UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO
MAGNO DE SIQUEIRA FONSECA JR.
PROTEÇÃO À POSSE
Monografia submetida à Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Ceará
(UFCE), como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em Direito.
Orientadora: Profa. Doutora Maria Vital da
RESUMO
A Posse, um dos temas mais controversos do Direito Civil, pede uma exposição
simplificada e sucinta, não para dar aparência de descomplicado ao que é complexo, mas
para que sejam destrinçadas do novelo das intermináveis discussões algumas linhas gerais e
seguras. Guardando ainda os objetivos originais de preparar a lide sobre a propriedade e
coibir, no âmbito dos direitos reais, o uso da força, a incursão clandestina ou o simples
abuso de confiança, o expedito litígio possessório é uma das mais antigas expressões do
apreço do Direito pela paz social. Neste trabalho, traçaremos um perfil geral da proteção à
posse, diferenciando-a da propriedade e da detenção, perquirindo-lhe as espécies,
investigando seus modos de aquisição e as indenizações ensejadas por seu desrespeito. Por
fim, à luz da classificação das técnicas sociais delineada por Mário Ferreira dos Santos,
buscaremos quais o Direito, através de institutos como o da posse, prefere ou pretere.
RESUMÉ
La possession, l’un de plus controversé thème de Droit Civil, demande une exposition
simple et brève, non pas pour lui donner une apparence facile, mais pour qu’ on voit, parmi
des innombrable discussions, quelque lignes sûres e générales. Retenant ses objectives
originels de préparer le litige à propos de la propriété et de prévenir l’use de la force,
l’incursion clandestine ou le simple abus de confiance, son rapide procès est l’une de plus
antiques expression de la protection avec la quelle le Droit nous montre sa valorisation de
la paix social. En cette monographie, nous tirerons le dessein général de la protection à la
possession, la distinguerons de la détention e propriété, examinerons ses espèces et ses
voies de acquisition. À la fin, considérées les techniques sociales classifiées par Mario
Ferreira dos Santos, nous chercherons quelles le Droit, par des instituts comme de la
possession, préfère.
SUMÁRIO
Preâmbulo...07
1. Conceito de Posse...08
1.1 Detenção...08
1.2 Detenção por afeição...09
1.3 Propriedade...10
1.4 Conflitos ente posse e propriedade; e posse e detenção...10
2. Posse da Pessoa Jurídica...12
3. Espécies de Posse...13
3.1 Posse imediata e mediata...13
3.2 O salto qualitativo...15
3.3 Posse de servidões...16
3.4 Composse...19
4. Aquisição da posse...21
4.1 Fatos, Atos e Negócios Jurídicos...21
4.2 Meios lícitos de aquisição...22
5. Meios Processuais de Proteção da Coisa...25
5.1 Ações possessórias...25
5.2 Ações de propriedade...26
6. Indenizações...27
6.1 Danos materiais...27
6.2 Danos Morais...28
Conclusão...30
Preâmbulo
A dogmática, servida pela Ciência e Filosofia do Direito, serve, por sua vez, aos
trabalhos do fórum e dos tribunais, aonde a vida, interrompida por algum conflito de
interesses, vem pedir a solução que lhe desimpeça o curso.
Para devolver as partes à normalidade, o juiz considera suas pretensões subjetivas
tendo em vista o direito objetivo, buscando a conduta que devia ter sido tomada pelos
litigantes, mas cujo desvio ameaça o bem comum. Percebendo que de fato houve o desvio,
aplica a sanção, que deve ser o melhor meio de reconduzir o infrator ao caminho do lícito.
O papel da dogmática é, pois, auxiliar de perto o juiz nessa tarefa, devendo
vislumbrar as hipóteses de casos concretos, sempre menos ricas que as oferecidas pela
realidade, para então propor esquemas de solução condizentes com as regras e princípios
gerais. Partir, ao contrário, dos princípios e regras se nos afigura menos conveniente, ao
menos no caso da Proteção à Posse, tema de generalização difícil e que nos parece seria
indócil a um tratamento, por assim dizer, de cima para baixo, das normas para as situações
de conflito.
Esse o motivo por que, em muitos passos desse trabalho, ainda que nem sempre, por
razões de exposição, explicitemo-lo, partimos de um caso determinado, e considerando-o à
1. Conceito
Quando alguém tem algo sob seu poder, dizemos que tem posse. A posse pode ser
concebida ad usucapionem ou ad interdicta, ou seja, podemos considerá-la com vistas à sua
conservação ou com vistas à aquisição do título de propriedade.
Essa monografia cuida da posse ad interdicta, aquela cuja eficácia jurídica consiste
no direito de pedir e conseguir do judiciário sua conservação ou recuperação.
Quando tais efeitos não seguem o poder sobre a coisa, dizemos que há detenção, a
qual, segundo Savigny, seria a posse menos o animus e, segundo Jhering, seria a posse a
que uma norma positiva retirasse, por alguma razão, a proteção dos interditos. Trazer a esse
trabalho as críticas que foram feitas a essas duas doutrinas não nos parece proveitoso.
Por fim, dizemos proprietário aquele que, ainda que não possua a coisa, deve
possuí-la em razão de um título.
A seguir, para melhor delimitar o conceito de posse, buscaremos o que sejam suas
figuras vizinhas: a detenção e a propriedade.
1.1 Detenção
Para diferenciar posse e detenção, analisemos o poder fático que podemos ter sobre
as coisas. Ou temos um poder contra todos, absolutamente; ou temos poder contra todos
menos contra aquele de quem depende nosso poder. Por exemplo, Marcos compra um
carro; possui esse carro contra todos que buscarem retirar-lhe esse poder. Contrata um
motorista, Cláudio, e coloca o carro por si comprado em suas mãos. Ora, ninguém nega que
Cláudio tem poder sobre o carro contra quem quer que seja, menos contra Marcos, que lhe
deferiu aquele poder. De Cláudio dizemos que é servidor da posse.
Detém, pois, aquele que serve à posse de outrem, conforme enunciado pelo art.
1.198 do Código Civil:
“Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.”
