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Natureza e cultura na definição e delimitação do humano : debates e disputas entre antropologia e biologia

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Academic year: 2021

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Paulo Dalgalarrondo

Natureza e Cultura na Definição e Delimitação

do Humano: Debates e disputas entre antropologia e biologia

CAMPINAS 2013

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Paulo Dalgalarrondo

Natureza e Cultura na Definição e Delimitação do Humano: Debates e

disputas entre antropologia e biologia

Orientador: Prof. Dr. Mauro W. Barbosa de Almeida

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE/DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO PAULO DALGALARRONDO,

E ORIENTADA PELO PROF. DR. MAURO W. BARBOSA DE ALMEIDA

CAMPINAS 2013

Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do Título de

Doutor em Antropologia Social.

Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

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Agradecimentos

Ao longo da elaboração desta tese, e certamente para conseguir realizá-la, recebi contribuições e ensinamentos e estabeleci interlocuções com um número considerável de pessoas, muitas das quais foram se tornando amigas e amigos queridos; professores e colegas em seminários nos cursos regulares ou não da pós em antropologia do IFCH da UNICAMP, em aulas e seminários dos Institutos de Biologia e de Estudos da Linguagem. Com o risco grave de esquecer alguém, nomeio aqui os mais próximos.

No Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP cursei disciplinas com o grupo de alunos de mestrado e doutorado em antropologia dos anos 2008 até 2011. Os colegas Diego Ferreira Marques, Laura Rodrigues Santonieri, Liliana Lili Lopes Sanjurjo, Taniele Cristina Rui, Ilana Seltzer Goldstein, Victor Raúl Ortiz Contreras, Adriana Abreu Magalhães Dias, Mariana Magalhães Pinto Côrtes, Mauro Martins Costa Brigueiro, Ana Laura Lobato Pinheiro e Suzane de Alencar Vieira, foram grandes companheiros de viagem. Em tais cursos e seminários recebemos os ensinamentos dos professores Omar Ribeiro Thomaz, Guita Grin Debert, Maria Filomena Gregori, Bela Feldman Bianco e Maria Suely Kofes. Tais professores foram importantes para que eu pudesse compreender o estado da arte dos estudos e debates antropológicos contemporâneos. Omar se tornou um grande amigo; ele é um convite constante à reflexão em antropologia, com sua inteligência e alegria contagiante, sua incrível capacidade de combinar rigor, criatividade e profundidade, imprime sempre sua marca pessoal em tudo que faz e pensa.

No Instituto de Biologia da UNICAMP pude aproveitar de cursos e seminários com os professores Thomas Michael Lewinsohn (historia da biologia, biologia e sociedade), Vera Nakano Solferini (pensamento de Darwin, genética), André Victor L. Freitas (zoologia geral) e Daniela Rodrigues (etologia), assim como as aulas com a professora Eleonore Z.F. Setz (zoologia de mamíferos). Em seminários e debates com o Thomas pude adentrar ao pensamento da biologia na sua vertente atual e histórica, refletindo sobre implicações epistêmicas e sociais da ciência. Thomas exige que se pense a biologia (não apenas a ecologia, sua disciplina) com rigor e amplidão, rejeita simplificações, modismos; busca a boa ciência e sua relevância no meio do entulho de volume que se publica. Em uma palavra, um mestre da ciência (que como grande número de espécies que os ecólogos defendem, também ele é uma espécie em extinção).

Os meus colegas do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da FCM/UNICAMP foram solidários durante esta pós-graduação, sempre apoiando a minha frequência ao IFCH. Claudio E. M. Banzato estudou e debateu comigo vários pontos desta tese, em nosso “grupo de estudos de dois”. Pude então aproveitar de sua incrível perspicácia, rigor e precisão, sobretudo para questões conceituais e epistemológicas.

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Nádia Farage foi, nesses anos todos, ao mesmo tempo uma amiga querida e uma professora dedicada e paciente em ensinar antropologia, a pensar nos termos da antropologia, a alguém que, embora encantado pela antropologia, não vinha de uma formação em ciências sociais. Ela foi assim uma interlocutora de especial qualidade para temas difíceis da antropologia contemporânea, tais como natureza e cultura, interações humanidade-animalidade, relações entre antropologia, ética e política. Nádia é amiga leal, combinando um compromisso sério e honesto em suas convicções, com sensibilidade e generosidade nas relações pessoais reais. A ela devo muitas coisas, inclusive o conhecimento e aproximação há cerca de seis anos de meu orientador, o Professor Mauro William Barbosa de Almeida.

Quero, então, registrar aqui um agradecimento especial ao Mauro, que com muita paciência, respeito absoluto por minha liberdade intelectual combinado com zeloso cuidado por todos os detalhes do trabalho, pôde me orientar, incentivar e permitir que eu trilhasse um caminho difícil, pouco explorado em nosso meio acadêmico e contexto intelectual. Quem o conhece de perto sabe que Mauro é pessoa ímpar, genuinamente despretensioso e autenticamente generoso; não ostenta, mas a convivência com ele revela um intelectual, pesquisador e professor inusitado no contexto contemporâneo. Além de possuir conhecimento profundo em sua disciplina, a antropologia social, e ciências sociais relacionadas (sociologia, política, economia, por exemplo), habita como poucos em nosso meio a tradição filosófica e humanística do ocidente. Não bastando isso, ele tem conhecimento sólido e visão crítica em ciências naturais (como, por exemplo, em biologia e física), além de sua paixão pela matemática. Assim, ele pôde de fato orientar um aluno um tanto inconsequente e teimoso como eu, que se aventurou em um território nebuloso, no qual é muito fácil se perder, com o risco de incorrer em modismos e soluções fáceis que sempre se apresentam ao incauto.

No período desta tese, Mônica, minha esposa, Luísa e Gabriela, minhas filhas, tiveram de acompanhar muitos de meus passos (sem outra opção); de tolerar minhas incursões no mundo dos macaquinhos incrivelmente inteligentes, das crianças-lobo, de Genie e Lucy, Kanzi e Koko, dos neandertais, de meandros dos debates sobre status e direitos dos animais, das questões sobre raça, fetos e moribundos, enfim, as atormentei esse tempo todo insistindo sobre o que parecia claro para mim, ou seja, a crucial importância que todos esses personagens e temas tem para toda humanidade (talvez apenas uma pequenina parte dela concorde com isso). Acho que, ao final, inadvertidamente, elas acabaram por se tornar minhas cúmplices nas ideias que aqui defendo (ou, benevolamente, me deixam pensar assim).

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Resumo

Este trabalho visa identificar e analisar as noções de humano presentes no debate acadêmico, com foco especial sobre as disciplinas antropologia social e cultural e biologia humana. Neste sentido, investiga-se em que medida noções como humano, singularidade e especificidade humana, humanidade/animalidade e pré-humano/humano-pleno têm sido formuladas e disputadas nestes dois grandes campos, antropologia e biologia. Para tanto, são explorados inicialmente alguns cenários de referência, como as noções de natureza, cultura e evolução, e posteriormente abordados o desenvolvimento conceitual específico da noção de homem na biologia e antropologia, assim como temas relacionados à origem do homem, diversidade humana, animalidade e humanidade e linguagem. O material de pesquisa é coletado a partir de textos de relevância histórica, assim como obras e artigos publicados nas últimas décadas em alguns dos principais periódicos de antropologia e biologia, de ciência em geral, assim como em livros de autores significativos dessas áreas. Com o material obtido é realizada análise conceitual, tendo-se em conta tanto a história das ideias e tradição disciplinar, como os debates e controvérsias contemporâneas sobre tais noções presentes no discurso acadêmico, sobretudo na antropologia e na biologia.

