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A federação enquanto topos na construção do estado-nação: formalismo como retórica estratégica em Rui Barbosa

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Academic year: 2021

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LAILA IAFAH GOES BARRETO

A FEDERAÇÃO ENQUANTO TOPOS NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO:

Formalismo como retórica estratégica em Rui Barbosa

Recife, 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

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LAILA IAFAH GOES BARRETO

A FEDERAÇÃO ENQUANTO TOPOS NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO:

Formalismo como retórica estratégica em Rui Barbosa

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas/Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

Área de Concentração: Teoria e Dogmática do Direito.

Linha de Pesquisa: Retórica e Pragmatismo no Direito.

Orientador: Dr. Torquato da Silva Castro Júnior.

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832

B273f Barreto, Laila Iafah Goes

A federação enquanto topos na construção do estado-nação: formalismo como retórica estratégica em Rui Barbosa. – Recife: O Autor, 2015.

179b f.

Orientador: Torquato da Silva Castro Júnior.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2015.

Inclui bibliografia.

1. Direito - Filosofia. 2. Federalismo - Brasil - História - Séc. XIX. 3. Brasil - História - Império, 1822-1889. 4. Barbosa, Rui, 1849-1923. 5. Brasil - Política e governo - 1889-1930. 6. Retórica. 7. Persuasão (Retórica). 8. Argumentação jurídica. 9. Brasil. [Constituição (1891)]. 10. Direito - Brasil - Linguagem. I. Castro Júnior, Torquato da Silva (Orientador). II. Título.

340.14CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2015-017)

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Laila Iafah Goes Barreto

“A Federação Enquanto Topos na Construção do Estado-Nação: Formalismo como Retórica Estratégica em Rui Barbosa”

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife / Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco PPGD/UFPE, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Área de concentração: Teoria e Dogmática do Direito. Orientador: Prof. Dr. Torquato da Silva Castro Júnior

A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível de Mestrado, e a julgou nos seguintes termos:

MENÇÃO GERAL: APROVADA

Professor Dr. Gustavo Just da Costa e Silva (Presidente/UFPE)

Julgamento: ________________________ Assinatura: __________________________

Professor Dr. João Murício Leitão Adeodato (1º Examinador externo/DAMAS) Julgamento: ________________________ Assinatura: __________________________

Professora Drª. Graziela Bacchi Hora (2º Examinadora externa/DAMAS)

Julgamento: ________________________ Assinatura: __________________________

Recife, 16 de março de 2015. Coordenador Prof. Dr. Edilson Pereira Nobre Júnior.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por ser minha rocha e por guiar meus passos, fortalecendo minha fé. A Adilson e Idaia, por serem os verdadeiros mestres.

A Alyson, por ser meu cúmplice, defensor e estimulador desde sempre. A João, pelo apoio e pela orientação constantes.

A Torquato, pela paciência, pelas conversas, pelas ideias e, sobretudo, pelo cuidado. A Eliane, por toda atenção, paciência e, sobretudo, presteza.

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RESUMO

BARRETO, Laila Iafah Goes. A federação enquanto topos na construção do

Estado-nação: formalismo como retórica estratégica em Rui Barbosa. 2015. 174 f. Dissertação

(Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.

O tema da presente dissertação refere-se ao federalismo desenvolvido por Rui Barbosa no final do séc. XIX. A obra ruiana Queda do Império é utilizada como fonte dos argumentos justificadores da opinião federalista. O objetivo específico é investigar a inserção do discurso jurídico-político de matiz norte-americana no Brasil. Tal investigação realiza-se sob uma perspectiva retórica, ou seja, a história da ideia “federação” é percebida como realidade criada a partir dos símbolos linguísticos. É a análise retórica proposta por Ottmar Ballweg, a qual abrange os níveis retóricos material, estratégico e analítico. O capítulo primeiro trata das escolhas éticas feitas por Rui Barbosa, que influenciaram sua teoria federalista. A partir daí, seguindo a divisão de Ballweg, o capítulo segundo caracteriza os discursos difundidos no Brasil da segunda metade do séc. XIX, correspondendo à análise do nível material. Em seguida, são desnudadas as estratégias forjadas para convencer a nação e, pois, as estruturas tópicas e as figuras de linguagem empregadas. O capítulo terceiro trata das práticas utilizadas para desconstruir o discurso monarquista e o quarto daquelas criadas para construir o federalismo brasileiro. É o nível estratégico. Por fim, o capítulo quinto destina-se à abordagem dos problemas das eventuais continuidade e originalidade da teoria ruiana. É o nível analítico. Conclui-se que, a despeito de isolar-se de outras correntes de pensamento federalistas nacionais (descontinuidade), Rui Barbosa soube adaptar o modelo internacional às contingências internas, tornando-se inovador (originalidade).

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ABSTRACT

BARRETO, Laila Iafah Goes. The federation as topos in the construction of the nation

state: formalism as strategic rhetoric by Rui Barbosa. 2015. 174 p. Dissertation (Master’s

Degree of Law) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2015.

The theme of this dissertation is Rui Barbosa’s federalism developed during the end of the nineteenth century. The work Queda do Império is used here as the source of arguments created to justify the federalist opinion. Thus, the purpose of this research is to investigate how Americanized federalism was inserted into the Brazilian legal system. Such analysis is performed under a rhetorical viewpoint, i.e., the history of the idea “federation” is perceived as a reality created from linguistic symbols. This analytical rhetorical perspective was proposed by Ottmar Ballweg and it comprehends the material, the strategic, and the analytical rhetorical levels. The first chapter of the dissertation covers the ethical choices made by Rui Barbosa, which influenced his Federalist Theory. Following Ballweg’s division, the second chapter seeks to rhetorically characterize some speeches spread in Brazil in the second half of the nineteenth century. This investigation corresponds to the material level. The following two chapters bring to light the linguistic strategies created in order to convince the Brazilian nation. Both chapters also expose the topical structures and the figures of speech employed to enhance persuasion. Specifically, the third chapter deals with the argumentative practices used to deconstruct the monarchical speech. The fourth chapter covers the linguistic strategies created to construct the federalism. This is the strategic level. Finally, the fifth chapter addresses the problems of any continuity and originality of Rui Barbosa’s theory. This is the analytical level. The research concludes that Rui Barbosa was able to adapt the international federalist model to the Brazilian national contingencies. This adaptation made his theory innovative (originality), despite its isolation from the other existent federalist models in Brazil at the time (discontinuity).

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO. UMA TRILHA NA HISTÓRIA DAS IDEIAS:

FEDERALISMO DE RUI BARBOSA COMO OBJETO DA RETÓRICA ANALÍTICA. METÓDICA VOLTADA PARA ORIGINALIDADE E

CONTINUIDADE ... 9

2 A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DE INTELECTUAL INCANSÁVEL,

DENODADO E HONESTO: RUI BARBOSA DO NASCIMENTO À

ATUAÇÃO NO DIÁRIO DE NOTÍCIAS ... 26

3 A REALIDADE BRASILEIRA DO SÉC. XIX ENQUANTO SITUAÇÃO

DISCURSIVA PARA A QUAL SE VOLTARÃO AS ESTRATÉGIAS DE RUI BARBOSA ... 44

3.1 O DISCURSO DA ORDEM LEGITIMADOR DO MODELO DE ESTADO UNITÁRIO. A BARREIRA RETÓRICA MATERIAL ANTEPOSTA À

METODOLOGIA RUIANA ... 44 3.2 O DISCURSO DO PROGRESSO E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NA

SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX. UMA FISSURA RETÓRICA NOS