No Digesto dos romanos já se encontra a distinção em posse própria e o poder que
Quod meo nomine possideo, possum alieno nomine possidere: nec enim muto mihi causam possessionis, sed desino possidere et alium possessorem ministerio meo facio. Nec idem est possidere et alieno nomine possidere: nam possidet, cuius nomine possidetur, procurator alienae possessioni praestat ministerium.1
Ao considerarmos que sob a palavra nomen vieram a acumular-se acepções tais
como: título, razão, pretexto, causa, autoridade, etc., veremos que os romanos, além da
servitude possessória, não estavam distantes de perceber outra figura próxima, a posse
indireta, cuja diferença é a causa, o título, o nomen. Quanto ao que as distingue, seja-nos
lícito adiantar agora o que depois demonstraremos com mais fundamentos: na posse
indireta, a causa é de direito, ao passo que na detenção, o motivo pelo qual o detentor tem a
coisa contra que lha deu não é jurídico.
1.2 Detenção por afeição
Segundo Pontes de Miranda,2
não só detém aquele que subordina-se ao dono da
coisa. Quem detém pode, outrossim, ter a coisa confiada a si por afeição: se um hóspede se
utiliza dos objetos domésticos de Marcos, embora os use para o seu interesse, serve-lhe à
posse, ou, melhor dizendo, detém a coisa de outrem.
Como, porém, extremarmos o comodatário desse servidor por afeição de que fala
Pontes de Miranda? Mais adiante veremos. Por ora, notemos somente que o comodatário
recebe a coisa em virtude de um contrato.
Portanto, detemos a coisa quando quem a possui no-la confiou, seja para dela
gozarmos –servidão de afeição- ou para com ela lhe servimos- servidão tradicional. Ao
detentor, embora lhe faltem as ações possessórias, é dado defender a coisa. Vemos tal
nitidamente ao considerarmos o vigia contratado para tomar conta de um terreno: pode
desforçar o eventual esbulhador, mas carece-lhe legitimidade para ir a juízo com os
interditos possessórios.
1
41.2.18, pr. de Celsus 2
1.3 Propriedade
Como a doutrina distingue a posse da propriedade assinalando que uma é estado de
fato do qual decorrem efeitos jurídicos e a outra estado de direito que preceitua certa
situação de fato, convém atentarmos para o que seja norma, que é o ponto no qual se unem
fato e Direito.
Norma é a forma pela qual o Direito atribui a alguém poderes em face de outrem
sobre os bens da vida. A norma é dita geral quando atribui poderes a quem quer que se
encontre dentro de seu raio de incidência, ou concreta quando, incidindo pontualmente,
confere-os a sujeitos determinados. Um título de domínio, isto é, a razão jurídica pela qual
alguém determinado deve ter poder sobre certa coisa, é uma norma concreta. A lei pela qual
quem tenha algo sob seu poder deve continuar a possuí-lo até que eventualmente se
conheça do vício que lhe macule a posse é uma norma geral. O título, por sua vez, pode ser
erga omnes, como uma escritura pública, ou contra determinada pessoa, como um contrato
de compra e venda, ao passo que o poder atribuído pela norma possessória é sempre contra
todos.3
Aproveitando os termos encontrados nos livros, jus possidendi é o direito de possuir
que tem causa no título e jus possessionis é o direito de possuir que tem causa no tipo
descrito pela norma.
A nosso ver, portanto, deve assim ser entendida a comum distinção da doutrina
entre posse e propriedade: o poder sobre algo pode ser atribuído a alguém por força de uma
norma geral que incide sobre um estado de fato: a posse; ou por força de uma norma
concreta: um título de domínio.
1.4 Conflitos ente posse e propriedade e posse e detenção
Como vimos, posse é o estado de fato em que temos algo sob nosso poder
independentemente da vontade de outrem ou de título jurídico. Esse estado de fato é
contemplado em todos os ordenamentos por uma norma que o protege atualizando o valor
da paz social.
O detentor, outrossim, embora lhe falte legitimidade para os interditos, goza de
norma que o autoriza a defender a coisa contra quem quer que lhe pretenda tomá-la, salvo
3
contra aquele de quem a recebeu. Nessa exceção vemos que o possuidor prevalece sobre o
detentor.
A lide, porém, poderá opor um possuidor justo e alguém com título de domínio
válido. Figuremos uma lide sobre certa coisa, na qual Marcos, que nunca a possuiu, aduz
título de domínio e João alega posse. Segundo o título variará a solução:
a) se for um contrato de compra e venda celebrado com João, o título prevalecerá;
b) todavia, se for um compra e venda celebrada com terceiro, o título não
prevalecerá.
No caso ‘a’, que, confrontando dois direitos opostos das mesmas pessoas sobre a
mesma coisa, é o que propriamente podemos chamar de conflito, o título prevalece sobre a
posse porque a norma mais concreta afasta a norma mais geral como uma exceção afasta a
2. Posse da Pessoa Jurídica
Quem vindica posse de coisa sob o poder de pessoa moral o faz em seu próprio
nome ou no nome da pessoa jurídica? Alguns, presos ao argumento de que a posse é estado
de fato, não conferem pr
etensão de vindicá-la à pessoa moral, ente eminentemente jurídico; outros
respondem que nada obsta a que pessoa jurídica seja sujeito de direitos possessórios, como
Westermann, citado por Moreira Alves, que, aduzindo a eficácia do poder de uma pessoa
jurídica (poder independente de seus membros), mostra-nos o real significado da posse
como estado de fato.
Para o autor alemão, a tese que nega “que esta [a pessoa jurídica] possa ter senhorio
de fato se coloca em contradição com a habitual eficácia externa da atividade do órgão e
com as relações fáticas decisivas para o jus possessionis.”4
Para melhor confirmar essa tese, lancemos mão do conceito de corpus. Ninguém
nega que o corpus pode existir ainda que falte o poder físico sobre a coisa. Tem o corpus,
segundo Ihering, aquele que dá destinação econômica à coisa. Um madeireiro, por
exemplo, que, cortadas as árvores, deixa-as fluir no rio que segue até sua serraria, possui a
coisa, embora não a tenha nas mãos.
Ora, quem dá determina como será utilizada a coisa é o fim social da empresa, que
independe da vontade de seus órgãos.
Portanto, a Pessoa Jurídica vai a juízo vindicar sua posse em seu próprio nome.
4
3. Espécies de Posse
3.1 Posse imediata e mediata
Vimos que o comodatário tem posse imediata, ao passo que o comodante a tem
mediata. O que vem a ser essa divisão da posse, que cumpre não confundirmos com aquela
pluralidade horizontal de posses, a composse?
