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FONTES E EDIÇÕES. Gladis Massini-Cagliari Márcio Ricardo Coelho Muniz Paulo Roberto Sodré organizadores

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Academic year: 2021

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FONTES E EDIÇÕES

Gladis Massini-Cagliari

Márcio Ricardo Coelho Muniz

Paulo Roberto Sodré

organizadores

Araraquara

GT de Estudos Medievais - ANPOLL 2012

(3)

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL) – Grupo de Trabalho Estudos Medievais

Comissão Científica:

Célia Marques Telles (Universidade Federal da Bahia/UFBA) Lênia Márcia Mongelli (Universidade de São Paulo/USP)

Maria do Amparo Tavares Maleval (Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ) Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela/USC) Rip Cohen (The Johns Hopkins University [USA])

Stephen R. Parkinson (University of Oxford [U.K.])

Yara Frateschi Vieira (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp)

Catalogação: Ana Maria de Matos, CRB 6/ES, n. 425.

Programador visual do e-book:

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

F683 Fontes e edições [recurso eletrônico] / Gladis Massini-Cagliari, Márcio Ricardo Coelho Muniz, Paulo Roberto Sodré, organizadores. – Araraquara : ANPOLL, 2012.

(Série Estudos Medievais ; n. 3)

Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader. Modo de acesso: World Wide Web:

<http://portal.fclar.unesp.br/poslinpor/gtmedieval/interno.php?secao=publicacoes>.

ISBN 978-85-89760-04-1

1. Literatura medieval – História e crítica. 2. Liturgia – Espanha – Canções e música. 3. Literatura portuguesa – até 1500 – História e crítica. 4. Poesia satírica portuguesa – Crítica e interpretação. 5. Amor na literatura. 6. Pensamento religioso – Influências gregas. 7. Idade Média. I. Massini-Cagliari, Gladis. II. Muniz, Márcio Ricardo Coelho. III. Sodré, Paulo Roberto. IV. Série.

CDD: 809.8940902 CDU: 82(091)“04/14”

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Prefácio

Sobre a liturgia moçarábica

Célia Marques Telles Risonete Batista de Souza

Universidade Federal da Bahia (UFBA); CNPq

1

A configuração do amor nas cantigas

pastorelas

Clarice Zamonaro Cortez Marciléia de Souza Apolinário Universidade Estadual de Maringá (UEM)

21

Uma intrincada rede de fontes e de influências no

Decameron, de Giovanni Boccaccio

Delia Cambeiro

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

55

Duas leituras dos poemas 55 e 56 de Fernão da Silveira no

Cancioneiro Geral de Garcia de Resende

Geraldo Augusto Fernandes

Universidade de São Paulo (USP); Universidade Nove de Julho

72

Antropônimos e Topônimos nas Cantigas de Santa Maria

Gladis Massini-Cagliari

Universidade Estadual Paulista (UNESP/Araraquara); CNPq; FAPESP Helena Maria Boschi da Silva

Pós-Graduação – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

87

A estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra ou Coronica do

Condestabre

Maria do Amparo Tavares Maleval Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

111

O jugar de palabras nas rubricas explicativas das cantigas

de escárnio e maldizer

Paulo Roberto Sodré

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

140

Fontes da misoginia medieval: ressonâncias aristotélicas

no pensamento religioso medieval

Pedro Carlos Louzada Fonseca Universidade Federal de Goiás (UFG)

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Este e-book, Fontes e edições, que ora apresentamos, é o terceiro livro da Série Estudos Medievais, série oficial de obras publicadas pelo Grupo de Trabalho de Estudos Medievais (GTEM) da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (Anpoll). A coleção que se iniciou em 2008 e que, neste, tem seu terceiro número, pretende dar a conhecer, a um público especializado e diversificado, trabalhos que refletem sobre aspectos fundamentais da pesquisa sobre Língua e Literatura da Idade Média: seus métodos, suas fontes, seus corpora, seus objetivos, seu alcance. Mais especificamente, a Série Estudos Medievais se dedica a trazer à luz as pesquisas desenvolvidas pelos integrantes do GTEM, a partir do tema focalizado ao longo do biênio, recortado dos objetivos gerais de pesquisa do Grupo.

