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A América Latina e o projeto pós-neoliberal: um estudo do caso Boliviano

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

LARA AGRA NUNES

A AMÉRICA LATINA E O PROJETO PÓS-NEOLIBERAL: UM ESTUDO DO CASO BOLIVIANO

NATAL 2019

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LARA AGRA NUNES

A AMÉRICA LATINA E O PROJETO PÓS-NEOLIBERAL:

UM ESTUDO DO CASO BOLIVIANO

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais.

Área de concentração: Estado, governo e sociedade.

Orientador: José Antonio Spinelli Lindoso

Coorientadora: Jórissa Danilla Nascimento Aguiar

NATAL 2019

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Nunes, Lara Agra.

A América Latina e o projeto pós-neoliberal: um estudo do caso Boliviano / Lara Agra Nunes. - Natal, 2019.

76f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019. Orientador: Prof. Dr. José Antonio Spinelli Lindoso.

Coorientador: Profa Dra. Jórissa Danilla Nascimento Aguiar.

1. Bolívia - Dissertação. 2. Evo Morales - Dissertação. 3. MAS - Dissertação. 4. Pós-neoliberalismo - Dissertação. 5. Hegemonia - Dissertação. I. Lindoso, José Antonio Spinelli. II. Aguiar, Jórissa Danilla Nascimento. III. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 32(84)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -CCHLA

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LARA AGRA NUNES

A AMÉRICA LATINA E O PROJETO PÓS-NEOLIBERAL:

UM ESTUDO DO CASO BOLIVIANO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como cumprimento parcial das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Aprovado em:___/___/___

BANCA EXAMINADORA

___________________________________ Prof. Dr. José Antonio Spinelli Lindoso

UFRN Presidente

___________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Freire de Carvalho e Silva

UFPB Membro externo

___________________________________ Profa. Dra. Jórissa Danilla Nascimento Aguiar

UFRN Membro interno

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Dedico este trabalho à Elis, minha filha, meu estímulo pessoal, meu entusiasmo diário, minha maior admiradora!

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AGRADECIMENTOS

Ao final dessa pesquisa me sinto vitoriosa e saudosa. Foram inúmeras as pessoas que de alguma forma contribuíram para a sua realização, tanto com palavras de incentivo, conversas de “corredor”, como com sugestões para o trabalho. A todos esses, que, com certeza, não darei conta de mencionar, meu muito obrigada. Acima de tudo, agradeço à minha família, sem seu apoio e incentivo não chegaria a lugar algum. À minha mãe, principalmente, meu exemplo de esforço e dedicação cotidianos, às minhas tias Kátia e Joelza, por serem meu braço direito com Elis enquanto seguia meu caminho de estudos.

À minha irmã, Ana, saudades e compreensão, minha melhor amiga, obrigada por mesmo de longe fazer parte desse processo.

Ao meu orientador, professor Spinelli, pela paciência e dedicação com que se propôs a “adotar” minha pesquisa, pela sabedoria compartilhada nas orientações e em sala de aula. Pelo incentivo quando a escrita travava, pela confiança na minha capacidade de fazer um bom trabalho e por ter contribuído na minha formação intelectual, agradeço imensamente.

A todos os professores do Departamento de ciências sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte que convivi ao longo da graduação e aos do Programa de Pós-graduação, pelo saber compartilhado durante os mais de dois anos de mestrado.

À Danilla, por ter me ajudado com a bibliografia e me ter feito dar o passo inicial no processo de escrita desse trabalho. Ao professor Rodrigo, pela disponibilidade em participar da minha banca de defesa, certa de que aprenderei muito as considerações feitas.

Aos secretários do PPGCS, Jeferson Lopes e Otânio Costa, que pacientemente se dispõem a resolver os contratempos burocráticos, que não são poucos. À minha turma de mestrado 2017, agradeço aos colegas por compartilharem suas experiências de vida.

Aos amigos que a pós-graduação me trouxe, Adailton, Rodrigo, Hallysson e Ana Karla. Especialmente à Ana Karla, com quem dividi as angústias dos últimos momentos.

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Às minhas amigas de escola e, principalmente, de vida Dessa, Juliany, Juliana, Larissa e ao amigo Daniel que sempre estão comigo, não importa a distância ou o tempo que não nos encontremos. À Clara, grande amiga irmã, obrigada por emprestar o ombro nas diversas crises durante esse processo, pelas cervejas despretensiosas e pelas necessárias no Tá Fluindo, pelos conselhos e escuta dedicada.

A Elon, parceiro que encontrei nessa jornada de pós-graduação, meu grande incentivador intelectual, que acreditou nessa pesquisa quando eu estava cansada e pensava que não seguiria adiante, me ajudou com análise de dados e números. Obrigada por querer me ver crescer e estar do meu lado nas maiores dificuldades, assim como nos bons momentos, nesse período de mestrado.

Ao CNPq por propiciar a realização dessa pesquisa, que continue sendo incentivo para novos estudantes nas diversas temáticas. A pesquisa brasileira é grande e tem ainda um longo caminho a percorrer.

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RESUMO

A Bolívia é um país marcado por crises políticas e econômicas e sérios conflitos desde sua colonização pelos espanhóis, o que a caracteriza atualmente como um país subdesenvolvido, apesar de apresentar um dos maiores crescimentos no continente sul-americano. Este trabalho tem como foco a análise do governo Evo Morales e suas principais políticas econômicas e sociais, que permitem que o governante e seu partido, o MAS, mantenham a hegemonia política na Bolívia diante de um contexto de fim de governos pós-neoliberais na América Latina. Para tal, faremos uma retomada histórica desde a revolução de 1952 e apresentaremos algumas especificidades que fizeram parte de sua formação, em seguida apresentaremos como se deu a chegada do MAS no poder e a formação constituinte para concluirmos com a análise de dados sociais e econômicos que corroborem para exemplificar o motivo do sucesso das políticas de Morales, assim como alguns fatores que contribuem para um possível desgaste de sua figura. O presente trabalho se ampara em revisão bibliográfica e análise qualitativa de dados estatísticos sobre a Bolívia. Feito isso, concluímos que, de fato, o governo Morales não rompe com a estrutura capitalista neoliberal, nem propõe uma alternativa a esse modelo, mas rompe com a hegemonia das classes politicamente dominantes, inserindo o indígena nesse processo, assim como considera as particularidades da formação social-econômica bolivianas para alavancar o crescimento econômico no país.

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RESUMEN

Bolivia es un país marcado por crisis políticas y económicas y graves conflictos desde su colonización por los españoles, lo que lo caracteriza hoy como un país subdesarrollado, a pesar de presentar uno de los mayores crecimientos en el continente sudamericano. Este documento se centra en el análisis de la administración de Evo Morales y sus principales políticas económicas y sociales, que permiten al gobernante y su partido, MAS, mantener la hegemonía política en Bolivia en el contexto del fin de los gobiernos posneoliberales en América. Latina. Con este fin, haremos una recuperación histórica desde la revolución de 1952 y presentaremos algunas especificidades que formaron parte de su formación, luego presentaremos cómo la llegada del MAS al poder y la formación Constituyente para concluir con el análisis de datos sociales y económicos para ejemplificar la razón del éxito de las políticas de Morales, así como algunos factores que contribuyen a un posible desgaste de su figura. Este documento se basa en la revisión de literatura y análisis cualitativo de datos estadísticos sobre Bolivia. Hecho esto, concluimos que, de hecho, el gobierno de Morales no rompe con la estructura capitalista neoliberal, ni propone una alternativa a este modelo, sino que rompe con la hegemonía de las clases políticamente dominantes, insertando a los indígenas en este proceso y considerando las particularidades de la formación socioeconómica boliviana para impulsar el crecimiento económico en el país.