A divisão dita vertical é aquela em que poderes de um possuidor são deferidos a
outrem através de ato jurídico. Na doutrina alemã, que primeiro teorizou sobre este
fenômeno, chamam ao primeiro Eigenbesitzer, possuidor próprio, e ao segundo
Fremdbesitzer, possuidor estranho, o que nos dá uma boa idéia de como os dois
possuidores se encontram em relação à coisa: um possuidor está mais próximo da
propriedade da coisa do que o outro.
Não devemos, porém, dizer peremptoriamente que o possuidor mediato é sempre
dominus, pois, para que a posse, estado de fato, seja dividida, não é necessário que haja
domínio. Por exemplo, o locatário sublocador é, perante o sublocatário, possuidor mediato
da coisa, embora não tenha propriedade. Não podemos negar, todavia, que, ao
compararmos os dois, locatário sublocador e sublocatário, encontraremos o primeiro mais
próximo de ter a coisa como sua do que o possuidor imediato, também chamado de
derivado. Não podemos esquecer do caráter intensivo das relações sociais e, portanto, do
Direito, na análise das quais cumpre temperar a linguagem excludente - sim ou não - com
uma linguagem em graus - mais ou menos.
O exemplo acima nos mostra que a posse se qualifica como mediata ou imediata
conforme a quem se refira. O locatário é, em relação ao sublocatário, possuidor mediato; já
em relação ao locador, possuidor imediato.
A fonte de que procede a derivação da posse só pode ser um negócio jurídico, como
diz Clóvis Beviláqua no seu Direito das Coisas5? Pontes de Miranda lembra que não, que a
divisão da posse pode partir mesmo de uma lei, como a que dá direito de pesquisa ou de
pastagem a alguém sobre coisa de terceiro. Esses direitos, advindos da lei, são tão jus
possidendi como o que o locatário adquire através do contrato.
5
O negócio jurídico ou lei podem, ainda que venham a ser tidos como nulo ou
inconstitucional, dividir a posse em direta e indireta? Ouçamos Pontes de Miranda6
:
A relação jurídica a que a posse implicitamente alude apenas qualifica -no mundo fático, entenda-se - a posse de alguém que não contém a situação de plenitude (posse de dono). O fato de ser jurídica e não só fática essa situação de modo algum faz ser jurídica a subordinação da posse imediata à mediata. Tanto assim que C pode exercer a posse de sublocatário, que é imediata, sem que tivesse havido locação a B; e B mesmo pode exercer a posse de locatário se bem que nunca tivesse havido locação (e.g., por ser o contrato inexistente ou contrato nulo).
Ou seja, locação houve, só que não perfeita o bastante para resistir a uma ação de
anulação ou uma declaratória de inexistência.
Desse modo, o de que se conhece no juízo estritamente possessório que envolva
posses própria e imprópria é se o possuidor direto está dentro dos limites do direito de que
pretenda, com algum fundamento fático, ser titular.
O juízo possessório não cuida de relações obrigacionais, mas, desde que se
reconheceu a divisão da posse em direta e indireta, tem de conhecê-las superficialmente. Se
o locatário, porém, não paga o aluguel, ao locador não se dão os interditos possessórios,
mas sim a ação de despejo, que tem o rito da lei 8.425. Mais uma vez, Pontes de Miranda:
“Nem Antônio de Sousa de Macedo, nem Manuel Álvares Pegas confundiram a falta de
execução da obrigação de foro com a turbação ou esbulho da posse da senhoria.
Confundi-os, sim, Correia Teles.”
Analisemos, por fim, o art. 1.217 do Código Civil de 2002: “O possuidor de boa-fé
não responde pela perda ou deterioração da coisa, a que não der causa”.
À primeira vista, parece que qualquer possuidor de boa-fé responde pela coisa que,
por sua culpa, se perdeu.
Essa é a interpretação de Pontes de Miranda7
, da qual discorda Clóvis Beviláqua8
.
Diz o primeiro que, nesse ponto, o direito brasileiro inovou, afastando-se da norma romana
contida nos ordenamento de todos os países civilizados, segundo a qual o possuidor de
boa-fé não responde pela perda da coisa. O segundo afirma que, no direito brasileiro como em
6MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo X. Rio de Janeiro: Borsoi, 1960. 7
op cit. 8
qualquer outro, o possuidor que tem a coisa como sua não responde por sua perda ou
deterioração.
Como, pois, interpretar o art. 1.217, por força do qual o possuidor de boa-fé que der
causa a perda da coisa responderá ao dono?
Segundo Tito Fulgêncio9
, o dispositivo visa à responsabilização dos possuidores
indiretos. Ou seja, alguém que se acredite locatário de uma coisa responde por sua perda, se
culposa; não assim aquele que se acredita dono da coisa.
Pontes de Miranda, nesse passo muito preso à letra da lei, não percebeu isso, o que,
porém, não o impediu de dizer:
“O possuidor em nome alheio há de usar ou fruir a coisa dentro de seu direito [ou de direito, como vimos, de que ele, com boa-fé, se pretenda titular]. Se excede esses limites, ou irregularmente exerce seus direitos, tem de indenizar de acordo com as regras jurídicas concernentes à relação entre ele e o possuidor mediato, proprietário ou não.”
Dessa desinteligência entre os dois mestres podemos tirar uma lição: algumas leis,
só bem as compreendemos ao deixarmos de lado a sua letra.
3.2 O salto qualitativo
O ato de Marcos, ao deferir a seu motorista a tença sobre seu carro, embora tenha
alguma repercussão jurídica, não chegou a criar Direito como se, por exemplo, desse-o em
comodato a um amigo. Nas palavras de Pontes de Miranda10
, entre a detenção (vale dizer:
servidão possessória) e a posse, há um salto qualitativo. Como se dá esse salto qualitativo,
ou, melhor dizendo, como do acordo de vontades entre comodante e comodatário pode
surgir um contrato, que falta na relação entre o possuidor e seu detentor?
O Direito só acontece com alguma objetivação da vontade. Para que a vontade de
alguém o crie, é preciso que se emancipe do sujeito e, pondo-se além de sua esfera
individual, vá compor, junto com miríades de outras vontades particulares assim
objetivadas, o Direito Positivo não-estatal. A norma jurídica, pois, é algo que, ainda que
tenha origem no indivíduo, não mais está presa a seu arbítrio.
