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A colonização da mente

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Academic year: 2021

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(1)Encontro Revista de Psicologia Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007. A COLONIZAÇÃO DA MENTE THE MIND’S COLONIZATION. RESUMO Yeda Alcide Saigh Universidade de São Paulo ysaigh@uol.com.br. A conquista e a colonização da América é exemplo de encontro que mata, porque traz uma diversidade tão grande que o outro não pode suportá-la. Será que este risco existe também no encontro de duas mentes, numa análise? A partir da metáfora colonizador-analista versus colonizando-analisando, e mediante exemplos extraídos da experiência clínica, sugerem-se algumas categorias para classificar algumas das situações que analista e analisando enfrentam: colonização com identificação; colonização com guerrilha permanente; colonização com tirania pelo objeto idealizado; e colonização com assimilação e ‘progresso’, da qual a ‘deglutição’ antropofágica do colonizador pelo colonizado, como a vê Oswald de Andrade, poderia ser proposta como um modelo de desenvolvimento psicanalítico. A autora entrevistou alguns psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, a fim de enriquecer o trabalho e conhecer melhor suas idéias sobre o tema. Palavras-Chave: Antropologia, história, lingüística, psicanálise, colonização.. ABSTRACT. Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP. 13.278-181 rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE. The conquest and colonization of America is an example of a meeting that kills, because it implies a close contact of such a great diversity that the other cannot stand it. Could a similar risk be detected also in the contact established between two minds, in an analysis? From the metaphor of the colonizer-analyst versus the colonized-patient, and with examples from her clinical experience, author proposes four categories to classify some of the relation that analyst and patient often face: colonization with identification; colonization with permanent guerrilla; colonization with tyranny by the idealized object; and colonization with assimilation and ‘progress’, of which author proposes as a model of psychoanalytical development the symbolic anthropophagical ‘swallowing’ of the colonizer by the colonized, as a Brazilian poet Oswald de Andrade, puts it. The author interviewed some psychoanalysts of the Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, with the aim to enrich the work and know better their ideas about the theme. Keywords: Anthropology, history, linguistic, psychoanalysis, colonization.. Artigo Original Recebido em: 12/05/2007 Avaliado em: 20/05/2007 Publicação: 27 de outubro de 2008 187.

(2) 188. A colonização da mente. A verdade aí não é aquilo que é, mas aquilo que se dá: acontecimento. Ela não é encontrada mas sim suscitada: produção em vez de apofântica. Ela não se dá por mediação de instrumentos, mas sim provocada por rituais, atraída por meio de ardis, apanhada segundo ocasiões: estratégia e não método. Deste acontecimento que assim se produz impressionando aquele que o buscava, a relação não é do objeto ao sujeito de conhecimento. É uma relação ambígua, reversível, que luta belicosamente por controle, dominação e vitória: uma relação de poder. (Foucault, 1979, p.114-5). O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. (Foucault, 1979, p.8).. A idéia de escrever esse trabalho me ocorreu quando li sobre os 500 anos da descoberta da América. Em A conquista da América: A questão do outro, o lingüista búlgaro Tzvetan Todorov (1991) discute aspectos muito interessantes deste tipo especial de contato entre duas civilizações, em que cada uma dá à outra o que tem e recebe o que não tem – de hábitos e práticas sociais, a doenças incuráveis. Ou, em outras palavras, um tipo especial de contato entre dois mundos, em que ambos procuram encontrar o que conhecem e expõem-se – sabendo disto, ou não – ao risco de encontrar o inimaginável. A prática da psicanálise também pode ser descrita como o encontro de dois mundos – o mundo do analista e o mundo do analisando –, no qual se aproximam e interagem duas culturas aparentemente semelhantes, mas na qual há raízes diferentes, porque analista e analisando vêm de núcleos familiares diferentes. Nesse encontro, as duas culturas expõem-se uma à outra, embora de modos diferentes. E também aqui pode surgir o que Todorov chama de “o inimaginável”. Ao ler essas considerações, relacionei com a prática da psicanálise, composta de dois mundos: do analista e do analisando, onde também ocorre o encontro de duas culturas aparentemente iguais, mas que carregam raízes de ordem coletiva (nucleio familiar, principalmente). Ambos se expõem, tal qual a defesa de Todorov, mesmo com a possibilidade de provocar o surgimento de situações inusitadas (para o autor: o “inimaginável”). Todorov (1991) considera que, devido às viagens marítimas para Ásia e África, os conquistadores europeus estavam mais preparados para a diversidade e tinham maior "abertura de espírito" (por terem tomado a iniciativa; o outro foi invadido) do que os índios americanos. Em outras palavras, pode-se dizer que os conquistadores tomaram a iniciativa que criou o encontro. E a América foi invadida. Os habitantes originais da América, ao perceberem que os estrangeiros não eram inferiores e que não poderiam ser submetidos, muito rapidamente passaram a. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197.