Em Julho de 2008, veio à luz o primeiro e-book temático, com o objetivo de publicar os trabalhos que vinham sendo até então produzidos no GTEM, nos seus dois primeiros biênios de atuação. O tema do primeiro livro “virtual” organizado pelo Grupo era Metodologias; desta forma, a obra reuniu trabalhos que focalizam procedimentos metodológicos adotados no desenvolvimento das pesquisas em andamento no contexto dos Estudos Medievais brasileiros nas áreas de Letras e Linguística. Resultado dos encontros inaugurais do GTEM, o primeiro volume da Série Estudos Medievais visou mostrar, sobretudo a estudantes e estudiosos brasileiros, a importância da metodologia na discussão dos temas medievais, seja na área dos estudos linguísticos, seja na dos literários.

Prosseguindo com a importante discussão metodológica iniciada no número 1 da Série, o número 2, publicado em 2009 e dedicado às Fontes, objetivou a investigação dos documentos, das obras, da fortuna crítica e dos materiais imprescindíveis à constituição de corpora e à fundamentação teórica das pesquisas do Grupo.

Este terceiro número da série continua e aprofunda a reflexão iniciada no volume anterior, estendendo a discussão sobre as fontes dos estudos medievais (documentais, críticas e materiais) às suas edições, ou seja, à forma como os textos medievais remanescentes encontram-se disponibilizados ao leitor atual, às leituras e interpretações

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A maior parte dos trabalhos reunidos neste volume foi apresentada no terceiro encontro temático do GTEM, ocorrido em Belo Horizonte, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de 1 a 3 de julho de 2010; como de praxe, o encontro interno do Grupo realizou-se como uma das atividades do XXV Encontro Nacional da Anpoll, associação maior que o abriga.

Este volume reúne oito artigos, que ilustram as linhas de trabalho que o Grupo vem desenvolvendo e que se pretendem como um pequeno conjunto representativo de publicações voltadas para a pesquisa brasileira em Estudos Medievais. Seguindo o costume dos volumes anteriores, os artigos foram ordenados a partir da ordem alfabética do prenome do primeiro autor.

No primeiro capítulo do volume, Célia Marques Telles e Risonete Batista de Souza exploram o Missale mixtum e o Breviarium Gothicum, textos da Liturgia moçarábica. O primeiro dá conta do conteúdo do missal e resume a história da liturgia cristã no mundo hispano-godo-moçárabe, enquanto que, no segundo, figuram os Hymni mozarabici. Neste texto, as autoras exploram a dimensão tanto das fontes como das edições, uma vez que, acreditando que nos textos da liturgia moçarábica, além da consolidação da liturgia hispano-goda-moçarábica na Península Ibérica, podem ser encontrados outros elementos da língua usada na Hispânia visigoda, as autoras buscam os elementos linguísticos desse romance nos textos dos hinos.

O segundo capítulo, de Clarice Zamonaro Cortez e Marciléia de Souza Apolinário, centra-se na configuração do amor nas cantigas de amigo com motivos das pastorelas, um gênero em que ocorre o encontro amoroso entre cavaleiros e pastoras. A este respeito, as autoras visam o papel das cantigas de amigo galego-portuguesas como fonte para a compreensão de uma das concepções medievais de amor, que, nas pastorelas, carrega consigo a ampla tradição poética e cultural do Trovadorismo: o ambiente guerreiro, a religiosidade, a musicalidade e a paisagem ideal da poesia. Todos estes elementos convergem para colocar em destaque um personagem específico e crucial para a representação dessa concepção amorosa: a jovem pastora enamorada.

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intertextual e polifônica, que leva os leitores a buscar as diferentes fontes de influências desta primeira obra urbana moderna, ao mesmo tempo em que discute, com base nas novelas boccaccianas, as possíveis marcas recebidas e as deixadas pelo Decameron na literatura europeia.

