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Corpo para pensar o Cristianismo, Cristianismo para pensar o corpo

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Corpo para pensar o Cristianismo, Cristianismo para

pensar o corpo

Este capítulo conclusivo tem por objetivo ressaltar o corajoso posicionamento dos autores, Adolphé Gesché e Alfonso Garcia Rubio, no caminho da devida valorização da corporeidade como dimensão fundamental do ser humano. O corpo posto sob suspeita ao longo da caminhada histórica da igreja cristã, também não foi devidamente valorizado pela sociedade, no mesmo percurso. Na visão dos autores, a reflexão teológica cristã tem diante de si o desafio da abertura-diálogo com a contemporaneidade, e se propõe a falar aos que creem e aos que não creem.

Na primeira parte, apresenta-se o dificultoso percurso para a necessária valorização do corpo. Há de se ter o cuidado de não descambar para uma idolatria, que é expressa na concepção de lidar com o corpo como finalidade em si mesmo. Caminho para reducionismos que não resultam em uma vivência integral das dimensões humanas.

A segunda parte salienta a importância da Gaudium et Spes na afirmação da dignidade e valor do corpo humano. É muito positiva a corajosa disposição do Concílio Vaticano II, salientada aqui, na carta pastoral, que sopra novo fôlego e disposição, a tomada de posição da igreja cristã.

A terceira parte salienta o tema da espiritualidade cristã como lugar de uma vida integral e integrada, onde as realidades concretas e históricas possam ser devidamente vividas e enfrentadas. A dificuldade que se deu com o corpo, sobretudo no protestantismo, trouxe implicações diretas a uma compreensão de espiritualidade bastante verticalizada, que perde de vista o ser humano concreto.

A quarta e última parte, propõe olhar para a questão da sexualidade humana, que sempre foi problemática na vivência das comunidades cristãs e na sociedade em geral. O ser humano é corpo sexuado. É desde modo que precisa integrar-se no todo da vida. Contudo, por conta da dificuldade com o corpo, a questão da sexualidade sempre foi controverso, periférico, perigoso e negligenciado. A reflexão teológica e pastoral tem compromisso de enfrentar tais dificuldades na direção de uma verdadeira integração humana, rica de significados e afetividade.

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5.1

Necessária valorização do corpo sem idolatrá-lo

Gesché elucida que a Teologia tem uma função ad intra, e outra ad extra. Isto é, presta seu serviço ora para os que creem, lhes mostrando o que significa a fé, ora em favor dos que não creem, quando mostra a pertinência do discurso teológico como discurso humano, inscrito entre todos os outros discursos. Seguindo esta intuição, a corporeidade se insere como temática importante e ponto de interseção às duas direções. A reflexão teológica propõe a partir do corpo, iluminar dificuldades e pensar o cristianismo, “corpo para pensar o cristianismo”, como afirma Gesché. E assim, o cristianismo, desafiado pela pesada crítica que se lhe impôs, imbuído do desejo sincero de diálogo, pode pensar a corporeidade na sociedade contemporânea. “cristianismo para pensar o corpo”.1

As principais críticas da sociedade ocidental contra o cristianismo ocidental recaíram, sobretudo, na questão do corpo. E não foi sem razão tal crítica. A própria teologia cristã reconhece a situação paradoxal que vivencia a igreja: por um lado o corpo é central à teologia e fé cristãs. Além de mencionar o alto valor que o corpo ocupa no propósito da criação, homem e mulher criados, sexuados, impulsionados ao encontro pessoal concretizado em uma relação sexuada. É central o lugar do corpo na encarnação do Filho, sua vida, morte e ressurreição. Corpo que se faz vida, alimento, pela Eucaristia, corpo do outro, como corpo de Cristo. Expressão que serve como fundamento para descrever tantas outras realidades, como a Igreja, corpo de Cristo, corpo místico. 2

Contudo, tal importância contrasta com a experiência histórica cristã de dificuldade em relação ao corpo. Sem negá-lo, pesou sobre ele profunda desconfiança e suspeita como dimensão humana que tende ao mal e ao pecado, parte inferior do ser humano, em detrimento da alma, dimensão mais nobre. Compreensão que nos vem desde os primórdios da organização teológica e eclesial cristã, juízo de valor visto nos escritos do importante Doutor da igreja

1 GESCHÉ, Adolphé. A invenção cristã do corpo. In: GESCHÉ, Adolphé. SCOLAS, Paul (org.).

O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009, p.63.

2 Cf. RIBEIRO, Lúcia. Corporeidade como desafio teológico na América Latina. In:

SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO. Corporeidade e teologia. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 265. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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Santo Agostinho de Hipona “o homem não é nem só corpo nem só alma, mas um composto de corpo e de alma. É certamente verdade que a alma não é o homem todo, mas sua melhor parte; nem o corpo é o homem todo, mas sua parte inferior: são os dois reunidos que merecem o nome de homem”3

Garcia Rubio concorda com Gesché quando este afirma que a questão da corporeidade levou a teologia a uma função ad intra, em relação a fé cristã. A pesada crítica que a igreja moderna recebeu, forneceu, também, chaves de leituras que a fizeram revisitar seu fundamento teológico, bem como sua prática pastoral, não somente no intuito de defender-se, mas de repensar a questão do corpo e os desafios oriundos desta compreensão. Pode ser dito que a questão do corpo, duramente posta, foi instrumento para pensar o cristianismo.

O professor Rubio chama a atenção de que muito há por ser feito na direção da devida valorização e superação do medo do corpo. Esta é uma questão que merece destaque na visão dos dois autores. Ambos afirmam a importância fundamental de uma visão do ser humano que não negligencie o corpo como dimensão fundamental.

A expressão “medo do corpo” encontra-se registrada nos escritos do Prof. Garcia Rubio. No capítulo 3 desta pesquisa tratamos tal questão, quando salientamos, que o medo do corpo gerou uma visão pejorativa da sexualidade humana, que foi encoberta, rejeitada, negada, desprezada, ao longo da história cristã. Questão que é diretamente relacionada ao dualismo antropológico que penetrou na teologia cristã, aliado a visão racionalista moderna, e gerou forte ruptura e desconfiança. A razão foi posta como elemento prevalente em detrimento da dimensão afetiva. As paixões, e mais especificamente, as paixões sexuais, serão vistas como irracionais, ilógicas e irrefreadas. “Para a razão ser senhora, a paixão precisa ser dominada”4 A fé eclesial não se calou.

Fundamentada na teologia da criação, pode-se afirmar positivamente a sexualidade. O ser humano, criado por Deus, como ser sexuado, participa inteiramente da bondade da criação.5

Consciência de si próprio como corporeidade é fundamentalmente importante, para Garcia Rubio. Corpo é lugar de abertura, de relação, e de uma

3 AGOSTINHO, XIII, 24, 2. A Cidade de Deus. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 2. 4 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. Evangelização e maturidade afetiva. 3ª ed. São Paulo:

Paulinas, 2006, p. 102. 5 Cf. Ibid. p. 103. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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interioridade embebida em afetividade, e não de exterioridade vazia. Por isto a desvalorização do corpo redundará em mutilação de toda expressividade e comunicação afetivas.6

Tal perspectiva é extremamente importante para a caminhada da fé cristã, não somente católica, mas também protestante. A rejeição ao corpo está no substrato da mentalidade protestante brasileira. Na análise feita por Filho, que diz respeito ao protestantismo brasileiro, mais precisamente até fins do século passado, o protestante é mais conhecido não pelo que é, mas pelo que não fazem: não fumam, não bebem, não dançam, não têm vida sexual extramatrimonial, não se vestem de acordo com a moda. As igrejas protestantes brasileiras, surgidas do movimento missionário do século XIX, principalmente norte-americano, identificam a conversão ao evangelho como rejeição da cultura e adoção de outros padrões culturais, mantidos por forte vigilância comunitária e disciplina congregacional. Dizer “sim” a Deus implica e dizer “não” à cultura e a diversos aspectos da vida. O maniqueísmo e dualismo, cisão ética entre o mundano e o sagrado, ditou os rumos das categorizações e escolhas no mundo protestante. Um mundo cindido pelo pecado que agora coloca de lados opostos Deus e o ser humano, o espiritual e o carnal, o sagrado e profano, o imaterial e o material.