ALICERCES DA BARREIRA ... 55 3.3 O DISCURSO DA ATUALIZAÇÃO INSTITUCIONAL. A QUEDA

DA BARREIRA RETÓRICA E A CRIAÇÃO DE AMBIENTE ABERTO À

DISCUSSÃO ... 65

4 ATUAÇÃO DIÁRIA COMO ESTRATÉGIA PARA A DESCONSTRUÇÃO

DOS DOGMAS QUE AINDA SUSTENTAVAM RETORICAMENTE O IMPÉRIO: O DIÁRIO DE NOTÍCIAS, VETOR DA

METODOLOGIA RUIANA... 76

4.1 A AMPLIAÇÃO ESTRATÉGICA DO AUDITÓRIO POR MEIO DA SIMBOLOGIA DO JORNALISMO CRÍTICO E INDEPENDENTE. A NECESSIDADE DE DIFUSÃO DO DISCURSO COMO PRIMEIRO

PASSO PARA REDEFINIÇÃO DA REALIDADE SOCIAL ... 76 4.2 O TOPOS DO PODER CENTRAL FRAGILIZADO E O USO ESTRATÉGICO

(9)

8

DO DISCURSO DO PROGRESSO ENQUANTO PROVA RETÓRICA DO

ANACRONISMO MONÁRQUICO ... 90 4.3 O TOPOS DA LUTA FRATRICIDA E A RESSIGNIFICAÇÃO DO DISCURSO

DA ORDEM COMO REFORÇO METODOLÓGICO CONTRA A

LINGUAGEM DE COMANDO MONÁRQUICA ... 100 4.4 O TOPOS DO ABUSO CONTRA O EXÉRCITO E A EXPLORAÇÃO DOS

DISCURSOS DA ORDEM E DO PROGRESSO COMO ESTRATÉGIAS PARA CRIAÇÃO DA FORÇA REVOLUCIONÁRIA FEDERALISTA ... 110

5 A FEDERAÇÃO ENQUANTO TOPOS DA ARGUMENTAÇÃO

CONSTRUTIVA: A METODOLOGIA PARA NATURALIZAÇÃO DESSE CONCEITO JURÍDICO, APRESENTADO COMO SOLUÇÃO RACIONAL PARA A ATUALIZAÇÃO INSTITUCIONAL DO IMPÉRIO ... 121

6 A ANÁLISE RETÓRICA VOLTADA PARA AS RELAÇÕES

ESTABELECIDAS ENTRE A TEORIA DE RUI BARBOSA E OUTROS

DISCURSOS FEDERALISTAS. OS PROBLEMAS DA ORIGINALIDADE E DA CONTINUIDADE ... 150

6.1 A FEDERAÇÃO CENTRÍFUGA ENQUANTO PRODUTO DA ADAPTAÇÃO ESTRATÉGICA DO MODELO NORTE-AMERICANO. ORIGINALIDADE COMO VIA PARA ATENDER A DEMANDAS RETÓRICAS NACIONAIS

ESPECÍFICAS... 150 6.2 O FEDERALISMO DE RUI BARBOSA ENQUANTO TEORIA

NACIONALMENTE INSULAR. DESCONTINUIDADE EM RELAÇÃO A

RETÓRICAS FEDERALISTAS ANTERIORES COMO ESTRATÉGIA ... 160

7 CONCLUSÃO. A TÓPICA MARCADA PELA METODOLOGIA

FORMALISTA E O FEDERALISMO ENQUANTO TEORIA

INTERNACIONAL E NACIONALMENTE INOVADORA. FIM DA

TRILHA NA HISTÓRIA DAS IDEIAS ... 170 REFERÊNCIAS ... 173

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VOLTADA PARA ORIGINALIDADE E CONTINUIDADE

Esta dissertação pretende investigar o processo retórico de construção do federalismo nacional. Rui Barbosa será aqui percebido como um dos principais agentes produtores do discurso federalista. A partir de sua obra e do contexto social no qual ela se insere, serão problematizadas questões relativas às convicções pessoais do autor, às demandas políticas coletivamente produzidas e compartilhadas no Brasil e às soluções estrategicamente apresentadas por Rui Barbosa para as demandas situacionais então existentes. Essas investigações, realizadas dentro do nível analítico da retórica, serão desenvolvidas para embasar a formulação da tese central desta pesquisa, a qual gira em torno dos problemas da originalidade e da continuidade. Cada um deles converge para as relações existentes entre o federalismo nacional e, respectivamente, o modelo norte-americano de estruturação federativa e as correntes descentralizadoras anteriormente existentes no Brasil. Assim, objetivando melhor conhecer a formação de parte do pensamento jurídico nacional, este trabalho trilha caminho retórico analítico que o leva a concluir pela originalidade do federalismo ruiano e, ao mesmo tempo, por sua descontinuidade.

Desenvolvido na segunda metade do séc. XIX, o federalismo nacional surge num período de grande riqueza para a história do Brasil. Marcado por diversas alterações sociais, econômicas, políticas e jurídicas, o País experimenta, nesse momento, efervescência intelectual guiada por uma enxurrada de ideias novas, advindas do exterior e desenvolvidas nas faculdades nacionais e nas agremiações políticas. Tais ideias serviram de base para que os pensadores nacionais pudessem revisar a concepção do Estado nacional e, então, formular propostas para sua modernização. Isso, com os objetivos precípuos de construir um “verdadeiro” Estado brasileiro, livre da influência portuguesa que ainda o “maculava”, e de, sobretudo, “civilizar” o Brasil, ou seja, aproximá-lo do padrão europeu de desenvolvimento.

A Constituição de 1891 fecha esse ciclo oitocentista de mudanças e representa não somente o ápice dos efeitos desse período de dinamismo nos diversos sistemas sociais, mas também a positivação de uma nova forma de Estado, o federalista. A descentralização administrativa representava, juntamente com o governo republicano, na argumentação de seus propagandistas, entre os quais, Rui Barbosa, a efetivação do modelo representativo, com a

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10

consequente efetivação da participação popular na vida política nacional, além da democratização e da modernização do Brasil segundo o modelo de liberalismo inglês.

Mesmo sem concretizar essa inclusão de toda população no debate político, a força do discurso federalista foi capaz de despertar entre os excluídos certo entusiasmo quanto às possibilidades de participação, o qual, juntamente com outros elementos contextuais, foi responsável pela aceitação e pela estabilização inicial da República Federativa1. Sobressai, assim, o primeiro ponto de relevância da retórica federalista capaz de despertar interesse no tema. Ela produziu, no plano dos signos, uma cadeia concatenada de argumentos plausíveis, eficiente o suficiente para extrapolar, transcender o âmbito do sistema linguístico e, então, criar uma nova realidade2. Moldou-se estrategicamente, por meio da linguagem, o imaginário social de maneira que a nova forma jurídico-constitucional obteve aceitação e foi legitimada, positivada.

Esse processo de construção retórica da nova experiência constitucional brasileira, a despeito de seu caráter tópico-problemático e, pois, circunstancial, apresentou estabilidade como uma de suas marcas. De fato, a despeito das muitas alterações constitucionais vivenciadas no Brasil (desde a Constituição de 1891, primeira a positivar o federalismo, o Estado brasileiro foi (re)constituído cinco vezes até chegar à vigente forma constitucional), a crença na independência administrativa dos estados-membros como melhor forma de gerir as contingências de cada região num país com extensões continentais perdurou no tempo e fez-se presente na atualidade. Em outras palavras: a maneira pela qual se forjou retoricamente o conceito jurídico “federação” conseguiu dogmatizá-lo na medida em que institucionalizou a mera opinião dos defensores da descentralização administrativa, tornando-a inquestionável (auβer Frage stellende Meinung)3. Destaca-se, então, o segundo marco da relevância do discurso federalista: ele significou um ponto de inflexão até agora estável em nosso sistema jurídico.

Por outro lado, os críticos da República e, sobretudo, da federação posta em 1891 interpretam negativamente as alterações jurídicas e políticas do final do séc. XIX. Para eles,

1

CARVALHO, J. M. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 9-14; Idem. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 9-15.