(3) Yeda Alcide Saigh. divinizar algo que, até então, lhes fora apenas desconhecido – a divinização refere-se ao lugar em que o paciente coloca o psicanalista? Seria isto? O processo de divinização do desconhecido não durou muito, mas se manifestou num momento crucial da relação entre estrangeiros e nativos: o momento inicial, logo ao primeiro contato, e deu uma grande vantagem aos estrangeiros porque permitiu-lhe tomar a iniciativa da conquista. Neste momento do processo, como diz Todorov: "a capacidade de reconhecer o outro foi imediatamente colocada a serviço da conquista” (1991, p. 183). Mantenho o pareamento das idéias ao entender que o analista, por conhecimentos específicos (equivalente às viagens marítimas), tem maior “abertura de espírito” invadindo a psique do analisado; não é incomum também este enaltecer aquele, ao colocar-lhe a auréola de onipotência (para o autor, a divinização) oportunizando a “entrada” do analista. Registra-se um trabalho clínico que essa visão de semi-deus tem curta duração; é o momento que o analisando passa a reconhecer o outro como outro na expectativa de também ser visto como tal, emergindo da submissão. Mas, se analisamos mais detidamente as circunstâncias que cercaram o primeiro contato entre europeus e americanos, podemos ver que o encontro com o desconhecido não teve efeitos só sobre os que, para Todorov, tinham menor "abertura de espírito", mas também sobre os conquistadores. Colombo era um homem de fé mística, de espírito medieval. Ao voltar para a Espanha, pôs-se a compilar profecias antigas nas quais estava convencido de que sua descoberta havia sido prevista, incapaz, também ele, de aceitar o caráter de novidade absoluta do encontro com os povos americanos. Montezuma, o imperador dos Astecas, teve o mesmo comportamento: quando lhe disseram que estrangeiros barbudos haviam chegado à costa, foi consultar os livros, à procura da previsão daquele acontecimento Com pequenas diferenças de detalhe, é o mesmo comportamento que têm muitos de nossos pacientes frente a uma descoberta: ansiosos pela origem, buscando garantia para o futuro não se apercebem imediatamente de que o todo é fruto de um processo, com inúmeras variáveis, geralmente carregadas de forte carga de influência. O pensamento simplista se coloca. Aparentemente a equação parece ter se esclarecido: agarra-se ao passado ou futuriza situações. Lembrame o pensamento mágico da criança que une causa/efeito; pauta-se na concretude e delega para o fator tempo as circunstâncias que a envolve. Despe-se assim da responsabilidade sem dar-se conta que é o ator da própria vida. Duas situações se contrapõem: o momentâneo conforto emocional dá lugar à anulação meritória de si mesmo. Fico a me perguntar se esta postura encobre algo que os ameace simplesmente por eleger o desconhecido como algo que ameaça.. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197. 189.