Uma das consequências desta ruptura foi a separação entre as esferas do sagrado e do profano, espiritual e material, do bem e do mal, do paraíso e do mundo. Enquanto Deus permaneceu na esfera do sagrado, do espiritual, do bem e do paraíso, o ser humano passou a viver na esfera do profano, do material, do mal e do mundo. Para que o ser humano volte à esfera a que ele renunciou voluntariamente pelo pecado é necessário que abandone a vida e os valores da esfera em que vive e nasça de novo para Deus através do arrependimento e da conversão, a regeneração, bem como reestruture sua vida e valores (santificação) tendo como modelo a esfera que Deus habita.7

O apóstolo João combateu firmemente a heresia gnóstica que pregava a sublimidade do Espírito, em contraposição à depravação da carne. Negavam com isso a humanidade de Jesus, já que esta se dá no corpo, portanto, na carne.

Caríssimos, não deis fé a qualquer espírito, mas examinai se os espíritos são de Deus, porque muitos falsos profetas se levantaram no mundo. Nisto se reconhece o

6 Cf. GARCIA RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva, p. 100.

7 FILHO, Prócoro Velasques. “Sim a Deus e “não” à vida: conversão e disciplina no protestantismo brasileiro. In: MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO, Prócoro Velasques. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990, p.218.

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Espírito de Deus: todo espírito que proclama que Jesus Cristo se encarnou é de Deus; todo espírito que não proclama Jesus esse não é de Deus, mas é o espírito do Anticristo de cuja vinda tendes ouvido, e já está agora no mundo.8

Como já foi dito, as experiências fundamentais do Cristianismo deram-se na carne, no corpo: o nascimento, a morte e a ressurreição de Cristo. Portanto é de se concluir que a Bíblia não apoia a dicotomia entre corpo e alma. Quando a Bíblia fala do espírito oposto à carne, ela refere-se ao perigo da carnalidade que é o pendor para pecado visto na pessoa humana inteira que se fecha ao dom de Deus. Isto é, que se faz indiferente ao convite amoroso e a relação vital, ofertados por Deus. Fechamento que resulta em isolamento, egoísmo e morte do humano.

Os autores, Garcia Rubio e Gesché, têm o cuidado de salientar que a devida valorização do corpo precisa ser afirmada, explicitada e fundamentada dentro de uma visão integrada do ser humano. Para Garcia Rubio, o corpo deve ser valorizado e cuidado, pois faz parte da perfeição do ser humano. A pessoa humana é “espírito-na-corporeidade”. O corpo humano concreto, lugar da diferenciação homem-mulher, é também onde se dá encontro-relação com as outras pessoas, com mundo e com Deus.9

Garcia Rubio, contudo, chama a atenção, mais uma vez para o cuidado que se deva ter com a reversão dialética que desempenha papel desumanizante, pois no esforço de revalorizar o corpo, no cultivo do espírito à custa da corporeidade, houve na sociedade a passagem da supervalorização do corpo em detrimento do espírito.10

É benéfica e muito positiva toda mudança de postura em relação ao corpo ocorrida nas ultimas décadas. O devido cuidado com o corpo, inclusive no seio das comunidades cristãs, reflete uma nova maneira de pensar. Se é pelo corpo que vivemos, cuidar bem do corpo, é cuidar de si. Todo o ser está envolvido nesta tomada de consciência e atitude. O caminho que a fé cristã lança sobre tal compromisso é que o cuidado de si, debaixo da compreensão do que seja a pessoa humana concreta, deveria redundar no cuidado com os outros, com o mundo “nossa casa comum”11 e com Deus.

8 I João 4,1-3.

9 Cf. GARCIA RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva , p. 100. 10 Cf. Ibid.

11 “Sobre o cuidado da casa comum”, expressão que dá título a Encíclica do Papa Francisco, Laudato Si (Louvado Seja, sobre o cuidado da casa comum). É uma crítica ao consumismo e ao

desenvolvimento irresponsável de todo processo industrial.

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Esta é a crítica que os autores fazem sobre a reversão que se deu na sociedade e o novo lugar do corpo. A necessária valorização, vista no cultivo e cuidado do corpo descambou-se à sua hipervalorização12, a sua idolatria.

É naturalmente benéfica a preocupação crescente com a qualidade de vida e saúde. Modalidades as mais variadas de esportes, ginástica, práticas meditativas, etc. Somando-se a isto, todo esforço de uma indústria do rejuvenescimento, cosméticos, cirurgias plásticas, diversos e inovadores tratamentos, e etc. A preocupação em relação ao equilíbrio corpóreo-emocional, o cuidado desenvolvido na busca de combater o estresse e harmonizar melhor a mente e o corpo, razão e emoções e sentimentos. Para Garcia Rubio, todas estas orientações trazem benefícios, pois se movem na direção de uma melhor integração entre a espiritualidade e a corporeidade. A valorização sadia do corpo, importa cuidado adequado do mesmo. 13

A deturpação desumanizante se deu quando, ao invés de valorização do sujeito integral, o corpo foi visto como finalidade em si mesmo. Passou-se do corpo ocultado ao corpo idolatrado, visão incentivada pela voracidade consumista, comercial e midiática que se alastrou na sociedade urbana, em todas as faixas etárias e não somente entre os jovens, como propõe professor Rubio.14

Tais reversões que não integram realidades fundamentais do ser humano, somente lhes opõe, não operam verdadeira transformação e perpetuam maiores violências.

A corporeidade é uma dimensão a ser integrada na globalidade de dimensões que é o ser pessoal. O cuidado e a preocupação com o corpo devem estar a serviço do projeto pessoal de vida. A acentuação unilateral do valor da corporeidade empobrece e mutila o ser humano tanto quanto a acentuação unilateral do valor da dimensão espiritual.15

Por isto, Gesché propõe, ousadamente, importante lugar social para a teologia cristã. Sem arrogância e também sem receios, e acolhendo a crítica oriunda da sociedade sobre a questão da corporeidade, pode, agora, falar ela mesma, a esta sociedade sobre o ser humano, que é corpo. A teologia pode ser caminho para mostrar a todos os seres humanos, o modo de aprender a

12 Cf. Michel Mafesolli

13 Cf. RUBIO, Evangelização e maturidade afetiva, p. 101. 14 Cf. Ibid. 15 Cf. Ibid.. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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compreender a si mesmos e as coisas, na compreensão do seu próprio corpo. “A voz da teologia pode ter sua relevância que transpõe o intra muros”. A este movimento Gesché chamará de “a invenção cristã do corpo.”16

Para Gesché, a escritura cristã também fala de um excesso, mas de um excesso positivo. Apresenta-nos um Deus que toma a carne que é nossa, para Si; o corpo do ser humano, que também é corpo de Deus; o corpo do próximo que se identifica com o corpo de Cristo, e com o corpo próprio de cada um de nós; um corpo que vence a morte, corpo que aguarda seu destino escatológico. Todo este excesso faz-nos entender a grandeza do corpo. É a partir deste excesso que Deus se revela e revela quem seja o ser humano. Toda esta novidade dá ao corpo lugar de inigualável valorização. 17