9
Apud BEVILAQUA, Clóvis. Direito das coisas. Brasilia: Senado Federal, 2003 10
Ora, para que vontade se erga soberana acima de seu autor, é mister que se
determine. É ao escolher que o indivíduo dá forma a sua vontade, permitindo a sua
autonomia, isto é, a sua independência de si mesmo.
Marcos, ao deferir poder sobre a coisa a seu motorista, não determinou sua vontade
como quando a emprestasse em comodato a um amigo. No comodato, que, segundo a regra
do art. 581 do Código Civil11
, deve ter ou (a) um fim assinalado ou (b) ser por um prazo
certo, à tradição da coisa se junta uma atribuição mais determinada de poderes do que na
servitude possessória. Nesta, diz-se “Dou-te a coisa para que me sirvas”; no comodato,
“dou-te a coisa para que faças isso” ou “Dou-te a coisa por tal prazo.” Assim, percebemos
facilmente uma maior determinação da vontade de atribuir poderes na relação
comodante-comodatário do que na detenção.
E essa maior determinação, como queríamos demonstrar, é a razão do salto
qualitativo de que fala Pontes de Miranda.
Devemos a Miguel Reale a lição que aqui procuramos aplicar12
:
“A positividade envolve eficácia e vigência, constituindo uma das formas essenciais da realização social de valores, a qual implica sempre necessidade de uma escolha, de uma opção entre várias vias possíveis. Donde a necessidade de se reconhecer que todo Direito – e não só o estatal, dotado de maior grau positividade -, não se positiva sem um momento de voluntas opcional ou de arbítrio, se é que se pode falar em arbítrio quando o poder interfere para eliminar o arbítrio, pondo termo à insegurança e à incerteza.”
Pode-se quase dizer que o mestre paulista contemplava, ao assim escrever, as
mesmas hipóteses que aqui demos. No contrato de comodato, a vontade de Marcos
determina-se ou ao dar um fim a coisa ou ao assinalar um prazo ao empréstimo. Na
servidão possessória, por sua vez, sua vontade não determinou-se o suficiente para,
libertando-se da obscura região do arbítrio, vir à luz do Direito como posse derivada.
Essas considerações demonstram que só com grande prejuízo para todos aqueles
que cuidam de dogmática podemos ficar alheios aos ensinamentos dos filósofos e cientistas
do Direito. Poderíamos, nesse trabalho de dogmática, entender a posse se nos faltasse o
11
Art. 581. Se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-lhe-á o necessário para o uso
concedido; não podendo o comodante, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz,
suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de findo o prazo convencional, ou o que se determine pelo uso outorgado. [negritamos]
12
olhar empírico de Pontes de Miranda a surpreender aquele salto qualitativo, ou sem as
elucubrações de Miguel Reale a desvendar-lhe a razão?
3.3 Posse de servidões
Como veremos, a proteção liminar da posse cede àquela que decide pelo rito
ordinário, cujas ações, no caso das servidões, são chamadas de a) confessória: a que
pretende servidão, e b) negatória: a que pretende poder completo sobre a coisa. Enquanto,
porém, não se decide sobre a existência de título para as servidões, podemos protegê-las
liminarmente, assim como na posse de coisas. Do mesmo modo que, nas possessórias
comuns, a lei defende exercício de um direito de propriedade13
que não se sabe se existe,
assim também nas possessórias de servidões, o Direito protege o exercício de um pretenso
direito de servidão. A essa extensão aos direitos da proteção possessória, que no começo
era adstrita às coisas, chamam os autores de espiritualização da posse, cujo ápice
encontramos nos interditos possessórios do Direito Canônico, que, nos tempos em que os
chefes políticos tinham o padroado, isto é, o poder de conferir títulos de cargos
eclesiásticos, eram dados àqueles que os exerciam sem que pudessem de imediato provar
seu título. Hoje, parece-nos que caberia um mandado de segurança.
Quando um prédio dá proveito a outro, dizemos que há servidão. Para melhor
percebermos que só há servidão se o prédio serviente é de algum modo útil ao dominante,
leiamos os artigos 957 e 958 da Consolidação de Teixeira de Freitas, dispositivos que
influenciaram o legislador de 1916 (art. 562) e 2002 (verbo “utilidade” no art. 1.378).
Art. 957 Não constituem servidão os caminhos e atravessadouros, particulares, feitos por propriedades também particulares, que se não dirigem a pontes ou fontes, com manifesta utilidade pública; ou logares, que não possam ter outra serventia”
Art. 958. Para haverem taes servidões é necessário que se apresentem títulos legítimos, que excluão ação negatoria. Não basta allegar posses immemoriaes.
Assim, as servidões sem título só poderão ser protegidas se forem úteis.
13
Os livros classificam as servidões em aparentes ou não-aparentes e contínuas ou
descontínuas. São aparentes as que se anunciam ao possuidor do prédio serviente por obras
exteriores ou vestígios. Um caminho por entre a mata é aparente, um caminho através de
um campo não. São contínuas aquelas cujo gozo não precisa ser renovado ida do usuário do
prédio dominante ao serviente, vg., servidão de vista, aqueduto, esgoto.14
Portanto,
continuidade e aparência são características independentes. Uma servidão pode ser aparente
e descontínua, vg., caminho pavimentado, ou não-aparente e contínua, vg, um aqueduto
subterrâneo.
Nâo obstante a distinção, embora o legislador de 1916 tenha excluído da proteção
possessória qualquer servidão descontínua, a jurisprudência confundiu os dois conceitos de
modo que se contínua ou não passou a ser irrelevante:
“A servidão de caminho é, em geral, descontínua, mas não se
desconhece a possibilidade de ser admitida a sua aparência e continuidade, desde que assinalada por obras que atestem sua existência. Quando assim se
apresenta, não sofre restrição imposta no art. 509 do Código Civil e tem a seu favor a proteção dos remédios possessórios. Nesse sentido tem-se orientado, com acerto, a nossa jurisprudência.”(4ª Câmara de Civil, a 24 de novembro de 1949).
Esse relaxamento dos conceitos, se prejudica a linguagem dos juristas, justifica-se.