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Abstract

In order to identify and to analyse the concept of human in the present academic debate, focusing in social anthropology and human biology, it was investigated some formulations and disputes on notions as human, human uniqueness and specificity, humanity/animality, prehuman/full human. For this purposes, at first some intellectual background scenarios were explored; such as the concept of nature, culture and evolution. Then, the concept of man was examined historically and in the present in the fields of biology and anthropology. Approaching issues such as origin of mankind, human diversity, and language. Conceptual data for this research was collected from historically relevant works, and from books and papers published in the last decades, in biological and anthropological journals, as well as in general scientific journals. Using this material a conceptual analysis was done, considering the history of ideas and disciplinar tradition, appraching the contemporary debates and disputes in the academic debate, specially in the fields of anthropology and biology.

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SUMARIO

INTRODUÇÃO ... 1

PARTE I:

ALGUNS CENÁRIOS DISCIPLINARES DOS DEBATES SOBRE

A NOÇÃO DE HUMANO

...37

CAPÍTULO 1. SOBRE ALGUNS ASPECTOS DAS NOÇÕES DE NATUREZA,

CULTURA E EVOLUÇÃO. ...39 CAPÍTULO 2. DEFINIÇÃO E CIRCUNSCRIÇÃO DO HUMANO SEGUNDO A TRADIÇÃO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO E DAS HUMANIDADES. ... .77 CAPÍTULO 3. DEFINIÇÃO E CIRCUNSCRIÇÃO DO HUMANO PELA BIOLOGIA...129 CAPÍTULO 4. A NOÇÃO DE HOMEM E HUMANO NA ANTROPOLOGIA SOCIAL E

CULTURAL ... .223

PARTE II: VARIABILIDADE E ALTERIDADES DESAFIANTES

...281

CAPÍTULO 5. VARIAÇÕES INTERNAS E CONDIÇÕES DESAFIANTES SOBRE A NOÇÃO DE HUMANO: RAÇA, EMBRIÕES E FETOS, MORIBUNDOS E MORTOS. ... 283 CAPÍTULO 6. OS PRÉS-HUMANOS; IDAS E VINDAS PARA FORA E DENTRO DA

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CAPÍTULO 7. O ANIMAL INTERPERLA O HOMEM ... 379 CAPÍTULO 8. SOBRE A RELAÇÃO HOMEM-ANIMAL ... 431 CAPÍTULO 9. CRIANÇAS CRIADAS FORA DA CULTURA E ANIMAIS CRIADOS COMO

HUMANOS. ... 465 CAPÍTULO 10. A SINGULARIDADE HUMANA; A LINGUAGEM ARTICULADA COMO

MARCA DO HUMANO. ... 525

CONCLUSÕES ... 575

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Introdução

O escopo principal desta tese é apresentar e analisar alguns contornos e implicações da noção de humano no contexto de um conjunto de debates acadêmicos específicos. Tem-se, sobretudo, como referência de produção dessas noções, de um lado, as chamadas humanidades e ciências humanas (sobretudo a antropologia social) e, de outro lado, as ciências biológicas (sobretudo a biologia humana), a partir de seus desenvolvimentos e constituições históricas. Não sendo um trabalho de história, o recurso à história, entretanto, busca principalmente iluminar a situação e debate contemporâneos, visando-se a história do presente, ou seja, preparando o leitor para aquilo que vem sucedendo com a noção de humano, entre antropologia e biologia, das últimas décadas até o momento atual.

Em termos disciplinares, visa-se concentrar a atenção em campos como antropologia social e paleoantropologia, biologia humana e biologia evolutiva e, especialmente, investir no esforço de identificar discordâncias, convergências e influências recíprocas entre tais campos, sempre lembrando que o que mais interessa aqui são as questões conceituais e de definição em torno da noção de humano. Nesses campos retoma-se reiteradamente a questão sobre o que faz a hipotética especificidade do humano. No exame dos conceitos e definições opta-se, no mais das vezes, por um posicionamento descritivo e não prescritivo ou pelo julgamento de qual abordagem conceitual esteja mais perto ou mais longe da verdade. Em alguns pontos (espero que poucos), entretanto, a posição do autor em relação à uma hipotética verdade factual, se expressa inevitavelmente, traindo ele mesmo suas intenções de descrição distanciada

A idéia de que cada ser humano compartilha com os outros seres humanos uma série de atributos fundamentais, muitas vezes pensados ao longo da história do pensamento no ocidente como essência ou especificidade do humano ou como natureza humana é antiga e recorrente (Lovejoy, 19611; Sahlins, 20082). Tal idéia percorre muitos campos de conhecimento; o que

1 Lovejoy A.O. Reflections on human nature. The John Hopkins Press, Baltimore, 1961. 2 Sahlins M. The Western illusion of human nature. Prickly Paradigm Press, Chicago, 2008.

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interessará aqui, entretanto, é principalmente, como dito, o da antropologia social e cultural e o da biologia humana.

Nas últimas décadas, um número importante de pesquisas colocou disciplinas como a paleoantropologia, antropologia física e evolucionista, etologia, primatologia e linguística comparada, em posição de relevo na cena de debates científicos e intelectuais sobre o humano. Publicações e matérias de considerável repercussão em periódicos científicos importantes como Science, Nature, Current Anthropology, Man, etc., assim como nos cadernos científicos da imprensa leiga, revelam o impacto e múltiplas ressonâncias das descobertas, hipóteses e debates dessas disciplinas. Novos estudos e descobertas fósseis e o emprego de recursos da genética molecular reacenderam o questionamento sobre a origem da espécie humana, sobretudo sobre que fatores (ambientais, biológicos, cognitivos, sociais, políticos e culturais) seriam relevantes para que tal evento tivesse ocorrido. E quando se toca nas questões de origem, quase inevitavelmente questões relacionadas à natureza e especificidade do objeto são evocadas e colocadas em foco. Assim, não menos relevante é o que tais descobertas e debates implicam em termos de concepções do que seria o humano, sobretudo o especificamente humano, na visão intelectual contemporânea, em particular das recepções e repercussões de tais descobertas e debates nas ciências naturais, assim como nas humanidades. É sobre e nesse cenário polêmico, tenso e nebuloso que irá se tratar nesta tese.

O que não se pretende neste trabalho

Não será abordada aqui uma importante tradição que se constituiu sob a rubrica antropologia filosófica, ou seja, o debate propriamente filosófico sobre o específico do humano. Trata-se de elaboração intelectual ocorrida no ambiente da filosofia continental, sobretudo alemã, nas obras de filósofos3 como Max Scheler (1874-1928), Ernst Cassirer (1874-1945), Helmuth Plessner (1892-1985), Arnold Gehlen (1904-1976), Ludwig Binswanger (1881-1966), Bernard Groethuysen (1880-1946) e Gerhard Arlt (1942-), mas que não ficou totalmente ausente na tradição anglo-saxã, como, por exemplo, em Peter Singer (1946-), John Gray (1948-) e Peter M.S. Hacker (1939-), entre outros.

Desta forma, por necessidades de limites ao escopo da investigação e pela natureza deste trabalho, também não se pretende uma análise aprofundada da noção filosófica contemporânea de

3 Essa tradição intelectual, aparentemente morta ou em hibernação, ainda poderá render voos profundos e férteis,

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humano. Enfim, não terá centralidade aqui a abordagem do humano realizada pela tradição filosófica ocidental, embora, em determinados momentos, aspectos dela serão convocados para estabelecer certos cenários intelectuais, nos quais o humano foi pensado e formulado.

