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Considerações acerca da educação através dos provérbios em latim na Baixa Idade Média

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Classica, São Paulo, v. 15/16, n. 15/16, p. 215-230, 2002/2003. 215

Considerações acerca da educação através

dos provérbios em latim na Baixa Idade Média

ÁLVARO ALFREDO BRAGANÇA JÚNIOR

Departamento de Letras Anglo-Germânicas - Setor de Alemão

Faculdade de Letras

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: Aa contribuição da Idade Média para a organização do pensamento educacional ocidental pode ser depreendida por várias vertentes, desde os currícula das escolas dos mos­ teiros e das abadias até o sistema das artes liberales universitárias. Entretanto, uma das formas mais eficazes de se fornecer os rudimentos culturais aos discípulos, especialmente os do baixo medievo, assentava-se na compilação de exercícios escolares, usualmente em forma de dísticos rimados, que continham uma fundamentação eminentemente teológica presa aos preceitos da Igreja. Esses futuros clerici, instruídos por tal modelo propedêutico, transmitiriam no púlpito as lições passadas por seus mestres. Configurava-se assim a proverbialização oral desses textos escritos em uma prática cotidiana, que unia o educare o saber ao poder, formalizando através desse modelo instrucional os ideais da alta cúpula da Igreja.

PALAVRAS-CHAVES: Paremiologia medieval; Latim medieval; Baixa Idade Média germanófona; Igreja medieval; História da educação

1. Introdução

O m undo intelectual m edieval hauria nas fontes clássicas a seiva para a sua ciência. Todas as esferas do saber hum ano procuravam nos antigos o ponto de partida para suas especulações científicas. E sse ideal de educação, do real ex ducere rom ano, presentificava- se no estu d o das aucto rita tes greco-rom anas. E rnest R obert Curtius (1957, p. 60), ao q u es­ tionar o qu e a Idade M éd ia buscava nos autores clássicos, responde:

São, em prim eiro lugar, para toda a Idade M édia, e ainda no século X V I, a u to rid a d e s cie n tíficas. A inda não há ciên cia m oderna. A p ren d e-se a m ed icin a em G aleno, a história universal em Orósio. Em vez de m uitos exem plos, apenas um. N o program a de estudos hum anísticos, que R abe- lais insere no seu rom ance, para criticar a educação do fim da Idade M édia, está p rev isto que nenhum a hora do dia se passe sem instrução. D epois do

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repasto de P antagruel, discutem -se as qualidades de todos os alimentos, aliás em continuação a passagens escolhidas de Plínio, A teneu, Dioscórides, Júlio Pólux, Porfírio, O piano, Políbio, H eliodoro, A ristóteles ‘e outros’. D u ran te o passeio, são observadas as plantas, segundo Teofrasto, Marino, N ica n d er e M acer. Para recreio, sentam -se num a cam pina e recitam versos das G eórgicas de Virgílio, de H esíodo e do R usticus de Policiano.

N o cam po da literatura, tam bém autores com o O vídio e H orácio eram leituras pre­ sentes indisp en sáv eis. E ntretanto, o autor de Sulm ona e o poeta venusino proporcionavam aos seus leitores m uito m ais que um m ero deleite artístico: desejava-se conhecer a fundo as “liçõ es” m orais con tid as em seus textos. A m áxim a horaciana O derunt peccare boni virtutis

am ore - “O s bons se aborrecem em com eter faltas por am or da virtude” era constantemente

citad a e O vídio foi co nsiderado o poeta sententiarum flo rib u s repletus - “cum ulado com a n ata das sen ten ças.” (C urtius, 1957, p. 61).

A Idade M édia precisava do em basam ento clássico, de seu engenho e de seus próceres. D isto resulta, citando C urtius (1957, p. 61), que ela nos legou, “postas em ordem alfabética, coleções de sentenças, em que se m isturam pensam ento antigo e m edieval. Oferecem-nas ao leito r m oderno os L a teinische S prichw ôrter und Sinnspriiche desM ittelalters de Jakob W erner (m ais de dois m il e quinhentos núm eros). Essas coleções eram usadas com o preparo para o recreio do esp írito e da inteligência” .

A ob ra de Jakob W erner, inserida na Sam m lung m ittellateinischer Texte (Coleção de textos de latim m edieval), volum e 3, pertence à tradição parem iológica das grandes compi­ lações de provérbios, que os indexam alfabeticam ente e m uitas vezes, (não se tratando aqui do caso), os dividem em cam pos do conhecim ento h u m an o .1

N o século X IX , com a valorização do elem ento popular na form ação da cultura so­ cial, o folclore e as tradições do povo foram objeto de pesquisa, na busca de raízes de uma identidade nacional. N a A lem anha e na parte de língua alem ã da Suíça, terra natal de Werner, o espírito de u nidade cultural, alcançado no plano político pela fundação do Im pério Ale­ m ão em 1871, levou grande parte de linguistas e filólogos a se interessar po r traços caracte­ rísticos de um D eutschtum , (“ germ anism o”). Karl Friedrich W ilhelm W ander organizou e levou ao prelo os 5 volum es de seu D eutsches Sprichw õrterlexikon (Léxico dos Provérbios A lem ães) en tre 1863 e 1880. Ida von D iiringsfeld e O tto von R einsberg-D iiringsfeld publi­ caram os 2 v olum es de seus Sprichw ôrter d e r germ anischen und rom anischen Sprachen (P rovérbios das línguas germ ânicas e rom ânicas) entre 1872 e 1875. (W erner, 1912, p. III) E ste últim o trabalho, de cunho com paratista, possibilitaria a abertura para estudos mais específicos sobre outras línguas. A. O tto, com seus D ie S prichw ôrter un d sprichwôrtlichen

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1 A partir da década de 70 desenvolveu-se, primeiramente na Rússia com Permjakov, a chamada “Pesquisa Empírica de Provérbios” (em alemão empirische Sprichwortforschung), que se ca­ racteriza por uma abordagem metodológica diferente daquela constituída pela mera listagem dos mesmos. Sobre isso ver Grzybek (1991: 243-4) e Grzybek & Chlosta. In: Proverbium 10 (1993, p. 89-128).