No quarto capítulo, de retorno ao cenário ibérico, Geraldo Augusto Fernandes explora diferentes edições de duas cantigas do Cancioneiro geral de Garcia de Resende, com base nas divergentes leituras que receberam dos dois últimos editores do compêndio: António José Gonçalves Guimarães (1910-1917) e Aida Fernanda Dias (1973-1974 e 1990-1993). A tarefa do autor é hipotetizar sobre os motivos de tais visões divergentes.

O texto de Gladis Massini-Cagliari e Helena Maria Boschi da Silva, que constitui o quinto capítulo deste livro, focaliza os antropônimos e topônimos no ancestral medieval do português contemporâneo, abordando a questão das Cantigas de Santa Maria de Afonso X (1221-1284) como fonte fidedigna e rica para o estudo dos nomes próprios. A partir do levantamento geral de todos os nomes de pessoas e lugares que ocorrem nas cantigas religiosas galego-portuguesas, as autoras examinam as ocorrências de antropônimos de origem estrangeira, que são analisadas de acordo com o sistema fonológico vigente no galego-português da época, de modo a verificar o seu grau de adaptação em termos de pronúncia, a partir das pistas deixadas pela escrita.

Já o sexto capítulo, de autoria de Maria do Amparo Tavares Maleval, investiga A estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra (1360-1431) ou Coronica do Condestabre. A autora trata da importante questão da disponibilização e das edições das fontes primárias do medievo, exemplificando com a crônica, de autor anônimo, que trata da vida e dos feitos do nobre acima referido. A obra recebeu uma edição crítica por Adelino de Almeida Calado (1991). Com base nessa edição e após acompanhar-lhe o processo de editoração, a autora reflete sobre a obra, analisando-a, tendo em vista principalmente o perfil de cavaleiro (quase) perfeito que nela é construído. Para tal, a autora acompanha todo o percurso de edições que a obra recebeu até o momento.

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partidas, de Afonso X, nas quais constariam as normas de comportamento palaciano junto ao rei e aos que frequentam sua corte. A proposta do artigo é explorar o potencial das setenta e quatro rubricas atributivas e explicativas que acompanham a compilação geral da lírica profana medieval como fonte para o estudo da natureza do gênero satírico.

Fechando o volume, o artigo de Pedro Carlos Louzada Fonseca concentra-se nas fontes da misoginia medieval, investigando as ressonâncias aristotélicas no pensamento religioso da época. De maneira comparativa e crítica, o capítulo examina duas das principais ideias que podem ser consideradas como fundamentais na formação da tradição antifeminista na cultura e literatura europeias: 1) os estudos de Aristóteles sobre a fisiologia da mulher, nos quais o papel feminino na procriação foi reduzido àquele de matéria prima, a esperar a agência formadora ou movimentadora do sêmen do homem; 2) a desagradável equação entre mulher e matéria, que encontrou apoio no pensamento religioso da Idade Média.

Não se restringindo apenas aos textos trovadorescos galego-portugueses e sendo válida para os textos medievais europeus em geral, a afirmação de Lênia Márcia Mongelli, ao final da “Introdução” aos Fremosos cantares da “nossa” lírica medieval, aplica-se ao espírito básico dos textos aqui analisados por todos os membros do GTEM1:

Não é necessário enfatizar, em solo ibérico e até fora dele, a longevidade das lições trovadorescas – ainda muito vivas nos séculos XVI e XVII, distorcidas no século XIX, desmaiadas mas perfeitamente audíveis na modernidade e plenas de pujança das “redescobertas” no século XXI.

Da mesma forma como ocorreu nos números anteriores desta Série, os capítulos aqui resumidos, sobre múltiplos aspectos e sentidos relativos às “fontes” dos projetos voltados para as línguas e as literaturas do Medievo românico e à utilização das edições preparadas a partir delas para os Estudos Medievais, constituem um pequeno contributo no sentido de participar ativamente dessas “redescobertas”, que renovam o interesse na

1

MONGELLI, L. M. Fremosos cantares: antologia da lírica medieval galego-portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. xlvi.

