Marista e Vaticano II: “Eles não têm mais vinho?”
Márcio L. de Oliveira
1. Celebrar e (Re) Pensar
“Ensina-nos a contar os nossos dias, para que venhamos a ter um coração sábio” (Sl 90,12). As palavras do salmista parecem bastante propícias nesses tempos de celebração: bicentenário Marista e cinquentenário do Vaticano II. A canonização de João XXIII e João Paulo II fazem “fervilhar” ainda mais esta festa: João que abre a porta; João Paulo que entra, embora fazendo barulhos diversos.
Nesta festa, com sua intercessão inquietadora, Maria vem nos interpelar como outrora o fez ao seu filho Jesus: “Eles não têm mais vinho” (cf. Jo 2,3b): que vinho nos deixou Champagnat? Que vinho falta ao Marista? Alguns falam de Vaticano III, mas e o vinho do Vaticano II? Que sabor nos trouxe esse kairós? O que tem provocado e o que precisa evocar no Corpo de Cristo, a Igreja? Afinal, como precisamos degustar da tradição desses “vinhos nobres”: Marista e Vaticano II? Qual o significado de cada um no hoje da história?
2. Água da Rocha: água em vinho
Devemos abrir os ouvidos sempre para os ecos dos golpes de picareta nas rochas de l’Hermitage deflagrados por Champagnat. Cada tilintar na rocha grita para nós: “Precisamos de irmãos!” Qual seria o significado de tal expressão para hoje? A Missão Marista nunca deixou de ser e, ainda mais hoje, é uma obra comum partilhada entre Irmãos e Leigos Maristas. Nesta água, o que já é vinho? Cito três:
a) A herança espiritual de Pe. Champagnat – “Uma das principais influências na formação da espiritualidade de Marcelino foi a experiência pessoal de ser intensamente amado por Jesus e especialmente acolhido por Maria” (AR, 7). Esse
homem amado por Jesus tinha uma incrível sensibilidade para a ação de Deus no cotidiano; era envolto às vidas das pessoas que atinavam para vontade de Deus, como foi com a experiência Montagne. Existia uma convicção muito grande no coração de Marcelino que a vontade de Deus era o melhor, como diz ao Ir. Dominique: “que se cumpra a santa vontade de Deus!” (Carta 36). Essa torrente que escorre da rocha de l’Hermitage sacia a sede de muitos no mundo todo, Irmãos, Leigos que partilham a fé cristã; educadores, colaboradores e agente sociais, de outras igrejas e religiões também bebem dessa fonte, também degustam deste vinho. O que Jesus entregou a Champagnat ele distribuiu para a Igreja e para o mundo: a terra está encharcada com essa água; na adega ainda há vinho.
b) O espírito missionário marista – Desde a primeira comunidade dos discípulos de Champagnat, existia uma vontade missionária que alimentava sua fé: “A exemplo de Maria, ‘partindo apressada em direção a uma cidade na região montanhosa’ (cf. Lc 1,39), todas as semanas eles se dirigiam aos vilarejos, nos arredores da cidade, procurando tornar Jesus conhecido e amado. Davam especial atenção às crianças pobres e acolhiam-nas em casa” (AR, 5). O próprio Champagnat dizia que “todas as dioceses estão em nossos planos”; ele “ousou imaginar outras possibilidades” (MEM, 19). Por isso a Missão Educativa Marista chegou aos cinco continentes, de forma particular a cada um de nós, fazendo Jesus conhecido, amado e seguido a partir de uma educação integradora.
c) O cuidado com a educação – Deus oferece o carisma, dom, múnus, mas é o ser humano quem o molda na realidade. O Evangelho, para Marcelino, passa pela veia da Educação. Educar, ensinar as letras, e mais, ensinar a viver, tornou-se sinônimo de evangelização: “Ajudar a crescer em humanidade é parte integrante do processo de evangelização. Os Educadores Maristas, promovendo os valores evangélicos por meio das nossas iniciativas, participam da Missão de construir o Reino de Deus aqui e agora”
(MEM, 70).
Temos todos esses vinhos em nossa adega, mas ainda há muita água em nossas talhas que carece ser transubstanciada em vinho. O que será que o Vaticano II pode nos dizer sobre isso?