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ABSTRACT

Bolivia is a country marked by political and economic crises and serious conflicts since its colonization by the spanish, which today characterizes it as an underdeveloped country, despite presenting one of the largest growths in the South American continent. This work aims the analysis of the Evo Morales administration and its main economic and social policies, which allow the ruler and his party, MAS, to maintain political hegemony in Bolivia in the context of an end to post-neoliberal governments in America. Latina. For such, we will make a historical recovery since the 1952 revolution and present some specifics that were part of its formation, then we will present how the arrival of MAS in power and the constituent formation to conclude with the analysis of social and economic data that corroborate to exemplify the reason for the success of Morales policies, as well as some factors that contribute to a possible erosion of his figure. This work is based on literature review and qualitative analysis of statistical data on Bolivia. After this, we conclude that the Morales government does not break with the neoliberal capitalist structure, nor does it propose an alternative to this model, but it does break with the hegemony of the politically dominant classes, inserting the indigenous in this process and considers the particularities of Bolivian social-economic formation to leverage economic growth in the country.

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LISTA DE SIGLAS

AAI – Alianza Andrés Ibáñez

AC – Assembleia Constituinte

ADN – Ação Democrática Nacionalista AL – Aliança Social

ALBA – Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América APB – Autonomias para Bolivia

ASP – Aliança Social Patriótica AYRA – Movimento Ayra

CELAC – Comunidade dos Estados Latino Americanos e Caribenhos CEPAL – Comissão Econômica para América Latina e o Caribe

CIDOB – Confederação de Indígenas do Oriente Boliviano CN-PI – Acordo Nacional – Pátria Insurgente

COB – Central Operária Boliviana

CSUTCB – Central Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia

IPSP – Instrumento Político para a Soberania dos Povos

INE – Instituto Nacional de Estadística FMI – Fundo Monetário Internacional MAS – Movimento ao Socialismo

Mercosul – Mercado Comum do Sul

MCSFA – Movimento Cidadão San Felipe de Austria

MBL – Movimento Bolívia Livre

MIR – Movimento de Esquerda Revolucionária

MIP – Movimento Indígena Pachakuti MITKA – Movimento Indígena Túpac Katari

MNR – Movimento Nacionalista Revolucionário

MOP – Movimento Originário Popular

MRTK – Movimento Revolucionário Túpac Katari

PIB – Produto Interno Bruto

PODEMOS – Partido Poder Democrático e Social

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UDP – União Democrática Popular UN – Unidade Nacional

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..………12

1 – A AMÉRICA LATINA E O CASO DA BOLÍVIA..………..19

1.1 – Especificidades da formação da sociedade boliviana………...28

1.2 – Especificidades da formação política boliviana………..30

2 – CHEGADA DE EVO MORALES AO PODER E A FORMAÇÃO DA NOVA CONSTITUINTE……….36

3 – ANÁLISE DO GOVERNO EVO MORALES/MAS..……….……….46

3.1. Alguns indicadores para discussão……….52

CONCLUSÕES………..………68

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INTRODUÇÃO

No início dos anos 2000, a Bolívia passava por uma crise orgânica com elementos políticos, culturais, sociais e econômicos, somada às insuficiências do modelo neoliberal, o esgotamento de formas de organização estatal e baixa inclusão político-social. A orientação política e social adotada pelo governo de Evo Morales, eleito em 2005, pareceu refletir, nesse determinado momento, as demandas não alcançadas pelos governos anteriores.

A proposta da nova Constituição significou, em parte, a refundação do Estado, com a inclusão, participação e representação de outros setores da sociedade e classes sociais, como os indígenas e camponeses. Esse projeto de governo também busca fortalecer o controle nacional sobre os recursos naturais, defende projetos de integração solidária e adota posições independentes e contestatórias diante da geopolítica dos Estados Unidos em relação aos países do continente.

A pesquisa aqui apresentada faz-se relevante devido à contemporaneidade do objeto de estudo e do contexto de mudanças em que está inserido. É um objeto que, devido ao seu desenvolvimento, pode se tornar largo à teorização e parte da necessidade de se discutir o processo transformador pelo qual passa a América Latina, com o possível fim do ciclo de governos progressistas e regresso às políticas neoliberais e suas consequências.

Faremos uma caracterização das principais mudanças políticas, econômicas e sociais para, a partir de então, analisarmos quais as razões desse fim desse ciclo e os motivos pelos quais o governo de Evo Morales parece ser capaz de ainda resistir aos avanços conservadores que têm ocorrido no continente, impulsionados também pelo contexto mundial com a ascensão de Donald Trump nos EUA.

Nossa hipótese baseia-se no fato de que o governo Evo ainda resiste diante da ascensão da direita conservadora na América Latina, impulsionada pelo contexto mundial, pois não propôs uma ruptura mais efetiva com o modelo capitalista neoliberal, mas conseguiu incorporar os movimentos sociais, indígenas e sindicais e suas demandas em torno de seu partido, o MAS.

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Conforme Spinelli, a noção de bloco histórico foi elaborada por Gramsci para dar conta da forma como a burguesia ascendeu ao poder em formações sociais capitalistas:

La notion de bloc historique a été élaborée par le penseur marxiste italien Antonio Gramsci dans Cadernos do Cárcere pour rendre compte d'un système complexe d'articulation entre des classes et des fractions de classes afin d'obtenir le consentement majoritaire de la population nationale pour ses politiques de développement capitaliste et d'inclusion subordonnée des classes populaires1 (SPINELLI, 2016, p. 75)

No início de seu governo, Morales possuía grande apoio dos movimentos sociais e populares e obteve êxito ao conseguir alianças com algumas classes e frações de classes sociais que ainda hoje compõem sua base, porém é crescente sua aceitação pela elite, principalmente na região da “meia-lua2”, responsável por grande parte da economia do país.

A ideia de pós-neoliberalismo é trabalhada por autores como Emir Sader, filósofo e cientista político brasileiro, para quem esse modelo serviria como uma alternativa ao modelo neoliberal: “Da capacidade de acumular forças na resistência ao neoliberalismo e se apoiar nelas para construir alternativas e lutar por uma nova hegemonia na sociedade, depende a possibilidade de superação do neoliberalismo”. (SADER, 2014). Entretanto, para fins da nossa análise, entendemos esse conceito assim como o definiu Pablo Dávalos, cientista social equatoriano, para caracterizar a situação política e econômica dos governos latino-americanos.

Segundo Dávalos a acumulação capitalista tem importância fundamental para garantir o papel do Estado, do uso da violência legítima e reconstruir as instituições políticas, sociais e econômicas, trata-se de “conceder ao Estado suficiente força

1 Tradução: A noção de bloco histórico foi elaborada pelo pensador marxista italiano Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere, para dar conta de um complexo sistema de articulação entre classes e frações de classe com o fim de obter o consentimento majoritário da população nacional para suas políticas de desenvolvimento capitalista e inclusão subordinada das classes populares

2 Divisão política boliviana composta pelos departamentos localizados na região oriental do país, Beni Pando, Tarija e Santa Cruz.

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política que permita absorver em seu interior toda a energia social e permitir a acumulação por desapropriação” (DÁVALOS, 2012). Dávalos conclui então que

La noción de posneoliberalismo nos permite comprender esa aparente contradicción entre los cambios políticos que se están suscitando en la región, muchos de ellos de la mano de gobiernos críticos con el FMI y con el neoliberalismo, com las relaciones de poder que emergen desde la acumulación por desposesión, com la consecuente tensión y conflictividad social que ahora utiliza el recurso de criminalizar a la sociedad para proteger el sentido y la dinámica de la acumulación capitalista. El posneoliberalismo nos permite estar alertas de esa intención de poner a la economía entre paréntesis y provocar cambios políticos sin alterar un milímetro el sentido de la acumulación por desposesión y las relaciones de poder que le son correlativas.3 (DÁVALOS, 2012, p.8)

As demandas da “revolução” intencionada por Morales não se concretizaram em grande parte e, embora tenha havido significativas melhorias nos índices de pobreza, há dúvidas sobre a eficácia real das políticas aplicadas. Fato esse, que não desmerece a potencialidade do processo em desenvolvimento, mas não deixam clara a superação do modelo neoliberal· de exploração aplicada durante décadas na América Latina e tampouco sobre a abertura de novos caminhos para além do capitalismo.