2

Sobre o processo de transcendência a partir da imanência linguística dos signos de um sistema linguístico: BALLWEG, O. Entwurf einer analytischen Rhetorik. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 65-85; Idem. Rhetorik und Vertrauen. Ibidem. p. 127-136.

3

BALLWEG, O. Rechtsphilosophie als Grundlagenforschung der Rechtswissenschaft und der Jurisprudenz. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt Am Main: Peter Lang, 2009. p. 3-11.

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inserir acriticamente modelos alienígenas num contexto histórico-cultural totalmente diferente do originário seria uma ferramenta das elites dominantes para ampliar seu poder. Elas teriam sabido utilizar-se dos intelectuais e do falacioso argumento universalista em favor da defesa de seus interesses. O discurso federalista brasileiro, então, não seria nada além de um conjunto de ideias “fora do lugar”, idealista e estéril em contraposição a um “Brasil real”4. Emerge o terceiro ponto de realce do discurso em defesa da federação. Justamente por tratar-se de questão jurídica, incerta no tratar-sentido de problemática e apenas situacionalmente determinável, a eleição da federação enquanto melhor ideia para solucionar o problema da construção do Estado brasileiro apresenta vasta gama de argumentos a ela contrários e igualmente plausíveis. Ou seja, a realidade posta poderia ter sido retoricamente construída de outra forma. Isso suscita o debate, a nível analítico, em torno das condições retóricas que favoreceram a vitória do discurso federalista nacional, seja ele considerado utópico ou não. O discurso antifederação ainda presente no cenário intelectual brasileiro (especialmente no ambiente dos historiadores e sociólogos) leva, assim, ao questionamento sobre a eventual construção de um pensamento brasileiro original e crítico, capaz de formar uma corrente de ideias adequadas aos problemas vivenciados no Brasil, e não tão somente importadas de contexto retórico material completamente diferente.

Dentro desse ambiente de disputa argumentativa em torno da melhor decisão jurídica para conformação do Estado brasileiro destaca-se a figura de Rui Barbosa. Jurista e jornalista, esse autor participou ativamente da vida política do Brasil imperial. Tanto na condição de parlamentar provincial e nacional, quanto na de ensaísta e jornalista atuante, Rui Barbosa defendeu suas ideias de maneira precisa e bastante teórica, utilizando-se de sua sólida formação intelectual para tentar justificar suas opiniões. Tornou-se, então, conhecido no cenário político brasileiro e era, ainda, o principal representante dos ideais democráticos e federais. Fruto de todo esse engajamento foi sua eleição para senador constituinte em setembro de 18905. É nesse momento que o autor tem a oportunidade de imprimir na Constituição Federal de 1891 suas marcas retóricas: suas convicções pessoais, propagadas e justificadas nacionalmente desde os anos 70 do séc. XIX, moldaram a nova experiência jurídica nacional e, mais do que isso, foram positivadas no nível hierarquicamente mais

4

SCHWARZ, R. Ideias fora de lugar. In: SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social no início do romance brasileiro. 5. ed. São Paulo: Editora 34, 2000. p. 9-32; VIANNA, F. J. de O.

Instituições políticas brasileiras: metodologia do direito público. Brasília: Senado Federal, 1999. p. 308-420;

Idem. O idealismo da Constituição. Rio de Janeiro: Terra e Sol, 1927. p. 26-35 e passim. 5

FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Rui Barbosa: cronologia da vida e da obra. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999. p. 89.

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estável do ordenamento. Rui Barbosa, então, por meio de suas opiniões expressas em discursos, ou seja, por meio da linguagem realizou trabalho de difusão ideológica do ideário federalista, e, assim, criou a realidade brasileira do séc. XX que se iniciava6.

Investigar melhor esse momento dinâmico da história do Brasil, fecundo para a história das ideias jurídicas nacional, é justamente a tarefa que aqui se enfrenta. A teoria federalista brasileira desenvolvida na segunda metade do séc. XIX será, então, o tema desta análise. Mais precisamente, pela já destacada relevância do autor na disputa retórica em torno da federação, a pesquisa elege o federalismo de Rui Barbosa como objeto de estudo. A maneira como Rui Barbosa selecionou argumentos para justificar suas opiniões, para defender a nova forma de Estado e para construir sua teoria federalista será o ponto central da pesquisa. Consequentemente, a obra do autor, principalmente os artigos escritos no jornal Diário de

Notícias que constituem a Queda do Império, será tomada como fonte a partir da qual se

extraem os argumentos em jogo no debate.

Essa investigação em torno da forma de inserção do federalismo no Brasil será concretizada sob uma perspectiva retórica. Isso quer dizer que a história da ideia “federalismo” será percebida como produto de um atuar estrategicamente voltado para a prescrição de novos comportamentos na realidade jurídica nacional. Ou seja, a federação não será percebida sob uma perspectiva determinista, escatológica, isto é, como “a” forma de Estado certa para “o” momento histórico específico vivenciado no País. Ela será sim compreendida como produto da cadeia de raciocínios formulada segundo um pensamento tópico-problemático, o qual soube dogmatizar-se e, assim, conseguiu superar o discurso até então compartilhado publicamente na sociedade; como instituto forjado linguisticamente, por meio da atuação retórico-estratégica de Rui Barbosa; como discurso que se sagrou vencedor na competição argumentativa visto conseguir justificar mais persuasivamente seu caráter solucionador dos problemas contextualmente surgidos; enfim, como uma realidade criada a partir dos símbolos de um sistema linguístico.

Essa forma de compreensão da retórica para além da noção simplista7, segundo a qual ela é apenas a arte do convencimento por meio de práticas e formas previamente

6

Sobre o reconhecimento do papel decisivo desempenhado por Rui Barbosa em favor da “campanha federalista”: LUSTOSA, I. Rui, jornalista. In: LUSTOSA, I. et al.Estudos históricos sobre Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2000. p. 9-42; MAGALHÃES, R. de A.; SENNA, M. de (Orgs.). Rui

Barbosa em perspectiva: seleção de textos fundamentais. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2007.

p. 11-35 e passim; ROCHA, Leonel S. A democracia em Rui Barbosa: o projeto político liberal-racionalista. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1995. 1-10 e passim.

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memorizadas, baseia-se na teoria da retórica analítica, inspirada em elementos da retórica clássica de Aristóteles e na filosofia de Friedrich Nietzsche, desenvolvida por Ottmar Ballweg e aprofundada no Brasil por João Maurício Adeodato. Além disso, a análise retórica que aqui se realiza é enriquecida pela influência de outros teóricos, tais como Theodor Viehweg, Hans Blumenberg e Katharina Gräfin von Schlieffen. A compreensão do que venha a ser esse nível retórico analítico pressupõe o entendimento dos três possíveis empregos da expressão “retórica”8

. Primeiramente, retórica significa a linguagem em si, a forma pela qual os seres humanos conseguem expressar-se e, por conseguinte, interagir e criar o mundo em que habitam. É o nível material da retórica. Ela significa, ainda, a maneira pela qual os indivíduos observam as interações processadas no nível material da retórica e criam sobre elas teorias, metodologias e regras para guiar a ação de maneira persuasivamente bem sucedida. É a teoria das figuras de linguagem, as regras de estilística, a tópica, enfim, a retórica no nível estratégico. Por fim, o terceiro uso da palavra “retórica” refere-se à pesquisa, à transformação dos demais níveis retóricos em linguagem objeto para investigação a mais neutra possível. Ou seja, o conjunto de discursos formulados nas retóricas material e estratégica torna-se objeto das descrições deste terceiro nível, que busca aclarar os processos linguísticos nele realizados. É o nível analítico da retórica.

