A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO - XIII
1. O ordenamento jurídico como sistema:
- No capítulo anterior ao falar da unidade do ordenamento jurídico, o autor demonstrou que esta pressupõe uma norma fundamental, através da qual se possam relacionar todas as normas do ordenamento. O problema apresentado neste capítulo é o de saber se o ordenamento constitui um sistema, entendido como tal uma unidade sistemática ordenada de forma coerente, e assim se as normas que o compõem estão num relacionamento de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação;
- Kelsen distingue entre os ordenamentos normativos dois tipos de sistemas:
a) sistema estático: é aquele no qual as normas estão relacionadas umas às outras, partindo de uma ou mais normas originárias as quais estabelecem as regras gerais, das quais derivam outras que irão observar a norma original. Neste caso as normas estão relacionadas entre si pelo seu conteúdo, ou seja, estabelecem uma certa conduta à outra. Exemplo de um sistema estático: de uma regra determinando que se deve evitar a guerra e procurar a paz, derivam todas as demais;
b) sistema dinâmico: neste as normas que o compõem derivam uma das outras através de sucessivas delegações de poder e não de seu conteúdo, através da autoridade que a estabeleceu, assim uma autoridade inferior deriva de uma superior até chegar a autoridade suprema que não tem nenhuma outra acima de si. Neste caso a lei autoriza a autoridade a estabelecer norma de conduta, através da passagem de uma autoridade a outra. Exemplo de um sistema dinâmico: se fosse colocada no vértice do ordenamento jurídico a máxima: “é preciso obedecer à vontade de Deus”.
Um outro exemplo: Um pai ordena ao filho que faça a lição, e o filho pergunta “por que?”. Se o pai responde:
1. “Porque deves aprender”, a justificativa tende à construção de um sistema estático;
2. “Porque deves obedecer a teu pai”, a justificativa tende à construção de um sistema dinâmico;
Se o filho, ainda insatisfeito, peça outra justificativa:
a) “Por que devo aprender?” (partindo da primeira resposta), terá como resposta:
3. “Porque precisas ser aprovado”. Esta resposta seria dada num sistema estático;
b) “Por que devo obedecer a meu pai?” (partindo da segunda resposta), terá como resposta: 4. “Por que teu pai foi autorizado a mandar pela Lei do Estado”. Esta resposta
seria dada num sistema dinâmico.
Kelsen sustenta que os ordenamentos jurídicos são sistemas dinâmicos, sendo os estáticos próprios dos ordenamentos morais. Porque o ordenamento jurídico é um ordenamento no qual o enquadramento das normas é julgado com base num critério formal, isto é independentemente do conteúdo, já o ordenamento moral é aquele cujo critério de enquadramento das normas no sistema é fundado sobre aquilo que as normas prescrevem e não na autoridade de que derivam;
2. Três significados de sistema:
- Geralmente utiliza-se na linguagem jurídica o termo “sistema” para indicar o ordenamento jurídico, por exemplo, quando se utiliza os termos “sistema normativo”, no lugar de ordenamento jurídico. Uma outra tendência é considerar o Direito como um sistema, a considerar, entre as várias forma de interpretação, a denominada interpretação sistemática, ou seja, aquela forma de interpretação que tira os seus argumentos do pressuposto de que as normas de um ordenamento, ou de parte do ordenamento (como o Direito Civil e o Direito Penal), constituam uma totalidade ordenada, e, portanto seja licito esclarecer uma norma obscura ou deficiente, recorrendo ao chamado “espírito do sistema”. Em verdade cada um usa o termo sistema de acordo com as suas próprias conveniências; - No uso histórico da filosofia do Direito e na jurisprudência, existem três significados de sistema:
a) sistema dedutível: diz-se que um dado ordenamento é um sistema enquanto todas as normas jurídicas daquele ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais, ditos princípios gerais do Direito, considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico;
b) jurisprudência sistemática: neste caso o termo “sistema” é usado para indicar um ordenamento da matéria, realizado através do processo indutivo, isto é, partindo do conteúdo das simples normas, com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais e classificações ou divisões de matéria inteira, chega-se a um ordenamento do material jurídico de forma a estabelecer uma classificação. A sua finalidade é de reunir dados fornecidos pela experiência, com base nas semelhanças, para formar conceitos gerais que permitam unificar todo o material existente. Dos conceitos gerais elaborados pela jurisprudência sistemática, num esforço construtivo e sistemático, tem-se a se destacar o conceito do negócio jurídico, surgiu da reunião de vários fenômenos, que tinham em comum a característica de serem manifestação da vontade com as conseqüências jurídicas, bem como o conceito do relacionamento jurídico, o qual permitiu a redução de todos os fenômenos jurídicos a um esquema único;
c) sistema da compatibilidade das normas: diz-se que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não pode existir nele normas incompatíveis. Neste caso o sistema exclui a incompatibilidade das normas, porque as normas de um ordenamento relacionam-se entre si e este relacionamento é o da compatibilidade. Se num ordenamento vem a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas;
3. As antinomias:
- Ocorre a antinomia quando há a contradição entre leis ou a incompatibilidade entre normas. Partindo-se da tese de que o Direito constitui um sistema da compatibilidade das normas, pode-se dizer, também, que o Direito não tolera antinomia;
- Definimos a antinomia como aquela situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais uma obriga e a outra proíbe; ou uma obriga e a outra permite; ou uma
proíbe e a outra permite o mesmo comportamento. Mas que além disto, para que ocorra a antinomia são necessárias duas condições:
a) duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento;
b) as duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade: distinguem-se quatro âmbitos de validade de uma norma: temporal, espacial, pessoal e material.