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R edensarten d e r R õ m er (O s provérbios e expressões proverbiais dos rom anos), de 1890, foi

um m arco neste sentido. Jakob W erner ocupou-se das parêm ias em latim m edieval. A s fontes docum entais do trabalho de W erner são sete m anuscritos, a saber: a) m anuscrito B - A .X I., B iblioteca da U niversidade de B asel, Suíça. W erner co n si­

d era a redação do m esm o com o tendo sido feita no prim eiro quartel do século XV. T rata-se de um a coleção de, na m aioria das vezes, sentenças de duas linhas ord e­ nadas alfabeticam ente, ao lado das quais, com frequência, a fonte é citada; b) m anuscrito B a - o m esm o m anuscrito, porém , contém entre as folhas 236-283

um a coleção de sentenças, provérbios e citações de escritores clássicos, que, do m esm o m odo, são ordenados alfabeticam ente. O citado m anuscrito apresenta-se acrescido de aditam entos;

c) m anuscrito D - D arm stadt 2225, século X V (na capa, ano de 1410). A qui tem os o au to r d a seleção, G alfrido de Vino;

d) m anuscrito K - M unique, B iblioteca do Paço, século X III; e) m anuscrito P - Paris, B iblioteca N acional, Lat. 6765, século XII; f) m anuscrito Sch - M unique, B iblioteca do Paço e da C idade, século XII; g) m anuscrito SG - de S ankt G allen, B iblioteca do C onvento, século X V (1462). N o cô m puto geral, há quatro m anuscritos, que podem ser datados do século XV, dois m anuscritos do século X II e apenas um proveniente do século XIII. O estudioso suíço arrola 2533 provérbios, dentre os quais 1322 rim ados, ordenando-os a partir de sua prim eira letra, não separando aqueles iniciados por i e j e u e v. A incidência de provérbios por letra é a seguinte: L etra A: 146 ocorrências; L etra B: 33 ocorrências; L etra C: 221 ocorrências; L etra D: 189 ocorrências; L etra E: 154 ocorrências; L etra F: 86 ocorrências; L etra G: 36 ocorrências; L etra H: 55 ocorrências; L etras I e J: 159 ocorrências; L etra L: 77 ocorrências; L etra M : 104 ocorrências; L etra N: 307 ocorrências; L etra O: 101 ocorrências; L etra P: 150 ocorrências; L etra Q: 223 ocorrências: L etra R: 83 ocorrências; L etra S: 211 ocorrências;

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L etra T: 53 ocorrências; L etras U e V: 145 ocorrências.

E ste o púsculo do estudioso suíço resum e, por fim , condensando em suas cento e doze páginas, as lições culturais de quatro séculos da B aixa Idade M édia. Servindo como instrum ento did ático p ara os alunos das escolas e universidades de então, os proverbia fun­ cio n av am com o elem entos propedêuticos, não som ente do latim , ou de figuras de lingua­ gem , de retó ric a ou de adorno poético (com o a rim a), porém essencialm ente, de todo um legado u n iv ersal em basado pela Verdade cristã, condutora do hom em durante sua existência terrena.

2. A rima como traço medieval

K arl L angosch (1988, p. 67-68) assim sintetiza a função da rim a na poesia latina m edieval:

N ão se pode de antem ão m enosprezar a rim a com o artificial ou incómoda e d esv alo rizá-la face à poesia não rim ada; pelo contrário, ela precisa ser considerada com o ornam ento, cuja colocação exige do poeta num a escala considerável um esforço suplementar, especialm ente quando ele lida com ela artisticam ente, isto é, ele se esforça em não utilizar tão frequentemente a m esm a palavra e a m esm a rima, em não deixar o sentido sucum bir à obrigação da rim a, m as em jo g ar engenhosam ente com a rim a e fortalecer a arte. A p oesia rim ada estava, então, em voga, sendo com um a recorrência ao seu uso. C om o afirm a M aurice H élin (1972, p. 71), a vitalidade deste tipo de fazer poético espalhou- se por entre as cam adas cultas do p o p u lu s, se entendem os cultura aqui no sentido da ambiência in telectu al m edieval das universidades e escolas m onacais, podendo ser, em term os, a ela aplicada, com um a acepção que envolvia toda aquela com unidade linguística, o adjetivo “p o p u lar” :

P oesia popular? A expressão não é feliz, já que o latim não era nada mais que a língua dos clérigos. C ontudo, ela contém um a parte de verdade, se p o r isso se entende que esta poesia estava adaptada ao novo estágio do latim praticado dentro do meio letrado e pelos hom ens da Igreja, sem dúvida am bientes restritos, porém m uito ativos e possuidores do quase monopólio da cultura.

E ste jo g o artificial e pensado com a linguagem poética condizia, portanto, com as aspirações dos m a g istri m edievais, ao oferecerem aos seus d iscipuli a oportunidade de estu­ dar e ap ren d er com as a uctoritates da ciência na A ntiguidade, aprim orando o dom ínio do código escrito e in ternalizando as lições dos m estres do passado.