De maneira mais detalhada, pode-se dizer que a retórica nasce na Grécia, cuja cultura era marcada pela valorização da oratória, do poder da comunicação. O ser humano para os gregos era visto como o zoon logon echo, isto é, a criatura que tem a fala, a linguagem enquanto mecanismo para agir no mundo e que, portanto, precisa desenvolver suas habilidades oratórias para sobreviver. Juntamente a essa noção da indispensabilidade do discurso, desenvolveu-se na sociedade grega a escola sofística. Para os sofistas, a eloquência e a persuasão são os únicos instrumentos que os indivíduos têm para utilizar os casos que suscitam vários pontos de vista diferentes entre si, mas todos igualmente plausíveis, da maneira mais útil a seus interesses e, pois, favorecer sua atuação em sociedade. Essas artes 7

Críticas a essa visão simplista e análise sobre sua formação histórica: ADEODATO, J. M. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 277-315; Idem. Uma

Teoria Retórica da Norma Jurídica e do Direito Subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011. p. 1-29, 31-43, 93-123;

BALLWEG, O. Analytische Rhetorik: Rhetorik, Recht und Philosophie. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.).

Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 87-118, 137-153 e passim;

BLUMENBERG, H. Anthropologische Annäherung an die Aktualität der Rhetorik. In: _____. Wirklichkeiten

in denen wir leben: Aufsätze und eine Rede. Stuttgart: Reclam, 1981. p. 104-136; UEDING, G. Klassische Rhetorik. 4. ed. rev. Munique: C. H. Beck, 2005. p. 11-28.

8

ADEODATO, J. M. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 15-45; BALLWEG, O. Entwurf einer analytischen Rhetorik. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 65-85; Idem. Rhetorik und Vertrauen. Ibidem. p. 127-136; Idem. Rhetorik und Res Humanae. Ibidem. p. 137-153.

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precisavam, então, ser ensinadas. Construiu-se um sistema de formação em retórica, cujos professores eram os sofistas, mas que não tratava apenas do domínio formalista da linguagem (regras de estilo e teoria das figuras, por exemplo). A sofística refletia sobre a linguagem e direcionava-a para o agir social. Cria-se a noção de retórica enquanto filosofia prática, enquanto teoria sobre as várias perspectivas da verdade e sobre o conhecimento do que é verossímil e pode atender aos objetivos do sujeito em cada situação problemática que ele enfrenta. A linguagem é percebida como principal “órgão” humano, que o habilita para o domínio sobre a natureza, e o relativismo de valores e de visões de mundo como elemento ínsito à natureza humana. Os seres humanos não se comportam de maneira racional: o domínio sobre “a verdade” não é decisivo para o agir humano, o que importa realmente é fazer as opiniões aceitáveis e, pois, conferir-lhes ares de verdade9.

Justamente por compreender o mundo sob essa perspectiva cética e por perceber a dependência do ser humano quanto à linguagem, a sofística pode ser utilizada como caminho para melhor entendimento do que Ballweg pretende significar com a expressão “retórica material”. O depender da linguagem marca uma visão antropológica “carente”. O ser humano, enquanto criatura pobre, sem lugar no mundo, ao qual falta aparato biológico para conhecer “a realidade” e para determinar “a verdade”, precisa da retórica para superar sua deficiência biológica. Tal superação se da por meio da construção linguística de um mundo próprio, este sim adequado a sua condição defeituosa, dentro do qual ele pode agir e interagir.

Por outro lado, o relativismo sofístico esboça a importância da ação como forma de superação da indeterminação. Na medida em que a evidência é inatingível ao homem e que este, mesmo desprovido de certezas, precisa encontrar caminhos para sobreviver, para resolver os problemas que as diversas situações experienciadas lhe apresentam, o fazer, o agir tornam-se seus únicos aliados na luta contra a incerteza. A retórica, por sua vez, na qualidade de instrumento para a produção do consenso, torna-se indispensável à tomada de decisão que determina a ação e, portanto, para a criação de crenças, “certezas”, valores, instituições, enfim, do “mundo real”, no qual o ser humano se insere. Consequentemente, a relação do ser humano com a realidade é indireta, complicada, seletiva e intermediada pela retórica, já que esta é o elo entre os indivíduos e o mundo. O caráter inalcançável da verdade e o

9

UEDING, G. Klassische Rhetorik. 4. ed. rev. Munique: C. H. Beck, 2005. p. 29-37, 79-83; VIEHWEG, T.

Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979.

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constrangimento para a ação são, portanto, os pressupostos para a caracterização de situações retóricas10.

Esse é, então, o plano existencial da retórica, a retórica material, o caminho pelo qual o ser humano efetiva a comunicação em busca do consenso e, assim, cria a realidade. É o método inter-relacional11. A compreensão dessa acepção revela a importância de se analisar os discursos social, econômico e político-institucional do Brasil do séc. XIX, sobretudo da segunda metade do século, que compunham a realidade nacional discursivamente produzida (comunidade de sentido). O conteúdo desses discursos constituía as principais verdades da sociedade brasileira de então. Seus símbolos, como, por exemplo, a coroa centralizadora e forte, gozavam da estabilidade retórica produzida pela repetição difusa e harmônica de mensagens no tecido social, o que os tornava inquestionáveis. Conhecer bem esses discursos para poder explorá-los em favor de sua argumentação era a missão de Rui Barbosa. Isso tanto para aproximar-se do público quanto para, principalmente, não tornar sua retórica federalista um discurso caricato, desprezado por estar incoerente com a objetividade mínima convencionalmente estabelecida, ou seja, com a retórica material. Para o desenvolvimento da pesquisa, faz-se, então, necessário conhecer os juízos constituintes do “mundo” brasileiro nesse período, pois é voltado às peculiaridades desse universo que Rui Barbosa construirá seu federalismo. Tenta-se, portanto, desvelar as relações linguísticas pertencentes ao nível material da retórica, ao conjunto das opiniões coletivas, no sentido mesmo de que o mundo se espelha na linguagem, e não o contrário12. É o âmbito da phrónesis, ou seja, a esfera da prática, dentro da qual somente se possibilita o pensamento por meio de opiniões, em virtude da mutabilidade ínsita aos assuntos meramente humanos13.

10

ADEODATO, J. M. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 97-134, 213-240, 235-262; BLUMENBERG, H. Anthropologische Annäherung an die Aktualität der Rhetorik. In: ______. Wirklichkeiten in denen wir leben: Aufsätze und eine Rede. Stuttgart: Reclam, 1981. p.104-136; BALLWEG, O. Rhetorik und Res humanae. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.).

Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 137-153; Idem. Analytische Rhetorik als

juristische Grundlagenforschung. Ibidem. p.155-167. 11

Para a associação entre os três níveis retóricos e os conceitos de método, metodologia e metódica: ADEODATO, J. M. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 32-39; Idem. Uma teoria retórica da norma jurídica e do

direito subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011. p. 1-29.

12

BALLWEG, O. Analytische Rhetorik als juristische Grundlagenforschung. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 155-167; Idem. Medium jeder Rhetorik ist die Meinung. Ibidem. p.169-179; Idem. Rhetorische Funktionen von Meinungen. Ibidem. p. 181-193.

13

BALLWEG, O. Phrónesis versus pratical philosophy. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und

Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 61-62; CASTRO JR., T. Aristóteles e a retórica do saber jurídico. São Paulo: Noeses, 2011. p. 22-26.

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Antes, porém, de iniciar essa análise do nível material, a pesquisa volta-se para a caracterização das escolhas éticas feitas por Rui Barbosa. Elas formarão seu universo particular, suas convicções, enfim, seu ethos. A despeito de não fazer parte do nível retórico-material, visto constituir instância prévia, na qual o sujeito dialoga consigo mesmo e decide quais posturas éticas, políticas e jurídicas deseja adotar para si, esse conjunto de opiniões pessoais é fundamental para guiar a futura estratégia retórica. É com base nele que Rui Barbosa vai decidir qual a solução a ser adotada para solucionar as situações problemáticas enfrentadas. A partir dele o autor expressa seus raciocínios, produz suas avaliações, orienta seu agir e estabelece relações que definirão seu posicionamento no tecido social, sua relação com os objetos, com os demais sujeitos e com os símbolos sociais. Ou seja, essas convicções pessoais influenciarão decisivamente a futura produção ruiana de justificativas para o federalismo.