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Comissão Editorial (organizadores)

Gladis Massini-Cagliari Márcio Ricardo Coelho Muniz Paulo Roberto Sodré Maio de 2012

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 1 Célia Marques Telles Risonete Batista de Souza Universidade Federal da Bahia (UFBA); CNPq

Resumo: Os volumes 85 e 86 da Patrologia Latina, editada por J.-P. Migne, em 1862, trazem os textos da chamada Liturgia Moçarábica: O Missale mixtum e o Breviarium Gothicum. O

Missale mixtum compreende duas partes que integram o volume 85, antecedidas de um Praefatio de Alexandro Lesleo, S. J.. que dá conta do conteúdo do missal e resume a história da

liturgia cristã no mundo hispano-godo-moçárabe. O volume 86 contem o Breviarium Gothicum, que é antecedido de uma saudação ao leitor de Francisco Antonio Lorenzana, arcebispo de Toledo. No Breviarium Gothicum destacam-se os Hymni mozarabici. Ora, como é sabido, o romance moçarábico é documentado pela lírica moçarábica e pelos glossários. Espera-se poder encontrar algum elemento lingüístico desse romance nos textos dos hinos.

Palavras-chave: Moçárabe; Liturgia hispano-goda; Hinos moçarábicos.

Abstract: The 85th and the 86th volumes of the Patrologia Latina, edited by J.-P. Migne, in 1862, bring the texts of the so called Mozarabic Liturgy: the Missale mixtum and the Breviarium

Gothicum. The Missale mixtum includes two parts that integrate the 85th volume, preceded by a

Praefatio of Alexandro Lesleo, S. J. This one presents the missal contents and summarizes the

Christian liturgy history in the Hispano-gothico mozarabic world. The 86th volume brings the

Breviarium Gothicum, that is preceded of a reader salutation by Francisco Antonio Lorenzana,

archbishop of Toledo. In the Breviarium Gothicumone can notice the Hymni mozarabici. And, as it is very well known the Mozarabic romance is documented by the mozarabic lyric and by the glossaries.We expect can find some linguistic elements of this Romance in the texts of the hymns.

Keywords: Mozarab; Hispano-gothica Liturgy; Mozarabic hymns.

1. Introdução

Este trabalho é a continuação do estudo das fontes medievais no Mosteiro de São Bento da Bahia (TELLES, 2008). Acreditava-se que nos textos da liturgia moçarábica, além da consolidação da liturgia hispano-goda-moçarábica na Península Ibérica, se pudesse encontrar outros elementos da língua usada durante a Hispânia visigoda. Os textos em latim cristão, no que tange às interferências dos editores, não oferecem senão alguns traços, à luz da métrica rítmica, que podem ser atribuídos a esses falantes.

(11)

Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 2 Os historiadores destacam que a Idade Média ocidental é essencialmente um período do domínio do gesto. Isto se deve, sobretudo, ao fato de ser uma sociedade ágrafa. Por esta razão, o gesto, os sons (fórmulas orais, músicas) e o uso de objetos simbólicos se sobrepunham à escrita, acessível a poucos. Claude Schmitt (2002, p. 415) observa que o rito é pluridimensional e engloba os gestos, os aspectos vocais, as vestimentas, além da manipulação de objetos simbólicos, por exemplo, a coroa e o cetro na consagração régia e o pão e o vinho no rito eucarístico. A repetição ordenada dos gestos e das expressões orais por um grupo social com finalidades simbólicas termina por constituir-se em rituais que foram transmitidos por séculos e, muitas vezes, chegaram às sociedades atuais.

O rito é, pois, uma categoria da sociedade e da cultura medievais e os homens daquele tempo não desconheciam os aspectos que o compunha. Embora os romances de cavalaria, por exemplo, tenham legado descrições bastante satisfatórias de rituais profanos como a sagração do cavaleiro, foram as liturgias eclesiásticas que formaram um corpo mais abundante do legado medieval. Aliás, alguns antropólogos defendem que o rito está associado ao sagrado, funcionando num eixo vertical, que liga os homens ao divino. Por outro lado, os rituais laicos refletem as relações humanas e constituem as cerimônias.