Além disso, não serão abordadas visões não acadêmicas ou não eruditas, como também não se pretende aqui a análise da noção de humano em sociedades, culturas e tradições que não se situam no interior da tradição do pensamento ocidental. Portanto, as multifacetadas noções de homem e humano em tradições como as do oriente (Índia, China, Japão, por exemplo), assim como nas tradições judaica, islâmica e cristã, embora de grande interesse, não serão aqui abordadas. Também não serão examinadas as instigantes e férteis ontologias e noções de humano presentes em cosmologias e filosofias produzidas por povos e culturas nativas da África, Américas e Oceania. Cada um desses temas potenciais compõe material extenso, interessante e complexo, mas a exclusão deles deste trabalho é inevitável.

No que tange ao aspecto histórico, o foco é especificamente a história das ideias, das noções e conceitos acadêmicos ou eruditos, assim como elementos da história das ciências. Não serão abordados (ou apenas, eventualmente, de forma muito superficial) campos como a história das noções não restritas à academia, história das mentalidades4, das instituições, das profissões e profissionais, dos fatores e eventos políticos e contextos ideológicos e seus determinantes concretos. Desta forma, não se visa aqui à história mais especificamente social e política relacionada às noções de homem e de humano. Mesmo tendo-se em conta que contextos socioculturais, econômicos, políticos e ideológicos de um lado e produção intelectual, acadêmica e científica, de outro, são indissociáveis, optei por tratar principalmente da história interna das ideias e noções, bem mais do que examinar sua história externa, sua gênese social e implicações culturais, ideológicas ou políticas, ou a episteme (no sentido foucaultiano) que as subjaz. Mas, mesmo deixando de lado tal história externa (que reconheço de grande importância), a via que utilizo para abordar meus objetos e problemas é quase sempre marcada por certo viés histórico, ou seja, com muita freqüência volto à atenção para a constituição histórica das noções que examino, para após isso chegar aos embates contemporâneos. É, portanto, com tal viés que procuro me aproximar das questões deste trabalho.

4 Na linha de autores como Michel Vovelle (Ideologias e Mentalidades, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1991), Jacques Le

Goff (História Nova, Martins Fontes, São Paulo, 1993) e Jean Delumeau (O medo no ocidente: 1300-1800, Companhia

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4 História das ideias e dos conceitos

A proposta de estudar a história das ideias no estilo sugerido por Arthur Oncken Lovejoy (1873-1962), professor de filosofia da Johns Hopkins University, será utilizada nesta tese. Neste sentido cabe algum esclarecimento sobre os fundamentos desta linha de investigação. Lovejoy sugeriu o termo history of ideas e fundou um jornal acadêmico com tal nome e escopo. Tendo sido aluno de William James e Josiah Royce, Lovejoy produziu um tipo de investigação voltada para a história intelectual, para estudos literários e sobre questões sociais, políticas e científicas. Seus primeiros embates foram com o pragmatismo (The thirteen pragmatisms, de 1908). Depois, seus estudos se dirigiram à história da religião, história da filosofia (por exemplo, estudos sobre Nietzche, Kant, Rousseau, Santayana, Emerson, Russell, Whitehead e Locke), exame de temas e conceitos como realismo, evolução, primitivismo, relatividade, vitalismo, teoria romântica do conhecimento e filosofia da natureza, assim como vários debates sobre questões sociais e políticas da primeira metade do século XX (guerra e paz, liberdade universitária, comunismo e cristianismo etc.).

Após a primeira guerra, seu interesse foi amadurecendo em torno da história das ideias, que se plasmou nas Conferências William James em Harvard, publicadas inicialmente em 1936, sob o título “The great chain of being”, talvez a obra mais conhecida de Lovejoy. Seu livro, The revolt against dualisms, de 1930, procura estabelecer uma posição filosófica que se situa entre os extremos do realismo e do idealismo, o que veio a constituir a posição que chamou de realismo crítico temporalista. Se a limitação do realismo é tentar sustentar uma existência objetiva independente da consciência, o idealismo se expõe aos riscos de admitir o universo como totalmente dependente da consciência. A transição entre ser e conhecer, ontologia e epistemologia, abre na sua obra espaço para a história intelectual.

Assim, sua posição filosófica pode ser resumida em torno de algumas noções básicas. Ele concebe o mundo, o homem e o devir a partir de uma visão marcadamente temporalista; para ele a sucessão temporal e a duração são modos qualitativamente impreteríveis da realidade. O eterno dos filósofos idealistas neokantianos é uma noção obsoleta e artificial; ele enfatiza o caráter fundamentalmente inacabado, transitivo, aumentativo ou transmutativo da realidade. Acredita, enfim, na realidade e irredutibilidade do tempo. Seu temporalismo é também uma forma de

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emergencismo; novas realidades, novas qualidades ou novas classes de qualidades, emergem ao longo da história do universo e da história humana. Surgem novos acontecimentos, aumentos quantitativos ou qualitativos da realidade.

O outro aspecto de sua visão filosófica é a posição que ele denomina realismo crítico. Trata-se de realismo dualista em que todo conhecimento da realidade é visto como indireto e substitucional, enfim, dependente de uma teoria das ideias representativas. Na linha de seu temporalismo, o conhecimento inicial, para ele, é a lembrança, e esta é sempre distinta do acontecimento lembrado; o paradoxo do conhecimento é buscar fazer presente o que está ausente. Nesse dualismo, tanto a realidade factual, a natureza, como o conhecimento representativo sobre ela, não são dados simples, unitários ou transparentes.

É possível articular as visões filosóficas de Lovejoy com suas investigações em história das ideias (que, para ele, não é fundamentalmente empreitada filosófica, mas historiográfica). Neste sentido, ele propõe que a pesquisa histórica de certas idéias seja realizada com a cooperação de diferentes especialistas das humanidades e das ciências, propiciando uma intensa comunicação entre eles, assim como crítica e ajuda mútua. Nessa perspectiva, desde seus movimentos iniciais, a história das ideias seria uma criação híbrida, aproximando ciências sociais, literatura, filosofia e disciplinas científicas (quando fosse o caso)5.

Sobre as ideias (na história das ideias), vistas como instrumentos e criações de certos pensadores, grupos de pensadores e gerações, assim como em cada uma das ideias escolhidas para estudo, tratar-se-ia de identificar uma força própria, dotada de uma lógica própria (há, assim, boa dose de inspiração na filosofia idealista alemã em tal proposta). Sua província seria a longa duração (nas suas palavras, the very longue durée), podendo percorrer, como no caso paradigmático trabalhado por Lovejoy em A grande cadeia do ser, da antiguidade até os dias atuais. A história das ideias se sobreporia, em maior ou menor medida (dependendo do caso), a propostas como história intelectual, Begriffsgeschichte (história dos conceitos, dos autores alemães), história cultural e (em menor grau) história da filosofia e da ciência. De toda forma, como salienta Jotham Parsons (2007)6

5 Kelley D.R. (1990) What is happening to the history of ideas? Journal of the History of Ideas, 51(41), 3-25. 6 Parsons J. (2007) Defining the history of ideas. Journal of the History of Ideas, 68(4), 683-699.

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a proposta história das ideias tem sido difícil de ser definida claramente e seus praticantes têm, mais freqüentemente do que raramente, evitado a tarefa de uma definição acabada.

Lovejoy formulou a noção de ideias-unidade, que surgem a partir de suposições implícitas ou incompletamente explicitadas ou hábitos mentais mais ou menos inconscientes. Tais idéias relacionam-se a crenças que, segundo nosso autor, ...são tão habituais que são mais tacitamente pressupostas do que formalmente expressas e discutidas, as maneiras de pensar que parecem tão naturais e inevitáveis que não são perscrutadas com o olho da autoconsciência lógica (O estudo da história das idéias, 2005, pg. 16)7. Tais crenças ou hábitos mentais são, para Lovejoy, mais decisivos para os sistemas teóricos de uma época, mais freqüentes nas tendências intelectuais dominantes, do que aparentemente se sugere. Assim, segundo este autor, faz-se necessário um esforço para penetrar além da aparência superficial de unicidade e identidade, para, diz ele, quebrar a concha que mantém a massa (conceitual) única, se quisermos nos aproximar das idéias que operam efetivamente e que estão presentes no campo de estudo que nos interessa.