Consequentemente, é necessário investigar também esse ponto relativo à formação das crenças ruianas. Por opção desta pesquisa, destina-se o capítulo primeiro a tal fim. Organizado de forma a problematizar duas questões centrais, o capítulo inicia com a investigação das influências existentes sobre a formação do caráter de Rui Barbosa. As ideias assimiladas durante o crescimento biológico e intelectual constituirão as verdades do autor e refletirão em sua teoria federalista. Nesse sentido, o exemplo paterno, a vida acadêmica em Recife e em São Paulo e a carreira parlamentar foram fundamentais para a formação e, sobretudo, para a cristalização das crenças ruianas. Nesse período o autor não somente tomou conhecimento de teorias políticas e jurídicas, mas também elegeu algumas delas como diretrizes de seu agir comunicativo. Tal decisão particular, porém, extrapola o indivíduo “Rui Barbosa” e passa a ser conhecida socialmente na medida em que ele produz relatos sobre suas próprias crenças e assume publicamente posturas políticas. O autor reflete socialmente uma imagem de si próprio, construindo retoricamente seu ethos. É nesse momento que o capítulo passa a problematizar marcas características da personalidade do autor, ao menos aquelas divulgadas na linguagem comum de então, formadoras de sua reputação. O objetivo de tal investigação é indicar conexões entre os elementos constitutivos do ethos de Rui Barbosa e a futura atração do auditório brasileiro. A imagem de pessoa erudita, dedicada incansavelmente ao trabalho intelectual e honesta reflete diretamente na forma pela qual o público recebe o discurso ruiano. A pesquisa, assim, já começa a se voltar para outro nível retórico, o das estratégias para atração e convencimento do auditório.

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Antes, porém, de atingir esse segundo nível, a trilha retórica analítica aqui traçada leva a pesquisa à investigação do contexto discursivo nacional dentro do qual a ideia “federalismo” surgiu. Chega-se ao capítulo segundo, destinado à análise da retórica da nacionalidade. Ele é dividido em três sub-capítulos, cada qual voltado para um discurso forjado na sociedade brasileira do século XIX e que marcou o contexto político e jurídico de então. O primeiro é o discurso da ordem, elaborado para legitimar o modelo de Estado centralizador. Ele foi a principal barreira retórica construída pela elite política para evitar questionamentos em torno da opção por ela feita para estruturar o Estado brasileiro recém-independente. O segundo é o discurso do progresso, propagador da “necessidade” de civilizar o País e principal justificador de um crescimento econômico excludente e explorador. Esse discurso, porém, promoveu paulatina reordenação do cenário político nacional, a qual refletirá na estabilidade da forma unitária de Estado. A barreira começa a apresentar suas fragilidades e vem a ser destruída pelo terceiro discurso, o da atualização institucional. Especificação de sentido do discurso do progresso, a retórica da modernização das instituições internas caracteriza-se por forjar no imaginário social a premência de uma revisão capaz de colocar o sistema político e o jurídico de acordo com os “avanços” experimentados na Europa e nos Estados Unidos. Abre-se, assim, espaço na retórica material para a problematização da forma de Estado adotada. A descrição do processo de formação de cada um desses três discursos e de suas principais consequências é o objetivo do segundo capítulo.

Caracterizados os argumentos que conformavam os raciocínios jurídicos e políticos de Rui Barbosa e o “real” socialmente produzido e aceito no Brasil de então, a análise retórica aqui realizada passa a investigar o nível retórico estratégico. Para tanto, é preciso perceber que a retórica também abrange o âmbito da observação sobre os métodos, sobre a retórica material. Ou seja, ao observar a forma pela qual os significados e as relações sociais são linguisticamente produzidos na interação dos sujeitos, os indivíduos estabelecem práticas para intervir nesse processo e, assim, prescrever condutas, criar consensos, forjar verdades, certezas. Em outras palavras: o sujeito omite o caráter opinativo, subjetivo e transitório de suas assertivas e, dessa maneira, faz com que elas sejam tomadas como gerais, duradouras e, portanto, passíveis de crença. É essa confiança na mensagem emitida pelo outro que filtra a linguagem comum, cotidiana e transforma “meras” opiniões pessoais em “verdades”, regularidades em regras e aparência reiterada em essência. Esse processo de filtragem cria os sistemas das linguagens de comando, cujos conteúdos, em virtude da estabilidade gerada pela credibilidade, controlam, direcionam e prescrevem o agir dos sujeitos. Ou seja, linguagens de

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comando, como o direito, a política, a religião e o dinheiro, nada mais são do que conjuntos de mensagens organizados de maneira astuciosa a fim de notabilizar-se na comunidade. Esse destaque social alça seus conteúdos a um nível tal de preservação ante questionamentos que os torna critério para a tomada de decisão. Portanto, transformado em linguagem de comando, o discurso, inicialmente forjado no nível estratégico, reinsere-se no plano material e passa a constituir “a realidade”, na medida em que fundamenta o agir dos sujeitos e a sua forma de interpretar a realidade. Nesse sentido, o sentido estratégico da expressão “retórica” caracteriza o nível dentro do qual o indivíduo tenta influenciar o processo de formação da linguagem de comando e utiliza-se para tanto da redefinição, ou mesmo do reforço, dos conteúdos por ela já estabilizados14.

Essa tentativa de influência se dá tanto por meio do emprego de figuras de linguagem, quanto pela seleção de argumentos baseada nas opiniões comuns, já aceitas na comunidade de sentido. Destacam-se, assim, a teoria das figuras de linguagem, as formas estilísticas, a tópica e os entimemas. A utilização desses recursos visa tornar verossímil a opinião defendida pelo orador na medida em que eles são os mecanismos que se intercruzam no texto para a configuração da persuasão. Em outras palavras, a utilização de, por exemplo, metonímias e metáforas e a invenção de entimemas a partir de argumentos adequados à solução das especificidades das questões enfrentadas são ferramentas capazes de transformar linguisticamente o parecer em ser, o incerto em evidente, a simples alegação em causa originária. Por meio dessas conversões o discurso é legitimado e, mais ainda, dogmatizado: na medida em que o ouvinte tem a sensação, produzida por meio das estratégias retóricas, de que o tema foi provado, demonstrado, é atendida psicologicamente sua demanda por evidências e, então, a opinião expressa no discurso assume ares de verdade, mesmo que momentaneamente e a despeito de sua matéria prima ser “somente” probabilidades e indícios, sinais15

. As figuras retóricas serviriam precipuamente à dimensão pathos, enquanto a tópica pode servir tanto à

14

BALLWEG, O. Analytische Rhetorik: Rhetorik, Recht und Philosophie. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.).

Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 3-11 e passim.

15

ADEODATO, J. M. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. ver. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 293-315; Idem. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 97-111; ARISTÓTELES. Rhetoric. In: The works of Aristotle. Trad. W. Rhys Roberts. Col. Great Books of the Western World. v. 9. Chicago: Encyclopeadia Britannica, 1952. p. 593-675; SCHLIEFFEN, K. G von. Rhetorische Analyse des Rechts: Risiken, Gewinn und neue Einsichten. In: SOUDRY, R. (Org.). Rhetorik: eine interdisziplinäre Einführung in die rhetorische Praxis. 2. ed. rev. e ampl. Heidelberg: C. F. Müller, 2006. p. 42-64; Idem. Wie Juristen begründen: Entwurf eines rhetorischen Argumentationsmodells für die Rechtswissenschaft. Juristen Zeitung. Tübingen, Mohr Siebeck, 3/2011, 66. ano, p. 109-116, fev., 2011; VIEHWEG, T. Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. p. 45-57.