Mas toda devida valorização que se dá ao corpo, somente é possível, sem desconsiderar o que é o ser humano, como pessoa relacional. Sem a perspectiva da relação, a valorização do corpo descamba para um exagero. Para Gesché, este é o erro visto nas intenções publicitárias, em todos os sonhos de beleza dissimulada. O corpo concebido de forma isolada, perdido em sua exasperação, sem outra finalidade que ele mesmo, torna-se idolatrado. Obcecado por si mesmo, visto na busca da perfeição estética, desligado de tudo, e profundamente desresponsabilizado de tudo, o corpo torna-se, não o lugar do humano, mas o lugar do desumano. 18

Pois que, precisamente, essa relevância do discurso teológico encontra seu sentido e seu lugar hoje particularmente naquilo que eu chamaria de restituição ou reconstrução, a restauração do corpo. Sim, o corpo é engrandecido hoje (o esporte amador [o único que merece o nome de esporte], a liberdade das roupas, o cuidado da saúde, etc.), é o que se fala e se mostra por toda parte, e existe ai um extraordinário avanço relativamente a tempos de absurdo escondimento, cujas consequências deploráveis são bem conhecidas. Isso não impede, não significa resmungar, mas reconhecer que o novo discurso e as novas imagens criadas podem também, muitas vezes, ou às vezes, aviltar o corpo.19

Gesché vai afirmar que o tipo de valorização que a sociedade pensa ter sobre o corpo, construiu uma determinada idolatria ao corpo, e toda idolatria é escravizante e violenta. A Fé cristã enxerga a possibilidade do corpo, não idolatrado, mas consagrado “eis o meu corpo para ti”, consagrado à vida. Nunca

16 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo. p. 73. 17 Cf. Ibid. p. 74. 18 Cf. Ibid. p. 75. 19 Cf.Ibid. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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fechado em si mesmo. Esta é a função que a teologia cristã se propõe, no diálogo com os outros saberes: há na compreensão do corpo uma verdadeira manifestação de nosso ser e do ser de Deus. O cristianismo constitui uma verdadeira fenomenologia teológica do corpo.

Se dessa forma a teologia tem seu ponto de partida em Deus, é também a partir de Deus que ela se torna uma fenomenologia do homem. É verdadeiramente em meu corpo, no corpo do meu próximo, que vemos, para quem assim o desejar, manifestado, demonstrado, revelado aquilo que somos. E não em outro lugar, nem (ainda que tal não seja falso): cogito ergo sum, mas sim “corpus autem aptasti

mihi”) recebemos um corpo para que apareça aquilo que somos.20

E desta forma, o corpo se torna inteligível ao modo de compreender da sociedade atual.

5.2

Corporeidade na Gaudium et Spes: sua importância ecumênica para a reflexão teológica sobre o corpo

Segundo Garcia Rubio, a mesma atitude predominante de abertura-diálogo ao logos filosófico na Patrística serviu como paradigma a ação histórica da igreja no enfrentamento da racionalidade moderna. Processo atribulado e tenso que desembocou no Concílio Vaticano II, sobretudo na Gaudium et Spes. Crise que adentra o século XXI e que ainda demanda respostas e tomada de posição por parte na Igreja contemporânea. Muito há para ser realizado.21

A principal crítica que recaiu sobre a mentalidade moderna deveu-se à violência contra o humano que a racionalidade instrumental impôs. A tão propalada liberdade, igualdade, autonomia do ser humano, deu lugar, na modernidade tardia, a uma situação epocal compreendida como “absurda”, em relação à perda de sentido para a vida humana.22

“...pois sobre a máscara do esclarecimento e da liberdade, na verdade, o que é marca característica de nossa epocalidade é a experiência da perda de sentido da vida, através da institucionalização e concretização de uma razão que é antes

20 Cf. GESCHÉ, A invenção cristã do corpo, p. 77.

21 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. O ser humano à luz da fé cristã e a racionalidade moderna.

Belo Horizonte -MG, Perspectiva Teológica, v. XXII, n.56, p. 31-53, 1990.

22 Cf. OLIVEIRA, Manfredo Araujo. A crise da racionalidade moderna: uma crise de esperança.

Síntese Nova Fase, v. 45, 1989, p.14

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desrazão perversa, instrumental, não somente dominando a natureza e os homens, mas ameaçando a própria vida humana em sua sobrevivência.23

Hoje é possível perceber as deficiências e até os graves erros da modernidade. Os limites da racionalidade proposta, bem como o abismo existente entre a expectativa, por ela suscitada, e a realidade histórica que se deu. Contudo, no entendimento de Garcia, a perversidade não se encontra na racionalidade instrumental em si, mas em um determinado uso que se fez desta, e que dominou o processo civilizatório propondo um ser humano dicotomizado em si, fechado, negador do outro na medida em que é diferente. Dominador, devastador do meio ambiente.

Mas, nem tudo é tão pessimista assim. Existe outra vertente da racionalidade moderna que vê o sujeito aberto às relações pessoais nos diferentes níveis e aberto ao mundo da natureza, em termos não meramente instrumentais.24

...não há dúvida que a abertura-diálogo à racionalidade moderna deve ser hoje rigorosamente crítica. A racionalidade meramente instrumental, cuja aplicação teve como resultado a coisificação dos seres humanos (em diversos níveis) e a destruição do meio ambiente, obviamente, deve ser criticada com todo rigor e combatida lucidamente na prática cristã. Uma vez que esta racionalidade tem predominado legalmente, não é infrequente identificar a crítica da racionalidade instrumental com a crítica da modernidade como tal. (Na obra), a crítica é sempre dirigida a essa racionalidade unilateral e reducionista. A racionalidade moderna, contudo, apresenta outros desdobramentos que podem servir de mediação para uma reflexão teológica situada no contexto moderno.25

Por isso a importância do Concílio Vaticano II, como marca de mudança na postura da Igreja no enfrentamento destas questões. Grande parte da fundamentação que levou Garcia Rubio a escrever sua principal obra26 se deu na esteira deste processo. Na disposição corajosa de diálogo franco e crítico, dado que o desafio contemporâneo à fé cristã está centrado, sobretudo, na autocompreensão do ser humano, e como a racionalidade moderna questiona a vivência das afirmações bíblico-cristãs em relação a este. Tanto em ambientes

23 Cf. OLIVEIRA, A crise da racionalidade moderna, p.14. 24 Cf. GARCIA RUBIO, O ser humano à luz da fé cristã, p. 39. 25 Ibid. p.33.

26 Neste artigo, Alfonso Garcia Rubio refaz o caminho de motivação da escrita de sua principal

obra, Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. Primeira edição no fim da década de 80. Cf. GARCIA RUBIO, O ser humano à luz da fé cristã, p. 32.

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diretamente influenciados pela modernidade e pela secularização, quanto em ambientes populares, influenciados de modo diverso dos países desenvolvidos.

É muito positiva a visão e resultado do Concílio. Sem descuidar da dualidade do ser humano (corpo-alma), o Vaticano II sublinha cuidadosamente sua a unidade. Em uma posição madura e consciente do efeito negativo do dualismo, em sua Constituição Pastoral é afirmado: “Não é, portanto, lícito ao homem desprezar a vida corporal, mas ao contrário, deve estimar e honrar o seu corpo, porque criado por Deus e destinado à ressurreição no último dia”27

Segundo Garcia Rubio, o documento denuncia e defende vigorosamente o valor positivo da corporeidade, a condição corporal, sem descuidar da espiritualidade. O texto conciliar, todavia, não aprofunda de maneira sistematizada a questão da constituição básica do ser humano.28

A Constituição Pastoral Gaudium et Spes é o maior documento do Concílio Vaticano II e o último a ser votado, no último dia do Concílio, em sua última sessão geral29. Consta de 93 números; é a única constituição pastoral, uma novidade até então. Foi esta intenção do Papa João XXIII. A igreja deveria realizar um concílio pastoral, abrir-se em um caminho de diálogo com o mundo, olhando com muita seriedade para os problemas da época. 30

Traz em si um proêmio de grande beleza que já aponta a intenção de não falar somente ao coração do cristão católico. Um documento universal, que se põe em diálogo com todas as gentes: cristãos e não cristãos, religiosos e arreligiosos. A Igreja, inserida no mundo, não em oposição a ele, não em fuga dele, mas participante de todas as questões, demonstra seu real interesse no ser humano e naquilo que é comum ao humano, por obediência e amor a Cristo.