A partir do início de seu primeiro mandato, diversas políticas sociais do governo Evo se dariam através de transferência de renda, financiadas com os recursos da venda de hidrocarbonetos. Dentre alguns destaques, a maioria da população permanece na economia informal e, em contrapartida, a Bolívia é

3 Tradução: A noção de pós-neoliberalismo nos permite compreender essa aparente contradição entre as mudanças políticas que estão ocorrendo na região, muitos deles de acordo com governo críticos ao FMI e ao neoliberalismo, com as relações de poder que emergem com a acumulação por desapropriação, com a consequente tensão e conflitividade social que agora utiliza o recurso de criminalizar para a sociedade para proteger o sentido e a dinâmica da acumulação capitalista. O pós-neoliberalismo nos permite estar alertas a essa intenção de pôr a economia entre parênteses e provocar mudanças políticas sem alterar um milímetro o sentido de acumulação por desapropriação e as relações de poder que lhe são correlatas.

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considerada um país livre de analfabetismo, mesmo esse ainda sendo de aspecto funcional. (STEFANONI, 2012)

Así, las políticas sociales logran algo de distribución de renta y bastante de compensación simbólica entre los sectores tradicionalmente excluidos, a lo que se suma la dotación de tierras a comunidades indígenas y campesinas. Pero estas políticas,aunque ya se transformaron en derechos subjetiva y legalmente, están lejos aún de dibujar un proyecto de sociedad más integrado, y a menudo el propio Morales confunde el carácter necesario y urgente de estas medidas de transferencia (moderada) de renta con el horizonte al que debería llegarse abriendo una discusión más amplia sobre la integración y la justicia social.4(STEFANONI, 2012, p. 61)

A derrota do governo no referendo de 21 de fevereiro de 2016, que propunha modificar a Constituição para permitir uma nova reeleição de Evo Morales, permitiu realinhar a oposição de direita fazendo-a recuperar campo político e acumular forças. Se observarmos a geopolítica regional, a Bolívia deixa de lado sua posição de pouco pró ativa no continente, assume a de Estado com projeto autônomo e ameaça a tutela imperialista dos Estados Unidos.

Tendo em vista essa perspectiva, é de fundamental importância a agenda política governamental que se dará a partir desse revés no referendo para consolidar o processo de mudança em curso ou “retroceder” a um regime neoliberal com intensa política de privatizações, queda no preço das matérias-primas de exportação e baixo investimento em políticas sociais.

A Bolívia é atualmente o país que mais cresce na América do Sul e, segundo a rede de informações BBC5, em reportagem especial sobre o crescimento do país,

a tendência é continuar seu crescimento econômico nos próximos anos. Em 2016 o 4 Tradução: Assim, as políticas sociais conseguem alguma distribuição de renda e compensação bastante simbólicas entre os setores tradicionalmente excluídos, além da provisão de terras para comunidades indígenas e camponesas. Mas essas políticas, embora já tenham se transformado em direitos subjetiva e legalmente, ainda estão longe de elaborar um projeto de sociedade mais integrado e, muitas vezes, o próprio Morales confunde o caráter necessário e urgente dessas medidas de transferência (moderada) de renda com o horizonte que deve ser alcançado abrindo uma discussão mais ampla sobre integração e justiça social.

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país cresceu 4,3%, desempenho bastante alto se comparado com países da América Latina em si, que teve uma retração de 0,9%, enquanto países como Colômbia e Chile cresceram 2% e 1,6%, respectivamente. Os indicadores sociais também apresentam significativo crescimento, com a diminuição da pobreza, acesso à água tratada, saneamento e à educação primária e secundária, segundo dados da CEPAL6.

No primeiro capítulo apresentaremos alguns aspectos históricos importantes sobre a Bolívia, como também algumas especificidades de sua formação que são relevantes para a análise da sua atual conjuntura. Utilizaremos conceitos fundamentais com os quais buscaremos relacionar o nosso objeto, como o de “democracia pactuada”, na leitura de Clayton Mendonça Cunha Filho, e o de hegemonia, desenvolvido por Gramsci.

Gramsci apresenta a ideia de hegemonia recortada em sua obra, por isso utilizaremos inicialmente o livro de Hugues Portelli que trata sobre o tema, “Gramsci e o bloco histórico”, assim como o “Dicionário Gramsciano”.

No segundo capítulo adentraremos nos aspectos mais recentes da sociedade, política e economia bolivianas que levaram à ascensão de Evo Morales, primeiro governante indígena a ocupar o mais alto cargo executivo da Bolívia. Faremos uma leitura de como se deu o processo de formação da Assembleia Constituinte, em 2006, e a promulgação da nova Constituição, em 2009, que instituiu o estado plurinacional.

Apresentaremos uma caracterização dos grupos que formaram a base do governo e sua oposição no Congresso. Relacionaremos a ascensão do partido de Morales, o MAS, à questão do bloco no poder, apresentada por Nicos Poulantzas, para entendermos o seu comportamento na Constituinte, assim como a questão da institucionalização da plurinacionalidade, inaugurada com a Carta Magna, utilizando textos de Sue Iamamoto.

Em seguida, no terceiro capítulo, utilizando os autores específicos sobre a Bolívia, como Álvaro García Linera e Pablo Stefanoni, buscaremos analisar a

6 Dados referentes ao período de 2015 a 2017, disponíveis em

http://estadisticas.cepal.org/cepalstat/Perfil_Nacional_Social.html?pais=BOL&idioma=spanish. Acesso em 15 mar 2019.

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conjuntura boliviana atual, nos debruçando sobre as principais propostas e características do governo de Morales esclarecendo seu plano de governo e algumas das ideias da oposição para apresentar e discutir dados e características políticas, econômicas e sociais que permitem o modelo boliviano “resistir” às investidas da oposição de direita, em contrapartida ao que vem ocorrendo em países vizinhos. Discutiremos continuidades e rupturas e quais grupos e frações de classe são atores nesse processo político.

Concluiremos, a partir do apresentado, que aparentemente não há uma efetiva ruptura com o modelo neoliberal ou mesmo um novo bloco no poder, mas sim a ascensão de um bloco que não rompe completamente com as classes e frações que compunham o antigo, nem com o capitalismo neoliberal, mas que se modifica em algumas de suas principais características, o que faz com que alguns autores o apresentem como novo, considerando as especificidades da sociedade e economia bolivianas, o que é causa da grande aceitação de Morales ainda hoje.

Utilizaremos principalmente o método qualitativo de pesquisa e será de fundamental importância para a verificação dos dados e teorização a observação contínua dos acontecimentos e veículos de informação locais e regionais, como também a pesquisa bibliográfica e documental. Utilizaremos o recorte temporal de 2006 a 2018, a partir do primeiro ano do governo Evo.

Em primeiro momento, adentraremos na literatura acerca da temática problematizada, buscando fazer uma análise qualitativa de dados políticos, econômicos e sociais que contribuam para a elucidação das questões apresentadas durante esse trabalho de pesquisa. Também levaremos em consideração dados estatísticos oficiais acerca de processos eleitorais, estatísticas econômicas e sociais dentre outros documentos oficiais para embasar teoricamente nosso trabalho.