- Porem não constitui antinomia, duas normas que não coincidem com respeito a:
a) validade temporal: “é proibido fumar das cinco às sete”, não é incompatível com: “ é permitido fumar das sete às nove”;
b) validade espacial: “é proibido fumar na sala de cinema”, não é incompatível com: “é permitido fumar na sala de espera”;
c) validade pessoal: “é proibido, aos menores de 18 anos, fumar” não é incompatível com “é permitido aos adultos fumar”;
d) validade material: “é proibido fumar charutos” não é incompatível com “é permitido fumar cigarros”;
- Podemos definir a antinomia jurídica como aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade. Pode as antinomias, assim definidas, ser distintas em três tipos diferentes:
a) total-total: se duas normas incompatíveis têm igual âmbito de validade: neste caso nenhuma das normas pode ser aplicada sem entrar em conflito com a outra.
Exemplo: “é proibido, aos adultos, fumar das cinco às sete na sala de cinema” e “é permitido, aos adultos, fumar das cinco às sete na sala de cinema”;
b) parcial-parcial: se as duas normas incompatíveis têm âmbito de validade em parte igual e em parte diferente, a antinomia subsiste somente para a parte comum: neste caso as normas têm um campo de aplicação em conflito com a outra, e um campo de aplicação no qual o conflito não existe.
Exemplo: “é proibido, aos adultos, fumar cachimbo e charuto das cinco às sete na sala de cinema” e “é permitido, aos adultos, fumar charuto e cigarro das cinco às sete na sala de cinema”;
c) total-parcial: se duas normas incompatíveis uma tem um âmbito de validade igual ao da outra, porem mais restrito: neste caso a primeira norma não pode ser em nenhum caso aplicada sem entrar em conflito com a segunda; a segunda tem uma esfera de aplicação em que não entre em conflito com a primeira.
Exemplo: “é proibido, aos adultos, fumar das cinco às sete na sala de cinema” e “é permitido, aos adultos, fumar, das cinco às sete, na sala de cinema, somente cigarros”; 4. Critérios para a solução das antinomias:
- Como a antinomia constitui a existência de duas proposições incompatíveis e verdadeiras, e como ambas não podem ser aplicadas, dever-se-á eliminar uma das duas normas;
- Existem alguns critérios que são utilizadas para a solução da antinomia, porém não servem para resolver todos os casos possíveis. Assim temos as antinomias solúveis, denominadas de aparentes, e insolúveis, denominadas de reais;
a) critério cronológico (lex posterior): neste caso quando houver duas normas incompatíveis, permanece a norma posterior;
b) critério hierárquico (lex superior): é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior;
c) critério da especialidade (lex specialis): é aquele pelo qual, de duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial, prevalece a norma especial;
5. Insuficiência dos critérios:
- Os critérios anteriormente expostos (cronológico; hierárquico e da especialidade), podem não servir quando ocorrer antinomia entre duas normas contemporâneas; do mesmo nível e ambas gerais. Neste caso o autor aponta uma outra solução que seria o da forma da norma. Segundo a forma, as normas podem ser imperativas, proibitivas e permissivas; - O critério com respeito à forma consistiria em estabelecer uma graduação de prevalência entre as três formas da norma jurídica. Assim se, por exemplo, uma é imperativa ou proibitiva e a outra é permissiva, prevaleceria esta, pois se entende que a mesma seria a mais favorável (lex favorabilis). O que pode ocasionar problemas, uma vez que a norma jurídica é bilateral, que dizer, ao mesmo tempo atribui um direito a uma pessoa e impõe uma obrigação a outrem, donde resulta que a interpretação a favor de um sujeito é ao mesmo temo odiosa para o outro. Aponta o autor que este não seria o melhor critério, mas sim o de qual dos dois sujeitos da relação jurídica é mais justo proteger;
- No conflito entre duas normas incompatíveis, onde uma é imperativa e a outra proibitiva, tem-se neste caso o conflito entre duas normas contrárias, as quais se excluem. Neste caso, existindo uma norma que obriga fazer algo e uma outra que proíbe fazer a mesma coisa, estas duas normas anulam-se reciprocamente e, portanto, o comportamento, em vez de ser ordenado ou proibido, se considera permitido ou licito;
-Deve-se reconhecer que estas regras não têm a mesma legitimidade do critério cronológico, hierárquico e o da especialidade, e isto equivale afirmar que em havendo conflito e não podendo aplicar estes critérios, a solução do mesmo é confiada à liberdade do interprete, num autentico poder discricionário deste, ao qual cabe resolver o conflito, valendo-se das técnicas de hermenêutica, não se limitando a aplicar uma só regra, tendo a sua frente as seguintes possibilidades:
a) eliminar uma: neste caso a operação feita pelo juiz ou jurista chama-se interpretação ab-rogante, em sentido impróprio, pois o jurista, por não ser legislador não tem o poder ab-rogativo, e se feita pelo juiz este de modo geral tem o poder de não aplicar a norma que considera incompatível no caso concreto, mas não de retirá-la do sistema;
b) eliminar as duas: neste caso verifica-se quando a oposição entre duas normas seja de contrariedade, onde o interprete poderia ser induzido a considerar que as duas normas contrárias se excluem uma à outra. Também haveria neste caso a ab-rogação imprópria;
c) conservar as duas: a mais utilizada pelo interprete é o de conservar as duas normas incompatíveis, demonstrando que não são incompatíveis, que a incompatibilidade é
puramente aparente, derivando de uma interpretação ruim, unilateral, incompleta ou errada de uma das normas ou de ambas, eliminando-se, assim, a incompatibilidade; 6. Conflito dos critérios:
- Das duas antinomias insolúveis, ou seja, a inaplicabilidade dos critérios, já foi esclarecida no item precedente, a outra onde se afigura a aplicabilidade de dois ou mais critérios conflitantes, nos ocuparemos adiante;
- Para a solução das antinomias utilizamos os três critérios: o cronológico; o hierárquico e o de especialidade. Pode acontecer que duas normas incompatíveis mantenham entre si uma relação em que se podem aplicar concomitantemente, não apenas um, mas dois ou três critérios. Ex.: uma norma constitucional e uma norma ordinária são formuladas em tempos diverso. Entre estas duas normas existe ao mesmo tempo uma diferença hierárquica e uma cronológica. Em sendo geral a norma constitucional e a ordinária especial, os critérios aplicáveis são três;
- Se de duas normas incompatíveis, uma é superior e subseqüente e outra é inferior e antecedente, tanto o critério hierárquico como o cronológico dão o mesmo resultado de fazer prevalecer a primeira. O mesmo acontece se a norma é subseqüente e especial em relação à precedente, ela prevalece com base no critério da especialidade e no cronológico, os dois critérios se somam;
- Entretanto pode acontecer em que duas normas sejam aplicadas dois critérios, mas que a aplicação de um critério dê uma solução oposta à aplicação do outro. Assim neste caso somente poder-se-ia aplicar um só critério. A questão que se coloca é qual seria o critério a ser aplicado?
Exemplo: a incompatibilidade existente entre uma norma constitucional anterior e outra ordinária posterior. Neste caso aplica-se o critério hierárquico e o cronológico. Desta forma se aplicado o primeiro prevalece a norma constitucional, se aplicado o segundo dá-se prevalência à norma ordinária. Assim não podem ser aplicados os dois critérios, porque ambos são incompatíveis. Há uma incompatibilidade de critérios válidos para a solução de incompatibilidade entre normas. A solução que se apresenta seria o a da aplicação do critério estável, para a solução dos conflitos entre critérios, e o de saber se existe o critério estável. Não existe uma regra geral, deve ser examinado caso a caso;
- Conflitos entre critério:
a) hierárquico e o cronológico: quando uma norma anterior e superior é antinômica em relação a uma norma posterior e inferior, prevalece o critério hierárquico sobre o cronológico, mesmo que a norma inferior seja posterior;
b) de especialidade e o cronológico: quando uma norma anterior-especial é incompatível com uma norma posterior-geral. Aqui prevalece a seguinte regra: Lex posterior generalis non derogat priori speciali, ou seja, o conflito entre estes dois critérios deve ser resolvido em favor do critério da especialidade;
c) hierárquico e o de especialidade: estes dois critérios, considerados fortes em relação ao cronológico. Trata-se do caso de uma norma superior-geral incompatível com uma norma inferior-especial. Neste caso não existe uma regra consolidada.
Caberá ao interprete aplicar ora um ora outro critério, segundo as circunstâncias. Teoricamente deveria prevalecer o da hierarquia;
7. O dever de coerência:
- A incompatibilidade entre duas normas deve ser um mal a ser eliminada, o que pressupõe uma regra de coerência que poderia assim ser formulada: “Num ordenamento jurídico não devem existir antinomias”. A coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento, pois é evidente que quando duas normas contraditórias são válidas e que pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigências que inspiram o ordenamento jurídico: a exigência da certeza, que corresponde ao valor da paz ou da ordem, e a exigência da justiça, que corresponde ao valor da igualdade. Onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e, portanto, aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, nem a justiça.
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BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 10. Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999, p. 71-110