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logos quanto à ethos16. Essas três dimensões são caracterizadas por Aristóteles como os modos, os meios de persuasão. O ethos está relacionado ao caráter pessoal do orador, às suas escolhas éticas, que influenciam a maneira pela qual ele será visto e julgado pelo auditório. É considerado o meio mais efetivo de convencimento que o orador possui. O pathos corresponde à colocação dos ouvintes num determinado estado de espírito, de forma a suas emoções serem atingidas pelo orador. Por fim, o logos refere-se à prova, ou à aparência de prova, das opiniões defendidas pelo orador. Tal “demonstração” é forjada pelo conteúdo do discurso em si, pelas palavras escolhidas, pelos lugares comuns empregados17. Esses topoi, lugares comuns, nada mais são do que pontos de apoio que dão suporte ao desenvolvimento de uma argumentação convincente. O caráter de substrato da persuasão, enquanto adesão racional ao discurso, situa-se precisamente no fato de seu sentido ser plástico, ambíguo, mas em geral aceito e compreendido. Enfim, não redutíveis a uma verdade formal, os topoi podem ser manejados livremente pelo orador, que organiza em torno deles seus raciocínios e, assim, determina os diferentes rumos significativos que um mesmo topos assume, conforme variem os problemas aos quais a argumentação se dirige18.

Na medida em que observa o método para sobre ele atuar, o nível estratégico da retórica caracteriza-se como uma metalinguagem. É, portanto, metodologia, cuja linguagem-objeto é a retórica material.

O detalhamento desse nível retórico é o alvo dos capítulos terceiro e quarto da presente dissertação. Rui Barbosa atuou em diversos jornais durante a segunda metade do séc. XIX, porém, sua militância política no Diário de Notícias marcou mais claramente a construção de sua teoria federalista. Isso, tanto porque a produção dos artigos do Diário se deu no Rio de Janeiro, cidade centro da vida política nacional e do desenvolvimento cultural, urbanístico e econômico vivenciado no Brasil oitocentista, quanto porque os textos foram escritos diariamente no transcurso do ano de 1889, ou seja, no fervilhar da disputa política em torno da (re)estruturação do Estado brasileiro. A partir, então, da obra Queda do Império, que reúne todos os artigos de Rui Barbosa publicados nesse jornal, tentar-se-á analisar retoricamente o discurso ruiano e, assim, desvelar as estratégias linguísticas empregadas pelo

16

SCHLIEFFEN, K. von. Rhetorische Analyse des Rechts: Risiken, Gewinn und neue Einsichten. In: SOUDRY, R. (Org.). Rhetorik: eine interdisziplinäre Einführung in die rhetorische Praxis. 2. ed. rev. e ampl. Heidelberg: C.F.Müller, 2006. p. 54.

17

ARISTÓTELES. Rhetoric. In: The works of Aristotle. Trad. W. Rhys Roberts. Col. Great Books of the Western World. v. 9. Chicago: Encyclopeadia Britannica, 1952. p. 593-675.

18

CASTRO JR., T. Aristóteles e a retórica do saber jurídico. São Paulo: Noeses, 2011. p. 16-21; Idem. A

pragmática das nulidades e a teoria do ato jurídico inexistente: reflexões sobre metáforas e paradoxos da

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20

autor para formar uma nova linguagem de comando a partir de sua própria visão de mundo e de suas convicções pessoais acerca da melhor forma de constituição jurídica de um Estado. Por conseguinte, será elaborada uma análise tanto das figuras de linguagem quanto da tópica presentes na teoria federalista de Rui Barbosa.

A metodologia ruiana pode ser dividida em duas vertentes. A primeira, objeto do capítulo terceiro, é a desconstrutiva. Por meio dela, o autor buscou eliminar retoricamente as bases de sustentação que ainda legitimavam o sistema de governo monárquico. Era preciso aproveitar o momento propício de queda da barreira retórica oposta ao discurso ruiano e, assim, ampliar o público leitor do referido jornal. Isso para que a linguagem de Rui Barbosa passasse a ser publicamente controlada e, portanto, pudesse pertencer de maneira estável ao nível material da retórica. Com foco nesse objetivo de ampliação do auditório, o autor construiu em torno do Diário de Notícias uma imagem de jornalismo crítico e independente, a qual destinava-se estrategicamente a exaltar o ethos do jornal. A análise retórica desse primeiro passo metodológico desconstrutivo é feita no subcapítulo primeiro. Por outro lado, além de difundir seu discurso, Rui Barbosa precisava encontrar as brechas retóricas existentes na linguagem de comando monárquica para, então, explorá-las no sentido de criar estratégias para desestruturação das bases de sustentação e de legitimação do poder centralizado. Tal exploração retórica, com vistas a tornar-se mais persuasiva, fez uso das crenças já consagradas no nível material da retórica. Nesse sentido, ao utilizar a expressão “poder central fragilizado”, topos forjado dentro do contexto de disputa argumentativa, Rui Barbosa associa seu discurso à noção de progresso, na tentativa de comprovar o anacronismo do sistema então vigente. Por sua vez, o topos da luta fratricida aproveita-se do discurso da ordem para unir a sociedade contra a coroa, inclusive por meio do ataque às figuras da princesa Isabel e do Conde D’Eu. Por fim, o lugar comum do abuso contra o exército é construído sobre a exploração dos símbolos relativos aos discursos da ordem e do progresso, com a finalidade precípua de atrair os militares para a causa federalista. Esses três topoi desestruturantes serão analisados, respectivamente, nos subcapítulos segundo, terceiro e quarto.

A outra vertente metodológica, a construtiva, é o objeto do capítulo quarto. Desestabilizada a monarquia, era ainda preciso convencer o auditório de que as propostas ruianas democráticas e liberais eram a melhor solução para todos os problemas criticamente apresentados. Ou seja, era preciso preencher as brechas abertas, de modo a redefinir, conforme as convicções pessoais de Rui Barbosa, a linguagem de comando jurídica. Para tanto, utilizou-se o topos da federação como direcionador de todo o conjunto argumentativo.

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O federalismo representaria, portanto, o símbolo maior do Estado mínimo e democrático de direito. Consequentemente, tornar a federação um conceito natural, estável no nível retórico material foi o primeiro objetivo metodológico da estratégia construtiva, a qual foi atingida por meio da argumentação em torno da viabilidade de uma monarquia federativa. Num segundo momento, diante da oposição governamental a tal associação entre federalismo e monarquismo, Rui Barbosa procurou colocar o lugar comum “federação” em plano superior a qualquer outra forma de organização do Estado, fazendo-a desejada, valorizada socialmente, a fim de que a sociedade brasileira lutasse por uma república federativa. Nesse momento da argumentação serão detalhadas nesta dissertação as características específicas do federalismo, de forma a construir-se propriamente uma teoria ruiana.

Cumpre destacar, ainda, que a sequência de argumentos e topoi aqui apresentada é produto da investigação artificial processada no nível retórico analítico. Ao dissecar-se o processo natural de produção da linguagem, o fluxo espontaneamente criado pelo autor para sua argumentação é rompido de modo que raciocínios dinamicamente organizados são apresentados de maneira estanque. Em outras palavras: na tentativa de melhor perceber as interações entre os níveis material e estratégico, a retórica analítica reordena o raciocínio do autor e, assim, precisamente o desestrutura, o fratura. O critério aqui utilizado para a seleção dos temas analisados foi a recorrência do argumento no conjunto da obra Queda do Império. Já quanto à ordenação dos topoi, a pesquisa pautou-se nas datas de publicação dos artigos em que as respectivas opiniões eram defendidas.