Se uma servidão é contínua ou descontínua pouco importa ao considerarmos o agravo que
sua turbação causa à paz social. Já com a turbação de servidão não-aparente a ordem social
mal se pode dizer sobressaltada. Com efeito, para que o possuidor de um prédio se veja
obrigado a respeitar o proveito que seu vizinho dele faz é preciso algum sinal objetivo. A
exceção do art. 1.213 confirma essa razão: se a objetividade é alcançada através de título
(se válido ou não, pouco importa para o juízo possessório), dão-se os interditos.
Cabe aqui perguntarmo-nos quem estava certo, os romanos, que evitavam conceitos,
ou os franceses que tão esmeradamente conceituaram as servidões descontínuas. Na
verdade, não pensamos sem conceitos. O que repugnava aos romanos era traduzi-los em
fórmulas fixas, o que, de fato, não é bom para a atividade dos juristas de modo geral e
14
art. 688 do Código de Napoleão, onde encontramos mais nitidamente a distinção: “Les servitudes sont ou continues, ou discontinues.
Les servitudes continues sont celles dont l'usage est ou peut être continuel sans avoir besoin du fait actuel de l'homme : tels sont les conduites d'eau, les égouts, les vues et autres de cette espèce.
muito menos para a dos legisladores que se põem a codificar o Direito, pois, ao
interpretarmos os códigos, tendemos a dar a todos os dispositivos a mesma vigência e
eficácia. Assim, quem lesse a conceituação de servidões contínuas no código napoleônico,
buscaria torná-la eficaz, o que, em questões possessórias, fatalmente o levaria a perquirir a
continuidade ou não das servidões como se essa distinção fosse tão importante quanto a da
aparência. Foi, a nosso ver, o que aconteceu a Clóvis Beviláqua ao trazer para o nosso
direito a distinção do Código Napoleônico. O novo código civil, porém, não a repete.
3.4 Composse
Uma coisa pode estar sob o poder de dois ou mais sujeitos, que a compossuem.
Como, todavia, um poder absoluto sobre coisas permite que melhor a afetemos a seu fim
social do que um poder repartido, em que a controvérsia acerca de seu uso pode embaraçar
seu emprego útil, o art. 1.19915
do CC/2002 restringe a composse aos bens indivisíveis. Mas
o que é a divisibilidade para o Direito?
São divisíveis as que materialmente podem ser divididas em duas ou mais partes, formando cada uma das partes uma coisa distinta, porém da mesma espécie e qualidade do todo divido, preenchendo o mesmo fim. No caso contrário são indivisíveis.16
Coisas compostas por partes diferentes são, pois, indivisíveis; uma reunião de coisas
iguais só distintas no espaço é divisível.
Cumpre esclarecer que os bens que compõem o patrimônio dos cônjuges se dizem
compossuídos em outro sentido17
. As coisas de uma sociedade, conjugal ou não, embora em
si mesmas divisíveis, são afetadas ao seu fim, que lhes dá unidade. Os sócios não as
possuem para si, mas para a sociedade.
Portanto, os bens podem ser possuídos por mais de uma pessoa por serem
indivisíveis por si mesmos ou por um fim comum aos possuidores.
Conflitos entre compossuidores. Os compossuidores, além de defenderem sua posse
contra estranhos, protegem-na também um contra o outro.
15
Art. 1.199. Se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos
possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores.
16
art. 363 do Esboço de Teixeira de Freitas 17
a) se o conflito for sobre a posse comum entre sócios, seu uso se submete ao fim a que
a sociedade está afeita.
b) se o conflito opor compossuidores de coisa em si mesma indivisa, conforme o art.
1.199 do CC18
, deve-se cuidar para que posse um não exclua a o do outro.
18
Art. 1.199. Se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos
4. Aquisição da Posse
4.1 Fatos, Atos e Negócios Jurídicos
19Como damos início à posse, como é obtido o poder sobre a coisa, como a trazemos
para nosso domínio fático é o que pretendemos aqui elucidar. Antes, porém, convém uma
rápida incursão sobre a Teoria Geral do Direito para lá buscarmos o que sejam fatos, atos e
negócios jurídicos.
Fato jurídico é todo fato visto à luz de um ou mais tipos normativos, ao passo que o
acontecimento não qualificado juridicamente, é aquele que, por sua própria natureza, ou por
se dar fora da sociedade, não pode constituir o suporte para uma injunção legal. Uma
enxurrada que desloque terras, um letreiro de néon que caia sobre alguém, ou próprio
decurso do tempo podem, por força de uma norma, constituir, modificar ou extinguir
situações jurídicas. Numa concepção mais ampla de fatos jurídicos, o conceito abrange não
só os naturais, mas também os fatos humanos.
Estes, que decorrem da vontade do homem posta em ação, são chamados atos. Ao
contrário dos fatos jurídicos naturais, os atos são sempre a manifestação de uma vontade
interior, que pode ou não ser levada em conta pelo Direito - na responsabilidade civil
objetiva, abstraímos a culpa, porém, na penal não deixamos de perquirir a intenção do
agente. Nos atos jurídicos, todavia, nunca definimos efeitos jurídicos por nós mesmos,
senão que os recebemos passivamente das mãos legislador.
Nos negócios jurídicos, que visam disciplinar um fim social a ser realizado, o
sujeito fica obrigado não em virtude diretamente de norma anterior, mas sim nos termos da
vontade que ele, com autonomia, declarou. Essa declaração, devidamente adequada à
estrutura normativa já positivada, nela se inserirá, não só atualizando uma situação jurídica
prevista, mas abrindo possibilidade de novas relações entre o declarante e aqueles a quem a
se destina. Daí não poder haver negócios jurídicos ilícitos. Se sua causa for anti-social, se o
motivo que leva o sujeito a expressar sua vontade discrepar do Direito, pode haver ato
ilícito, mas não negócio jurídico. Mesmo nos negócios ditos abstratos, v.g. uma letra de
câmbio, não se admite a ilicitude da causa, mas tão-somente a sua virtualização temporária.
A letra assinada para saldar dívida de jogo vale enquanto, no juízo de execução, não se
19
conhecer sua causa ilícita, que então assomará do plano secundário a que, por conta da
presteza necessária às relações comerciais, estava relegada.
A diferença, pois, entre esses dois conceitos tão importantes ao Direito Civil nisto
consiste: em que no negócio, a vontade do sujeito, harmonizada com o ordenamento,
institui ela própria seus efeitos, ao tempo que no ato, a vontade apenas suscita sobre quem
por palavras, gestos ou comportamento a manifesta os efeitos definidos previamente pelo
direito positivado. Assim, é um negócio jurídico unilateral a promessa que faço de
recompensar quem me devolva o cão perdido; trazeres-me o animal, um ato lícito.