(4) 190. A colonização da mente. Quantas vezes, em minha experiência clínica, vi pacientes que, em momentos de desespero, procuraram cartomantes, videntes, astrólogos, na esperança de poder prever o que estava para acontecer, ou de conhecer mais sobre o passado e, assim, sentirem-se mais fortes, mais aptos a 'reconhecer' algo que os ameaçava justamente porque lhes parecia totalmente novo. Montezuma, Colombo e estes pacientes que todos conhecemos encontram, nesses processos de reduzir o novo ao velho, um alívio momentâneo. A mesma experiência de encontro entre dois mundos – em que um, à primeira vista, empreende a conquista e o outro, também à primeira vista, deixa-se conquistar – pode ser analisada ainda por outros ângulos. Colombo também era amante de descobertas, de viajar, de admirar a natureza, como um romântico, como um homem do século XIX ou do século XX. Dito de outro modo, o homem que teve de recorrer ao passado mais remoto para poder suportar o novo que lhe parecia absoluto era, ao mesmo tempo, o desbravador, o empreendedor, o conquistador, um homem, afinal, a quem o medo do novo não paralisava, um ser heterogêneo, complexo. Trata-se da convivência com a ambigüidade, com a incoerência, com aquilo que se deseja, mas teme-se, sob o olhar analítico. Considerados os 'conquistados', ainda na experiência das ditas Grandes Conquistas dos séculos XIV e XV, há aspectos que não se podem deixar de levar em conta: os povos derrotados foram dizimados, a maioria dos índios morreu por doenças trazidas pelos estrangeiros e, o que me parece muito importante, perderam a voz. Não a tivessem perdido, a história das conquistas que conhecemos teria outros heróis e, provavelmente, outras vítimas. Um dos efeitos mais negativos do ato da comunicação – que exige o encontro de dois 'diferentes' – é a uniformização: a diferença entre sociedades e indivíduos se apaga, começa a sociedade de massas. A conquista da América é exemplo de um encontro que mata – seja porque traz uma diversidade tão grande que se torna insuportável, seja porque uniformiza vencedores e derrotados no diapasão dos vencedores e reduz à mudez os derrotados. Há algo de trágico neste símbolo: um encontro de homens que pode provocar a morte de um, de outro ou de ambos. Nesse ponto, uma questão se coloca: até que ponto a voz do analisando se cala frente à colonização plantada pelo analista. Se assim for, trata-se de algo benéfico ou não? Poderia inferir que a colonização está a serviço da morte de algo insuportável para dar lugar a algo menos dolorido?. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197.

(5) Yeda Alcide Saigh. O que tento neste trabalho é, como diz Luiz Tenório de Oliveira Lima (2005), deslocar o significado destas reflexões e, pelo deslocamento, criar outra metáfora, que nos ajude a pensar sobre a atividade do par analítico: será que se pode pensar o processo analítico em termos de colonizador, colonizado e processo colonizatório? Consideradas as 'regras' da conquista e da colonização, a que tipo de risco se expõem analista e analisando? São perguntas que, para mim, ainda não têm resposta e não sei se algum dia terão. Sei, contudo, que há pacientes que idealizam seus analistas que copiam suas idéias – até sua aparência, seu modo de falar ou de vestir ou de pensar – sem sequer temer que suas próprias idéias – sua aparência, seu modo de falar ou de vestir ou de pensar ou de ser – sejam sufocadas. Segundo Todorov (1991), foi a superioridade da comunicação dos europeus que permitiu a conquista da América e a conquista da América implantou, no mundo, um novo tipo de comunicação. A manipulação do outro passou a ser tarefa da comunicação e, quando bem-sucedida, um de seus grandes méritos: tudo passou a ser feito em nome da eficiência. Atrelado a essas ideologias, o homem contemporâneo tem forçado a história a se repetir, porque insiste em "fazer sempre as mesmas coisas." Em psicanálise, o nome deste fenômeno, identificado por Freud, é "transferência". A "transferência" é uma batalha previamente perdida, é a reedição do passado para transformar o futuro em pretérito perfeito. A "transferência" é filha do medo de enfrentar o novo. (Zuzman, 1992). Se a metáfora que estou tentando construir for possível – e sem esquecer que todas as metáforas são, sempre, só parcialmente verdadeiras –, o encontro de duas mentes para o trabalho analítico poderá, sob muitos aspectos, ser 'lido' como uma modalidade diferente de um eterno esforço de conquista ou, às vezes – digamos –, de colonização pós-conquista: seja a conquista do analisando pelo analista, seja a conquista do analista pelo analisando, seja a conquista da dor e do sofrimento do analisando pelo par analítico, seja a conquista do analisando pelo próprio analisando. Partindo da premissa de que o colonizado é mais fraco — ou está, circunstancialmente, momentaneamente, em estado de maior debilidade — que o colonizador, o analisando, por definição, é — ou está — também mais fraco que o analista. O analisando procura o analista para ser ajudado e se submete a seus horários, preços e maneira de trabalhar, tudo isto sem sequer uma mínima garantia de que extrairá algum benefício do próprio sacrifício, ou investimento. Podemos considerar esta afirmação como conceito vigente ou como reflete Mário Lúcio A. Baptista (1994): por que não se. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197. 191.