Os problemas até aqui abordados direcionaram a pesquisa, primeiramente, para a descrição da situação comunicacional constituidora das convicções do autor e da realidade brasileira da segunda metade do séc. XIX e, num segundo momento, para o desvelamento das ferramentas linguísticas utilizadas por Rui Barbosa a fim de tornar seu discurso digno de crença. É preciso, porém, para produzir-se uma análise retórica, ir além e investigar as interações existentes entre os dois outros níveis retóricos já estudados. O sentido analítico da retórica corresponde, portanto, a uma metalinguagem de segundo grau, uma vez que reflete sobre os níveis material e estratégico a partir de um ponto de vista externo e sob uma perspectiva descritiva19. É a metódica.

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BALLWEG, O. Rhetorik und Vertrauen. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 127-136; Idem. Analytische Rhetorik als juristische Grundlagenforschung. Ibidem. p.155-167; Idem. Medium jeder Rhetorik ist die Meinung. In: Ibidem. p. 169-179.

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De maneira mais detalhada, pode-se dizer que, diferentemente dos outros níveis retóricos, o analítico não tem pretensões normativas, isto é, ele não objetiva que seu conteúdo direcione comportamentos, ou seja, atinja o nível de dogma estável ao ponto de prescrever a ação social. Ao contrário, ele formula assertivas puramente formais, na medida em que é constrangido pela intentio zetetica20. Marcada pelo cerne investigativo e questionador, a retórica analítica enfrenta o problema da limitação de objeto, o qual inexiste nos demais níveis retóricos, uma vez que a construção de realidades linguísticas é constrangida somente pela vontade do próprio ser humano criador. É justamente essa restrição quanto ao objeto que confere à retórica analítica o caráter artificial, formal: a análise não lida diretamente com a formação do discurso, com a perspectiva interna, mas opera, isto sim, externamente, sobre os sistemas linguísticos já produzidos. Na tentativa de desvelar os processos linguísticos que criam o “universo” humano, a retórica analítica impõe-se o permanente dever de observação neutra, de dissecação de seu objeto de estudo (cadeias de opiniões) em níveis não naturais21 com vistas a facilitar a investigação. É a análise da linguagem por meio da linguagem22, realizável em virtude do diferimento temporal entre os dois momentos.

Essa metódica, porém, não se processa de maneira aleatória ou sem alvo: uma problemática central direciona a análise retórica. Chega-se, assim, aos problemas da originalidade e da continuidade. Quanto ao primeiro deles, diante do caráter multívoco do adjetivo “original”, torna-se primeiramente necessário tentar delimitar o horizonte de sentido abrangido por esta pesquisa. Ser original, aqui, significa ter características próprias, diferentes do mais encontradiço23. Conseguir destacar-se, por meio de atributos específicos, do conjunto constituidor do padrão corriqueiro será, portanto, o critério utilizado nesta análise retórica. Isso quer dizer que, dentro do contexto de história das ideias aqui investigado, vai-se indagar acerca de uma eventual adaptação retórica de teorias estrangeiras ao contexto nacional. Em outras palavras, a pesquisa girará em torno do problema central de saber se o federalismo defendido por Rui Barbosa foi capaz de expressar-se de modo independente, variando

20

BALLWEG, O. Entwurf einer analytischen Rhetorik. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und

Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p 68.

21

Sob uma perspectiva interna, normativa, o sistema linguístico não é fraturado, mas sim um todo harmônico. Isso porque, o processo de emissão de opiniões dá-se juntamente com a utilização de ferramentas linguísticas para potencializar sua persuasão. Não há a separação em “momento material” e “momento estratégico”. Cf.: BALLWEG, O. Entwurf einer analytischen Rhetorik. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p. 65-85.

22

BALLWEG, O. Analytische Rhetorik als juristische Grundlagenforschung. In: SCHLIEFFEN, K. G. von (Org.). Recht und Rhetorik. v. 1. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2009. p 158.

23

HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 1398.

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livremente a teoria federalista internacional (norte-americana), eleita como padrão a partir do qual ele se desenvolveu.

Pretender originalidade no sentido de existência primitiva, de não repetição de modelo já existente ou de algo que absolutamente não ocorrera antes seria ignorar o contexto histórico da cultura jurídico-política brasileira. Recém-independente, o Brasil do séc. XIX ainda tenta criar uma identidade própria, de modo que o peso da influência teórica estrangeira sobre os intelectuais nacionais é reflexo da formação acadêmica de várias gerações em Coimbra ou em outros centros universitários europeus. A tradição cultural brasileira de então não era rica em termos de pensamento jurídico nem político e, por isso, lançava mão do estudo de modelos internacionais24. Além disso, essa acepção mais radical do termo “original” ignora também o próprio transcurso natural do estudo e da pesquisa. Exigir que cada pensador construa sua teoria de modo a desconsiderar os modelos teóricos já criados e a inovar de maneira absoluta significa considerar não originais diversos teóricos consagrados.

Por sua vez, o segundo problema diz respeito ao eventual pertencimento da ideia investigada a uma corrente de pensamento nacional. Ou seja, as questões relativas à continuidade levam à reflexão sobre elementos que caracterizem (ou não) a inserção da teoria-objeto num conjunto de discursos do mesmo gênero, de forma a evidenciar-se (ou não) a existência de uma escola federalista nacional, da qual Rui Barbosa faria parte. Nesse sentido, saber que no Nordeste do Brasil diversas revoltas em prol da descentralização administrativa propunham a formação de uma federação brasileira, e que no início do séc. XIX alterações legislativas geraram a chamada “experiência federal”, destacada pela historiografia tradicional e vivenciada, sobretudo, no Sudeste, estimula a reflexão em torno desse problema. Surgem, assim, questionamentos quanto às eventuais marcas linguísticas que aproximariam, ou afastariam, a proposta federalista ruiana das demais nacionalmente apresentadas. Haveria na teoria de Rui Barbosa alguma conexão com uma linha de pensamento federalista nacional a ele anterior? Seria a vinculação, ou desvinculação, a essas retóricas federalistas anteriores uma estratégia do autor para tornar seu discurso mais convincente, mais próximo da realidade então linguisticamente compartilhada na sociedade brasileira?

É essa metódica o objeto da exposição feita no capítulo quinto da presente pesquisa. O primeiro tópico do capítulo destina-se à análise do problema da originalidade, de forma a

24

CARVALHO, J. M. A construção da ordem: a elite política imperial. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 65-88 e passim; Idem. Teatro de sombras: a política imperial. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 374-383 e passim.

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investigar as relações existentes entre a retórica federalista ruiana e a norte-americana dos

founding fathers. Refletir-se-á sobre os níveis estratégico e material: a partir das

problematizações dos capítulos terceiro e quarto, o federalismo de Rui Barbosa poderá ser comparado ao norte-americano e, então, tentar-se-á encontrar justificativas para eventuais divergências entre os dois modelos nos resultados obtidos nos capítulos primeiro e segundo. É a investigação do ajuste retórico do padrão estrangeiro para o plano interno. Precisamente essa adaptação retórica do modelo estrangeiro, a fim de harmonizá-lo às demandas típicas da sociedade brasileira, qualifica a teoria federalista ruiana como atualizadora do paradigma constitucional brasileiro e, mais, permite a esta pesquisa concluir pela originalidade de Rui Barbosa.

O segundo tópico do capítulo, por sua vez, volta-se às relações existentes entre a teoria ruiana e outras correntes brasileiras de pensamento federalista. Assim, o elenco de características do discurso federalista ruiano, apresentado nos capítulos terceiro e quarto, é novamente o ponto de partida para a percepção do isolamento nacional da retórica ruiana. Ao formular suas argumentações, ao justificar suas opiniões a favor da descentralização administrativa, Rui Barbosa não se refere a qualquer fonte de pensamento federalista, que não as estrangeiras. Mais do que isso, não se trata de simples não citação por motivos pessoais, pode-se perceber na retórica ruiana ausência de unidade com relação ao pensamento federalista pernambucano da primeira metade do séc. XIX e à experiência federalista da década de 30 desse século.