A proposta de Lovejoy é enfatizar o caráter interdisciplinar ou híbrido no estudo dessas idéias-unidade. Elas devem, diz ele, ser rastreadas sempre por mais de uma província do conhecimento, se possível em todas as províncias nas quais ela figure com qualquer grau de importância, sejam elas disciplinas científicas, filosóficas ou áreas como política ou religião. Na verdade a abrangência de escopo daquele que investiga tais ideias-unidade depende mais do limite do investigador, pois ele deve buscar avançar por quantas províncias de conhecimento significativo for possível. Tal postura se baseia na idéia de que haveria muito mais em comum a mais de uma dessas áreas do que é normalmente reconhecido e de que a mesma ideia aparece, às vezes, de maneira consideravelmente disfarçada, nas mais diversas regiões do mundo intelectual (Lovejoy, 2005, pg. 24). A busca por identificar essas ideias-síntese não pode significar abordar meros conglomerados de conceitos, mas idéias que se organizam e cuja influência passa de um campo a outro.

O estudo da história de tais idéias-unidade está cheio de perigos e armadilhas, afirma nosso autor, pois ele lida com certo excesso. Exatamente por visar à interpretação e unificação conceitual e

7 Lovejoy A. O. Introdução: O estudo da história das idéias. In; Arthur O. Lovejoy, A grande cadeia do ser. Editora

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por buscar correlacionar coisas que, com freqüência, na superfície não parecem relacionadas (Introdução: O estudo da história das idéias, 2005, pg. 29), tal projeto pode degenerar em uma espécie de generalização histórica meramente imaginativa, diz ele. O homem é intrinsecamente reflexivo e interpretativo, e sempre busca encontrar nos simples dados da experiência, mais do que os olhos podem ver. Além disso, formula Lovejoy, a história das idéias é quase sempre uma história de tentativas e erros, e tais erros, contradições e confusões iluminam a natureza peculiar, os anseios, talentos e limitações dos homens nos seus empreendimentos intelectuais. Assim, os problemas conceituais do passado não estão tão distantes dos do presente, pois devemos lembrar que “os modos dominantes de pensamento em nossa própria época, que alguns de nós estão propensos a ver como claros, coerentes, firmemente embasados e definitivos, dificilmente hão de parecer aos olhos da posteridade ter qualquer um desses atributos” (Lovejoy, 2005, pg. 31). Nossa época, segundo o autor, embora tenha a sua disposição bem mais informação empírica, não dispõe de mentes diferentes ou melhores para analisá-la ou interpretá-la. Ele afirma que ...apesar de tudo, é a ação da mente sobre os fatos que produz a filosofia e a ciência - e que, certamente, em grande medida produz também os “fatos” (Introdução: O estudo da história das idéias, 2005, pg. 31).

Tanto as diferenças disciplinares, como as de período histórico, não são empecilhos para identificar certas idéias básicas e analisá-las; trata-se de poder circular nessas distintas esferas e nessa circulação forjar uma compreensão mais precisa dos significados e impactos de tais núcleos conceituais. Finalmente, Lovejoy adverte àquele que busca adentrar à pesquisa sobre a história das idéias, sobre a necessidade de inter-relacionar, de cruzar os conceitos através de distintas províncias do conhecimento:

The student of the history of ideas must approach his historical sources certainly with an open but not with a passive mind. The profitable reading of a text which contains any but the simplest ideas is always a process of cross-examination - of putting relevant questions to the author; and the reader must therefore know in advance what questions need to be asked (Reflections on human nature, 1961, pg.67).8

8 Lovejoy A.O. Lecture III. In; Arthur O. Lovejoy, Reflections on human nature. The John Hopkins Press, Baltimore,

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A questão que neste trabalho se quer formular é sobre a idéia de humano, e sobre a sua constituição, às vezes opostas, outras vezes confluentes, entre as ciências naturais e as humanidades, tanto na história recente como na contemporaneidade. Portanto, apenas a tentativa concreta de empreender esse esforço poderá, ao longo deste trabalho, revelar se tal esforço faz ou não faz sentido e se obtém algum resultado satisfatório.

Possivelmente o autor que representa a pesquisa histórica marcada seja por noções como descontinuidade e ruptura, por um lado, assim como por crítica à certa investigação histórica repudiada como unitária e totalizante, é Michael Foucault (2007/1966)9. Sua forma de lidar com o dado histórico se expressa em suas inquisições seja sobre os acontecimentos discursivos que irrompem em cada período, sobre as epistemes que subjazem a cada época, seja sobre dimensões não-discursivas, como os dispositivos específicos e práticas de cada momento histórico; sobretudo centrado em como se constituíram, como se relacionam com os contextos de saber-poder de cada época circunscrita. As linhas de continuidade seriam ilusórias, falsas, percepções enganosas de um olhar presente que tudo deforma para captar um fluxo ininterrupto em um leito que simplesmente não existe. Pensar a história, em geral ou a das ideias, como unitária ou contínua (ou com graus de continuidade) é projetar sobre o passado uma espécie de temporalidade natural ou divina, ato de ingenuidade ou má-fé.

A aposta do presente trabalho é na ideia de certa linha de continuidade, mais próximo, portanto, das teses de Lovejoy. Postula-se que certas noções formuladas no ocidente mantém uma determinada continuidade, possuem certo núcleo, que apesar de mudanças nos distintos períodos, sua historia é relevante e possível de ser retraçada, o que ajudaria a iluminar o debate contemporâneo. Mas sobre o contemporâneo e sua “história” cabe aqui uma palavra.

História do contemporâneo

Como já mencionado acima, este trabalho visa, embora recorra reincidentemente à reconstrução histórica de conceitos e debates, abordar como interagem no período contemporâneo a

9 Foucault M. As palavras e as coisas. Martins Fontes, São Paulo, 2007 (edição original em Francês, Les mots e les

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antropologia social e a biologia na conformação conceitual do humano. Cabe então uma reflexão, ainda que breve, sobre as dificuldades e ciladas implicadas na abordagem do contemporâneo.

Certamente, não passaram despercebidas pelos historiadores os entraves e as obscuridades peculiares que a história do presente traz consigo. Eric Hobsbawm (2000) aponta para a questão relacionada ao jogo de variáveis contemporâneas revelar-se totalmente distinto do passado; na medida em que não encontramos precedentes. Quem busca entender o presente deve estar, sobretudo, atento para a radical dessemelhança do momento atual. Não se pode fingir, diz ele, que a realidade presente seja compreendida simplesmente como prolongamento modificado de seu passado. Em particular, chama a atenção de que no contexto histórico atual as transformações têm sido inusitadamente rápidas, profundas, radicais e contínuas, e tais transformações e realidades absolutamente novas são características do mundo a partir do final do século XVIII, e especialmente a partir da metade do XX (O presente como história, pg. 41)10. Os últimos trinta ou quarenta anos constituem, diz nosso historiador, a era mais revolucionária da história escrita. Jamais o mundo, ou seja, as vidas dos homens e mulheres que vivem no planeta, foi transformado de modo tão profundo, dramático e extraordinário em tão breve período (O presente como história, pg.247-248)11.