Faremos a leitura de autores como Pablo Stefanoni, jornalista, economista e doutor em História, que foi braço direito do vice-presidente boliviano durante os primeiros anos do governo do MAS. Stefanoni faz uma reflexão sobre os bons resultados econômicos obtidos pelo governo boliviano como o crescimento do PIB e a baixa inflação, pois esses só foram possíveis graças a uma mistura de “nacionalismo econômico e prudência fiscal”, uma versão atualizada do nacionalismo popular latino-americano, na personificação da liderança carismática

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de Evo Morales. (STEFANONI, 2016)

Buscaremos teoria também no autor Álvaro García Linera, sociólogo e vice-presidente do país, que propôs uma reflexão acerca das atuais necessidades sociais e políticas da Bolívia. García Linera propõe que a identificação com o elemento indígena não é mais fator de resistência, de luta, pois essa já está consolidada, assim como também destaca as novas mobilizações e percepções de mundo da sociedade boliviana após mais de 10 anos de governo.

Em contrapartida, Francisco López Segrera, doutor em estudos latino-americanos, tece pontos importantes ao enfatizar que a expansão territorial e os projetos de governos revolucionários e progressistas se estancou e reduziu, perderam a vocação transformadora sem serem capazes de modificar substancialmente o modelo econômico e político, fator esse que dá margem a reorganização da oposição de direita e conservadora, já que não houve uma verdadeira “ruptura” com o antigo regime.

A partir da observação qualitativa dos acontecimentos na Bolívia, levantamento bibliográfico e documental sobre o tema e levando em consideração sua situação no continente e o contexto de mudanças pelas quais passa a América Latina, com severas medidas de austeridade sendo implantadas em outros países próximos como Brasil e Argentina, podemos lançar teses para o debate de quais as características que permitem as “bases” lançadas no Estado Plurinacional permanecerem em meio a estes processos políticos de divergentes.

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1 – A América Latina e o caso da Bolívia

A América Latina é uma região de vasta extensão e diversidade cultural, econômica e social e cada país tem suas particularidades. Geograficamente podemos dividi-la em países norte-americanos (México), centro-americanos, caribenhos, andinos e do cone sul. Há também disparidade populacional entre os mais de 625 milhões de habitantes, dos quais mais de 200 milhões são brasileiros.

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Fonte: Mapas da América7

Economicamente, apesar de ainda ser considerada uma região em desenvolvimento, alguns países iniciaram processo de industrialização antes de 1945 como Argentina, México, Brasil, Chile, Uruguai e Colômbia, enquanto outros iniciaram tardiamente esse processo, impulsionados pelas demandas globais e pela integração monopolista como Bolívia, Peru, Venezuela, Equador, Costa Rica, Guatemala, El Salvador, Panamá, Nicarágua, Honduras, e República Dominicana. (SEGRERA, 2016)

O fato é que por mais industrializados que se apresentem, os países latino-americanos não conseguem escapar da dependência econômica das commodities, isto é, a dependência da exportação de matérias-primas. Nenhum deles, desde sua colonização, pôde escapar do intenso extrativismo dos recursos naturais e, ainda hoje, a Bolívia segue esse padrão. Vejamos algumas das principais exportações do país, além do gás, minérios e soja, como observado na tabela abaixo.

Tabela 1 – Principais produtos de exportação segundo a participação no total

Gás Natural 38,5%

Minério de zinco 19,8%

Minerais e metais do grupo da platina 8,3%

Farinhas de sementes oleaginosas e outros resíduos de óleos vegetais 5,3%

Estanho 4,8%

Minério de chumbo 3,6%

Coco e castanhas do Brasil e de caju 2,5%

Óleo de soja 2,4%

Artigos de joalheria e metais preciosos 1,9%

Prata bruta ou semiacabada 1,2%

Fonte: Cepal, 20178

7 Disponível em: http://www.america-mapas.com/bolivia.htm. Acesso em 14 de out. de 2019. 8 Disponível em:

https://estadisticas.cepal.org/cepalstat/Perfil_Nacional_Economico.html?pais=BOL&idioma=spanish . Acesso em 01 jul 2019.

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A Bolívia, por suas características econômicas e sociais, ainda pode ser considerada um país subdesenvolvido9. Após séculos de intensa exploração e colonização espanhola o capitalismo não conseguiu superar a desigualdade social e a situação de pobreza em que vive grande parte da população boliviana.

Uma das características da formação histórica da Bolívia se deu através do processo de desenvolvimento local do capitalismo, marcado pela grande desigualdade, devido ao contraste entre o setor minerador moderno, influenciado e conectado diretamente com centros econômicos mundiais e o setor agrícola marcado por grandes concentrações de terra e formas tradicionais comunitárias e indígenas de exploração no campo. (ANDRADE, 2007)

Em 1952, o país passou por um processo fundamental em sua história que gerou desdobramentos importantes para as classes operária e camponesa. A revolução boliviana fortaleceu as demandas dessas classes naquele momento e plantou sementes para posteriores reivindicações sindicais. Segundo Everaldo de Oliveira Andrade, em “A revolução boliviana”,

Os primeiros anos após a vitoriosa insurreição de massas de 1952 são marcados por importantes iniciativas revolucionárias, como a nacionalização da grande mineração, a reforma agrária e a criação da Central Obrera Boliviana (COB). Os limites do avanço das medidas econômicas de ruptura, marcados por intensa luta política e ideológica entre os setores reformistas e revolucionários, determinarão por fim os limites da própria revolução. (ANDRADE, 2007 p. 19)

A questão que envolve a identidade nacional boliviana começou a ser pautada objetivamente com a revolução de 1952. A crise governamental provocada

9 Definindo minimamente o subdesenvolvimento, de acordo com Celso Furtado, “o subdesenvolvimento não constitui uma etapa necessária do processo de formação das economias capitalistas modernas. É, em si, um processo particular, resultante da penetração de empresas capitalistas modernas em estruturas arcaicas. O fenômeno do subdesenvolvimento apresenta-se sob formas várias e em diferentes estádios. O caso mais simples é o da coexistência de empresas estrangeiras, produtoras de uma mercadoria de exportação, com uma larga faixa de economia de subsistência, coexistência esta que pode perdurar, em equilíbrio estático, por longos períodos.”(FURTADO, 2000, p. 261)

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pela derrota na Guerra do Chaco10 (1932 – 1935), entre Bolívia e Paraguai, fortaleceu os sindicatos e partidos ligados às forças sociais operárias, populares e de pequena burguesia (ANDRADE, 2007). O MNR, Movimento Nacionalista Revolucionário, encabeçava as reivindicações da revolução reunindo os movimentos operário, camponês e indígena, pautando temas de fundo nacionalista. O levante de 52 marcou algumas importantes iniciativas como a nacionalização da mineração, a reforma agrária, reformas econômicas e a criação da Central Operária Boliviana (COB) que viria a ser uma das principais instituições representantes das demandas populares durante o período de regime militar nas décadas seguintes.

[…] o processo revolucionário de 1952 se deu sob a construção de um sujeito político-social que começou a se formar na Guerra do Chaco, que envolvia indígenas, camponeses e operários em nome da construção de uma nação boliviana popular e anti-imperialista. Com decorrer dos processos sociais desenvolvidos pelos governos do MNR, há uma rearticulação da composição hegemônica no país, em torno de uma elite burocrática, as novas Forças Armadas, e o apoio subserviente de um setor social em pleno crescimento, o campesinato boliviano ou cholo, formado a partir das políticas de incentivos e de distribuição de terra por meio de títulos individuais de propriedade da terra. (RODRIGUES; SILVA, 2017, p.61).