Esse isolamento teórico de Rui Barbosa não é, porém, despropositado. Analiticamente percebe-se que o autor soube reconhecer as demandas argumentativas existentes no nível material da retórica e, assim, adequar seu agir comunicacional para torná-lo socialmente aceito. A pesquisa volta-se mais uma vez às interações entre os níveis material e estratégico. Em virtude da força persuasiva dos discursos da ordem e da atualização institucional não seria perspicaz da parte do autor filiar suas ideias a movimentos revolucionários que puseram em cheque a estabilidade nacional ou a alterações legislativas processadas no governo por ele mesmo tachado de anacrônico e de excessivamente centralizador. Por outro lado, a estabilidade do discurso do progresso indicava a importância estratégica de se fazer constante remissão a teorias e modelos internacionais, sobretudo, europeus e norte-americanos. Apresentar-se como uma ilha na teoria nacional foi, assim, sob uma perspectiva analítica, a grande estratégia retórica do discurso federalista ruiano. Conclui-se, então, pela descontinuidade intencional das ideias ruianas.

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Como fecho da dissertação, tem-se o capítulo sexto, conclusivo. Nele são apresentadas de forma resumida as principais constatações feitas ao longo de toda a pesquisa.

Diante do exposto, percebe-se o objetivo central desta pesquisa ser melhor conhecer um momento específico da história das ideias nacional: o de criação do novo padrão jurídico de constituição do Estado. A partir da premissa de que a história das ideias é sisífica, marcada por idas e vindas, e construída retoricamente pelos sujeitos, conforme a harmonização entre os problemas situacionais que se lhe apresentam e seus interesses e crenças particulares, esta dissertação procura analisar a ruptura de padrões sociais, jurídicos e políticos consagrados no Brasil do séc. XIX, a qual foi determinante para a ampliação dos horizontes da teoria geral do direito e, sobretudo, da teoria constitucional brasileira.

Ao examinar o período de esfacelamento da monarquia e de sua consequente falência, dada a progressiva perda de seus sustentáculos sociais, a presente pesquisa investiga o passado do País e percebe o discurso ruiano como vetor da opinião pública da época, o qual aglutinou a luta antimonárquica e, assim, impulsionou a República Federativa do Brasil.

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2 A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DE INTELECTUAL INCANSÁVEL, DENODADO E

HONESTO: RUI BARBOSA DO NASCIMENTO À ATUAÇÃO NO DIÁRIO DE NOTÍCIAS

Rui Barbosa de Oliveira nasceu em 5 de novembro de 1849, em Salvador, filho de João José Barbosa de Oliveira e Maria Adélia Barbosa de Almeida. Advogado atuante, jurista formado bacharel em 1870 pela Faculdade de Direito de São Paulo, Rui Barbosa foi igualmente jornalista, político e orador de reconhecimento nacional, o que lhe permitiu participar ativamente de diversos debates públicos envolvendo questões relevantes da vida política e jurídica do País. Até sua morte, em Petrópolis no ano de 1923, engajou-se nas campanhas abolicionista e civilista, defendeu a reforma eleitoral, a democracia, a forma federativa de Estado, a remodelação do ensino, o governo de leis e o liberalismo. É, porém, sua atuação como mola propulsora da República Federativa, concretizada por meio dos artigos publicados no jornal Diário de Notícias, que interessa à presente pesquisa.

No entanto, para poder compreender o federalismo de Rui Barbosa e os argumentos por ele apresentados para justificação de sua teoria, é preciso analisar as crenças que moldavam seu caráter e que, portanto, integravam seu horizonte de sentido. Em outras palavras: é preciso trilhar o caminho da formação das convicções de Rui Barbosa a fim de perceber quais construções linguísticas organizavam seu raciocínio e, então, constituíam suas verdades. Quais as crenças políticas de Rui Barbosa? Qual a opinião do autor quanto à utilização do direito como mecanismo de conformação social? Sob o influxo de quais pessoas, de quais contextos tais posturas políticas e jurídicas foram assumidas? É a investigação em torno das influências sofridas por Rui Barbosa.

Por outro lado, o reconhecimento social do qual o autor gozava já em vida, desperta o interesse analítico para o problema da caracterização da imagem de Rui Barbosa no tecido social. Percebido por seus contemporâneos como letrado dotado de grande habilidade oratória e estilística25, Rui Barbosa construiu em torno de si relatos positivos quanto a sua dedicação ao estudo e a sua ética. Tais relatos difundiram-se na comunidade e foram assimilados pelo nível material da retórica. Ou seja, apesar de construídos sob um padrão de comunicação individual, do autor consigo mesmo, essas mensagens acerca do caráter de Rui Barbosa extravasam tal âmbito e passam a ser controladas publicamente. Ora, do ponto de vista

25

LAFERL, C. F. Die schöne Sprache des Rechts: Rui Barbosa und der Streit um den brasilianischen Código

Civil. In: LIEB, C.; STROSETZKI, C. (Orgs.). Philologie als Literatur- und Rechtswissenschaft: Germanistik

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analítico, tem-se que não somente as crenças do autor são importantes para a construção de seu futuro discurso. A forma como a sociedade o percebia era fundamental para que o auditório desse ouvidos a seu discurso. Consequentemente, além de investigar quais as posturas jurídico-políticas do autor, este capítulo problematiza o processo de surgimento do mito “Rui Barbosa”. Quais marcas da personalidade do autor davam força persuasiva para seu

ethos? Como a percepção dessas marcas foi capaz de produzir, numa sociedade iletrada,

narrativas idealizadas para representação do sujeito “Rui”? Qual a importância, para a futura retórica estratégica federalista, de Rui Barbosa parecer, aos olhos de seus contemporâneos, intelectual incansável, denodado e honesto? É a investigação quanto à relevância dos elementos do ethos ruiano para cativar o auditório.

Quanto à conformação das crenças representativas da personalidade do autor, reconhece-se em seu pai a primeira fonte de influências. Apesar de médico por formação, João José Barbosa tinha forte apreço pelo direito, especialmente pelo seu ramo público, e pela política, conforme o modelo anglo-saxão de monarquia constitucional. Adepto dos ideais e princípios do liberalismo, ele filiou-se ao Partido Liberal e foi também secretário de direção central do jornal liberal O Século. Deputado provincial da Bahia (1846 a 1848) e deputado geral representante dessa mesma província (1864 e 1868), tornou-se conhecido por seus dotes oratórios26. Além disso, João Barbosa foi militante da Sabinada, movimento revolucionário ocorrido no período regencial em cuja plataforma política estava a autonomia das províncias, com a respectiva defesa dos princípios federativos e o repúdio ao centralismo monárquico27. Saliente-se, por fim, ter sido ele diretor-geral de Ensino Provincial na Bahia e responsável pela organização do Liceu Provincial.

É esse reconhecimento da importância da educação por parte de João Barbosa que o leva a se responsabilizar pela formação intelectual de seu filho. Assim, em 1854, ainda aos 5 anos de idade, Rui começa a ter contato com textos clássicos, os quais era obrigado a memorizar, a tomar lições de retórica e eloquência, e a apreciar música erudita28. Aos 10 anos, matricula-se no mais renomado estabelecimento de ensino secundário da Bahia, o Ginásio

Baiano, e logo se torna aluno de boas notas, tido pelos professores como exemplo de esforço

e afeição ao estudo. Graças também a sua personalidade introspectiva e pouco dada à

26

FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Rui Barbosa: cronologia da vida e da obra. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999. p. 13-32.

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VIANA FILHO, L. A vida de Rui Barbosa. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1965. p. 3-8.

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FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Rui Barbosa: cronologia da vida e da obra. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999. p. 17.

Referências

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