Portanto, distinguimos dentre os fatos aqueles cujos traços principais foram
desenhados pelo legislador num tipo normativo positivado: os fatos jurídicos; dentre estes,
aqueles que resultam da livre ação humana: os atos; dentre os atos jurídicos, aqueles que
são manifestações de vontade que atribuem por si poderes com vistas a realização um fim
social: os negócios jurídicos.
Seguindo o caminho das distinções, que enveredam todo o Direito, a doutrina
normalmente cuida de classificar tão-somente os negócios jurídicos. Lemos então sobre
negócios causais e abstratos, negócios solenes e não-solenes, negócios cuja solenidade é
para prova e aqueles cuja forma é de sua própria substância..., sem que mais se mencione os
atos jurídicos. O próprio legislador de 2002 (art. 104 e ss), ao contrário de Clóvis Beviláqua
(art. 81 e ss.), escolheu tratar das condições de validade dessa espécie de ato (art. 104 e ss)
para depois estender as regras ao gênero, sem dedicar-lhe capítulo próprio.
Todavia, distingamos além dos negócios jurídicos, ao menos duas espécies de ato,
os bilaterais e os unilaterais. Os primeiros são aqueles em que duas pessoas participam,
como, por exemplo, o casamento20
. Para os segundos, basta uma só pessoa.
4.2 Meios lícitos de aquisição
Com isso em mente, entremos a indagar como se adquire licitamente a posse. Pontes
de Miranda21
, cujo nome não nos incomoda repetir por toda essa monografia, visto que dos
autores consultados é sempre o que trata os assuntos mais profundamente, responde que
20
Acerca do casamento como ato jurídico e não como contrato, vide o Curso de Direito Civil de Serpa Lopes, em que o civilista brasileiro traz para corroborar a tese os argumentos do francês Léon Duguit.
21
quatro são os modos de obtermos licitamente poder sobre uma coisa: tradição simples,
tradição longa manu, tradição brevi manu, além do constituto possessório.
Aqui, mais uma vez, estamos diante de uma classificação para todos os meios de se
adquirir a posse, e não de um número fechado de modos, uma vez que, como lembra San
Thiago Dantas, a posse se adquire por tantos meios quantos os homens inventarem para
transferir o poder sobre coisas, cabendo ao Direito apenas ordená-los em categorias para
melhor submetê-los às regras.
Tradição simples é todo ato pelo qual damos algo que temos a alguém, que o recebe
para sobre ele exercer poder. Se abrirmos mão de nossa tença sobre a coisa, sem que
tenhamos em mente quem, no mesmo momento, tome dela posse, o que se deu foi
abandono, não tradição. Simetricamente, alguém que entre em nossa posse à nossa revelia
ou contra nossa vontade, não a adquire por tradição, senão que usurpa a coisa, o que se
tornará turbação ou esbulho quando tomarmos consciência do esbulhador ou turbador.
Temos aqui, portanto, um ato bilateral, no qual é mister que duas vontades opostas e
complementares, uma para dar a coisa, outra para recebê-la, coincidam em sua
manifestação.
Na tradição brevi manu, dois poderes sobre a coisa, dividida em posses verticais,
são unidos. Figuremos um depositário, possuidor direto, que receba do depositante,
possuidor indireto, aquela parcela de poder que lhe faltava para completar a posse. Seria
sem propósito exigirmos que depositário devolva a coisa para o depositante, para só então
este lhe fazer a tradição simples. Seria. A solução mais condizente com a dinâmica da vida
social e a adotada por todos os homens é economizar os atos e, brevitatis causa, ter a coisa
por transmitida num simples ficção acordada entre as partes.
O constituto possessório procede ao reverso pela mesma ficção. Acompanhando
geralmente um contrato de compra e venda, o constituto faz com que o vendedor, não
obstante o recebimento do preço, retenha a coisa para si por certo tempo como possuidor
imediato.
Por fim, quando ambos os envolvidos no ato de transferência encontram-se longe da
coisa e, portanto, impedidos de tê-la sob seu poder material, a tradição chama-se longa
manu. É o caso de dois fazendeiros que, encontrando-se na cidade, ajustam entre si a
Na linguagem empregada pelos autores que discutem as doutrinas de Ihering e Savingy,
diríamos que, na tradição longa manu, feita a transferência in animo, dispomos do corpus
através de representantes (art. 1.205 do Código Civil).
Do exposto, as tradições, meios lícitos de se transferir a posse, são atos jurídicos
bilaterais e não-solenes, para os quais concorrem a vontade daquele que entrega e a o do
que recebe a coisa. Os negócios jurídicos, que soem acompanhar as tradições, são somente
títulos que a justificam. Confundi-los é não atentar para que o acordo entre as partes, no
negócio bilateral, é para criar direito, ao passo que, no ato de tradição, visa invocar regras já
postas pelo ordenamento para a nova situação de fato.
Tendo obtido a coisa por tradição válida, o adquirente só a perde por ação ordinária
que, contestando o título, isto é, a validade do negócio que justificava a transferência como
realização de um fim social, logre vindicá-la. Nesse caso, embora a tradição não seja ilícita,
os efeitos jurídicos em nome dos quais se deu não mais existem.A tradição inválida, porém,
torna viciosa a posse do adquirente, contra quem cabem os interditos, ou, melhor dizendo, o
mandado liminar do art. 928 do CPC.
Portanto, a tradição, seja simples, brevi manu, longa manu ou por constituto
possessório é ato jurídico pelo qual o adquirente toma posse sem vício da coisa, chamando
5. Meios processuais de proteção da coisa
5.1 Ações possessórias
Quem perde sua posse pode vindicá-la através de uma ação possessória. A quem,
turbado ou esbulhado, age em menos de ano dia, a lei dá um procedimento célere: uma
reintegração ou manutenção liminar, que ocorre antes do processo que segue o rito
ordinário. Quem, porém, demorar mais que ano e dia, só pode se valer da via ordinária.
Portanto, há duas proteções à posse, a liminar - que são os interditos possessórios do
Direito Romano e o mandado provisório do nosso direito – e a ordinária.