Alguns pesquisadores atentam para o fato de a revolução de 1952, apesar de grande importância na construção e formação do indígena como sujeito político, possuir um caráter inacabado. Segundo Alfredo José Cavalcanti Jordão de Camargo, diplomata e pesquisador da Fundação Alexandre Gusmão (FUNAG), formulou em seu livro “Bolívia – A criação de um novo país a ascensão de um poder político autóctone das civilizações pré-colombianas a Evo Morales”, em 2006,

10 O motivo da guerra foi a pretensão boliviana de ter acesso ao rio Paraguai através do Chaco. Posteriormente, acusou-se a Standard Oil de ter influenciado na decisão de declarar a guerra, por causa da disputa com a Royal Dutch Shell pelas reservas petrolíferas no Paraguai e sua intenção de obter uma saída pelo Atlântico, através da Bacia do Prata, para sua produção na Bolívia.( AYERBE, 2011 p. 179)

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A Revolução pôs fim à ordem oligárquica, mas não conseguiu, verdadeiramente, industrializar o país; não conseguiu substituir, na sua essência, modelo econômico que remonta ao tempo da Colônia, baseado na exportação de matérias-primas; não eliminou o latifúndio que hoje reproduz, no leste do país, os conflitos que marcaram o Altiplano, ao longo de toda a primeira metade do século XX. Além de tais insuficiências, que representam parte das raízes da crise econômica atual, a Revolução tampouco logrou criar Estado nacional, razão pela qual o problema da unidade nacional reemerge hoje com sentido de força e urgência. (CAMARGO, 2006, p. 254)

Na Bolívia pode-se dizer que o projeto liberal fracassou. Historicamente as etnias indígenas 11 são personagens de destaque em revoltas populares contrapondo-se ao domínio europeu do colonizador, de modo que a formação e unificação da “nação boliviana” não conseguiu abranger essas diversas etnias. Esse fator torna-se extremamente importante nas discussões políticas que seguem a revolução de 52, abrindo caminho para o debate sobre uma sociedade plurinacional que efetivamente se concretiza com a nova Constituição de 2009 proposta por Evo Morales.

De acordo com Gramsci (2004), cada formação social exigia sua própria forma de luta, assim sendo, é relevante observarmos o contexto histórico boliviano, tendo em vista a partir de seu processo de colonização, para entendermos a composição das classes sociais que formam o país e como elas se dividem no atual contexto político em que um indígena assume, pela terceira vez, o mais alto cargo eletivo, após anos de sob o modelo neoliberal em crise.

Deve-se levar em conta, em primeiro lugar, que o modo de vida indígena, de culto a Pachamama12 e preservação do meio ambiente, contrasta profundamente 11 Atualmente estima-se que a população indígena da Bolívia seja de 62%, composta por 36 etnias, porém não há censo com dados atualizados desde 2011.

12 A Pachamama, ou “Mãe Terra”, segundo crença milenar Andina, é uma divindade munida de desejos e necessidades, provém os recursos para existência e sobrevivência do homem, relação que deve ser recíproca.

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com o modelo de exploração de recursos naturais e produção agrícola em larga escala demandados pelo sistema capitalista empregado na Bolívia, marginalizando assim, o índio do contexto social, econômico e político do país por ser considerado um atraso à modernização imposta pelo capital. De acordo com García Linera:

As distintas formas estatais engendradas até 1952 não modificaram substancialmente este apartheid político. O Estado caudilhista (1825-1880) e o regime da chamada democracia 'censitária' (1880-1952), tanto em seu momento conservador como liberal, muitas vezes modificaram a Constituição Política do Estado (1826, 1831, 1834,1839, 1843, 1851, 1861, 1868, 1871, 1878, 1880, 1938, 1945, 1947); entretanto, a exclusão político-cultural se manteve tanto na normatividade do Estado como na prática cotidiana das pessoas. De fato, pode-se dizer que, em todo esse período, a exclusão étnica se converteu no eixo articulador da coesão estatal (…). Os direitos de governo foram apresentados durante mais de 100 anos como uma exibição da estirpe; não se faz um cidadão, se nasce um cidadão – ou índio. Ou seja, é um estigma de berço e linhagem. (GARCÍA LINERA, 2010a, p. 169 apud RODRIGUES; SILVA, 2017, p. 57)

Nos anos 1980 o movimento cocalero13 surge no cenário nacional boliviano em contraposição a pressão do Estado14 e dos Estados Unidos no combate ao narcotráfico que intentava a erradicação da plantação de coca, prática milenar na Bolívia. A partir de então o movimento cocalero organizado já se torna um importante instrumento de luta social, ao mesmo tempo em que ajuda a revitalizar e fortalecer o movimento sindical camponês como um todo. Posteriormente, os sindicatos cocaleros se projetariam do movimento social na cena eleitoral e partidária, com a fundação do Movimento ao Socialismo (MAS), que se constituiu desde sua criação numa força eleitoral na região do Chapare, evidenciando a necessidade de incorporar a questão indígena à agenda eleitoral (VIANA, 2016).

13 Movimento sindical formado por camponeses indígenas produtores da folha de coca.

14 Com a criação da lei 1008 – Lei do Regime de Coca e Substâncias controladas, em julho de 1988, que restringia o plantio da coca a regiões consideradas tradicionais e limitava sua produção a quantidade necessária a sobrevivência da cultura indígena.

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No aspecto econômico, ao final da década de 1990, a Bolívia, assim como grande parte da América Latina, apresentava exaustão do modelo neoliberal vigente. A conjuntura econômica era desfavorável com grave recessão, aumento do desemprego e da pobreza, não bastasse o governo de Bánzer (1997-2001) ficar marcado por sérias denúncias de corrupção e intensa repressão às plantações de coca, aumentando consideravelmente o conflito com os cocaleros. Somente após a tentativa de privatizar o sistema de abastecimento de água da cidade de Cochabamba eclodiria uma série de conflitos, bloqueios de rodovias e marchas populacionais, a chamada Guerra da Água, no ano de 2000.

Depois de várias conquistas, a revolução gerada pelo MNR (1952) estava estagnada. Com a crescente dependência econômica da Bolívia aos Estados Unidos, os governantes bolivianos não estavam dispostos a confrontar diretamente o que a revolução chamava de “imperialismo norte-americano” e começam a mudar de posição em relação aos trabalhadores e camponeses, distanciando-se assim desses importantes aliados. As divergências internas dentro do MNR tornam-se evidentes nos violentos conflitos de facções camponesas nos vales da região de Cochabamba.

Diante do discurso autoritário vigente no país, permeado por conflitos e bloqueios, imigrantes indígenas que chegavam à capital La Paz e aos grandes centros urbanos enfrentavam o racismo e tinham que conviver sob a denominação de camponeses subordinados, fazendo com que associações desses grupos vivessem na clandestinidade. Algumas dessas associações, como a Confederação Túpac Katari, buscavam resgatar a identidade indígena através de sua história e conservação de suas raízes culturais para se estabelecerem como sujeito social e político, tendo através do Partido Indio de Bolívia (PIB), fundado em 1968 por Fausto Reinaga, sua primeira manifestação.

A pressão exercida pelos Estados Unidos ao final dos anos 1970, para que a América Latina se democratizasse em tempos de ditaduras, fez com que a Bolívia abrisse espaço político para essas organizações antes marginalizadas, que se constituíram como um autêntico movimento de massas com autonomia ideológica e organizativa que lutavam contra a continuidade da opressão colonial, como a Confederação Túpac Katari e a Confederação Sindical Única de Trabalhadores

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Camponeses de Bolívia (CSUTCB), criada em 1979, junto a COB, e diversas outras organizações kataristas surgidas na mesma época, como: Movimiento Indigena Túpac Katari (MITKA) e o Movimiento Revolucionário Túpac Katari (MRTK). A CSUTCB se consolidou como uma entidade camponesa de massas, marcando as relações entre as demandas étnicas culturais e as demandas econômicas do camponês indígena.