A única alternativa para uma abordagem razoavelmente elucidativa da história do presente é buscar uma combinação arguta e questionadora entre experiência histórica e perspectiva histórica; urge, enfim, praticar uma história crítica que inclua uma análise constante do passado que ultrapasse as pressões ideológicas por construções de mitos de autojustificação e que afie o olhar para reconhecer semelhanças e, sobretudo, diferenças originais e radicais. Nesse sentido, o depoimento pessoal de Hobsbawm é particularmente instrutivo para quem busca tal história do presente, pois crítico e bem dosado com seu ceticismo pessoal:

Falo como alguém que atualmente tenta escrever sobre a história de seu próprio tempo e não como alguém que tenta mostrar o quanto é impossível fazer isso. Porém, a experiência fundamental de todos que viveram grande parte desse século (no caso, o século

10 Hobsbawm E. O que a história tem a dizer-nos sobre a sociedade contemporânea? In: Eric Hobsbawm, Sobre

História, Companhia das Letras, São Paulo, 2000. (Original em Inglês, On History, 1997).

11 Hobsbawm E. O presente como história. In: Eric Hobsbawm, Sobre História, Companhia das Letras, São Paulo,

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XX) é erro e surpresa. O que aconteceu foi, quase sempre, totalmente inesperado. Todos nós nos equivocamos mais de uma vez em nossas avaliações e expectativas. (...) a descoberta de que nos enganamos, de que não podemos ter entendido adequadamente, deve ser o ponto de partida de nossas reflexões sobre a história de nosso tempo. (O presente como história, pg. 254).

Partindo de um patamar teórico distinto12, mas abordando o mesmo problema, o filósofo italiano Giorgio Agamben (2009)13 em seu texto “o que é o contemporâneo?”, inicia com a pergunta nada trivial, afinal; de quem e do que somos contemporâneos? Enfim, o que significa ser contemporâneo? Para ele a contemporaneidade deve ser abordada como uma singular relação com o próprio tempo, uma atitude que adere a ele e, simultaneamente, dele toma distância. Para se aproximar do contemporâneo essa atitude dupla, de aproximação e distanciamento, de familiaridade e estranhamento, faz-se absolutamente necessária, pois: aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (O que é o contemporâneo, pg. 59).

Um pouco mais adiante, prosseguindo em seu texto de análise do contemporâneo, ele diz que quem consegue abordar o contemporâneo é aquele que consegue dar conta de manter fixo o olhar em seu tempo, não para nele perceber o mais evidente e banal, mas para perceber o escuro, para focar sobre as obscuridades, sobre aquilo que não é evidente, sobre os nós conceituais, os escotomas que pairam sobre a realidade factual ou conceitual. Para Agamben, perceber esse escuro não pode ser equiparado à uma forma de inércia ou de passividade. Tal percepção implica antes em uma atividade e uma habilidade particular. Ela implica a atitude de neutralizar as luzes dos conhecimentos evidentes e salientes que provém da época, para descobrir o seu escuro especial, diz ele. Além de uma postura crítica e particular, a investigação do contemporâneo pressupõe essa

12 Agamben, como se sabe, utiliza muitos elementos foucaultianos em suas teses. Como visto acima, o pensamento

histórico de Foucault atenta para descontinuidades, estando assim muito distante do projeto de Lovejoy, que busca continuidades na longa duração, e mesmo das bases marxistas de um historiador como Hobsbawm.

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disposição para perceber o escuro do próprio tempo como algo que nos concerne e que não cessa de nos interpelar.

Além disso, segundo Agamben a contemporaneidade se inscreve no presente marcando tal presente em relação ao arcaico; para ser contemporâneo urge perceber no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico. Assim, aquilo que define a contemporaneidade tem o seu fundamento em uma proximidade com a origem; é perceber essa face arcaica do presente, diz ele. Isto é mais evidente, sobretudo, nos casos da literatura e da arte, pois ...os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico. E um pouco adiante ele completa afirmando que o caminho que nos conduz ao presente necessariamente tem a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la. (O que é o contemporâneo, pg. 70).

Para ele o contemporâneo instaura uma relação especial entre os tempos, apela para um compromisso e para um encontro entre os tempos e as gerações. Ao deslocar o tempo, o contemporâneo coloca-o em relação com os outros tempos, podendo neles ler de forma original a história e fazê-la deixar-se ouvir pelas gerações sucessivas.

Ciências Humanas e Ciências Naturais

Tendo por objetivo identificar e mapear como interagiram e disputaram as ciências humanas e as naturais sobre as delimitações conceituais referentes ao humano, cabe então colocar esses dois grandes grupos de disciplinas do conhecimento intelectual em contraste. As complexas relações entre tais disciplinas são historicamente situadas. De um modo geral, tais relações se dão no contexto mais amplo da constituição mesma de tais campos e ciências, e a cada uma delas corresponde determinado universo epistêmico, metodológico e empírico, assim como tradições intelectuais específicas. Não se pode impunemente tentar aproximar, por exemplo, biologia e antropologia social, como se estivesse a aproximar tradições intelectuais e científicas da mesma linhagem, organização conceitual e pressupostos fundantes.

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Além disso, tem-se em conta que as disciplinas dos dois campos (humanidades e ciências naturais) não são internamente homogêneas e têm, cada uma delas, disciplinas e sub-campos específicos próprios; não é possível, por exemplo, um tratamento conceitual homogêneo de disciplinas como lingüística, economia, antropologia social, filosofia e crítica literária, como também, por outro lado, não é possível igualar epistemologicamente, sem mais, biologia molecular, química, etologia, física, biologia da conservação, bioquímica e ecologia.

Cabe também ressaltar que a relação dos dois grandes blocos, humanidades e ciências naturais, se construiu de forma articulada com a profunda distinção ocidental entre natureza e cultura. Em tal relação, a questão da autonomia de cada um desses grandes blocos se contrapõe com as reincidentes tentativas e projetos de redução de um ao outro, no mais das vezes, das ciências humanas às ciências naturais. São reincidentes, por exemplo, as tentativas de reduzir fenômenos psicológicos e sociais a mecanismos e processos biológicos, possivelmente pelo fato das ciências da natureza gozarem, de modo geral, da alegada reputação de serem mais objetivas, empírica e metodologicamente menos problemáticas (quando se trata de se tornarem operacionalizáveis), e também, com maior poder de previsão.

Mas, de modo geral, os cientistas sociais mais perspicazes recusam imediatamente tal projeto reducionista. Lévi-Strauss, que sabidamente sempre esteve longe de qualquer ojeriza pelos rigores formais da ciência, se coloca resolutamente ...contra as ofensivas estimuladas por um espírito primário e simplista como o da sociobiologia, que quer reduzir os fenômenos culturais a modelos copiados da zoologia (De Perto e de Longe, 1990/198814, pg.138). As ciências humanas são distintas das ciências naturais, não têm o mesmo status delas, pois, para ele, no campo das ciências humanas ...as variantes são inúmeras, com o observador envolvido inextricavelmente com seus objetos de observação; enfim, os meios intelectuais de que dispõe, estando no mesmo nível de complexidade dos fenômenos estudados, jamais podem transcendê-los (Lévi-Strauss, 1990/1989, pg. 135). Talvez seja impossível identificar “leis”, como para o caso da história, pois, ...o número de variáveis é tal, existem tantos parâmetros, que talvez só um entendimento divino poderia conhecer ou saber por toda a eternidade o que acontece ou vai acontecer. Os humanos se equivocam a toda hora; a história o demonstra. (...) os acontecimentos são imprevisíveis quando não se realizaram.

14 Lévi-Strauss C. & Eribon D. De Perto e de Longe. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1990 (edição original em

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Cabe às ciências humanas o procedimento analítico, após os acontecimentos já terem ocorrido, aí então ...podemos tentar compreender, explicar. Podemos relacionar os acontecimentos uns com os outros e perceber, retrospectivamente, a lógica desse encadeamento. No presente, nada permite prever o que acontecerá entre tantos concebíveis possíveis e outros totalmente inconcebíveis (De Perto e de Longe, 1990/1988, pg. 162.).