C urtius (1957, p. 60), após citar as “autoridades científicas” da Idade M édia, assim sum ariza o seu v alo r para a época:

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O s autores, todavia, não são som ente fontes de saber; são um tesouro da ciên cia e filosofia da vida. E ncontravam -se nos poetas antigos centenas e m ilhares de versos, que ofereciam , em form a condensada, experiências p sico ló g icas e regras de vida. ... Q uintiliano cham ava-lhes ‘sen ten ç as’ (propriam ente: ‘ju íz o s ’) por se assem elharem às decisões das corporações p úblicas... . E sses versos são ‘versos m em orandos’.

A finalidade m nem ónica encontrou na rim a e na versificação acentuai intensiva em latim m edieval u m eficaz m eio pedagógico.

3. Provérbios latinos medievais rimados: exemplos de

temáticas

O corpus de W erner apresenta, após o trabalho de seleção do m aterial, um repositório de parêm ias, cu ja incidência de determ inados eixos tem áticos corroboram a hipótese de uma fun cio n alid ad e didático-m oralizante das expressões proverbiais dentro da sociedade do baixo m edievo p o r nós estudada.

A tradição fabulística de Esopo, Fedro e A viano legou à hum anidade o uso de ani­ mais com o im agens refletidas, m etáforas do próprio hom em , com seus sentim entos nobres e vis. Joyce E. S alisbury em The beast within. A nim ais in the M iddle A g es salienta o papel dos anim ais para o próprio autoconhecim ento do hom em , pois quando “ ... as pessoas p o ­ dem v er um anim al agindo com o um hom em , a m etáfora pode ser eficaz nos dois sentidos, revelando o anim al dentro de cada ser hum ano.” (1994, p. 105). Intelectuais m edievais como B abrius, M arie de F rance, O do de C heridon, hom ens e m ulheres da Igreja, divulga­ vam estórias sobre anim ais que supostam ente instavam as pessoas a um a conduta m oral superior (1994, p. 105).

V árias foram as funções dos anim ais presentes nos textos m edievais. E ssencialm en­ te, as principais referiam -se a eles com o sím bolos do trabalho, de com ida e de paródia ao com portam ento hum ano. D entre eles, tem os o lobo, a raposa, o leão, o cão, o cordeiro, a serpente, o boi, o sapo, o burro, o m acaco, o gato, a cegonha, o esquilo e o veado. D os anim ais im aginários, abundantes tam bém na literatura da época, tem os o unicórnio, o d ra­ gão e seres am bíguos (m etade ser hum ano, m etade anim al), com o o centauro e a sereia.2

O s anim ais, portanto, veiculavam m ensagens que serviam para a reflexão do o u v in ­ te/leitor (se adotarm os a dualidade produção escrita, destinada a um público litteratus X oralidade, presente, por exem plo, na hom ilias e serm ões), m ensagens essas que estavam im buídas de um a sabedoria experiencial aliada à sabedoria prim eira oriunda do co n h eci­ m ento e ap licação diária da palavra de Deus.

A p alav ra bíblica assum ia o papel de instância prim eira e últim a para o hom em m e­ dieval. C om o p o nto de partida, as Sagradas E scrituras e com o ponto de chegada a própria

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vida, por elas reg u lam en tad a de acordo com a interpretação da Igreja. C om o afirm a Cláudia M ontillo (1993, p. 84), “a Idade M édia, dividida entre o pecado e a salvação, embebida do m aniqueísm o que sem pre im pregnou o C ristianism o, fam iliarizava-se facilm ente com os ensinam entos b íb lico s” . O s exem plos de C risto, dos santos e dos papas serviam de guias práticos de m oral. N aqueles tem pos, ser sábio era seguir e usar em sua vida diária a palavra de D eus, Verbo fu n d ad o r do universo e interpretado pela m a ter ecclesia, com o bem caracte­ riza Johan H uizinga (s.d., p. 221):

Q uando o hom em da Idade M édia quer conhecer a natureza ou a razão dum a coisa não a observa para lhe analisar a estrutura íntim a, nem para in q u irir sobre as suas origens; olha antes para o céu, onde ela brilha como idéia. Q u er se trate dum a questão política, m oral ou social, o prim eiro passo a d ar é red u zi-la sem pre ao seu princípio universal.

A tradição p arem io ló g ica cristã iniciou-se com os P rovérbios de Salom ão, cuja data de redação é incerta.3 E ste livro dem onstra que a aliança do hom em com D eus pode ser feita através do conhecim ento, aplicação e tem or para com Ele. C ultivar sentim entos nobres é a chave da sabedoria. C om o diz D erek K idner (1992, p. 31), é necessário

ser bom para ser sábio - em bora Provérbios se ocupe especialm ente em indicar o outro lado disto: que é necessário ser sábio para ser realmente bom , pois a bondade e a sabedoria não são duas qualidades que se pode separar: são dois aspectos de um a só unidade. L evando o assunto até às suas origens, é necessário ser p ied o so para ser sábio; e isto não é porque a piedade traz vantagens, m as porque a única sabedoria através da qual se pode tratar das coisas da vida diária conform e a natureza delas é a sabedoria através da qual foram divinam ente feitas e ordenadas.

C om a incorporação do legado cultural clássico e o desenvolvim ento de um a ciência m edieval em div erso s ram os do saber hum ano, com o A rquitetura, A stronom ia, Direito, Filosofia, G ram ática, H istória, M atem ática, M edicina, M úsica e R etórica, dentre outros, a tran sm issão desse novo conhecim ento despertou um a busca à sabedoria, quer através de discussões e d eb ates dentro das universidades e escolas seculares, qu er nas ruas e tavernas. C om o m o n u m en to m a io r da cultura de então tem os a Sum m a theologica, de São Tomás de A quino, onde a ciên cia do hom em é em basada pelo conhecim ento da sabedoria divina.