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.31

27 GS 14

28 GARCIA RUBIO, Alfonso. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. São Paulo: Paulus, 2001, p.340.

29 Cf. LOPES, G. Gaudium et Spes: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 9

30 É chamada “Pastoral” porque, apoiando-se em princípios doutrinais, pretende expor as relações

da Igreja com o mundo e os homens de hoje. Assim, nem à primeira parte falta a intenção pastoral, nem à segunda a doutrinal. Cf. Ibid, p. 44.

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Em esforço sincero de dialogar com a humanidade, em sua introdução a Constituição analisa e ilumina a condição do ser humano no mundo de sua época. O ser humano, a despeito de tudo que tenha conquistado e realizado, e todo desenvolvimento que as racionalidades suscitaram, está imerso em caudalosa angústia trazida pelo crescimento da maldade, do egoísmo, da miséria. De maneira firme, discernindo seu tempo, ainda no século XX, mas com olhar à frente, propôs-se falar sobre o ser humano a partir de sua concretude. É central o lugar do humano no documento, uma “virada humanista”. Não um homem partido, divorciado e em litígio com suas dimensões, mas um ser integral e integrado.

Em sua primeira parte, de cunho mais doutrinal, o documento nos oferece uma antropologia teológica, ou pode-se dizer, uma antropologia cristológica extremamente rica para pensar não somente os aspectos constitutivos do ser humano, mas sua dignidade como ser criado e o resultado destas compreensões para a vida.

O Concílio Vaticano II marca uma virada na disposição da Igreja, uma reformulação de sua linguagem, em uma nova disposição de fazer-se entender em seu humanismo.32. Diz que o Concílio abriu-se ao mundo moderno. Para o Papa

João XXIII, isto significava uma abertura ao mundo moderno na perspectiva de participar de um diálogo que exigia sua presença, pois o mundo lançava as perguntas e esperava respostas. Respostas estas que precisavam tornar-se acessíveis ao entendimento diante das aspirações do homem moderno.

O Concílio Vaticano II quis ser pastoral no momento em que aceitou a tese oposta a uma das afirmações do Syllabus de Pio IX. Condenara-se a seguinte proposição: “O Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e fazer amizade com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna”. (DS 2980). Não se tratava da Igreja reconciliar-se ou fazer amizade de uma maneira subserviente, capitulante, abrindo mão de sua originalidade e identidade, mas de abertura.33

A Constituição Pastoral Gaudium et Spes é entendida como o documento que melhor conseguiu expressar esta abertura, esta reconciliação. A Igreja pode

32 “Em toda história o cristianismo sempre se apresentou como humanismo. O fundamento desta

vocação está em duas afirmações fundamentais do dogma cristão: A encarnação do Verbo de Deus e a ressurreição do corpo. O Filho de Deus assume a carne, o corpo, e o corpo não é deixado esquecido, mas redimido participa da realidade salvífica.” JUNGES, J. R. Bioética. Hermenêutica

e casuística. p. 126.

33 LIBANIO, J.B. Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. p. 68.

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dialogar com todas as gentes em todos os lugares porque a base está na antropologia apresentada no documento, especialmente em toda primeira parte. Esta é a riqueza e toda novidade da GS, uma antropologia cristológica. Pois aponta para o homem, “em sua unidade e integridade: corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade”.34 mas este somente encontra sua determinação e plenificação em Cristo Jesus.35

A exposição preliminar descrita nos números de 4 a 10 falam da condição humana. O homem está em um período bem controverso de mudanças. Mudanças sociais e políticas. Mudanças morais e éticas; época também marcada por grandes desequilíbrios, desequilíbrios sociais, crescentes níveis de pobreza e miséria, e acúmulo de riquezas por pequena parcela da população mundial, violência e toda sorte de questões oriundas disto. Desequilíbrios ecológicos, que também é um legado do desenvolvimento irrefletido, a exploração desenfreada e predatória dos recursos naturais.

O documento está dividido em duas grandes partes; a primeira vai dos números 11 a 45: A Igreja e a Vocação Humana. Está dedicada a mostrar o interesse da Igreja nos temas atuais e toma por base um ponto de partida irrenunciável: A Dignidade da Pessoa Humana, dignidade alicerçada na compreensão da Sagrada Escritura quando ensina que “o homem foi criado à imagem de Deus”.

A Sagrada Escritura ensina que o homem foi criado «à imagem de Deus», capaz de conhecer e amar o seu Criador, e por este constituído senhor de todas as criaturas terrenas (1), para as dominar e delas se servir, dando glória a Deus (2). «Que é, pois, o homem, para que dele te lembres? ou o filho do homem, para que te preocupes com ele? Fizeste dele pouco menos que um anjo, coroando-o de glória e de esplendor. Estabeleceste-o sobre a obra de tuas mãos, tudo puseste sob os seus pés» (Salmo 8, 5-7).

Deus, porém, não criou o homem sozinho: desde o princípio criou-os «varão e mulher» (Gén. 1,27); e a sua união constitui a primeira forma de comunhão entre pessoas. Pois o homem, por sua própria natureza, é um ser social, que não pode viver nem desenvolver as suas qualidades sem entrar em relação com os outros.36

O trecho citado aponta aspectos fundamentais da imagem de Deus no ser humano: “a capacidade de conhecer e amar a Deus”; “e por este constituído

34 GS 3.

35 Cf. COSTA, P. C. A determinação cristológica do ser humano. Atualidade Teologica, n. 39

(setembro a dezembro/2011), p. 503-511. 36 GS 12. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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senhor de todas as criaturas terrenas (1), para as dominar e delas se servir, dando glória a Deus de ser senhor sobre todas as coisas e de viver em comunhão com os outros”. Neste entendimento, esta imagem não é somente um dado, mas aponta para o projeto de Deus para a vida humana, um jeito de viver. A imagem de Deus refletida no homem configura-se também como dinamismo que abre o ser humano para três relações: com Deus, com o outro e com o mundo. “Nessas relações efetiva-se sua vocação: entrar em comunhão com Deus, com o outro e com mundo. A dignidade humana consiste nesta efetivação.”

A pessoa humana em sua unidade e integralidade é a base de toda exposição deste documento. A imagem de Deus realiza-se em uma unidade, “ser uno”, numa estrutura corpóreo-espiritual “corpo e alma”. Dimensões que precisam ser trazidas em completa harmonização e consciência. Não deve desprezar a vida corporal, ao contrário, deve dignificá-la, pois seu corpo é bom, dádiva maravilhosa de Deus, mas o homem não se encerra no corpo somente. Percebe-se superior às coisas materiais.