Interessa-nos, neste trabalho, justamente o aspecto do sagrado e, portanto, o que se constitui o rito propriamente dito. Mas antes convém destacar outro aspecto do rito extremamente importante para nosso objeto de estudo, que é o fato de ele ter uma dimensão histórica. Ou seja, o rito nasce progressivamente, aos poucos, e passa por transformações antes e mesmo depois de ser adotado por toda a Igreja. Considerar estes aspectos é essencial quando se pretende investigar o rito moçárabe.

(12)

Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 3 Rito visigótico-moçárabe, hispânico ou moçarábico são denominações para o conjunto mais ou menos coeso de rituais litúrgicos praticados pela Igreja cristã no território ibérico sob o domínio árabe. Entretanto, historicamente, a gênese desse rito é muito mais complexa do que sugere tal denominação. Primeiro, considerando o fato de que um rito é construído ao longo de tempo, ele não surgiu propriamente no período em que floresceu a chamada cultura moçarábica. É preciso lembrar que a Igreja construiu seu corpo doutrinário, sobretudo, ao longo da Idade Média, portanto, não se pode considerar, neste período, que havia um rito acabado, pronto.

Embora o problema das origens do rito moçarábico esteja parcialmente em aberto, é possível identificar alguns aspectos relevantes, a partir dos elementos de que dispomos até então. As primeiras referências a ele são do período visigótico (PRADO, 1928, p. 8). Sabe-se que alguns de seus elementos devem derivar do antigo rito gálico, associado ao ambrosiano e ao irlandês, assim como do rito bizantino, além do monacal ou beneditino. Ele foi codificado ao longo de vários concílios1 e graças ao esforço de liturgistas como Santo Isidoro de Sevilha, sobretudo no Ecclesiasticis Officiis, e Santo Ildefonso de Toledo.

A rigor, a liturgia hispânica tem sua origem na romana dos primeiros tempos da Igreja e vai amalgamando influências dos mais diversos grupos sociais formadores da sociedade medieval peninsular. O fato de grande parte do território hispânico ter ficado sob domínio dos árabes, a partir dos princípios do século VIII, contribuiu para acentuar a situação de isolamento do centro e sul da Península, que de resto já se constituía um território pouco acessível graças a seu distanciamento geográfico, desde a época dos romanos. É de se esperar que, tal como a língua, a Península Ibérica fosse fonte de arcaísmos culturais e, consequentemente, litúrgicos. Mas a condição arcaizante de seus ritos litúrgicos vai ser percebida mais agudamente após a introdução do rito romano

1 Prado (1928, p. 27-28) enumera uma série de concílios espanhóis que vão desde cerca o início do século

IV em Elvira ou Iliberis até o século IX em Córdoba, destacando que são fontes preciosas para a história da liturgia moçarábica.

(13)

Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 4 O rito romano penetrou na Espanha através de Aragão e Catalunha e foi, aos poucos, ganhando terreno frente ao rito moçarábico, “resignáronse al fin los pueblos de España a perder su antiguo Rito, Rito querido y venerado em que habían sido bautizados, em que oyeron cantar sus padres las alabanzas divinas” (PRADO, 1928, p. 78). Aos poucos, o rito moçarábico, assim como a própria cultura dos povos submetidos ao domínio árabe foi retrocedendo tal como a fronteira muçulmana redesenhada pelas investidas dos cristãos nas guerras de reconquista.

O resgate dos elementos deste rito poderá contribuir para entender melhor a língua e a cultura dos moçárabes, obliteradas pela política centralizadora dos cristãos do norte, que impuseram sua língua, sua cultura e, por conseguinte, a ortodoxia dos ritos eclesiásticos romanos. Felizmente, o acesso ao rito moçarábico, graças às muitas fontes canônicas, é mais fácil do que ao romance moçarábico2, substituído paulatinamente pelo que hoje designamos como dialeto andaluz. Dentre elas, destacamos as reunidas nos volumes 85 e 86 da Patrologia Latina, editada por J.-P. Migne, em 1862, trazem os textos da chamada Liturgia Moçarábica: O Missale mixtum e o Breviarium Gothicum, objeto de nosso estudo neste trabalho.