D estarte, o h om em m edieval une o profano ao sagrado para conseguir sabedoria através da relig ião (etim ologicam ente “religação”). O sagrado norteia a vida humana e o hom em (rei ou vassalo, nobre ou clérigo) precisa ter acesso à verdade cristã para poder sobreviver na Terra, enquanto aguarda a eternidade. Em cadernos escolares, os jovens cléri­ gos recebiam , em seus prim eiros estudos, provérbios, m uitos deles rim ados, que continham, em doses dim inutas, ensinam entos práticos para a vida. Esses m esm os clérigos, mais tarde padres e m onges, proferiam os m esm os diante da m assa não litterata para servirem de fío con­

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dutor de suas ações. Os provérbios refletiam atitudes, sentim entos, condutas, m odos de agir e de p en sar q ue conviriam ou não a um cristão. A m ensagem sim bólica daqueles ex p ressa­ ria e ju stific a ria o seu uso.

N o cam po da L iteratura, G récia e R om a forneceram para o m undo m edieval europeu autores, tem as e personagens. O vídio, Virgílio, C ícero, U lisses, H elena, Enéias, Tirésias, Baco, V ênus, dentre inúm eros nom es, entraram para a galeria de personagens m edievais com o arquétipos de autoridade, astúcia, beleza, coragem , sabedoria, prazeres m undanos e amor. O s co m pêndios de provérbios m edievais as incluem constantem ente, representando deuses pagãos ou sim ples m ortais, figuras heróicas ou vilãs, que fazem parte da história universal. Seus co m portam entos são m otivo de reprim enda ou louvor e caberá ao hom em “saber” d iscern ir o que aquelas figuras universais trazem de contribuição para suas vidas no claustro, no p alácio e na casa sim ples.

A alusão a personagens da m itologia greco-rom ana dem onstra, da m esm a form a, o trabalho intelectivo com as fontes escritas, onde as m esm as se encontram . N o labor dos

scriptoria e nas salas de aula e átrios de igrejas e universidades, o elem ento cultural pagão

é assim ilado e com p reen d id o sob um a ótica cristã e exercerá a função de espelhar vícios e virtudes com uns a q uaisquer hom ens, em quaisquer épocas.

A caracterização do papel da m ulher dentro da sociedade m edieval apresenta-se com o extrem am ente rica em detalhes. E m linhas gerais, podem os vislum brar dois tipos de p o sici­ onam ento social em relação à m ulher. Sob um prim eiro ponto de vista, citando A urélio G onzález,

te m o s a v isão de p ad res d a Ig reja com o São Jo ão C risó sto m o , Santo A ntonino, São João D am asceno ou São Jerônim o, para quem a m ulher pode ser soberana peste, p o rta do inferno, am or do diabo, larva do dem ónio ou fle c h a do diabo, posição que indubitavelm ente im plica na consideração da m u lh er com o fonte do pecado.4

A o pinião eclesiástica, a princípio, não seria favorável à figura fem inina. U m a figura fem inina, rep resen tad a po r Eva, tinha conduzido a H um anidade para o pecado, afastando-a do cam in h o do C riador. D o m esm o m odo, porém , C risto, o redentor da H um anidade p eca­ dora, aquele que veio à terra restituir a união entre filhos e Pai, foi gerado pelo E spírito Santo no ven tre de um a m ulher virgem e sem m áculas, M aria. E ste exem plo de m ulher poderia re sg a tar o próprio sexo fem inino de sua antepassada pecadora. Sua vida é digna de ser can tad a e im itada, tanto em igrejas quanto em cortes, e a união da m ulher espiritual com a dam a da n o b reza im pulsiona a produção literária da época.

C om o vem os, então, a lírica m ariana e o am or cortês enobrecem a m ulher. A p rim ei­ ra, por relacio n ar e ressaltar as qualidades de M aria com o m ãe de C risto, tais quais pureza, hum ildade, bondade, piedade, abnegação, resignação, dentre outras. M aria tom ou-se a regina

m undi e, p a ralelam en te ao culto m ariano, desenvolveu-se em fins do século X I e início do

século X II n a reg ião da Provença, um tipo de lírica que podem os caracterizar nas palavras

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de A urélio G onzález (1991, p. 36) com o “feudalism o de am or” , onde vigorava todo um código de com portam ento artificial, estilizado, baseado na hum ildade, subserviência do hom em à m u lh er e na “cortesia” . D a P rovença, passando pelas terras do Sacro Império R om ano-G erm ânico, chegando até à P enínsula Ibérica, a lírica tro v ad o resca e suas canções de am or e de am igo celebravam a m ulher e o am or desejado.

E ssa figura fem inina, entretanto, surgia com frequência nos proverbia m edievais sim­ bolizando o m al, razão p ela qual acreditam os num a elaboração eclesiástica dos mesmos.

D e s ta rte , a c o n s ta ta ç ã o da o c o rrê n c ia de q u a tro e ix o s te m á tic o s , os quais se prendem à utilização de anim ais com o veiculadores de m ensagens m orais de cunho cristão, parêm ias estreitam ente ligadas às lições bíblicas, elem entos da A ntiguidade greco-latina redim ensionados, portadores de novas m ensagens de fundam entação cristã e provérbios refe­ rentes à figura fem inina, leva-nos à análise de um a parêm ia pertencente a cada grupo, no que concerne, essencialm ente, aos principais aspectos literários e culturais pertinentes.

3.1 Mundo animai

P ro v érb io :D um lupus in stru itu r in num en credere m agnum,

S em p er d irig itu r o cu li respectus a d agnum . (m anuscrito B) Tradução: E n quanto o lobo se instrui em crer em um grande poder,

A atenção do seu olho sem pre se dirige para o cordeiro.