3. Enchei as talhas de água: o Concílio
Cinquenta anos é muito pouco tempo para avaliar um evento histórico. Contudo, o impacto do Concílio Vaticano II é tamanho, entre prós e contras, que parece que estamos diante de uma onda de séculos. Mas João Batista Libanio nos tranquilizava: “Estamos ainda em tempos de recepção do Concílio”. Que vinho, então, podemos beber desta talha?
a) Diálogo – Entre as marcas do Concílio, sem sombra de dúvidas, a ideia que mais traz seu significado é o diálogo. Não só pelos documentos que discutem o diálogo propriamente dito, como Unitatis Redintegratio (sobre o Ecumenismo) e Nostra Aetate (sobre a relação da Igreja com as religiões não cristãs), entre outros, mas o Vaticano II como um todo suspirava ventos dialogais, desde a construção até a proposta de encaminhamento. “As alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1). O que deixa bem claro a Gaudium et Spes é a vontade e necessidade da Igreja, a partir de então, de abrir suas portas. Tudo isso trouxe e traz muito conflito para nossa Igreja Católica (Universal) que, por ser tão grande, abarca todos os corações, os que querem o milagre do vinho novo e os que preferem terminar a festa por que o vinho acabou.
b) Povo - Alguns teólogos falam do capítulo II da Lumen Gentium como o coração do Concílio. O que está em jogo aqui é a reviravolta dos lugares de poder ou se serviço. A Igreja passa de uma proposta eclesiológica piramidal – papa, bispos, padres, religiosos e povo – para uma eclesiologia circular, onde todos são Povo de Deus, cada um com seu ministério servindo ao Reino no hoje da história. Independente se o ranço
da “hierarcologia” ainda esteja presente do seio da Igreja, o povo “participa cada qual a seu modo, do único sacerdócio de Cristo” (cf. LG 28).
c) Missão – O impulso missionário sempre presente na Igreja agora toma novo ardor quando o cristão é convidado pelo Concílio a que “com alegria e respeito reconheçam as sementes do Verbo ali ocultas” (AG 11) na cultura ou no outro para quem eu levo o Evangelho. O missionário não é mais detentor da mensagem da salvação; seu germe já está lá no outro. A função do missionário é mais pedagógica agora: evidenciar Jesus ali já presente.
Nossa adega se enche mais ainda, outras talhas estão cheias de água esperando a transformação que será realizada no campo aberto da missão da Igreja: o vento que nos trouxe até aqui, Ele sopra onde quer (cf. Jo 3,8). O necessário é ouvir sua vós e seguir seu mandamento.
4. Práxis pastoral educativa: “Tu guardaste o vinho bom até agora!”
“Assim, pois, por toda parte se empenham esforços para promover mais e mais a obra da educação” (GE, Proêmio). O chamamento do Concílio nos toma em cheio como Maristas: um Concílio Pastoral não se esquece da necessidade e do valor da educação para uma Igreja nova e uma sociedade diferente.
É aqui que herança de Champagnat e Missão Marista se encontram com o espírito do Vaticano II: o contínuo empenho missionário de evocar a Vida que já está presente em cada espaço – Jesus é a vida. Educação e Evangelização se encontram em Jesus como necessidade permanente de oferecer o melhor vinho que os outros vão pensar que estava guardado, mas os discípulos sabem que é o vinho da última ora, o vinho do maior esforço, o vinho do milagre de Jesus.
Nestes tempos fransciscanos da chegada de um Papa com o nome de Francisco – e esse nome traz consigo entre outras coisas essência e reforma – nós nos propomos a
esta festa com Jesus, Maria, Champagnat, nossas crianças e jovens e todos aqueles que dela quiserem participar; também os que não forem convidados. A festa do Marista, a festa do Concílio – “nossa vida e missão são festas!” – são festas de Jesus: missão de todos.
Abreviaturas e Siglas
AG Ad Gentes – Decreto do Concílio Vaticano II.
AR Água da Rocha – Espiritualidade Marista fluindo da tradição de Marcelino Champagnat.
GE Gravissimum Educationis – Declaração do Concílio Vaticano II. GS Gaudium et Spes – Constituição do Concílio Vaticano II.
LG Lumen Gentium – Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II. MEM Missão Educativa Marista – Um projeto para nosso tempo.