Contudo, longe de idealizar o homem e sua saga histórica, a Igreja também lhe aponta os motivos de desagregação de si mesmo, do rompimento brusco de suas relações e uma determinada opção pela violência, poder e enfrentamentos. O pecado, como opção de autonomia estéril do homem em relação a Deus, acaba por encarcerá-lo em processo de não-realização de si mesmo, de desumanização até a morte. 37 “O homem encontra-se, pois, dividido em si mesmo. E, assim, toda a vida humana, quer singular, quer coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas.”38

O ser humano, criado para encontrar sua plena realização na acolhida amorosa do Criador, experimenta as “revoltas do corpo”, isto porque é pelo seu corpo que vive e nele experimenta as dores e angústias históricas consequência do seu descaminho. Apesar disto, deve antes considerar “o seu corpo como bom e digno de respeito, pois foi criado por Deus e há de ressuscitar no último dia.”39

Por isso, a contribuição mais importante e original do Concílio para a antropologia teológica é a revelação do Cristo. Nele se esclarece o mistério do homem. 37 Cf. GS n. 13. 38 GS n. 13. 39 Cf. GS 14. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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Na realidade, só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem. Adão, o primeiro homem, era efetivamente figura daquele futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime. Não é por isso de admirar que as verdades acima ditas tenham nele a sua fonte e nele atinjam a plenitude. Imagem de Deus invisível (Col. 1,15) Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que, nEle, a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo também em nós foi ela elevada a sublime dignidade.40

Não é sem propósito que na compreensão que expressaram, nossos autores deram eco à cristologia afirmada pelo Concílio. Cristo é o revelador de Deus, e é o revelador do ser humano. Nos quatro capítulos da primeira parte, os números finais apontam sempre a presença do Cristo na trajetória humana, não como alguém que vem de fora e completamente deslocado do sentido de existência humana, mas como Verbo que se fez carne, Cristo, homem novo. (números 22, 32, 39, 45). Nestes números pode-se identificar traços fundamentais de uma Cristologia Conciliar: O mistério do homem à luz de Cristo. O ser humano sem Deus não tem sentido. Uma linguagem antropológica cristológica, isto é, uma antropologia que tem em seu centro e seu cume na imagem de Cristo. É esta antropologia que vai permitir à Igreja dialogar com qualquer pessoa, não importa sua condição e sua fé. Cristo é apresentado como ápice da experiência e condição humana.

O professor Garcia afirma:

“A teologia é um discurso acerca de Deus e, simultaneamente, é um discurso sobre o ser humano. A teo-logia é também antropo-logia. Mas a antropologia teológica - trata do ser humano à luz da revelação bíblico-cristã, lida e interpretada na Igreja. Dessa revelação, emerge uma visão do ser humano extremamente rica e capaz de cativar. Uma visão em que o caráter pessoal do ser humano ocupa lugar fundamental, constituindo o alicerce de todas as outras dimensões e aspectos do humano.41

Na Reflexão teológica, é Cristo quem plenifica toda compreensão sobre o ser humano. Gesché afirma que é em Cristo que tal relação é plenamente conhecida e possível. Nos propõe uma cristologia como teologia e como

40 GS 22.

41 Cf. RUBIO, Alfonso Garcia. (Org.). O Humano Integrado: abordagens de antropologia teológica. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 261.

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antropologia. O lugar de Cristo é central na fé cristã.42 Verdade plenamente

conhecida e aceita. Como seria possível falar de cristologia sem Cristo? Mas Gesché afirma que é possível. E é justamente este o erro que se incorre muitas vezes. No afã de afirmar a centralidade de Cristo, descamba-se para um cristocentrismo na teologia, isto é, falar da pessoa e natureza de Cristo, esquecendo-se ou encobrindo-se aquilo que Cristo veio revelar. “Ora, é justamente uma resposta a nossas prementes questões sobre Deus e sobre o ser humano que Cristo nos propõe e por causa da qual se encontra no centro da nossa fé. A cristologia tem por dever ser teologia e antropologia antes de ser cristologia.”43

A partir de Cristo, nosso chamado é também para vida, levando em consideração os dilemas e enfrentamentos no corpo, seremos aperfeiçoados nEle, seguindo seus passos em vida e na morte. Como Ele é, também o seremos. Esta compreensão é um dos pontos mais fascinantes, pois enxerga um ser humano concreto, que participa da relação com Deus com seu corpo, suas inquietações, suas pulsões, seus agravantes. Neste processo de lidar com seus próprios limites e dificuldades no esforço significativo de desvencilhar-se do que não é útil, vai sendo transformado na imagem de Cristo, filho de Deus, Senhor nosso.

Se o corpo, como definem nossos autores, é a própria pessoa humana, marcada pelo limite de sua condição de criatura e chamada ao encontro fundamental do outro, é exatamente pela maravilhosa novidade da afirmação de um Deus que busca o encontro e para tal assume a carne que se dá toda possibilidade de relação. Uma perspectiva antropológica que, ao invés de gerar o afastamento da Igreja em relação à sociedade, serve de motriz evangelizadora, e lugar de abertura e diálogo, já que o evangelho sempre se ocupou disso: a necessidade de comunicar-se aos homens, estivessem estes em qualquer situação, indo-lhes ao encontro. 42 GESCHÉ, O Cristo, p. 17. 43 Cf. Ibid. p. 18. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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5.3

Espiritualidade e corporeidade na cativante proposta de Jesus de Nazaré

Como salientado por Gesché, Jesus Cristo é o fundamento e está no centro da vida cristã. Outro aspecto bastante relevante da vida cristã muito afetado pela má compreensão da relação corpo-alma, é a questão da espiritualidade. Sobre tal dimensão pretendemos falar a seguir.

Apesar do grande avanço da reflexão teológica na autocompreensão do ser humano, a partir de uma perspectiva bíblico-cristã, segundo professor Rubio, no pós-concílio constata-se que a igreja ainda tem bom caminho a percorrer na afirmação da visão integral do ser humano. Certamente no que diz respeito à espiritualidade cristã e à vivência pastoral das comunidades, resta caminho longo a ser percorrido. A dificuldade, ainda no âmbito das igrejas, vem da persistência de reducionismos velhos e novos, empobrecedores humano, orientações espirituais que desprezavam o corpo, visto como inimigo da vida espiritual, produzindo oposições-exclusões que afetam aspectos fundamentais da vida.44

Na vivência da espiritualidade cristã, tal dificuldade é ampliada, inclusive, pela compreensão que se dá ao termo. “Espiritualidade” vem de espírito, o que, para muitos, é aquilo que se opõe à matéria, ao corpo. Neste caso, a concepção de espiritualidade está sempre ancorada a uma relação de oposição radical ao que se dá na dimensão da corporeidade. A espiritualidade é algo que entra em conflito direto com a vida humana, felicidade humana, com a fruição e o prazer da vida. Pois quem se dedica a espiritualidade tem de renegar o corpo e tudo que dele advém.

Professor Garcia chama veemente atenção contra as consequências da visão dualista. Durante séculos, o desprezo pelo corpo, considerado como inimigo da vida espiritual criou a falsa compreensão que para desenvolver-se espiritualmente, fazia-se necessário a superação do corpo com suas tendências e instintos, culpado pelo pecado e pela desordem existente no ser humano.45

44GARCIA RUBIO, Alfonso. (Org.). O Humano Integrado: abordagens de antropologia teológica. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 8.

45 GARCIA RUBIO, Alfonso Garcia. Elementos de antropologia teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para quê?. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes, 2013, p.29.

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Tal compreensão da espiritualidade afeta decisivamente a maneira de articular as diversas dimensões ou aspectos que constituem a riqueza da salvação cristã. Orientações religiosas debaixo de uma visão imediatista, individualista e egocêntrica que compreendem a salvação de maneira completamente divorciada da vida que se vive no corpo. É o que se verifica em não poucas igrejas, no Brasil, uma polarização excludente entre vida de oração, por um lado, e compromisso político social, por outro. Uma tendência igualmente excludente em acentuar a vida sobrenatural (vida da graça), em relação à vida humana. A dimensão celeste, o céu, sendo valorizado unilateralmente, em detrimento da terra, visto no desejo de fuga desta terra de dores e destinada à destruição.46

Outros aspectos radicalmente afetados por tal mentalidade de oposição-exclusão são: a realidade da igreja no mundo e a história humana, desvalorizadas em detrimento da realidade do Reino de Deus. Celebração litúrgica em oposição à vida cotidiana, sagrado e profano, clero e leigos, etc. As realidades que foram, ao longo da história, relacionadas à dimensão espiritual, afirmadas unilateralmente e excludentemente, em relação às realidades relacionadas historicamente com a dimensão humana.47 Em geral, é esta a compreensão que se tem do significado de

espiritualidade: a busca do espiritual (transcendente), como caminho para superar as limitações impostas pelas realidades humanas concretas.