A p a rtir do século X II, “os anim ais tom am -se im portantes com o m etáforas, como guias para as verdades m etafísicas, com o exem plares h u m an o s” . D este m odo, Joyce Salis- b ury (199, p. 103) trata a questão da utilização de anim ais para representar características hum anas.

N este dístico com posto em versos collaterales aparecem dois dos m ais importantes anim ais p resen tes n a sim bologia m edieval. P or um lado, o cordeiro, dentro do ideário cris­ tão, rem ete-n o s à figura do agnus D ei, o cordeiro de D eus, Jesus C risto. Joyce Salisbury assim sin tetiza a opinião corrente m edieval a esse respeito:

C risto foi tanto o cordeiro de D eus quanto o bom p asto r ju n tan d o os bons ao rebanho. O cordeiro perm aneceu com o sím bolo p ara o m elhor no auto- sacrifício conform e a tradição cristã. S. Francisco (sem pre sim pático a todos os anim ais) g ostava particularm ente dos cordeiros, porque, com o escreveu seu biógrafo S. Boaventura, os cordeiros “ apresentam um reflexo natural da m iseric o rd io sa b o ndade de C risto e o rep resen tam no sim bolism o das E scritu ras” (1994, p. 132).

E n tre ta n to , um a o u tra co n sid era ção sobre o anim al, a p a rtir de um p o nto de vista m ais lig ad o à natu re za, ap resen ta -n o s o cord eiro com o v ítim a n atural de seus predadores, m o rm en te o lobo. S egundo esta p ersp ectiv a, as ovelhas e “os co rd eiro s eram considera­ dos e stú p id o s e co v ard es, quase que m erecen d o aquilo que re c e b ia m ” (S alisbury, 1994, p.

132). P o r isso, lem os no m anuscrito B a 53,

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Si lupus est agnum , non est m irabile m agnum .

N ão nos cau sa grande adm iração, se o lobo com e o cordeiro.5

O papel do lobo dentro da im agística m edieval prende-se ao caráter negativo a ele atribuído. D esde a fáb u la 1 do livro I de Fedro, cujo título seria Lupus et agnus, já se tom a­ ria c o n h ecim en to sobre seu papel de dom inador inescrupuloso dos oprim idos. E le traria injustiça à o rdem social em virtude de sua excessiva ganância, que lhe fez perder sua n obre­ za. In teressan te notarm os, com o afirm a Joyce Salisbury, que o lobo não era criticado por ser predador, j á que, “enfim , a guerra - ocupação predatória - era privilégio da classe nobre; era a razão para a sua existência. A quela classe favorecia seus anim ais de caça acim a de todos os ou tro s ...” (1994, p. 130). Todavia, a insaciável voracidade retiraria prestígio do anim al. A p esq u isad o ra am ericana assim cita a fábula m edieval do pregador e do lobo, que bem ex p licita o caráter de insaciabilidade do canis lupus:

N esta fábula, um pregador tenciona ensinar ao lobo o alfabeto (talvez para m elh o rar seu caráter). O lobo concentra m uito tem po seus esforços para a lc a n ç ar a letra C, m as quando ele é p erguntado sobre o q ue d ev eria pronunciar, ele responde “cordeiro” , revelando que sua m ente não tinha se libertado do seu estôm ago.(1994, p. 130-1)

E ste texto, portanto, segundo a autora, m ostraria a am eaça à hierarquia m edieval, a qual

p u n h a a nobreza no topo, e essa am eaça era o que os fabulistas criticavam e m su a s re p re s e n ta ç õ e s d o s h o m e n s a g in d o c o m o lo b o s. E le s não advogavam violar um a ordem social na qual regiam os predadores nobres, p orém tentavam insistir na m oderação, a qual, após tudo isso, seria o único je ito de p reservar um a tal ordem social. (1994, p. 131)

A denúncia, por fim , associaria então os cordeiros aos m enos favorecidos e os lobos aos m ais abastados, com o se depreende do final da seguinte fábula de M arie de France:

O lobo então apanhou o tão pequeno cordeiro, E straçalhou o pescoço, tudo extinguiu.

E les [as pessoas ricas] retiram daqueles [dos pobres] carne e Pele,

C om o o lobo fez com o cordeiro.6

5 Repare-se na forma arcaica do verbo esse, “comer”, o que demonstra o conhecimento da história da língua latina por parte do autor da expressão.

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3.2 Igreja

Em terras do Sacro Im pério R om ano-G erm ânico sentiam -se os ecos de vozes de protesto. E n co n tram o s ao longo do corpus de W erner exem plos de provérbios que trazem à luz um a im agem n eg ativ a dos prelados. N o m anuscrito B 74 lê-se R om a ca p it marcas,

bursas e xh a u rit e t archas; / Ut tibi te parcas, fu g e p a p a s et p a tria rch a s, “R om a pega o

dinheiro, exaure as bo lsas e as arcas; / Para que tu te poupes disto, foge dos papas e dos p atriarcas” e no m anuscrito B lê-se Scire bonos m ores f u i t olim g lo ria cleri / E t laus magna

fu i t vitam sin e labe tueri, isto é, “C onhecer bons costum es foi outrora a glória do clero / E o

m aio r lo u v o r foi m an ter a vida sem m ácula” .

A p rim eira parêm ia, em versos unisoni, m enciona diretam ente R om a, a ainda caput

m undi, sede do p o d e r papal, cuja adm inistração estava entregue à C úria. A possibilidade de

resolução de algum a q u erela ju ríd ico -p o lítica através dos m em bros do estado pontifício existia, caso hou v esse m eios pecuniários que pudessem ser postos à disposição dos prela­ dos. A p alav ra m arcas, “m o ed a s” , delim ita o espaço geográfico do m undo germ ânico, na m edida em que situa o au to r da parêm ia com o procedente daquelas regiões, cujo território tin h a sido, três séculos e m eio antes, objeto de disputa entre papado e im pério no caso da questão das investiduras.