2. A patrologia latina

Em trabalho anterior (TELLES, 2008) retoma-se o que informa o verbete patrologia do Diccionario literario de obras y personajes de todos los tiempos y de todos los países (CORTÌ, 1959, v. 7, p. 945a-946a) oferece informações sobre a obra:

2 A língua moçárabe é conhecida através dos glossários latino-árabes, as citações em aljamia de vários

escritores árabes, as inscrições, os topônimos e os textos curtos das cantigas tradicionais contidas nas

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 5 única todos los textos cristianos, griegos y latinos, compuestos desde la época de // los Apóstoles hasta los umbrales de la Edad Moderna. La colección se subdivide en dos partes: la patrología griega y la latina. La griega comprende todos los textos cristianos compuestos desde la época de los Apóstoles al Concilio de Florencia (1459); en 161 tomos (más 2 vols. de índices), publicados en dos series, la una de 108, la otra de 55 volúmenes, en los que al lado del texto griego va la traducción latina; existe adermás una tercera serie de 84 volúmenes, que contiene solamente las traducciones latinas de los textos. La obra comienza con Clemente de Roma, Bernabé Apóstol, Mateo Apóstol, // Hermas, para llegar hasta Teodoro de Gaza, Juan Paleólogo, Constantino Paleólogo, etc. La patrología latina, en 221 volúmenes (más cuatro de índices), se extiende desde los orígenes de la literatura cristiana, es decir, desde Tertuliano y Cipriano, hasta Inocencio III (1216). Después de la muerte de Migne, en 1880, Horoy añadió a esta serie un apéndice de 6 volúmenes con el título Patrologia Latina Medii Aevi, la cual parte del “Ordo Romanus”, de la “Quinta Compilatio decretalium”, para llegar con el sexto volumen a los escritos de San Francisco de Asis y de San Antonio de Padua. El mayor mérito de esta obra consiste en ofrecer la primera edición de bastantes textos griegos y latinos, y la primera traducción latina de algunos textos griegos: se trata sin embargo de ediciones que tienen muchos defectos desde el punto de vista crítico. Migne, en efecto, tuvo que recurrir a ediciones preexistentes y, por consejo de Pitra, sobretudo a las de los benedictinos. Tales ediciones, hechas con método menos riguroso que el actual, no pueden ser aceptadas como base para trabajos filológicos. Sin embargo, son muy útiles las noticias eruditas sobre la vida de los autores y sobre la historia literaria y religiosa de varios textos, que se anteponen a la edición de cada uno de ellos3.

3 Traduzindo: “PATROLOGIA GREGA E LATINA [Patrologiae cursus completus]. Ao engenho

poderoso e à atividade incansável do abade Jacques-Paul Migne (1800-1875), teólogo francês, devemos a existência desta obra colossal, que foi idealizada e realizada entre 1844 e 1866, com o objetivo de recolher em uma coleção única todos os textos cristãos, gregos e latinos, compostos desde a época dos // Apóstolos até os umbrais da Idade Moderna. A coleção se subdivide em duas partes: a patrologia grega e a latina. A grega compreende todos os textos cristãos compostos desde a época dos Apóstolos ao Concílio de Florença (1459); em 161 tomos (mais 2 vols. de índices), publicados em duas séries, uma de 108, a outra de 55 volumes, nos quais ao lado do texto grego vai a tradução latina; existe, além disso, uma terceira série de 84 volumes, que contém somente as traduções latinas dos textos. A obra começa com Clemente de Roma, Barnabé Apóstolo, Mateu Apóstolo, // Hermas, para chegar até Teodoro de Gaza, João Paleólogo, Constantino Paleólogo etc. A patrología latina, em 221 volumes (mais quatro de índices), se extende desde as origens da literatura cristã, isto é, desde Tertuliano e Cipriano, até Inocêncio III (1216). Depois da morte de Migne, em 1880, Horoy acrecentou a esta série um apêndice de 6 volumes com o título Patrologia Latina Medii Aevi, que parte do “Ordo Romanus”, da “Quinta Compilatio decretalium”, para chegar com o sexto volume aos escritos de São Francisco de Assis e de Santo Antônio de Pádua. O maior mérito desta obra consiste em oferecer a primeira edição de bastante textos gregos e latinos, e a primeira tradução latina de alguns textos gregos: trata- se, sem dúvida, de edições que têm muitos defeitos do ponto de vista crítico. Migne, com efeito, tevo que recorrer a edições preexistentes e, por conselho de Pitra, sobretudo às dos beneditinos. Tais edições, feitas com método menos rigoroso do que o atual, não podem ser aceitas como base para trabalhos filológicos. Entretanto, são muito úteis as notícias eruditas sobre a vida dos autores e sobre a história literária e religiosa de vários textos, que se antepõem à edição de cada um deles”.