Rubio afirma que além de uma tendência profundamente verticalizada, emerge também uma espiritualidade utilitarista, que concebe a salvação cristã como solução imediatista e individualista dos problemas cotidianos, que, em verdade, utiliza a roupagem bíblica para mascarar uma religiosidade a serviço do capital e da exploração, sempre com forte componente de soluções mágicas para dilemas humanos. Uma religiosidade da satisfação imediata, moldada pelos paradigmas do consumo e a serviço de um egoísmo, completamente divorciado da espiritualidade vista em Jesus de Nazaré.48

Gesché vem afirmar que uma espiritualidade que não leve, seriamente em conta a vida humana, o corpo, como lugar também da fraqueza e limitações humanas, por certo, resultará em uma religiosidade assassina. Pois propõe o caminho da fé, sem levar em consideração a realidade histórica do ser humano,

46 GARCIA RUBIO, Elementos de antropologia teológica, p.30 47 Ibid.

48 GARCIA RUBIO, O Humano Integrado, p. 9.

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que não é ser perfeito. Que vive na trama da vida os dilemas interiores e exteriores. Este tipo de espiritualidade tem sua base em uma visão de Deus fixada em sua “onipotência e impassibilidade absolutamente etérea e mortal para os seres humanos”. Um Deus completamente distanciado da dor humana, e que se recente do corpóreo. Tal visão, como já afirmamos, não é tributária das Escrituras e da compreensão que se tem de Jesus de Nazaré. É concebida pela racionalidade orgulhosa e arrogante que a modernidade produziu, colocando como opostas dimensões tão ricas, que precisam ser integradas no todo da vida humana. Racionalidade que não compreendeu que o Deus onipotente, é também aquele que experimenta a fraqueza.49

Garcia Rubio compreende que tal visão continua alimentando a espiritualidade e a visão cristã de muitas igrejas. É um fenômeno transconfessional. Esta incapacidade de articular de maneira inclusiva dimensões do humano e da vida cristã, privilegiando unilateralmente uma tendência espiritualizante, e consequentemente alienante da vida. Esta compreensão se alinha a percepção de sociólogos, teólogos e historiadores que analisam o fenômeno do crescimento e comportamento das igrejas cristã protestantes no Brasil. O cristianismo brasileiro poderia ser, grosso modo, dividido em cristianismo católico e cristãos não católicos50. Evidentemente, no Brasil o grupo

dos não católicos e cristãos é denominado protestante. A bem da verdade, como já foi dito no primeiro capítulo da pesquisa, é difícil falar da igreja protestante brasileira, ou igreja evangélica brasileira.51 A enorme diversidade entre as igrejas que se afirmam como evangélicas ou protestantes, constitui tal dificuldade.

O que significa que, sendo uma realidade transconfessional, a crítica e as dificuldades que Garcia Rubio chama atenção como existindo nas comunidades cristãs católicas, podem, guardados as devidas peculiaridades, ser afirmadas sobre igrejas protestantes. E segundo autores protestantes, talvez dificuldades maiores ainda possam existir por conta da fundamentação teológica agostiniana, onde se vê com mais força a presença de uma visão antropológica dualista platônica, não superada.

49 Cf. GESCHÉ, Adolphé. A invenção cristã do corpo. In: GESCHÉ, Adolphé. SCOLAS, Paul

(org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009, p. 49.

50 MENDONÇA, Antonio Gouvêa. O Protestantismo no Brasil e Suas Encruzilhadas. Revista

USP, São Paulo, v. 67, n.1, p. 48-67, 2005.

51 Os termos protestante e evangélico são usados aqui sem distinção de significado entre eles.

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O ambiente evangélico brasileiro contemporâneo recebe com muita veemência a força da presença da uma visão neopentecostal de espiritualidade. Já na década de 90, Prócoro Velasques Filho, aponta que um fenômeno a ser observado é o rápido desenvolvimento das ditas “religiões do espírito”, no cenário eclesiástico brasileiro, ao mesmo tempo que há uma estagnação e até mesmo declínio do chamado cristianismo tradicional, protestante e católico, que não conseguem responder a demanda que se instalou na mística popular.

Protestantismo e catolicismo não têm sido capazes de satisfazer a exigência mística popular. Perderam sua tradicional capacidade de influenciar e mobilizar as massas; de sustentar com clareza o lugar de Deus no mundo, de promover e animar a construção de uma nova sociedade. O vazio deixado por esse fracasso vem sendo crescentemente ocupado pelo que se chama habitualmente “pentecostalismo”, que o autor prefere designar como “religiões do espírito”.52

É notório que, desde que sua análise foi publicada, o cenário eclesial brasileiro continua a sofrer transformações. Acrescenta-se a isto que qualquer análise sobre uma conjuntura tão extensa e complexa, não será unanimidade e terá possíveis dificuldades. Mas sua descrição dos aspectos das “religiões do espírito” mostra como uma concepção reducionista do humano permanece subjugando a visão da espiritualidade e vida cristã.

Em geral, as religiões do espírito, são de orientação carismática protestante (neopentecostal), e as da renovação carismática católica, guardadas determinadas distancias entre as duas correntes.

Filho resume as características que distinguem estas religiosidades nas seguintes ênfases: forte misticismo, evidenciado pelo movimento de “curas divinas”. Diferentemente do protestantismo tradicional e do pentecostalismo clássico, com sua ênfase na conversão individual, “as religiões do espírito dedicam-se à cura, à expulsão de demônios e ao benzimento.” Salvação e cura, neste caso, são idênticas. E toda enfermidade, males de qualquer ordem são de origem espiritual, causados por demônios que não podem ser combatidos pela medicina tradicional. Há um forte traço comercial capitaneado pelo movimento de massas e pelos exagerados apelos financeiros, motivados pelo oferecimento de soluções imediatas de problemas de quaisquer ordens. Há também um forte

52, FILHO, Prócoro Velasques. Declínio do cristianismo tradicional e ascensão das religiões do espírito. In: MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO Prócoro Velasques. Introdução ao

protestantismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990, p. 249.

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controle das pessoas, que Filho denomina de “ascendência sobre as massas”. Através da exploração e exarcebação do emocionalismo em seus ambientes de culto.53

Filho aponta que nas religiões do espírito, Deus é visto como estranho à realidade histórica e social. Uma compreensão que decorre da subjetivação do dualismo tradicional. Deus não atua nas estruturas do mundo, mas somente no interior das pessoas. Não se relaciona com a história dos povos, sem interesse positivo na fruição da vida humana – trabalho, lazer, sensualidade, situações de pobreza, e demais aspectos da vida - mas somente participa da interioridade humana. 54

Em uma sociedade de consumo, onde a força do chamado capitalismo selvagem, produz uma legião de excluídos que acabam vitimados por toda sorte de tragédias sociais, as religiões do espírito servem como fuga da realidade e lenitivo aos oprimidos. Ao mesmo tempo eliminam todo desejo de luta por mudanças estruturais sérias. Como o Reino de Deus é uma realidade puramente a-histórica, existe apenas na interioridade do indivíduo. E como os problemas são causados por Satanás e pelo pecado, nunca pelas estruturas, a solução somente pode vir pela luta contra Satanás e pelo forte controle de tudo que possa apontar para o pecado na vida humana, que se traduz em uma religiosidade guiada por padrões rigorosos de comportamento, sustentados por uma vigilância policialesca da vida comunitária.55

O sociólogo protestante Paul Freston chama a atenção em pequeno artigo, escrito em 1997, onde analisa o movimento de expansão da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) em Portugal e na Inglaterra. O autor afirma que está diante de uma das principais transformações religiosas do final do século XX, a transformação do pentecostalismo em religião global e a mudança de centro, não somente numérico, mas também do impulso expansionista internacional, para regiões distantes dos centros históricos do protestantismo.