O p ro b lem a d a investidura leiga dos prelados levou o p ap a G regório V II (1073-1085) a ten tar restaurar, de u m a vez por todas, a independência do episcopado. C om o afirma D aniel R ibeiro (1995, p. 55), o novo pontífice desejava “libertar o clero de toda a tutela a fim de que, sob a direção da Igreja, possa controlar as diversas atividades da sociedade; a subm eter o conjunto da Igreja a um único poder - o papado - , que goza do privilégio de definir a fé e reúne a todos sob sua autoridade soberana” .

C ontrapondo-se a tal objetivo está a política dos im peradores sálicos, especialmente, naquela época, a de H enrique III, que investia bispos conform e a sua conveniência e proveito próprio. O conflito era inevitável e em 1076 o imperador, no sínodo de W orm s, integrado por bispos alem ães, chega a pedir a deposição do papa, sendo por isso m ais tarde excomungado pelo pontífice e tendo seu poder im perial retirado. O fato, porém , de m aior im portância nessa contenda foi a resolução de G regório em dispensar os súditos cristãos de obediência ao sobe­ rano teutônico. Foi escolhido R udolf von Schwaben para suceder ao deposto soberano, que sem o apoio dos seus súditos cristãos, vai a Canossa em janeiro de 1077 para fazer a reconci­ liação com o pontífice e ter sua excom unhão suspensa. Em 1122, na C oncordata de Worms, foram fixados os parâm etros finais para tal disputa, já que “a investidura leiga cabia ao poder tem poral e a cerim ónia de concessão da cruz e do anel era exclusiva da autoridade espiritual. R atificava-se, assim , o poder dos Furstbischõffe, “bispos-príncipes”, autoridades eclesiásticas que tam bém possuíam a espada tem poral, respeitando o rei e obedecendo ao papa.

C om o se evidencia, então, no provérbio n° 74 de B asel, os bens terrenos atraíam a cobiça de R om a, de tal form a que nem os m ais hum ildes nem os m ais abastados - caracte­ rizados pelas bursas, “b o lsa s” , form a latinizada do grego byrsas e archas, “arcas” - são poupados, cu lm in an d o no conselho final para que se evite a todo o custo as figuras máximas do C ristianism o, aqui representadas pelo p a p a , pelo lado do catolicism o ocidental, e pelo

p a tria rch a , chefe da igreja ortodoxa de rito grego, pois estes cultuariam m ais a lei dos bens

do m undo e não tanto a p alav ra do Criador.

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O segundo provérbio, em contrapartida, possui um tom saudosista, na m edida em que atribui ao clero de tem pos passados um conhecim ento dos bons costum es, os quais se prendem logicam ente à observância e ao respeito da doutrina cristã consoante os en sin a­ m entos d a Igreja. U m a vida sem m áculas podia ser observada, diretam ente experienciada nos m em bros eclesiásticos, o que provavelm ente nos tem pos do autor do dístico em versos

caudati não ocorria. E nfim , a caracterização do clero com o afastado ou negligente em suas

funções de g u ard ião e p ropagador da m ensagem cristã católica está perfeitam ente espelhada nesses pro v érb io s oriundos de terras germ ânicas.

3.3 Elementos da Antiguidade Clássica

Provérbio: Q ui stu d iu m sp ern it sim ul et tua carm ina, N aso!

N il sib i c o n tin g a t m elius quam fia t agaso. (m anuscrito B) Tradução: Q uem ao m esm o tem po despreza o estudo e os teus versos, N asão!

N ão tenha sorte m elhor do que tornar-se lacaio.

P ublius O vidius N aso nasceu em Sulm ona no ano 43 a.C. e faleceu aos 63 anos de idade no ano 18 da nossa era. Sua extensão produção literária - desde a epistolografia até sua obra p o ética - era alvo de estudos desde a A lta Idade M édia. O talento artístico e o preciosism o literário do poeta foram redescobertos pelos lectores m edievais. K onrad von H irsau - prim eira m etade do século X II - aceita a leitura dos F asti e das E pistolae ex Ponto, recusando as obras eróticas e as M etam orphoses.1 Por outro lado, no final deste m esm o século, A lex a n d er N eck am (a p u d C urtius, 1957, p. 52) adm ite a leitura das M etam orphoses e para co m b ater os seus possíveis efeitos, os R em edia am oris. Seus poem as são analisados à luz de artifícios retóricos, pois “ sua poesia deleita-se com antíteses e agudezas, efeitos de eufonia e sen tid o ” . (a p u d C urtius, 1957, p. 68). N o século XIV, cabe m encionar que as

M etam orphoses ganharam um a versão m oralizada, elaborada por Pierre B ersuire (Petrus

B ercorius), sob o título M etam orphosis O vidiana m oraliter explanata, que teve sua prim ei­ ra edição pu b licad a em 1340 e a segunda no ano de 1342. Todavia, um outro aspecto im por­ tante do trab alh o com seus tex to s p o ssibilitou aos clerici deles depreender expressões proverbiais, as quais tiveram largo uso durante o m edievo.