Nesse procedimento liminar, só não haverá contraditório se o autor lograr produzir
todas as provas que lhe incumbem logo na inicial. Do contrário, convoca-se uma audiência
de justificação, a que o réu comparece. O conhecimento do juiz se restringe aos fatos
novos, isto é, àqueles ocorridos há menos de ano e dia. A decisão, ao contrário do que se dá
nas liminares do art. 273 ou nas medidas de segurança, não pode ser revogada. Por isso
chamam-na cognição superficial e não precária. Somente a sentença prolatada ao fim do
procedimento ordinário, que segue a reintegração ou manutenção liminar, pode
desconstituí-lo.
Ilustremos: A esbulha B e depois é esbulhado por C, que é esbulhado de volta por
A. Desse modo:
C entra, em menos de ano e dia do esbulho, com ação possessória contra A e
dado ao juiz conhecer fatos anteriores ao ano e dia, prova que fora esbulhado por C e obtém
a posse.
B, todavia, propõe contra A ação ordinária para vindicar-lhe a posse; o juiz,
conhecendo melhor a história da coisa, defere seu pedido, pois tem posse anterior.
5.2 Ações de propriedade
A causa de pedir das ações possessórias é o fato da posse. As ações com que
vindicamos a coisa aduzindo apenas um título são as ações de imissão na posse.
O título seguinte aufere sua validade do título anterior. Assim, meu título de
proprietário faz válido o título daquele para quem vendo a coisa. Se o autor pretende a
validade de toda a cadeia de títulos, que termina com aquele que adquiriu a coisa de modo
originário22, temos a ação de propriedade propriamente dita. Se pretende a validade
somente do seu título como fundamento para vindicar a posse, temos uma ação publiciana.
22
6. Indenizações
6.1 Danos materiais
A coisa recuperada pode ter sofrido danos, pode ter produzido frutos, pode ter sido
beneficiada. A lide acerca desses direitos patrimoniais não é possessória, mas a pressupõe.
É ação de indenização, que pode ser cumulada à possessória e deve ser conhecida na fase
ordinária do processo, uma vez que, segundo o art. 292 do CPC, o tipo de procedimento das
ações cumuladas há de ser adequado a todos os pedidos.
No direito brasileiro adquirem-se os frutos pela percepção no tempo devido e não
pela mera produção, razão pela qual o possuidor de boa-fé tem direitos aos frutos colhidos,
mas não aos pendentes. O possuidor de má-fé não tem direito aos frutos e responde pelos
que, com culpa, deixou de colher. Mas que são frutos?
Frutos, diz Clóvis Beviláqua23
, são os bens que a coisa costuma produzir. Fructus
est quidquid ex re nasci et renasci solet. Podem ser naturais ou civis, conforme sejam
coisas ou direitos pessoais. Naturais são as maçãs de uma macieira ou o leite de uma vaca.
Civis são os direitos de crédito que renascem mês a mês para o locador da coisa.
Analisemos um caso dado por Pontes de Miranda24
. X esbulha prédio de Y e o
habita até a posse ser vindicada. Responde X também pelo proveito de uso? Deve indenizar
Y por ter habitado a casa?
Não podemos enriquecer-nos a custa de outrem. Quem locupleta-se indevidamente
deixando de pagar aluguel por ter esbulhado casa de outrem causaria prejuízo ao esbulhado,
que poderia ter alugado a coisa. Nesse sentido, Pontes de Miranda: “o conceito de fruto não
se dilata; apenas se atende a que o que percipi poterat é de se restituir.”
Frutos, assim, não seriam só o que a coisa costuma produzir, mas também o que
virtualmente produziria. No entanto, o enriquecimento ilícito, a nosso ver, não prescinde de
prejuízo atual. Do mesmo modo que não pode deixar de possuir25 quem nunca possuiu,
quem nunca obteve frutos, não pode alegar que os deixou de obter por conta do esbulho.
Passemos ao exame das benfeitorias, que são obras que aproveitam à coisa
conservando-a, melhorando-a ou simplesmente guarnecendo-a (art. 96 do CC/2002).
23
BEVILAQUA, Clóvis. Direito das coisas. Brasília: Senado Federal, 2003 24
MIRANDA, Pontes de. ibidem. p. 374 25
Diz-se, assim, necessária a benfeitoria realizada a fim de evitar que a coisa se
perdesse ou deteriorasse, como a reforma de um prédio que ameaçava desabar.
Diz-se útil quando tinha por fim melhorar a utilização coisa, como a construção de
uma nova entrada para um prédio ou de uma garagem.
Diz-se voluptuária a feita para maior deleite ou recreio, sem de fato aumentar a
utilidade da coisa, como um jardim ou uma decoração de quarto.
Ao possuidor de boa-fé é dada indenização pelas úteis e necessárias, com direito de
retenção, e o poder de levantar as voluptuárias, desde que isso não prejudique a coisa. Ao
de má-fé deve-se somente indenizar as necessárias.
O direito de retenção, consignado no art. 1.219 do CC/2002, dá ação ou somente
exceção? Quem, condenado judicialmente, restitui coisa em que tinha construído
benfeitoria útil, pode em ação posterior postular, além de indenização, a posse da coisa?
Responde Pontes de Miranda26
: “Quem tem direito de retenção só retém; pode,
portanto, reter, que é ter em continuidade. Não tem direito à posse, o que é outra coisa.”
6.2 Danos Morais
Além dos danos materiais, podemos pedir os danos morais que decorram do esbulho
ou turbação. Convém esclarecer o que sejam os danos morais, que o psicologismo de nossa
época, penetrando até nas searas da dogmática, nos fez confundir com as deficiências
psíquicas (angústias, depressões, etc), abrindo caminho à famigerada “indústria do dano
moral,” na qual fatos estritamente psicológicos, tomados como que separadamente da
tradição jurídica, pretextavam condenações inusitadas.27
Danos morais são danos a bens não econômicos, ou seja, são prejuízos que
experimentamos em bens ideais reconhecidos pelo Direito. A proteção à vida conferida
pelos arts. 121 ou 138 do CP, por exemplo, defendem bem ideal. Vida e honra são objetos
que, não obstante dependerem de fatores materiais, compõem dimensão ideal da realidade.