(6) 192. A colonização da mente. poderia pensar que a psicanálise seja também a única modalidade de conquista e de colonização pós-conquista em que o colonizado tenha de procurar alguém que o ajude a conquistar-se e a colonizar-se, para poder ser livre ou ser dado como livre – lembrando que a psicanálise e a bruxaria são as duas únicas profissões que obrigam os formandos a se submeterem, antes de formados, ao que vão praticar depois de formados. A empreitada não está livre de riscos. Além do perigo da idealização do analista – que decorre do desespero em que se encontra quem procura uma análise – me ocorre também um outro perigo: o da diferença que, fatalmente, haverá entre os propósitos de analista e analisando que se encontram no par analítico. O exemplo, que serve de boa ilustração neste caso, é de Claude Levy-Strauss (2000/1952), ao tratar de algumas situações de encontro entre colonizador e colonizando, das muitas que analisou em seus estudos antropológicos. Há curiosas situações em que dois interlocutores não se podem entender por não terem, antes do encontro, acertado termos ou condições. Alguns anos após o descobrimento da América, os espanhóis enviavam às Grandes Antilhas comissões de investigação para descobrir se os índios tinham alma ou não. Os índios, por sua vez, destacavam grupos para caçar os brancos, aprisioná-los e afogá-los, para descobrir, numa investigação prolongada, se os cadáveres brancos se putrefaziam como os demais cadáveres de animais que conheciam. (Levy-Strauss, 2000/1952) – o que permite lançar a hipótese de analista e analisando dentro de um processo exploratório, em movimento dialético. Mesmo considerando que a sessão de análise trata-se do encontro de duas pessoas que não se conhecem, que nunca se viram e que muito pouco sabem uma da outra para terem uma conversa diferente de todas as que o analisando e o analista já tiveram e, em conjunto, diferente de todos os outros tipos de interação, há o propósito (por parte de ambos) de estabelecer um foco para que o analisando se conheça melhor e portanto, venha lidar mais adequadamente com suas angústias, com seus problemas. Ao pressupor que esta dimensão seja a estabelecida, questiono: será que o que nossos pacientes vêm procurar é o mesmo que pensamos em oferecer? Ou, melhor dizendo, será que o que procuram é o que queremos dar ou temos para dar ou podemos dar? É uma situação que não me parece essencialmente diferente do encontro de duas culturas: a do conquistador e a do conquistando, ou do colonizador e do coloni-. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197.

(7) Yeda Alcide Saigh. zando, colhido em instâncias individuais, ou 'aos pares', cada elemento do par com suas histórias de vida, seus costumes, suas certezas, suas dúvidas, suas tradições Afinal, [...] quando estamos interessados num certo tipo de progresso reservamos seu mérito às culturas que o realizam no mais alto ponto, e nos mantemos indiferentes diante das outras. Assim, o progresso nunca é outra coisa senão o máximo de progresso num sentido determinado pelo gosto de cada um. (Levy-Strauss, 2000/1952, p. 23). CONSIDERAÇÕES CLÍNICAS E TEÓRICAS Pretendo com estes exemplos mostrar algumas situações que me fizeram refletir sobre o perigo de, sem me dar conta, estar ‘colonizando’ um paciente. São exemplos que foram sendo selecionados ao longo desses anos, desde quando o assunto começou a me interessar.. Caso 1 Fui chamar uma paciente na sala de espera e quando a vi subir a escada, me assustei, porque me vi. Até então eu não havia reparado o quanto ela estava parecida comigo: comprimento do cabelo, maneira de se vestir, de andar etc. Depois deste fato fiquei mais atenta e percebi que ela, às vezes, parecia-me que sem pensar, repetia, absolutamente sem modificá-la, alguma frase que eu acabara de dizer. Quando eu apontava esse fato, ela dizia não ter se dado conta. Na mesma época, outra paciente, ao cruzar com ela, que saía do consultório, entrou e me disse: “Tomei um susto. Pensei que fosse você que estivesse saindo!”. Na medida em que a paciente imita a analista e se identifica com ela e, portanto se sente colonizada, ela pode também devorar a analista, transformar, e obter como resultado alguma coisa que passa a ser ela própria e não mais a analista. Este processo está ligado às teorias da introjeção e da identificação, além da questão da imitação. À parte o risco de uma simples imitação e de a paciente adotar o ponto de vista do 'colonizador', pode-se iniciar uma verdadeira transformação. Se isto é possível a paciente evolui, incorporando novos valores, assimilando novos elementos e transformando-os. Não sendo possível a transformação, a paciente apenas repete, imita sem assimilar os valores imitados O modelo da colonização é dinâmico, supõe uma evolução. Na verdade toda criação é imitação transformada, porque ninguém é Deus, ninguém cria ex nihilo. No caso desta paciente, ela está repetindo um modelo interno, dela, de colonização, talvez de ter sido ‘colonizada’ pela mãe, ‘colonizada’ pelos pais.. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197. 193.