D a L iteratu ra para a R etórica, entrem eado de exem plos m oralizantes, O vídio foi um a das au c to rita tes m ais significativas dentro do universo intelectual m edieval. Tal assertiva pode ser d efendida, se atentarm os para o provérbio do m anuscrito de B asel, em versos

caudati, o nde o v ocábulo nil aparece grafado sem os grafem as -hi- da form a clássica nihil,

tendência essa j á constatável a partir do serm o vulgaris. N o que tange explicitam ente à parêm ia, n otam os q ue a referência ao poeta de Sulm ona se inicia praticam ente com a equi­ valência entre o studium , entendido com o o ingresso na universidade, e o conhecim ento dos versos de O vídio, o que co n firm a ser sua leitura indispensável pelo m enos para o curso das disciplinas do trivium . C aso, contudo, seu estudo seja negligenciado ou propositalm ente

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rejeitado, triste sina estará reservada ao autor de tal tem eridade, pois não obterá posição de destaque dentro da sociedade m edieval, cabendo-lhe possivelm ente o papel de lacaio.

N este ponto, este p rovérbio m ostra-se extrem am ente rico em considerações de or­ dem social sobre o m edievo, a saber:

a) no estu d o u n iversitário, a leitura dos carm ina ovidianos era indispensável; b) o co n h ecim en to delas advindo poderia futuram ente proporcionar ascensão social

no fechado universo do baixo m edievo;

c) o d esco n h ecim en to das obras do sulm onês, em contrapartida, poderia determinar u m a p o sição de inferioridade no âm bito do saber e a palavra agaso, “lacaio”, pode p erfeitam en te ser aplicada quase com o sinónim a de vassalus.

U m a seg u n d a parêm ia em versos caudati lem bra o sofrim ento de N asão por ter sido expatriado p o r A ugusto: D icas, cum pateris, que fo rsa n non m eruisti: / H ec m odo Naso

feres, q u o n ia m m aiora tulisti, - m anuscrito

B

“Q ue tu digas, quando sofreres coisas que talvez não m ereceste:/ Suportarás logo estas coisas, N asão, visto que suportaste maiores”. V isualiza-se p o r trás da m enção aos sofrim entos de O vídio um a m ensagem de reconforto, pois m uitas vezes co m etem -se injustiças e pessoas inocentes são as vítim as expiatórias das m esm as.

C om o não p erceb er aqui, então, a palavra cristã do encorajam ento à prática da abne­ gação, pois se o M estre dos M estres padeceu sob as injustas acusações dos fariseus, a tudo aceitando, pois estav a cônscio de que daquela form a cum priria a vontade de seu Pai, ele, O vídio, um m ortal, com o se acabasse de adentrar a época do autor da parêm ia, deveria m irar-se no exem plo de C risto e aguardar a sua m isericórdia. A intertextualidade entre os textos de O vídio e a S agrada E scritura revela-se, pois, presente no século XV, fazendo com que o poeta de S ulm ona, cidadão rom ano, possa ser ornado quatorze séculos depois com as v irtudes de um cristão.

4. A mulher

N a B aix a Id ad e M édia, encontram os o provérbio 14 em verso leonino no manuscrito de Sankt G allen, onde o corpo fem inino se tom a receptáculo do dem ónio: F em ina vas sathane,

rosa fe te n s, d ulce venenum / S em p er pro n a rei, que p ro h ib etu r ei, “A m ulher é o vaso de

S atanás, u m a ro sa q ue fede, um doce veneno / Sem pre inclinada para as coisas que lhe são p ro ib id as” . O b serv a-se em sathane e em que a redução do ditongo ae para e das formas do latim c lássico sa th a n a e e quae e a m onotongação do ditongo clássico oe para e em fetens. D ecaíd a p o r n atu reza e por isso m esm o aliada ao dem ónio, a m ulher traz consigo as marcas do cará ter fétid o de seu ser, do veneno que é inoculado em sua vítim a m asculina através de seu corpo e de suas palavras insinuantes e de sua predisposição biológica para o mal.

U m a outra parêm ia em versos leoninos que reflete a ligação entre a fe m in a e o daemon encontra-se no m anuscrito B, U rticafetidum tergebatfem ina c u lu m /D ic e n s hec verba: “puto,

q u o d dem on sit in h erb a ”, i.e., “A m ulher esfregava o fétido cu com a urtiga / D izendo estas

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p a la v ra s: “ Im a g in o q u e o d e m ó n io e s te ja n e sta p la n ta ” . N e ste e x e m p lo no q u a l a m onotongação dos ditongos clássicos ae e oe se repete em hec, dem on e fe tid u m , a figura fem inina in ten ta ch a m ar o dem ónio ao passar um galho de urtiga em seu ânus, o que a transform a em um a bruxa. P or isso, ao se aproxim ar de Satanás, ela se identifica com o a sucessora de E va, renegando os atos de M aria e sua própria fé, com o afirm am K ram er e Sprenger, citad o s p o r C arlos R oberto F igueiredo N ogueira (1991, p. 106), para propor a etim ologia ã s fem in a :

E m consequência ela m ostra que duvida e tem pouca fé na palavra de D eus. E tu d o isso é indicado pela etim ologia da palavra: pois F em ina procede de

F e e M inus, um a vez que ela é sem pre fraca para m anter e p reservar a fé.