O katarismo era, portanto, uma mistura do tempo camponês com o tempo indígena, pois, apesar de resgatar fortemente o conteúdo étnico das lutas coloniais. Apostava no sindicato agrário como “espaço potencial para a realização de uma imagem possível de sociedade, na qual teria que se plasmar uma aspiração de convivência como 'unidade na diversidade'”. Assim, o katarismo teria na memória de 1952 também uma forte referência, incorporando nas suas reivindicações tanto as demandas por igualdade e cidadania quanto por sua identidade étnica diferenciada. (IAMAMOTO, 2011 p. 59)

Túpac Katari, codinome de Julian Apasa, foi um dos líderes das “guerras de libertação”, junto com Jose Gabriel Condorcanqui e Tomás Katari, que ocorreram pelo sul do Peru e pela Bolívia entre os anos de 1780 e 1782. Na Bolívia, os Katari lideraram uma guerra contra os mecanismos arbitrários de exploração impostos pelo Estado espanhol no país, até então ainda colônia, assumindo caráter fundamental na história da América (CAMARGO, 2006).

Seja como for, tomadas em seu conjunto, as duas rebeliões representam fenômeno sem paralelo no resto da América colonial, tanto pelo seu grau de violência e brutalidade – os quase dois anos de combates no Peru e na Bolívia cobraram cerca de cem mil vidas, aproximadamente 10 por cento da sua população –, quanto pela audácia político-estratégica de seus líderes – os cercos a Cuzco e a La Paz, empreendidos respectivamente por Amaru e Katari, apesar de malogrados, adquiriram ressonância mítica, muito além do

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seu contexto puramente militar (CAMARGO, 2006, p. 114).

Nos anos 1980, os kataristas e a CSUTCB já se encontram enfraquecidos devido a divergências internas ideológicas e divisões políticas, perdendo credibilidade nesse aspecto, adotando um discurso pluri-multicultural. A partir daí, o movimento cocalero se fortalecia e juntamente com o movimento campesino, através da CSUTCB, e o movimento indígena, através da Confederação de Indígenas do Oriente Boliviano (CIDOB15), articularam um movimento indígena-campesino que surgiria como instrumento social e político na figura do MAS-IPSP, Movimiento al Socialismo – Instrumento Político por La Soberanía de los Pueblos. A figura do índio entra em cena nesse momento não apenas como uma questão política pautada nos objetivos da classe camponesa, mas agora incluindo também o fator da etnicidade. De acordo com Camargo,

Nesse momento, contudo, reaparece politicamente o índio, que já experimentara a servidão feudal do pongueaje, dela libertara-se na cidadania camponesa do Estado de 1952 e, por fim, mediante o katarismo, adquirira nos anos setenta consciência política, como indígena e autóctone. A emergência de novos movimentos indígenas e camponeses com repertórios de ação coletiva vitoriosa – bloqueios e protestos, em 2000 e 2001, em várias regiões do país – marca o nascimento de uma nova força política. Representam grupos sociais articulados em torno de reivindicações específicas, concretas e mobilizadoras, capazes de elaborar propostas de reformas econômicas e políticas que, viáveis ou não, possuem suficiente densidade para romper o monopólio discursivo democrático neoliberal que havia dominado a vida política nacional, desde 1985. (CAMARGO, 2006, p. 257)

Após décadas de regime neoliberal, desde 1985 sob o governo de Victor Paz Estenssoro, séculos de práticas extrativistas e de projetos modernizadores

15 A CIDOB representa 34 povos indígenas das “terras baixas” da Bolívia. Foi fundada em 3 de outubro de 1982 a fim de fortalecer institucionalmente as organizações indígenas.

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fracassados surge o questionamento sobre a incapacidade das elites de exercerem sua liderança para o crescimento do país. Com a intensa submissão do governo boliviano aos ditos da política dos Estados Unidos no continente, principalmente com a questão da erradicação do cultivo da coca – prática milenar andina – criou-se um sentimento “anti-imperialista” que sobrepassava diversos setores sociais e rechaçava os partidos políticos tradicionais. Em meados dos anos 1990, especificamente no ano de 1997, o MAS-IPSP surge como alternativa que abarca sindicatos, operários, camponeses e indígenas em um partido político intitulando-se como um “Instrumento pela soberania dos povos”.

1.1 – Especificidades da formação da sociedade boliviana

A Bolívia é um país de particularidades na sua formação, marcada por conflitos e tensões sociais desde a época colonial. O país, desde sempre, apresentou uma composição “étnica, social, e econômica profundamente complexa e marcada por um histórico permanente de tensão, expresso, sobretudo, na convivência conflitiva entre grupos sociais antagônicos” (CUNHA FILHO; VIANA, 2016, p. 24).

Essa complexidade social foi definida pelo sociólogo René Zavaleta Mercado (2008) como sociedade abigarrada, fruto do legado colonial espanhol no país. Importante ressaltar que a população indígena da Bolívia já é bastante diversificada, são 36 as etnias presentes hoje no território, sendo a aymara e a quéchua as maiores em termos populacionais.

A convivência entre espanhóis e indígenas moldou a sociedade, economia e política boliviana e, ainda hoje, pode-se perceber algumas particularidades em seu desenvolvimento, como as frequentes crises de hegemonia pelas quais sempre passou o país. Concordamos com Clayton M. Cunha Filho, doutor em ciência política e pesquisador do Observatório Político Sul-Americano (OPSA/IESP-EURJ), em sua caracterização sobre a “formação social abigarrada”,

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[…] a sociedade boliviana seria composta, na verdade, por muitas sociedades e civilizações justapostas, com tempos socioeconômicos distintos e na qual nenhuma delas é capaz de impor sua hegemonia completamente sobre as outras (TAPIA, 2002; ZAVALETA MERCADO, 2009a). Ao mesmo tempo em que possuía setores capitalistas modernos conectados à economia mundial, como os enclaves mineiros, a Bolívia ostentava comunidades isoladas e economias de subsistência não capitalista. (CUNHA FILHO; VIANA, 2016, p. 207).

Entre os anos 1985 até finais dos anos 1990, a Bolívia passa por uma época de aprofundamento do regime econômico neoliberal. Em 1986, sob o governo de Paz Estenssoro, através do Decreto 21060, deu início ao processo de privatização de empresas de diversas áreas, entre elas minas, telecomunicações, transportes, eletricidade e petróleo causando uma recessão econômica e o aumento do desemprego (ANDRADE, 2007).

Em oposição aos setores indígenas e populares, está o que se pode rotular como setor conservador, “composto, sobretudo, pelas classes média e alta”, destacando a “direita empresarial que abrange os grupos vinculados à economia de livre mercado, aos investimentos estrangeiros e às privatizações iniciadas na década de noventa”, localizando-se na região de Santa Cruz, Tarija e Beni, onde possuem liderança e representatividade tanto econômica quanto política. (CAMARGO, 2006, p. 217)

A região de Santa Cruz, atualmente, possui outro grupo bastante influente, o de empresários do setor agroindustrial. “Beneficiados pelo recente ciclo de expansão das exportações de soja e derivados, bem como pelo crescimento da agricultura algodoeira e da pecuária”. (CAMARGO, 2006, p. 218) Segundo Camargo, sobre a economia boliviana,

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O departamento de Santa Cruz gera aproximadamente um terço do PIB boliviano, bem como cerca de 25 por cento da arrecadação tributária nacional e, dado mais notável, quase 60 por cento das exportações. Na Bolívia de hoje, dois em cada três dólares exportados originam-se de produtos derivados de soja, algodão e madeira, provenientes da região oriental do país. (CAMARGO, 2006, p. 222)

O departamento de Santa Cruz chegou a encabeçar um movimento separatista devido sua oposição ao governo de Evo Morales. Historicamente é uma região de oposição ferrenha e declarada aos movimentos sociais que no início dos anos 2000 promoveram uma série de protestos contra privatizações e políticas econômicas que vieram a desestabilizar politicamente o país.