Mas voltemos um pouco atrás nessa contraposição. O embate de métodos e cientificidades das ciências humanas e naturais remonta, pelo menos, ao século XIX. No final daquele século, no ambiente intelectual alemão, Wilhelm Dilthey (1833-1911) empreendeu o projeto de, em contraposição às ciências naturais, erigir os fundamentos das ciências do espírito, ciências históricas e da cultura, enfim o campo específico dos fenômenos humanos15. Para ele as ciências humanas (Geisteswissenschaften) são, por natureza, irredutíveis às ciências naturais (Dilthey, 2010/1905-191016). Em suas obras17, Dilthey propõe que enquanto nas ciências naturais, por sua própria índole, o que se pressuporia e se buscaria seriam relações de causa e efeito entre os fatos da realidade (seja de modo lógico-indutivo ou, mais recentemente, estatístico inferencial), nas ciências do espírito ou humanas buscar-se-ia reconhecer conexões-de-sentido no interior daquilo que é empiricamente dado, ou seja, nos fenômenos reais propriamente humanos. Nas ciências naturais, como a biologia, a estrutura epistêmica seria explicativo-causal, nas humanidades, a estrutura seria descritiva e compreensiva. Assim, como ficou conhecida essa contraposição, tratar-se-ia do explicar versus o

15 Caba assinalar, entretanto, que não foi Dilthey o primeiro pensador importante a propor tal distinção. Quase um século

e meio antes, por exemplo, Giambattista Vico (1688-1744) propôs em sua Scienza Nuova, em 1744, que a história, como artefato humano, deve ser estudada com métodos e técnicas completamente distintas das ciências naturais. Vico argumenta que seria um grave erro supor, como Descartes, que todos os campos de interesse ao conhecimento humano deveriam ser abordados pelo mesmo método. (Vico G. Princípios de uma Ciências Nova. Coleção Os pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1979). Também, segundo Jürgen Habermas, teria sido mais definidamente o neokantiano Heinrich Rickert (1863-1936) o primeiro autor a buscar conceber de modo metodologicamente rigoroso o dualismo entre ciências da natureza e ciências da cultura. Entretanto, obras de Dilthey sobre o tema são um pouco anteriores às de Rickert (Habermas J. O dualismo das ciências naturais e das ciências humanas. In: Jürgen Habermas, A lógica das ciências sociais, Editora Vozes, Petrópolis, 2011; Rickert H. Die vier Arten des Allgemeinen in der Geschichte, Anexo à 5ª edição de Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begreiffsbildung, J.C.B. Mohr,T:ubingen, 1896; Rickert H. Kulturwissenschaft und Naturwissenschaft, Verlag von J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), Tübingen 1926 (primeira edição, 1899).

16 Ver a obra de maturidade de Dilthey, disponível agora em português, que mais diretamente expressa suas posições

sobre o tema aqui tratado: Dilthey W. A construção do mundo histórico nas ciências humanas. Editora UNESP, São Paulo, 2010 (de um conjunto de ensaios publicados como Der Aufbau der geschichtlich Welt in den

Geisteswissenschaften, entre 1905 e 1910).

17 Ver também obras como Einleitung in die Geisteswissenschaften (1883) (Introdução às ciências do espírito), Ideen

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compreender18, de identificar relações causais em contraste com o projeto de captar relações de sentido no contexto de valores normativos da história e da cultura. Seria essa a contraposição fundamental entre os dois universos epistêmicos relacionados aos dois universos de fenômenos, naturais ou humanos.

Cabe lembrar que o projeto metodológico de Dilthey se situa no contexto de sua filosofia geral, que é uma filosofia da vida, compreendendo-se vida em seu sistema como algo não-metafísico, algo que é intrinsecamente histórico (não apenas constrangido pela história) (Palmer, 2006/196919). Interessa, portanto, a ele, a experiência concreta da vida, que é, enfatizo, sempre plena de historicidade. A compreensão deve captar a vida humana que se dá, se oferece, sobretudo, através de expressões objetivas, através de gestos, atos históricos, códigos e leis, formas sociais, idéias, obras de arte ou de literatura.

Para Dilthey, em ciências humanas, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, não se trata de lançar mão de um método subjetivista, baseado em introspecção, mas sim de captar a vida nos seus momentos mais significativos, que são objetivos, são as expressões da vida que se revelam em obras (aqui compreendidas de forma ampla, como a linguagem, escrita, idéias, atos, formas sociais, experiências vividas etc.), quando a textura da vida humana interior se exprime plenamente. Trata-se de alcançar os momentos complexos, individuais do “sentido”, na experiência direta da vida como totalidade e na captação amorosa do particular (Palmer, 2006/1969, pg. 108). Mas essa busca pela experiência interna dos homens, essa marca de individualismo do filósofo alemão herdeiro do romantismo, não é um psicologismo, pois o humano só pode ser apreendido em um mundo sócio-histórico; diz Dilthey, o que o homem é, só a história o pode dizer (Gesammelte Schriften, vol. VIII, pg. 224).

É neste sentido que um autor como Gilles-Gaston Granger irá afirmar cerca de cem anos depois, em 1993, que nas ciências do homem, em contraposição às ciências da natureza, os fenômenos carregam uma carga de significações que se opõem a sua transformação simples em

18 Sobre as distinções entre o compreender e o explicar em Dilthey, ver o elucidativo artigo: Franco S.G (2012)

“Dilthey: compreensão e explicação” e possíveis implicações para o método clínico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 15(1), 14-26.

19 Palmer R.E. Dilthey: A hermenêutica como fundamento das Geisteswissenschaften. In: Richard E. Palmer,

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objetos e em esquemas abstratos lógica e matematicamente manipuláveis. Os fatos humanos resistem à abordagem das ciências naturais, sobretudo por seus elementos de liberdade e imprevisibilidade. Além disso, são fenômenos que no mais das vezes surgem associados de forma muito íntima a aspectos normativos e a valores. Assim, nas humanidades não se trata de reduzir fatos específicos a esquemas abstratos, mas de representá-los, ainda que parcialmente, em sistemas de conceitos (Granger, 199320). Enfim, as humanidades lidam com razões, com questões em torno da ação humana, e as ciências naturais com causas, visando a testagem de generalizações e a busca de leis gerais; seriam irremediavelmente inconciliáveis, a não ser através de reducionismos que implicariam abdicações na transição de uma para a outra (Rosenberg, 2012)21.

Outro modo de introduzir a contraposição entre ciências naturais e humanas é adotando uma perspectiva externalista, tal qual o faz o antropólogo Ernest Gellner, em Knowledge of nature and society (Gellner, 199722). Para Gellner deve-se questionar por que no ocidente surgiu um conhecimento da natureza dotado de marcante eficácia técnica e relativo poder de previsibilidade e o mesmo não se deu nas áreas humanísticas, como política, economia, organização social e cultura. Para ele, as ciências naturais só puderam surgir quando as sociedades agrárias, capitalistas e pré-industriais, se exauriram. Tais sociedades, baseadas na produção e armazenamento de alimentos, utilizariam tecnologias estáveis e não favoreceriam uma ciência cumulativa. Oprimidas pelos riscos da carência de suprimentos básicos, como os alimentos, tenderiam a ser sociedades hierárquicas cuja posição em uma fila ordenada pela “proximidade do celeiro” seria o aspecto principal de status. Em tais formas sociais a manutenção da ordem social seria bem mais importante do que a produção de excedentes; em tais circunstâncias não haveria sérios incentivos à produção de conhecimentos novos, mas se tenderia antes a estratégias de reforço tanto das cosmologias vigentes, como dos conhecimentos técnicos e naturalísticos.

