no Brasil contemporâneo. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n124/0101-6628-sssoc-124-0721.pdf Acesso em 12.04.2017.
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LEITÃO, Lúcia. Quando o ambiente é hostil: uma leitura urbanística da violência à luz de Sobrados e Mucambos e outros ensaios gilbertianos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009.
OLIVEIRA, Isabel Cristina Eiras de. Estatuto da cidade; para compreender. Rio de Janeiro: IBAM/DUMA, 2001.
SIQUEIRA, Luciano. Entre o pragmatismo estéril e o acúmulo de forças in Políticas Públicas para um novo projeto nacional de desenvolvimento. A experiência dos comunistas. Organizadores: Márvia Scárdua e Ronald Freitas. São Paulo: Anita Garibaldi, 2011.
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SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos, RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz, AZEVEDO, Sérgio de. Governança democrática e poder local: A experiência dos Conselhos Municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, Fase, 2004.