1.2 – Especificidades da formação política boliviana

A história da Bolívia é marcada por crises políticas, ditadura militar, assim como ocorreu em grande parte da América Latina, escândalos de corrupção e golpes e tentativas de golpes de Estado até pouco depois da primeira eleição de Evo Morales.

Entre os anos de 1964 a 1978 a Bolívia esteve sob regime militar, em que diversos generais se alternavam no poder amparados por sucessivos golpes de Estado. Em 1964, Paz Estenssoro estava na presidência do país quando foi deposto por René Barrientos em um golpe; este passa a governar com apoio da elite local e dos Estados Unidos. Dois anos depois, Barrientos morre em um acidente aéreo sendo substituído por seu vice, Luis Adolfo Siles Salina, mas no mesmo ano, 1969, Salinas é deposto pelo general Alfredo Ovando, que se declara presidente e toma medidas políticas que iam diretamente de encontro às de seus antecessores, como a nacionalização dos hidrocarbonetos e o combate à pobreza. Pouco tempo depois,

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em sete de outubro de 1970, Ovando é deposto por “militares de direita articulados com o capital monopolista estadunidense” (AGUIAR, 2012, p.41).

Em 1971, Hugo Bánzer assume a presidência do país após dar um golpe no então mandatário Juan José Torres. Bánzer depois viria a ser eleito após a redemocratização, sendo o governante durante o episódio da Guerra da água. Seu governo foi marcado por atos de corrupção, além de violação de Direitos Humanos, perseguição e extinção dos partidos opositores.

Economicamente, a Bolívia apresentou grande crescimento nesse período, com o alto preço cobrado pelas exportações de petróleo e gás e empréstimos da comunidade internacional, principalmente dos Estados Unidos, forte apoiador da ditadura de Bánzer. Porém, logo em seguida, o país mergulharia numa forte crise econômica devido ao agravamento da dívida externa. Em 1978 os compromissos financeiros da Bolívia representavam 94% do PIB do país e, pressionado por diversas frentes, Banzer convoca eleições gerais para julho de 1978.

Após a redemocratização foi eleito Siles Zuazo, em 1980, tendo sua posse adiada por um novo golpe de Estado encabeçado pelo general Luís García Meza, só assumindo a presidência em 1982. Em meio a inflação alta e crise econômica são antecipadas eleições que levam a presidência Paz Estenssoro, em 1985, inaugurando o período conhecido como “Democracia Pactuada”. Diante da não obtenção de maioria absoluta, as articulações entre os partidos permitiam que chegasse a presidência candidatos que obtiveram menos de ¼ dos votos quando submetidos ao sufrágio popular.

As eleições que antecedem a primeira vitória de Morales, em 2005, são baseadas nesse modelo de “democracia pactuada”16

. Para explicar a expressão “pactuada” são necessários esclarecimentos sobre o sistema eleitoral boliviano, onde o Congresso era responsável por ratificar os escolhidos, quando não obtida a maioria absoluta pelo voto popular, modelo que justifica os baixos percentuais obtidos pelos presidentes eleitos entre 1985 a 2002. Segundo Rafaela Pannain,

16 A Constituição de 1967, vigente até a promulgação da Constituição Plurinacional, em 2009, estabeleceu que em caso de nenhum candidato obter a maioria absoluta de votos, o presidente seria eleito pelo congresso em segundo turno indireto. (CUNHA FILHO, 2016, p. 295)

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Acordos entre lideranças de grandes partidos políticos e de partidos menores foram característicos da política institucional boliviana entre 1985-2003, período conhecido como “democracia pactuada”. Por duas décadas, esse sistema garantiu a alternância dos principais partidos no comando dos poderes Executivo e Legislativo. Durante esse período, alcançou-se uma estabilidade institucional cujo alicerce foram a ausência de disputa entre projetos políticos significativamente distintos e a impossibilidade de influência de representantes da maioria indígena na política institucional em nível nacional. (PANNAIN, 2018, p. 291)

A respeito das distorções desse modelo, podemos exemplificar com a escolha de Paz Zamora, eleito por uma coalização no Congresso entre MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionária) e ADN (Acción Democrática Nacionalista), sendo o terceiro lugar na escolha popular, com apenas 21,82% dos votos. Enquanto fórmula, o modelo era um misto entre parlamentarismo e presidencialismo, que não garantia necessariamente o respeito à vontade popular, entretanto esse período de quase duas décadas ficou conhecido como período um de estabilidade política (CUNHA FILHO; VIANA, 2016).

Tabela 2 – Resultados eleitorais pós-redemocratização

1980 1985 1989 1993 1997 2002 2005 Candidato Eleito Hermán Siles Zuazo Victor Paz Estenssoro Jaime Paz Zamora Sánchez de Lozada Hugo Bánzer Sánchez de Lozada Evo Morales

(partido) UDP MNR MIR MNR ADN MNR MAS

Votação Nominal

38,74% 30,36% 21,82% 35,55% 22,26% 22,46% 53,74%

Fonte: Reproduzido de Cunha Filho; Viana (2011, p. 227).

No ano de 2000 ocorre a “Guerra da água”, conflito motivado pela tentativa do governo de Hugo Bánzer de privatizar a rede de abastecimento de água, gerando

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uma série de intensos protestos pelo país, marcando a volta da instabilidade política, a crise dos partidos tradicionais MNR, MIR e ADN e a desagregação desse sistema partidário devido à pressão dos movimentos sociais. A “vitória popular diante do Estado representou um duro golpe nas instituições da '‘democracia pactuada’'” (CUNHA FILHO; VIANA, 2016, p. 24).

A partir de então os movimentos populares ganham força e devido às intensas mobilizações e protestos, que têm seu ápice entre 2002 e 2003, uma nova eleição é antecipada para 2005, onde Evo Morales obteve sua primeira vitória eleitoral, mas já vinha trilhando esse caminho desde 2002 quando ficou em segundo lugar no pleito presidencial,

Nas eleições gerais de 2002, sob o realinhamento dos movimentos sociais, as forças políticas emergentes apresentaram-se como novas alternativas de poder. Evo Morales obteve 20,94% dos votos, ficando logo atrás do vencedor, Sanchez de Lozada, com 22,46%. Ao conquistarem a expressiva segunda colocação no pleito, Morales e o MAS consolidavam-se como importantes atores políticos. Nesse sentido, o esgotamento da “democracia pactuada” tornou-se mais evidente nas eleições de 2002, com o fracasso dos partidos tradicionais e o surgimento de novas forças opositoras. (CUNHA FILHO; VIANA, 2016, p. 25)

A eleição de Evo inauguraria no país a hegemonia de um novo partido, obtendo assim legitimidade eleitoral e credibilidade para implantar suas propostas. A expressiva votação do MAS representa uma verdadeira ruptura diante do quadro de fragilidade daquele arranjo institucional, obtendo 53,74% dos votos válidos e participação recorde de 84% dos eleitores no pleito. Além de primeiro presidente indígena, foi também o primeiro a conseguir maioria absoluta dos votos, fato nunca ocorrido após a redemocratização do ano de 1982.

Utilizaremos aqui o conceito de hegemonia, tal qual utilizado por Gramsci, para caracterizar a expressividade do MAS. De acordo com Hugues Portelli, em seu

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livro “Gramsci e o bloco histórico”, Gramsci busca nos escritos de Lênin os elementos para descrever sua própria ideia de hegemonia. Para ele, “esta é, ao mesmo tempo, a 'direção' e a 'dominação' da sociedade, isto é, o controle das sociedades civil17 e política”. (PORTELLI, 1977).