O que nos interessa no pequeno artigo são as razões pelas quais a AEP (Associação Evangélica Portuguesa) nega o pedido de filiação da IURD como igreja evangélica no país:

53 Cf. FILHO, Declínio do cristianismo tradicional, p. 261. 54 Cf. Ibid. p. 262. 55 Cf. Ibid. p. 263. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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O parecer de uma comissão da AEP sobre o pedido da IURD, datado de Janeiro de 1993, conclui que o corpo de doutrinas « tem grande proximidade com os princípios doutrinários da AEP, contudo as idéias-força […] assim como algumas práticas, colocam a IURD fora do universo tradicional […] das "Igrejas evangélicas portuguesas" ». Os principais pontos de desvio seriam quatro. Primeiro, a IURD possui « rígida hierarquia com poderes unipessoais discricionários ». Em segundo lugar, os líderes são imunes « à apreciação das suas vidas, com o fundamento de que são pessoas "comandadas" directamente por Deus, a quem ele fala por sonhos, visões e pela Biblia ». Em terceiro lugar, a IURD usa « métodos mágico-sacramentais na relação do "humano" com o "divino" e do "material" com o "espiritual" », como rosas vermelhas para saúde, rosas amarelas para prosperidade, rosas brancas para questões sentimentais e fotos ungidas com óleos santos. Em último lugar, ela não dá ênfase às « doutrinas fundamentais do Evangelho, mas sim à transmissão de "idéias-força" com laivos de conteúdo evangélico, mas algumas heréticas ». Na lista das idéias heréticas, lemos que :« – todos os males […] são de origem demoníaca ;– a cura é um direito adquirido através de Cristo ;– o pastor tem o dom de curar […] independentemente da fé do doente ;– a libertação completa [da opressão demoníaca] só é conseguida com a participação na […] igreja ; ninguém foi abençoado em casa ;– o batismo por imersão é a condição indispensável para todas as bênçãos ;– no batismo o pecado é sepultado e ele não tem mais domínio sobre o batizado ;– pela participação na Santa Ceia […] o participante goza a mesma saúde física que Cristo gozava ;[na Ceia] o pão […] dá total saúde física e o vinho […] dá saúde espiritual ;– todos os homens são filhos de Deus e alvo de todo o carinho e providência paternal do Pai (não considera o problema do pecado original) ;– o dinheiro é o sangue da Igreja, sem o qual nada se fará ;– o dízimo é fundamental para a vida física, espiritual e financeira do cristão fiel 56

Está ai contido o cerne de uma nova religiosidade e espiritualidade que se tem infiltrado nas igrejas protestantes no Brasil. Hoje fala-se do neopentecostalismo não como fenômeno local de determinadas comunidades, mas como fenômeno epocal. É forte o processo de neopentecostalização do brasil evangélico.

O também sociólogo, pertencente a Assembleia de Deus, Gedeon Alencar, no seu, interessante livro Protestantismo Tupiniquim, procura traçar um retrato do protestantismo brasileiro em meados da primeira década do século XXI, e analisa a contribuição (e não contribuição) evangélica à cultura brasileira. Alencar fala de um processo de mimetismo denominacional, onde por questões mercadológicas e culturais, de maneira sincrética, as denominações protestantes começam a parecerem umas com as outras. “Existia marcos teóricos distintos, estilos eclesiásticos específicos, posições doutrinárias definidas e até estereótipos diferentes.”57 Que, aos poucos, não existem mais.

56 FRESTON, Paul Charles. A Igreja Universal do Reino de Deus na Europa. Lusotopie, Paris, v.

1999, n.1, p. 383-404.

57 Cf. ALENCAR, G. F. Protestantismo Tupiniquim. Hipóteses sobre a (não) contribuição à

cultura brasileira. 1. ed. São Paulo: Arte Editorial, 2005, 26.

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Como resposta amorosa, nossos autores, Gesché e Rubio, dialogam, em seus respectivos trabalhos, fornecendo à reflexão cristã e pastoral uma base sólida e extremamente rica que deve ser observada para a superação de uma espiritualidade contra o corpo. E por isto, não cristã. O grande desafio pastoral cristão é a de propor uma espiritualidade humana, que não caia nos abismos reducionistas de um espiritualismo alienante, desencarnado, “assassino”, e que não considera as dimensões ou aspectos constitutivos do humano e da vida humana.

Não é possível refletir sobre a dimensão da espiritualidade cristã colocando Cristo, fundamento e paradigma de toda espiritualidade, de fora. Segundo nossos autores, vemos no Cristo encarnado, a interseção perfeita entre espiritualidade e corporeidade, integrando, não somente, corpo e espírito/alma na pessoa humana, mas todos os demais aspectos ou dimensões da vida humana.

A encarnação de Cristo é tão significativa à fé cristã e a vida humana em todos os seus aspectos, beleza e dificuldades. É na pessoa de Jesus que se vê claramente a espiritualidade integradora, vivida em resposta ao dom de Deus e na abertura-diálogo ao todo da vida. Abertura expressa no serviço amoroso aos outros, e nos demais aspectos da vida. Como disse Rubio, “uma espiritualidade extremamente rica e capaz de cativar.” 58

Por isto, espiritualidade viva que faz viver e somente pode acontecer diante do encontro maravilho do ser humano com o Cristo, vivo. É o professor Rubio chama atenção na introdução do seu livro, Encontro com o Cristo Vivo. Onde expõe algumas profundas inquietações na evangelização do povo latino americano e brasileiro. Anunciar o Evangelho não é somente afirmar um pilar dogmático, sem levar em consideração a vida e todo o seu pulsar. Sua proposta é que tal mensagem não pode prescindir do encontro mais fundamental: com o Cristo Vivo. Não somente um encontro com aquilo que se diz dele, mas com a pessoa de Jesus. Encontro este que não pode deixar de fora quem Cristo é, consequentemente, quem somos. Pois Cristo é Deus que se faz encontro.

Sem dúvida, fala-se na pessoa de Jesus Cristo e os dogmas cristológicos são ensinados. Mas, infelizmente, apresenta-se um Cristo distante, perdido num emaranhado de palavras e de ideias incompreensíveis para a imensa maioria dos nossos católicos. Trata-se de uma apresentação incapaz de tocar o coração das

58 GARCIA RUBIO, O Humano Integrado, p. 261.

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pessoas e, portanto, de impulsionar à conversão pessoal e comunitária. Deparamo-nos, assim, com o Cristo professado na fé, mas separado da vivência cotidiana e desvinculado da história e de seus desafios.59

Desse modo, uma consequência já salientada no texto, a presença maciça de um ambiente praticamente continental de injustiça social, que aponta o Brasil como um dos países mais injustos, não pode conviver pacificamente com o anúncio do encontro e presença com Jesus Cristo vivo.

Como anunciar a realidade do amor de Deus, manifestado mediante Jesus Cristo, quando se perpetuam, às vezes em nome desse Deus, situações em que o ser humano é impedido de tornar-se humano? Na perspectiva da revelação do Deus bíblico, sabemos que a negação do ser humano constitui sempre a negação do Deus da vida, do Deus-amor (Ágape).60

Não somente a evangelização incompleta e com graves distorções, vistas através de um cristianismo falho em seu compromisso ético, especialmente no âmbito econômico, social e político.61 Mais do que falha, há real e intencional descompromisso, catapultado por uma compreensão de mundo e vida cristã postas em lados diametrais opostos, como vimos.