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 6 habilmente recolhidos. O primeiro autor da seleção é Tertuliano (séc. III) e o último é Inocêncio III (séc. XIII).

Do séc. III ao séc. XIII, recolheu-se a obra de 130 Padres da Igreja, como vai indicado no Quadro 1 abaixo:

Quadro 1. Total de autores da Patrologia latina.

O quadro 2 mostra a relação de todos os autores da coletânea.

Tomos Período Autores

1-4 séc. III Tertulianus; Minucius, S. Ciprianus

5-19 séc. IV

Arnóbio; Lactantius; Constantinus Magnus; S. Hilarius; S. Zeno; S. Damasius; S. Ambrosius; Ulfila; Poetarum

Christianorum

20-61 séc. V

Scriptores Ecclesiastici; Rufinus; S. Hyeronimus; Orosio; S.Agustinus; Mercator; Cassianus; S. Prosper; S. Petrus

Chrysl; Salvianus; Leo Magnus; S. Maximus; Sidonius Apolinarius; S. Gelasius; Aurelianus Prudentius; S. Paulinus

62-74 séc. VI

Eugippirtus; Boetius; S. Fulgentius; S. Benedictus; Dionysius Exigus; Primasius; Cassiodorus; S. Gregorius Turonensis; S.

Germanus; Vitor Patrum

75-87 séc. VII S. Gregorius Magnus; Scriptores Ecclesiastici; S. Isidorus; Liturgia Moçarábica; Missal Mixtus

88-96 séc. VIII Lemantus; Scriptores Ecclesiastici; Venerabilis Beda; S. Hildephonsus

Período Total de Padres

séc. III 3 séc. IV 9 séc. V 16 séc. VI 10 séc. VII 5 séc. VIII 4 séc. IX 22 séc. X 8 séc. XI 11 séc. XII 36 séc. XIII 6

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 7

Scotus; Usuantus; Carol Calvus; Hinamarus; Enastasius Abb.; Isidorus Mercator

131-138 séc. X Remigius; Regino; S. Odo; Alto; Floduardo; Ratherius; Hrotsuithe; Richerus

139-151 séc. XI

Silvester II; Burchandus; S. Fulbertus; Herman Contredo; S. Petrus Damianus; Othlonus; Joannes; S. Gregorius VI; Victor

III; B. Lanfrancus; B. Urbanus I

152-207

séc. XII

S. Bruno; Hugo Olbas; Godefridus Bullonis; Venerabilis Guibertus; Goffridus; Sanctisivo; Paschalis III; S. Bruno Astenus; Baldricus; S. Ruppertus Abbas; Venerabilis Hildebertus; Leo Petrus Daconi; Venerabilis Godefridus; Hugo

de S.Victore; Petrus Abaelardus; Willelmus; Ergenius I; Venerabilis Herbeius; S. Bernardus; Sugerius; Gratianus; Ordericus Vitalis; Petrus Venerabilis; S. Thomas Cantias; Petrus Lombardus; Venerabilis Gerhohus; Richard A. S.Victore; S. Hildegardis; Adamus Scotus; Joannes Saresberri;

Alesandre III; Arnulfus; Petrus Cellensis; D. Philippus; Clementis III; Petrus Blasensis

208-217 séc. XIII S. Martini Legion; Alanus; Hellimondus; Stephanus Abbas; Sicardus; Inocentius III

218-221 4 tomos de índices

Quadro 2. Resumo do conteúdo da Patrologia latina

Entre os trabalhos datados do século VII estão a Liturgia Moçarábica e o Missal Mixtus (volumes 85 e 86).