Esta é [hegemonia], ao mesmo tempo, a “direção” e a “dominação” da sociedade, isto é, o controle das sociedades civil e política. Tal resultado só pode ser obtido se a classe operária alarga a “base social” de direção, graças a um “sistema de alianças” com outras classes subalternas – no caso, o campesinato, do qual terá obtido o “consentimento”. (PORTELLI, 1977, p. 63)

Um dos aspectos da concepção gramsciana de hegemonia é justamente o da “base social”, entendida como a necessidade de a classe fundamental apoiar-se em demais grupos aliados, para assim, construir certa hegemonia. Morales conseguiu agregar em torno de seu partido e do projeto de plurinacionalidade, além dos indígenas, os movimentos sociais, a classe operária e parte da burguesia boliviana, justamente devido à crise da hegemonia dos partidos tradicionais e do sistema de “democracia pactuada”, favorecida pelo “momento histórico” pelo qual estava passando a Bolívia,

O processo é diferente em cada país, embora o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é a crise de hegemonia da classe dirigente, que ocorre ou porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o qual pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas (como a guerra), ou porque amplas massas (sobretudo de camponeses e de pequeno-burgueses intelectuais) passaram subitamente da passividade política para uma certa atividade e apresentam reivindicações que, em seu conjunto desorganizado, constituem uma

17 Entendemos aqui como sociedade civil o conjunto de organizações ou instituições privadas que contribuem para manutenção da hegemonia.

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revolução. Fala-se de “crise de autoridade”: e isso é precisamente a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto (GRAMSCI, 2004, p. 60).

Mais à frente apresentaremos alguns dos aspectos que contribuíram para levar Evo Morales e o MAS a conquistar relativa hegemonia política na Bolívia e permanecer ainda hoje, indo de encontro ao processo atual de ascensão de governos de direita na América Latina.

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2 – Chegada de Evo Morales ao poder e a formação da nova Constituinte

Evo Morales surge no cenário político boliviano nos anos 1990 como representante do movimento cocalero. Na Bolívia o cultivo da folha de coca é uma prática milenar concentrada principalmente em duas grandes áreas produtivas: Yungas, do departamento de La Paz e Chapare, ao norte do departamento de Cochabamba.

Toda a importância cultural dessa prática, que para os camponeses indígenas é considerada não apenas histórica, mas vital para sua cultura, é posta em questão pelos Estados Unidos, mais intensamente nos anos 1990, que junto ao governo da Bolívia pregava o combate ao narcotráfico à criminalização e consequente erradicação do cultivo da folha. Importante ressaltar, que para os cocaleros o cultivo da coca não tem relação direta com o narcotráfico, pois além de ser uma prática milenar na região dos Andes, serve como estimulante e antídoto para as dificuldades com a altura, podendo ser mascada ou bebida como infusão.

A grande aceitação social que obteve o movimento cocalero durante suas manifestações foi de relevante importância para que o discurso político do movimento abrangesse a outros setores e atores sociais. Ao enfatizar a defesa da soberania estatal com relação ao imperialismo norte-americano e a ressignificação da folha da coca como herança cultural sagrada, os cocaleros colocaram a defesa da coca no centro das lutas sociais e políticas da Bolívia.

Durante o período da crise, ocorreu uma redução do emprego no setor legal e formal da economia, ao mesmo tempo em que aumentava a demanda por produtores de coca e por trabalhadores no setor de serviços nas zonas de cultivo da folha. O número de empregados na narcoeconomia crescia proporcionalmente à queda no número de trabalhadores da economia formal (Santana, 2004, 169). Assim, a coca ocupava, durante a década de 1980, um papel central na economia boliviana. Apesar de constituir uma atividade '‘ilegal’', um ataque efetivo à mesma geraria impactos econômicos e políticos substanciais, ameaçando a fonte de renda de milhares de cidadãos e produzindo um enorme potencial do conflito social (GUIMARÃES, 2014, p.

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226 apud RODRIGUES; SILVA 2017, p. 68).

O debate político e econômico torna-se também étnico. O índio passa a configurar-se e reconhecer-se como sujeito político, como também encontrando-se dentro de uma classe social, a camponesa, explorada no regime capitalista. Os movimentos sociais passam a manifestar-se ativamente e a questionar a hegemonia política e social no país e os sindicatos são as instituições que mobilizariam as pautas de demandas populares em contraposição ao governo que trarão o debate sobre o Estado Plurinacional. É importante mencionar que durante os anos 1980 e 1990 algumas reformas políticas foram instituídas de modo a privilegiar a

participação política de frações de classe da elite econômica de grandes latifundiários.

Nesse período, é importante ressaltar, havia uma dicotomia ideológica entre direita e esquerda, com a primeira praticamente desaparecendo da cena política enquanto a segunda gozava de um breve período de hegemonia. Diante desse contexto, os movimentos sociais surgem em oposição a essa ordem, organizando-se em partidos políticos de esquerda, como o MAS, cujas bases se encontram nos movimentos indígena e camponês, buscando na cultura andina milenar uma nova simbologia que também os incluísse no processo político nacional, rejeitando o modelo econômico vigente (CAMARGO, 2006).

Uma onda de protestos liderada por esses movimentos sociais se propagou pelo país provocando um quadro de violência e instabilidade política devido a Guerra da Água no ano de 2000. Esse conflito se deu devido à privatização da água por parte do governo de Hugo Bánzer e consequente elevação da tarifa. A ampla mobilização com teor nacionalista de classes populares e médias questionava o porquê de uma multinacional estrangeira lucrar com um recurso natural boliviano obrigando a rescisão do contrato com empresa privada, a Bechtel Holdings associado a dois sócios bolivianos, culminando na saída do país (CAMARGO, 2006). Já nas eleições de 2002, esses movimentos surgem como forças políticas emergentes e aparecem como novas alternativas em contraposição ao governo

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vigente. Nessa eleição, Evo Morales18, do MAS-IPSP, obteve 20% dos votos, ficando atrás de Sanchez de Lozada, presidente eleito.

O surpreendente crescimento de Evo Morales nas eleições presidenciais de 2002, já que nas pesquisas iniciais estava em sétima posição e acabou subindo para um segundo lugar, apenas dois pontos percentuais atrás do eleito Gonzalo Sánchez de Lozada, do (MNR), mostrou que havia se desencadeado na Bolívia, segundo Pablo Stefanoni, um processo de “liberação cognitiva” proveniente de baixo, desde as classes mais baixas fazendo com que os indígenas e camponeses pensem agora de maneira autônoma, o resultado nas eleições seria apenas o reflexo das lutas e da ocupação de seus líderes em cargos importantes dentro dos sindicatos.

Ainda sob clima de insatisfação, a população continuava com protestos e bloqueios de estradas organizadas pelos movimentos sociais. A intenção do governo de exportar gás natural com os Estados Unidos, aliada a violenta repressão dos protestos, com mortos e feridos, faz eclodir a Guerra do Gás, em 2003, desestabilizando ainda mais o governo boliviano, fato que culmina com a renúncia de Lozada. Assume então a presidência Carlos Mesa, que convoca o debate sobre a nacionalização dos hidrocarbonetos, mas ainda sob forte crise política e social. Segundo Luis Fernando Ayerbe (2011), durante a Guerra do Gás os movimentos populares recebem apoio do parlamento que já posicionava diante da nova política prestes a se estabelecer no país, representados pelo Movimento Indígena Pachakuti (MIP), dirigido por Felipe Quispe, fundado no ano de 2000 e pelo MAS, elevando a representação parlamentar indígena de 36 a 52 participantes de um total de 130 deputados e 27 senadores. Tendo o MAS eleito 27 deputados e 8 senadores, já nas eleições de 2002 (AYERBE, 2011). Sobre esse contexto de

“guerras”, ressalta,

Em todo esse processo, revelam-se duas grandes tendências: 1) a falência das políticas econômicas aplicadas partir de 1985; 2) a mudança no perfil dos movimentos sociais, em que a lógica classista que predominou até os anos 1980, com a liderança da COB e de forte presença no setor

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