(8) 194. A colonização da mente. Caso 2 Homem 32 anos. Procurou análise dois anos depois da morte do pai, com sintomas de depressão profunda. O que me chamou mais a atenção foi a maneira como se referia ao pai, como ele e o pai ainda vivessem em guerra permanente. Há um oposto da colonização que é um estado de rebeldia permanente contra o colonizador, uma espécie de contencioso, de litígio eterno. No plano histórico, corresponderia ao nacionalismo (no caso de uma guerra para manter juntos os 'nativos' ou os iguais) ou a xenofobia (no caso de uma guerra para afastar os 'estrangeiros' ou os diferentes). Nos dois casos há uma resistência a qualquer possível influência benéfica a ser auferida ou dos diferentes (no caso do nacionalismo) ou dos iguais (no caso da xenofobia). No caso deste paciente, parece haver uma grande resistência à figura do pai e parece haver, também, uma grande resistência à figura da mãe. Na situação de análise, este paciente estabelece um contencioso também com a analista. Porque não ‘pode’ imitar nem a mãe nem o pai nem a analista, passa a viver numa situação de guerrilha permanente, que nunca evolui e que o impede de desenvolver-se. O desenvolvimento pressupõe a assimilação, a qual por sua vez supõe a integração ou, nos termos de Bion (1970), “ps x d”.. Caso 3 Mulher, 38 anos. Veio de uma análise de nove anos que foi interrompida pela analista, por motivos de força maior. Pareceu-me que nesta análise estivesse estabelecida uma relação parasitária. Neste tipo de relação o parasita é vítima da dependência: sua sobrevivência depende de ele manter-se ligado ao hospedeiro. A separação, neste caso é uma ameaça de caos absoluto. O desfecho da primeira análise foi dramático, com muito sofrimento. Ao chegar, a paciente estava em profunda depressão. A paciente coloca na analista o lugar do ideal de ego e passa a sentir-se tiranizada por este ideal de ego, por conseqüência, passa a sentir-se tiranizada pela analista. A paciente fica despojada de todas as qualidades. O objeto externo, a analista, como depositária do ideal de ego, fica revestida destas qualidades, passa a ser depositária do ideal de ego. A paciente não se sente, portanto, tiranizada por alguma necessidade sua, mas pela analista. O ideal de ego, posto no objeto, jamais corresponde às expectativas da paciente. É um caso de ‘colonização antropofágica’, mas literal, sem metáfora, no qual a analista está exposta a graves riscos de agressão. Quando a introjeção e a assimilação do objeto são impossíveis, a pessoa acredita que só há uma solução para se livrar. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197.