Portanto, um a m ulher é por sua natureza m ais rápida em hesitar em sua fé, e conseqiientem ente m ais rápida em abjurar a fé, que é a causa da bruxaria. U m dos pontos que m ais afastariam a m ulher dos padrões m orais do cristianism o seria sua propensão aos bens m ateriais. Para adquirir m eios de subsistência, não há por parte da m ulher m eios ilícitos. A ssim , no provérbio 20 em verso leonino do m anuscrito B a lê-se Laudat

quisque suum : sic laudat fe m in a culum , “C ada um louva o que é seu: assim , a m ulher louva

seu cu” , pois possivelm ente ela dele fará instrum ento para conseguir angariar fundos para seus projetos pessoais de m elhoria de vida. A advertência da voz proverbial contra a astúcia fem inina para obter recursos faz-se sentir m ais claram ente na parêm ia 6 em verso leonino do m anuscrito B a, B asiat arm igerum fe m in a propter erum, ou seja, “A m ulher beija o escudeiro por causa do seu senhor” . N o plano do discurso, a “fêm ea” procura relacionar-se com o escu­ deiro de algum cavaleiro ou senhor feudal, para poder se aproxim ar deste últim o, fazer-se conhecida, cham ar sua atenção e conquistá-lo, perfazendo assim um círculo de sedução, cujo objetivo seria no final das contas apropriar-se de parte de suas riquezas.

E m sum a, a fig u ra da fe m in a é m otivo de alerta para os vigilantes viri. E stes, p o rta­ dores das virtu d es de um cristão, estarão prontos para esperar pelas m ultifacetadas atitudes fem ininas, qu e v isam o próprio ego, Vulpes vult fra u d em , lupus agnum , fe m in a laudem - m anuscrito B a 73 “A rap o sa qu er o logro, o lobo o cordeiro, a m ulher o louvor” e os lucros que po d em au ferir a partir de sua natureza sedutora, carnal e astuciosa. E m conluio com o dem ónio, a m u lh er torna-se, portanto, um adversário do hom em , e stultus será aquele que nela confiar. T odavia, o hom em im buído do espírito de D eus e da palavra da Igreja a ela resistiria, sendo, porém , m otivo de acre reprim enda e de perigosa desestruturação social o fato de o varão aceitá-la e segui-la, pois com o expõe a parêm ia 20 em verso leonino do m anuscrito B a , R es m ala vir m alus est; m ala fe m in a péssim a res est, “U m a coisa m á é um hom em m au; um a coisa péssim a é um a m ulher m á” .

5. Considerações finais

A p ro d u ção fraseo ló g ica m edieval em latim , com sua variada gam a de recursos estilístico s,o ferece, pelo que se pôde constatar, um am plo panoram a sócio-cultural sobre a Idade M édia, um a p rodução rim ada, norm alm ente em hexâm etros e pentâm etros, com vá­

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rios tipos de v ersos, e q ue tem com o base precípua a m anutenção da ordem social de estru­ tura teo cên trica d a vida m edieval.

O s pro v érb io s, com o fonte de sabedoria, têm nos textos da S agrada E scritura e de autores eclesiástico s fontes continuam ente com piladas, estudadas e adotadas pelos homens da Ig reja durante a ép o ca m edieval. E sta, por sinal, fruto do desm em bram ento político e, co nseqtientem ente cultural, do m undo clássico, (em especial do m undo rom ano) atravessou séculos de co n stan tes m udanças político-sociais até o advento de C arlos M agno em 768, ép o ca em q ue foram lançadas as pedras fundam entais para um novo increm ento à cultura, onde o latim se tornou a ferram en ta dos letrados. A partir do século X II, as escolas eclesiás­ ticas e as u n iv ersid ad es dinam izam a transm issão do conhecim ento do novo, com um a sóli­ da base cristã, aliada ao antigo legado clássico, com as artes liberales m oldando o intelectual deste tem po. A rim a p resta-se m uito bem à estratégia de internalização m nem ónica e acon­ selhável u tilização no dia-a-dia, o que denota sua função em inentem ente propedêutica. 0 m aterial p arem io ló g ico configura-se em um dos m ais sólidos alicerces do discurso ideal dos valores cristãos d efendidos pela alta hierarquia da Igreja.

S ab ed o ria e ex p eriên cia, teoria e prática, pois, cam inham lado a lado nos provérbios, form as d id áticas de fundo m oralizante. “E stratégias para situação” , preparação para uma

p ra x is co n cern en te co m a voluntate D ei com o assevera Jam es O belkevich em seu artigo P roverbs a n d S o cia l H isto ry :

O q u e d e fin e o p ro v érb io , en tretan to , não é seu d esen h o externo m as sua fu n ção ex tern a, e aq u ele, g eralm en te, é m oral e d idático: as p esso as usam p ro v é rb io s p ara d izer a outras o que fazer em um a dad a situação ou que a titu d e to m a r d ia n te d e la . P ro v é rb io s , e n tã o , sã o ‘e s tra té g ia s para s itu a ç õ e s’; m as eles são estratég ias com autoridade, que form ulam uma p arte de um senso com um da sociedade, seus valores e m odo de fazer as c o isa s.8

P ortanto, educere e sapere perpassam a estrutura form al e sem ântica do provérbio m edieval em latim , m arca de um a visão do m undo consoante com os desígnios da mater

ecclesia.

228 Álvaro Alfredo Bragança Júnior: Consideração acerca da educação através dos provérbios em latim na Baixa Idade Média.

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ABSTRACT: the contribution of the Middle Ages to the organization of the western educational thought can be infered through a lot of topics, from the curricula of the monasteries’ and abbey’s

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schools until the system of the artes liberales in the universities. However, one of the most efficient methods of passing on the cultural rudiments to the disciples, specially to them from the Low Middle Ages, was based on the compilation of school exercises, usually in form of rhymed distichs, which present a highly theological justification as to the commandments of the Church. Those future clerici, instructed by such a cultural pattern, would be able, on the pulpits, to preach the doctrines passed by their masters. Thus, as a result of it, it was enabled an oral proverbialization of such written texts according to a daily practice, in which docere and scire, together with posse, formalized, through this instructional model, the ideais of the Papal Court.

KEYWORDS: Maediaeval Paremiology; Mediaeval Latin; Low Middle Ages in German speaking regions; Mediaeval Church; History of Education.

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