A partir de Cristo, nosso chamado é também para vida, levando em consideração os dilemas e enfrentamentos no corpo, seremos aperfeiçoados nEle, seguindo seus passos em vida e na morte. Como Ele é, também o seremos. Isto é um dos pontos mais fascinantes, pois enxerga um ser humano de verdade que participa da relação com Deus com seu corpo, suas inquietações, suas pulsões, seus agravantes. Neste processo de lidar com seus próprios limites e dificuldades no esforço significativo de desvencilhar-se do que não é útil, vai sendo transformado na imagem de Cristo, filho de Deus, Senhor nosso. Uma espiritualidade integrada e dinamizada pela abertura relacional a Deus. Abertura que é caminho de aperfeiçoamento e transformação humanos que toca todos os aspectos da vida. É o ser humano que se posta todo diante de Deus, é o ser humano todo que é chamado a viver a vida como ela é.

59 GARCIA RUBIO, Alfonso Garcia. O encontro com Jesus Cristo vivo. São Paulo: Paulinas,

1994, p.4.

60 GARCIA RUBIO, O encontro com Jesus Cristo vivo, p.4. 61 Cf. Ibid. p. 5. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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5.4

Corpo e sexualidade

Em decorrência da necessária valorização da corporeidade humana, como etapa fundamental a uma visão integral e integrada do ser humano, a questão da sexualidade, sempre controversa, ocupa lugar importante. A pesada crítica contra o sentido de sexualidade vivido pela igreja cristã, também gerou espaço para um novo olhar e diálogo assumido corajosamente pela reflexão teológico-cristã. O autor Garcia Rubio demonstra aguda preocupação com a devida compreensão da sexualidade como dimensão que deva integrar o todo do ser humano. Ainda que Gesché não trabalhe diretamente, nos seus textos analisados, com o tema da sexualidade, sua concepção de ser humano fundamenta solidamente princípios e entendimentos para uma vivência da sexualidade no caminho da verdadeira humanização.

5.4.1 A pesada crítica do sentido de sexualidade na fé cristã

Trazemos aqui a crítica feita pela filósofa Marilena Chauí, em seu livro

Repressão sexual: essa nossa des(conhecida)62, onde dedica parte de sua análise a

perceber como a concepção cristã de sexualidade, fortemente marcada pelo pecado, contribuiu para os sentidos repressores e interditos sexuais na vivência da sexualidade ocidental contemporânea.

Passemos a uma síntese de tal crítica: O que será que será

Que dá dentro da gente e que não devia Que desacata a gente, que é revelia Que é feito uma aguardente que não sacia Que é feito estar doente de uma folia Que nem dez mandamentos vão conciliar Nem todos os ungüentos vão aliviar Nem todos os quebrantos, toda alquimia Que nem todos os santos, será que será O que não tem descanso, nem nunca terá O que não tem cansaço, nem nunca terá

62 CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa des(conhecida). São Paulo: Editora

Brasiliense, 1984. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

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O que não tem limite.63

A canção descreve algo que está lá, presente como força avassaladora, que teimosamente nos “desacata”, nos embriaga, não tem limite, não tem juízo. Para alguns comentadores, é certo que o contexto para o qual a música foi composta diz muito. Composição do músico, escritor, dramaturgo brasileiro Francisco Buarque de Holanda, ou somente Chico Buarque, em 1976, para o filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", baseado no livro homônimo de Jorge Amado. A canção tem três versões, que marcam passagens diferentes da trama: "Abertura", "À Flor da Pele" e "À Flor da Terra". "O que será? (À flor da pele)" saiu no álbum “Geraes”, de Milton Nascimento.64

Marilena Chauí utiliza pequenos trechos da canção para ilustrar sua fala sobre repressão sexual. Destaca parte da terceira estrofe, “do que não tem vergonha, nem nunca terá”, propondo que é curioso que “isso” que falam e cantam os autores, nunca é nomeado. “Isso”, segundo a autora, pode fornecer uma pista do que seja repressão sexual, pois como é proposto no dicionário, os termos “sexual” e “sexualidade” não apresentam qualquer sentido pejorativo, qualquer dimensão do sexo que não seja de cunho puramente biológico, fisiológico, anatômico. Contudo, ao juntar-se ao termo repressão - vexar, envergonhar, esconder, - ganham novos sentidos que indicam atitudes, práticas, operações psíquicas, sociais e culturais.65

Chauí afirma que repressão sexual tem a ver com interdições, proibições, punições, permissões, e recompensas na questão da sexualidade que quebram a simples naturalidade biológico-animal do sexo para uma concepção de existência como fenômeno cultural ou histórico.66 E neste caminho de construção sociocultural, a força da influência da mentalidade cristã sobre a realidade ocidental, gerou uma noção do sexo e da sexualidade como lugar do mal e da maldade, como coisa feia e vulgar, como algo a ser repelido, barrado, contido, força de morte, destruidora dos seres humanos.

“nem Dez mandamentos vão conciliar...que nem todos os santos, será que será?”

63 HOLANDA, Chico Buarque. O que será que será? Á flor da pele. 1976

64 HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. São Paulo : Leya, 2009, p. 146-148. 65 Cf. CHAUI, Repressão sexual, p. 15.

66 Cf. Ibid. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

(26)

A noção que se fixou na sociedade ocidental foi a do sexo como lugar do pecado. A religião e a sexo caminham para lados antagônicos, opostos e excludentes. A religião tem função pedagógica e moderadora, com intuito de conter a expressão sexual, propondo seres humanos quase assexuados. O sexo somente será tolerado porque não é possível ser mortificado em definitivo, é inimigo indomável, “o que não tem limite”.

Para compreender a recusa da sexualidade pelo cristianismo, Chauí visita os relatos bíblicos da criação nos primeiros e segundo capítulos de Genesis. Na análise dos textos, conclui que não afirmam nenhuma negatividade ao sexo. O ser humano foi criado, intencionalmente, homem e mulher, diferenciados pelo corpo. Diante da constatação propõe a seguinte questão: Se Deus cria seres humanos sexuados e o prazer sexual é inerente, como entender a condenação do sexo pelo cristianismo?67

Em sua concepção, a compreensão do que se denominou Pecado Original carrega esta dificuldade. O Pecado Original possui duas faces: o deixar-se seduzir (tentação) pela promessa de bens maiores dos que os já disponíveis; e a transgressão do interdito do conhecimento do bem e do mal. Seus efeitos: primeiro, a descoberta da nudez e o sentimento de vergonha, de um lado e o medo do castigo, de outro; e o segundo, a perda do Paraíso.68

Perder o Paraíso é afastar-se de Deus, foi esta a consequência da queda. É tornar-se mortal, conhecer a dor, a carência, a morte. O Pecado Original descobre a essência humana, cria seres finitos. A queda é finitude. É a tendência para a morte de tudo que um dia experimentou vida. O Pecado Original revela ao humano sua corporeidade, e ter corpo é ser finito, ser limitado, ser tendente à morte. Nascer significa não ser eterno, ter começo e fim. E a descoberta do sexo, pela vergonha e nudez é seu ponto maior de revelação. Por causa da queda, o sexo tornou-se mal. E tornou-se mal porque, nas palavras de Chauí “é a perpetuação da finitude”. Por causa do sexo, o ser humano traz à vida outros seres tendentes ao mal e à morte. São estes os sentidos pelos quais compreende que o sexo será sempre visto como uma marca da queda, sempre presente no cotidiano das gentes.69

67 Cf. CHAUI, Repressão sexual, p.85-86. 68 Cf. Ibid. 86. 69 Cf. Ibid. p. 87. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1412384/CA

Referências

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