(9) Yeda Alcide Saigh. deste objeto tirânico: matá-lo. É, nos termos de Bion, o objeto tantalizador, que detém o poder de satisfazer ou não.. CONCLUSÃO Tentei mostrar nesse ensaio o quão representativa é a relação do par analista/analisando cujo objetivo maior é a busca pela identidade. Ao mesmo tempo que me atenho a esse conceito, não nego a possibilidade de nós, analistas, estarmos fazendo uso da colonização ao transformar o analisando em refém dos nossos conhecimentos considerando a sedução como uma dos mais poderosos artifícios. Contraditoriamente, também busco enxergar os benefícios da colonização, quando vista como meio facilitador da identificação: imitação, ingestão, transformação, apresentando similaridade com a mescla ocorrida entre brasileiros e índios, iniciando o processo da identidade nacional. Para tanto, fiz uso da analogia como instrumento ilustrativo. O ser humano busca o crescimento e desenvolvimento para se sentir autônomo. Busca auxílio na Psicanálise, como tentativa de evitar e de controlar o sentimento doloroso da experiência humana. Para aumentar a capacidade de ajudá-lo, o analista não pode compactuar com essa ilusão e deve levar seu analisando a ‘ver’ o quanto ele se empobreceria sem sua desvalia, se fosse possível evitar, de fato, a dor da vida. Uma vez que o que é próprio do ser humano não pode ser evitado, o analista oferece ao analisando uma oportunidade de ele enriquecer-se psiquicamente, aproveitando e transformando seu sofrimento mental e, assim, de administrar de modo mais favorável ao analisando as suas próprias experiências de vida para, quiçá, viver de forma melhor e mais criativa. O analista – embora sendo o propiciador do movimento transferencial – não pode alterar as marcas psíquicas delimitadoras da expressão do paciente. Marcas provenientes das vivências psíquicas ocorridas ao longo da vida e que, por não possuírem uma cronologia, podem ser associadas e presentificadas. Embora alguns exemplos citados e/ou paralelos traçados estejam baseados na força concreta (dado de realidade – no caso dos conquistadores versus conquistados do Novo Mundo) e do modelo colonizador versus colonizando estar sobrecarregado de conotações de poder, de confronto, entre um forte e um fraco quero enfatizar que o termo colonização, como metáfora não implica necessariamente nem domínio absoluto nem o simples exercício do poder.. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197. 195.

(10) 196. A colonização da mente. Espero que este trabalho sirva, pelo menos, para sugerir algumas categorias, de termos metafóricos, mas expressivos, que permitam classificar algumas das situações que analista e analisando enfrentam. Dentre estas categorias, encontram-se as seguintes: colonização com identificação (expresso no caso 1); colonização com guerrilha permanente (ilustrado no caso 2); colonização com tirania pelo objeto idealizado (retratado no caso 3) e colonização com assimilação e ‘progresso’. Para voltar ao modelo histórico, esta última categoria (colonização com assimilação e progresso) corresponderia ao que Oswald de Andrade (1995/1928) chamou de ‘antropofagia’: o indígena tupi que ‘deglutiu’ o colonizador. Nós somos descendentes de colonos europeus, mas, ao mesmo tempo, conservamos nosso patrimônio inicial – a herança indígena. Tudo isto, devidamente deglutido e transformado, é o que hoje sentimos como uma identidade, talvez ainda precária, mas que é a nossa identidade nacional brasileira. Assim também ocorre na relação psicanalítica: quando a assimilação ultrapassa o patamar da imitação, nos deparamos com o progresso e com conquistas emocionais, por ter o analisando conseguido devorar e deglutir o que foi visto, transformando-se em alquimista de si próprio.. REFERÊNCIAS Andrade, O. (1995). Obras completas: A utopia antropofágica. São Paulo: Globo (trabalho original publicado em 1928). Barros, E. M. da R. (1992) A situação analítica: algumas reflexões sobre sua especificidade. IDE, v.22, p.18-27. Baptista, M. L. A. (1994) O poder da fala do poder: A fala do poder da fala. IDE,v.24, p. 52-64. Bion, W. R. (1970/1973). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago. Freud, S. (1937) Análise terminável e interminável. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 23. Rio de Janeiro: Imago: 1975. p.247-87. Figueira, S. A. (2005). Comunicação pessoal. Foucault, M. (1979) Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. Hermann, F. (2002). Comunicação pessoal. Levy-Strauss, C. (2000). Raça e história. Lisboa: Presença (trabalho original publicado em 1952). Lima, L. T. O. (2005). Comunicação pessoal. Melhson, I. (2005). Comunicação pessoal. Todorov, T. (1991) A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes. Zuzman, W. (1992) Quando as classes dançam. Jornal do Brasil, Caderno Idéias, de 8 de março de 1992.. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197.

(11) Yeda Alcide Saigh. Yeda Alcide Saigh Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.. Encontro: Revista de Psicologia • Vol. XI, Nº. 16, Ano 2007 • p. 187-197. 197.

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