Tampouco deixamos de proteger os bens ideais com sanções civis, isto é, penas
pecuniárias pagas ao autor e não ao Estado, embora nem sempre houvesse no código civil
26
op. cit., pág. 36 27
Recentemente nos EUA, onde essas condenações são facilitadas por institutos como o do júri civil, uma mãe ganhou contra uma fabricante de acessórios de segurança uma indenização milionária pela morte de seu filho motociclista, cujo capacete não logrou protegê-lo. A sentença, porém, teve de ser executada na
-que, pretendendo regular as relações cíveis à parte das penais, arrisca nos obscurecer a
unidade do Direito- um capítulo como o II - DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE, aos
quais, tendo sempre como fundo a dignidade humana, não se pode negar o cunho ideal.
Com efeito, os bens econômicos são entendidos como aqueles exteriores ao homem, que
ganham valor ideal na medida em que servem ao desenvolvimento de sua personalidade, a
qual, frente ao direito, é composta pelos bens ideais: liberdade, honra, vida, etc.
Para o direito, o bem é uma utilidade, porém com extensão maior que a utilidade econômica, porque a economia gira dentro de um círculo determinado por estes três pontos: o trabalho, a terra e o valor; ao passo que o Direito tem por objeto interesses que se realizam dentro desse círculo, e interesses outros, tanto do indivíduo, quanto da família e da sociedade.28
Com efeito, ao lado das condenações que buscam recompor o dano sofrido a direito,
na responsabilidade civil, quando se trata de bens não econômicos, há sanções cujo fim
principal é apenar o infrator e, secundariamente, oferecer à vítima do ilícito uma
compensação.
Na turbação ou esbulho, pensamos haver dano moral, que, sendo significativo,
acarreta a responsabilidade do esbulhador ou turbador. Apoiamo-nos em Teixeira de Freitas
que, em sua Consolidação, afirma que a infração possessória ofende a própria
personalidade, na qual, de fato, finca raízes o direito de propriedade. Pontes de Miranda,
outrossim, realça que a responsabilidade regulada pelos artigos 1.214 a 1.222, que cuidam
dos ressarcimentos materiais, não exclui a que porventura exista por força do art. 927 c/c os
arts. 186 e 187 do Código Civil. As ordenações manuelinas, do mesmo modo, apenavam o
forçador que era dono com a perda da coisa, o que não pode ser visto como sanção
compensatória.
28
Conclusão
A sociedade é um todo orgânico, pois guarda esta analogia com os seres biológicos:
buscando o bem comum, como os seres vivos buscam a conservação da vida, estrutura-se
em órgãos, que realizam funções coordenadas e subordinadas. Numa sociedade livre, os
homens escolhem por si mesmos quais funções sociais desempenharão.
A pessoa, física ou moral, para desincumbir-se dessas funções, influencia outros e o
todo. Pode agir pela troca de vantagens, pela persuasão ou pela força, as quais chamamos
técnicas sociais, i.e, modos pelos quais modificamos a atitude dos outros.29
A troca de vantagens acontece principalmente nas relações econômicas. No seu
emprego, as duas partes tomam partes iguais, coordenadas, influenciando-se
reciprocamente, razão pela qual a dizemos bilaterais. Tratam de valores úteis.
A persuasão - que, sem dúvida, imiscui-se na técnica da troca de vantagens - é mais
utilizada nos campos políticos e religioso. Nela, uma das partes se dirige a outra no intuito
de provocar espontaneidades convergentes a seus anseios. O partido político que almeja
governar o país segundo o que entende por bem comum busca convencer a população de
superioridade de seus programas sobre os dos partidos rivais. As Religiões buscam o
reconhecimento de que em si está encerrada a verdade inteira sobre o valor último.
Por fim, temos a força. Aqui, uma pessoa coage outra atualmente ou por
intimidação a agir deste ou daquele modo, sem buscar sua adesão íntima. Não modifica o
interior do outro, mas tão-somente sua atitude exterior, e, por isso, é muito instável.
O Direito, como sabemos, porque busca a realização de novos valores sem
descurar-se dos antigos, não prescinde da ordem, da certeza, da descurar-segurança. Com efeito, predescurar-senciamos
nos meios jurídicos o embate constante entre o progresso e a conservação, mas todos
concordam que, conservando ou progredindo, devemos sempre proceder com ordem.
Assim, na luta por seus direitos, não é dado ao cidadão agir como bem entenda, mas
exigimo-lhe que procure o judiciário, o qual, por sua vez, não pode ingerir-se na vida dos
jurisdicionados a não ser através do devido processo legal. A própria inovação do direito
pelo Estado se submete ao o processo legislativo.
29
FERREIRA DOS SANTOS, Mário. Sociologia Fundamental e Ética Fundamental. 1ª edição: Logos, 1957.
Repulsa, pois, ao jurídico tudo que desestabilize a vida e traga insegurança. Vemos,
assim, sem dificuldade, que das técnicas sociais comumente empregadas, a força é a menos
conciliável com Direito, que, no intuito de melhor domá-la, restringe-a ao monopólio do
Estado. A troca bilateral de bens e serviços é, ao contrário, muito aceita, só resvalando para
o ilícito quando o elemento persuasivo nela implícito está viciado por dolo ou quando o
bem, v.g., o corpo humano, não se presta à troca. Finalmente, a técnica persuasiva
propriamente dita, também bastante admitida em Direito, só a proscrevemos se utilizada
para convencer outrem de fim flagrantemente nocivo à sociedade, como quando
criminalizamos a indução ao suicídio.
No estudo da posse – instituto que se encontra nas bases mesmas do que é jurídico,
a ponto de os doutrinadores chamarem-na de estado de fato e não de direito-, é onde mais
nitidamente percebemos esse apreço pela ordem. Está muito presente, outrossim, na ação
inglesa do Habeas Corpus. Ambos nasceram como remédios processuais a evitar que
alguém perca sua liberdade ou seus bens sem a devida ordem, isto é, sem o devido processo
Bibliografia
ALVES, Moreira. A Posse. 2 Tomos. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002
BEVILÁQUA, Clóvis. Theoria Geral do Direito Civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Paulo
de Azevedo, 1951.
BEVILAQUA, Clóvis. Direito das coisas. Brasília: Senado Federal, 2003
FERREIRA DOS SANTOS, Mário. Sociologia Fundamental e Ética Fundamental.
São Paulo: Logos, 1957.
KASER, Max. Direito Privado Romano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1999.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo X. Rio de Janeiro:
Borsoi, 1960.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.