Com a transição da ordem feudal para a ordem burguesa e a revolução mercantil, esse círculo se romperia, por primeira vez de forma mais consistente e constante, produzindo-se um contexto

20 Granger G.G. Ciências da Natureza e Ciências do Homem. In: Gilles-Gaston Granger, A Ciência e as Ciências,

Editora UNESP, São Paulo,1994 [1993].

21 Rosenberg A. Philosophy of social science. Fourth Edition, Westview Press, 2012.

22 Gellner E. Knowledge of nature and society. In: Mikulás Teich, Roy Porter, Bo Gustafsson, Nature and Society in

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econômico e social que incentivaria de modo decisivo a produção de conhecimentos novos sobre a natureza e a conseqüente geração de tecnologias para sobre ela operar. Mas por que isto não se deu com os saberes referentes às questões humanas, pergunta Gellner. Simplesmente, não sabemos, diz ele. Talvez alguns candidatos plausíveis para explicar tal peculiaridade das humanidades que, distintamente das ciências naturais, resistiriam a tais supostos processos cumulativos (em termos de previsibilidade e eficácia tecnológica), seriam:

1. O grau de complexidade do objeto empírico, ou seja, a complexidade dos fenômenos e eventos humanos, sociais, culturais, políticos etc.

2. O fato de que nas questões humanas o “significado”, os fenômenos como dotados de “sentido”, a dimensão intrinsecamente semiológica e polissêmica dos fatos humanos, seria um aspecto fundamental inerente a tais questões, diferentemente dos fenômenos tratados pelas ciências naturais;

3. O caráter dos fenômenos sociais, sujeitos a processos de retroalimentação constante, ou seja, tais fenômenos não seriam objetos dados, tipos neutros, mas tipos interativos que reagiriam ao serem significados por quem os estuda, ou seja, o que filósofos da ciência contemporâneos chamam de reflexividade das ciências humanas;

4. O fato de com a cultura, distintamente da natureza, aquelas características adquiridas serem transmitidas de geração para geração;

5. O coringa do jogo nas humanidades, diz Gellner, que é o livre-arbítrio, a liberdade criativa humana, que, quando opera, gera algo da ordem de uma radical e inescapável imprevisibilidade.

Além disso, afirma Gellner, se no campo dos objetos e fenômenos naturais os “práticos”, artesãos, agricultores, caçadores, carpinteiros, etc., superavam os intelectuais da ciência (ninguém ia a eles quando queria resolver uma questão que afligia, no campo do trabalho, da guerra, da relação com objetos naturais etc.), até o advento da ciência moderna, no século XVII. A partir daí, os cientistas passaram gradativamente a serem aqueles que devem ser consultados, quando uma mudança técnica se faz necessária. Passou-se a perguntar, por exemplo, aos físicos, engenheiros, químicos, matemáticos, biólogos, agrônomos e médicos, o que fazer para melhorar um processo de trabalho, uma ferramenta ou máquina, como cultivar a terra com maior rendimento e como tratar doenças. No campo das humanidades isto ainda não teria acontecido; políticos habilidosos

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consultam a sua intuição, sua experiência acumulada, seu saber prático, antes do que aos cientistas políticos, da mesma forma procederiam gestores, líderes sociais, empresários e mesmo alguns profissionais da vida emocional inter-humana.

Apontar que as humanidades não revelam um progresso cumulativo, como as ciências naturais é, evidentemente, algo defendido, sobretudo, por cientistas naturais. Mas, é natural e exige-se que exige-se coloque em questão o que exatamente exige-se entende por progresso23, o que é certamente uma questão disputada e não consensual. Se tal consenso fosse obtido, seria então possível questionar se as ciências humanas poderiam ou mesmo deveriam perseguir esse objetivo, um progresso cumulativo tal como o supostamente obtido pelas ciências naturais (Rosenberg, 2012).

Adicionalmente a esta questão de progresso cumulativo, Gellner alude a um curioso dilema das humanidades; aquilo que nas ciências sociais seria rigoroso (no sentido de objetivo, testável, eventualmente, matematizável) não diria respeito à realidade, e aquelas abordagens e formulações mais próximas da vida real não seriam rigorosas em termos de cientificidade. Já em 1928, Georges Politzer (1903-1942)24 afirmou algo análogo para o caso da psicologia. O que seria rigorosamente científico na disciplina acadêmica (por exemplo, modelos experimentais, objetivos, matematizáveis, como na área da psicologia experimental de laboratório) não iria ao concreto e real do ser humano, ao que interessa, e aquela atitude que lá conseguiria ir, não seria considerada científica, mas literária, artística (Politzer, 2004/1928)25.

23 Pode-se igualar progresso a questões como; possuir maior poder tecnológico? Maior domínio sobre a natureza?

Expansão demográfica da espécie humana? Maior longevidade? Melhor qualidade de vida para a humanidade? (Mas, o que se entende mesmo por qualidade? Qualidade em quais dimensões da vida e em que tipo de vida?). Para toda a humanidade ou para parte dela? E os outros seres não-humanos? Progresso implicaria uma vida com mais solidariedade? Ou com competitividade mais eficaz? Com mais sensibilidade?(mas que tipo de sensibilidade?) Sustentabilidade? Enfim, a lista é interminável e aqui apenas se alerta para as obscuridades e sentidos polêmicos e

contraditórios que a noção de progresso implica, longe de uma visão unitária e consensual que uma posição ingênua reiteradamente expressa.

24 Para Politzer, tanto a investigação conceitual (conceitos básicos de memória, sensação, percepção, etc.), como a

psicologia experimental de laboratório (os laboratórios de física e química como modelo), eram empreendimentos arbitrários, abstratos, que não captavam o homem concreto, real. Sobre a artificialidade do cientificismo da psicologia experimental ele afirmava "Os psicólogos pensam que basta atravessar a rua e mudar de laboratório para fazer ciência

psicológica".

25 Politzer, G. Crítica dos fundamentos da psicologia. Editora UNIMEP, 2004. (original: Critique des fondements de la

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O filósofo da ciência Alexander Rosenberg (2012) afirma que enquanto nas ciências naturais o objetivo primário seria a produção de teorias causais sobre mecanismos subjacentes, nas ciências sociais o que se busca, em última análise, é a compreensão de comportamentos e fenômenos humanos que resultam em inteligibilidade. As ciências humanas visariam revelar significados e sentidos, ou seja, alcançar algum grau de interpretação dos comportamentos e fenômenos humanos que não respondem a causalidade estrita, nem implicam a descoberta de leis ou generalizações de qualquer tipo. Se as ciências naturais buscam leis causais, as ciências humanas teriam seu paradeiro na idéia de inteligibilidade. Isto porque, afirma Rosenberg, as ciências humanas se dirigem as ações humanas, não a meros movimentos do corpo, ao discurso, não a emissões vocais, a saltar, não a cair, ao ato de suicidar-se, não a simplesmente morrer; esses são os eventos que dizem respeito às ciências humanas e sociais, e exatamente por isso o que está em jogo é a inteligibilidade.

Para o historiador das ciências humanas, Roger Smith (2005)26, um dos elementos centrais na distinção entre ciências humanas e naturais, segundo muitos filósofos contemporâneos das ciências, sobretudo pós-positivistas e alguns pós-modernos, seria a noção de reflexividade (reflexivity). Tal noção surge no contexto de uma crítica ao programa positivista nas ciências sociais e psicologia, programa esse que visaria ao final à obtenção de uma ciência unificada.

O conhecimento produzido nas ciências humanas reflexivamente alteraria o objeto dessas ciências, ou seja, o sujeito humano. As ciências humanas não poderiam ser dotadas de poder de previsibilidade posto que o homem é um “animal que se define a si mesmo, que se constrói a si mesmo” (a self-defining animal). Com mudanças na sua auto-definição ocorreriam mudanças naquilo que o homem é, de tal forma que ele teria que ser compreendido em diferentes termos (a partir de tais mudanças). Como os homens vivem e como eles narram e definem como vivem não são variáveis independentes, mas partes de uma unidade, do “círculo reflexivo”. Nas ciências sociais, por exemplo, tornou-se um lugar comum, diz Smith, a partir de teses como, por exemplo, as de Anthony Giddens, o axioma de que as ciências sociais estão ativamente ligadas ao seu material empírico (subject matter), o qual, elas, de alguma forma, ajudam reflexivamente a constituir.

26 Smith R. (2005) Does reflexivity separates the human sciences from natural sciences? History of the Human

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De acordo com o argumento reflexivo, as pessoas criam conhecimentos e tais conhecimentos recriam as pessoas; a história das ciências humanas seria marcada pela história de seres humanos transformando a si mesmos. Mas Roger Smith se opõe à idéia de que as ciências humanas são marcadas pela reflexividade e as naturais não. Citando Hilary Putnam, ele enfatiza a noção de que os “objetos”, quaisquer objetos, não existem independentemente de esquemas conceituais; nós recortamos o mundo em objetos quando introduzimos um ou outro esquema de descrição (Putnam, 1981, pg, 52). Quando o filósofo da história, Collingwood, afirma que “a natureza mantém sua posição, e é o mesmo se nós a compreendemos ou não” (em um outro exemplo citado, as galáxias longínquas não mudam se as observamos pelos telescópios ou se não as observamos jamais), para Roger Smith é simplesmente uma afirmação equivocada. Para Smith, tanto objetos naturais como os humanos são transformados reflexivamente pela observação.

A diferença fundamental entre ciências humanas e naturais residiria em objetivos e propostas distintas das duas. O que separaria as ciências naturais das humanas não é a constatação de que humanos têm linguagem e alma, ou de que apenas eles se transformam com o conhecimento, mas o fato de que é parte inerente do projeto das ciências humanas tornar o processo reflexivo autoconsciente. A separação entre ciências naturais e humanas seria uma questão de prática científica e não de teoria de conhecimento.

Antropologia e Biologia Humana: tentativas de aproximação

Tim Ingold (1990)27, em seu artigo, An anthropologist looks at biology, abriu um debate ocorrido na revista britânica de antropologia Man: The Journal of the Royal Anthropological Institute. Ao artigo de Ingold, seguem-se outros dois, como respostas e incitação ao debate. Robert A. Hinde28, primatólogo da Universidade de Cambridge, publica então em 1991, A biologist looks at

27 Ingold T. (1990) An anthropologist looks at biology. Man: The Journal of the Royal Anthropological Institute,

25(2),208-229.

28 Hinde R.A. (1991) A biologist looks at anthropology. Man: The Journal of the Royal Anthropological Institute,

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anthropology e, finalmente, Walter Goldschmidt, antropólogo da Universidade da Califórnia,

escreve On the relationship between biology and anthropology, em 199329.

Em seu artigo que inicia o debate, Ingold introduz seu argumento afirmando que a biologia é a ciência de organismos vivos e a antropologia a ciência de pessoas vivas; assim, a antropologia situar-se-ia, por motivo lógico, no interior da biologia. Propostas de integração como a sociobiologia implicariam uma biologia empobrecida que teria perdido o contato com a realidade dos organismos. Analogamente, a antropologia social teria sido igualmente empobrecida, ao não abrir espaço conceitual para pessoas reais.

Ingold propõe então um novo patamar para uma possível integração da antropologia social com a biologia. Se opondo à oposição intelectual ocidental entre humanidade e natureza, também aponta para as limitações da biologia contemporânea, baseada na nova síntese (integração darwinismo - mendelismo), pois esta, segundo ele, eliminaria o organismo como entidade real. A integração fértil para Ingold, entre antropologia social e biologia, pressupõe mudanças conceituais e metodológicas profundas tanto da antropologia como da biologia. O organismo deveria ser tomado como o ponto de partida, passando-se então a se compreender a vida social das pessoas como um aspecto da vida orgânica em geral; ...as the person is an aspect of the organism, so social life is an aspect of organic life in general.

Ele também propõe recapturar as pessoas para a antropologia. Nesta linha, uma antropologia de pessoas seria compatibilizada com uma biologia de organismos cujo foco seria em processos e não em eventos, substituindo-se o “pensamento populacional” da biologia evolucionista darwiniana pela lógica de relações. Há aqui o projeto de superar dicotomias arraigadas como de natureza e cultura, que na biologia expressa uma noção de animalidade genérica versus a noção de cultura como essência da humanidade; o que todos os humanos teriam em comum seria atribuído à biologia e suas diferenças, à cultura. Nessa visão, a biologia fica aprisionada ao status de mínimo denominador comum da humanidade. Alinhada com a dicotomia natureza e cultura, a contraposição entre genótipo e fenótipo se articularia com a completa separação entre ontogenia e filogenia, o estudo do desenvolvimento dos organismos seria distinto do estudo de suas evoluções.

29 Goldschmidt W. R. (1993) On the Relationship Between Biology and Anthropology. Man: The Journal of the Royal

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21

A crítica de Ingold ao mainstream da biologia contemporânea refere-se a que tal biologia estritamente darwinista abriria mão de uma teoria do organismo, sobretudo do organismo em desenvolvimento30, em processo, não como um evento dado. A principal omissão revelada por tal falta é a noção simples de que os organismos crescem, são seres em processo contínuo de transformação. O organismo não seria uma entidade individual, mas um embodiment do processo da vida. No caso da antropologia, a vida social, por sua vez, deve ser capturada como um processo, uma realização criativa de relações e de construção de pessoas. Além disso, a vida social envolve a evolução de campos relacionais que se subsumem à interface entre os sujeitos humanos e seu ambiente.

A crítica à proposta de Ingold é de que, além de tratar da biologia evolutiva (e de alguns outros aspectos do darwinismo) de forma desinformada e pouco matizada, é de que ele propõe uma articulação entre biologia e antropologia, em certo sentido, que não existem como realização histórica de uma disciplina (sobretudo a biologia). Em outras palavras, propõe que aproximemos a antropologia, agora marcada pelo método fenomenológico de inspiração heideggeriana, de uma biologia totalmente desprovida daquilo que a biologia foi e ainda é. Projeto original e utópico, com fé em um suposto potencial criativo e também todo ônus daqueles projetos que existem apenas na mente do projetista.

O primatólogo Robert A. Hinde (1991) entra no debate sugerido por Ingold, expondo o que, no seu entender, pode a biologia oferecer à antropologia. Hinde afirma concordar com Ingold na maior parte de suas conclusões, mas aponta para a visão limitada que Ingold teria da biologia e da psicologia. A biologia, como qualquer ciência, deve partir de questões específicas. Nega (e busca demonstrar seus argumentos com alguns dados empíricos) que toda a biologia seja estritamente adaptacionista e utilitarista e que negligencie tanto o organismo em desenvolvimento como as suas relações dinâmicas com o ambiente. Mas o artigo de Hinde avança pouco, ao meu ver, na integração consistente entre antropologia e biologia, que ele alude ao longo do texto. Enfatiza aspectos

30 Ingold, ao que parece, ao escrever esse seu texto, no final dos anos 1980, com intuito polêmico, ou não estava a par do

vigoroso movimento da biologia do desenvolvimento a partir da década de 1970, ou simplesmente não quis debater com ela. Esta visão de que a biologia darwinista não abre espaço para uma biologia do desenvolvimento parece algo mal-informada (neste sentido ver os livros que revelam essa breve história; Carroll S.B. Infinitas formas de grande beleza, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2006; ou o texto mais técnico, Lewis Wolpert, Princípios de Biologia do Desenvolvimento, Artmed, Porto Alegre, 2008).

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