2.1. Descrição intrínseca dos volumes 85 e 86

De modo sucinto podem fazer-se a descrição intrínseca dos dois volumes que ínteressam à liturgia moçarábica.

O volume 85 tem como conteúdo: o Praefatio in MissaleMixtam de Fr. Ant. Lorenzana, seguido de: Missalis mixti pars prima, Missalis mixti pars prima, de um Appendix , da Missa S. Pelagii martyris , do Kalendarium vetus e do Kalendarium Gotho-Hispanum. A que seguem uma Advertência dos editores e o Missale mixtum sive Mozarabum et

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 8 O Praefatio é impresso em duas colunas (de 1 a 94), com parágrafos numerados de 1 a 306, achando-se dividido em 17 partes:

Epistola dedicatória editione toletanae praemissa: ao arcebispo Franciscum Ximenem, ao “júris doctoris” Alfonsi Ortis e aos cônegos toledanos

Calendarum mozarabicum, saepius auctem Benedictio aque MISSALE MIXTUM SECUNDUM REGULAM B. ISIDORI DICTUM MOZARABES; pars prima (Impresso em duas colunas (de 109 a 655)

MISSALE MIXTUM SECUNDUM REGULAM B. ISIDORI DICTUM MOZARABES; pars posterior (Impresso em duas colunas (de 655 a 1036)

Tabula ad inveniendu, que continetur in isto missali et primo tabella adominicarum cum singulis feriis sequentibus

Appendix prima – Missa S. pelagii Martyris a Mozarabicus circa annum DCCCCXXX compósita

Appendix secunda – Fragmentum vetusti kalendarii a Francisco de Pisa editi

Index rerum analyticus

Ordo rerum quae in hoc tomo continentur

O volume 86 consta de um Prefácio de Antonio Lorenzana, arcebispo de Toledo, Franciscus Antonius Lorenzana. Archiepiscopus Toletanus, hispaniarum primus, Lectori salutem, com explicações sobre a edição; de Cantus Eugeniani seu melodici explanatio facta a Divo Hieronymo Romero, sanctae ecclesiae toletanae hjispaniarum primatis portionario, et cantus melodici magistro; de uma Regula; do Breviarium ad

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 9 Appendix e da Festa breviário Gothico-Hispano addita in editione cardinalis Ximenii. Traz ainda um Index rerum analyticus e uma Ordo rerum quae in hoc tomo continentur.

O Praefatio de Alexandro Lesleo, S. J., consta de: Pars prima Missalis Mozarabici (col. 11 § 1); Pars secunda Missalis Mozarabici (col. 17 § 2); An Missa Missale Mozarabum vetustum sir sacramentarium (col. 20 § 3); An liturgia Missalis Mozarabici sit Gotho-Hispana (col. 20 § 4); An liturgia Missalis Ximenii eadem sit atque Gallicana? (col. 24 § 5); Satis fit eorum difficultatibus qui opinantur liturgiam Missalis Ximenii diversam esse a Gallicana (col. 26 § 6); Respondetur iis qui aiunt liturgiam Missalis Ximenii vitiatam esse (col. 29 § 7); An Missale Mozarabum immune sit ab erroribus Felicis et Elipandi (col. 41 § 8); An liturgia Missalis Ximenii apostolic sit (col. 46 § 9); An primaeva Hispanorum liturgia eadem fuerit atque Romana (col. 48 § 10); An sanctus Leander Auctor habendus sit liturgiae Gotho-Hiapanae (col. 55 § 11); An sanctus Isidorus auctor fuerit liturgiae Gotho-Hispanae (col. 61 § 12); An liturgia Gotho-Hispana ab apostolarum aevo ad excidium regni Visigothotum in Hispania constanter obtinuerit (col. 63 § 13); An liturgia Romana ab ecclesius provintiae Bracarensis in concilio primo Bracarensi suscepta fuit; (col. 73 § 14); De primaeva origine liturgiae Gallicanae inquiritur. Et an ex Hispania in Galliam, an potius e Gallia in Hispaniam propagata fuerit (col. 78 § 15); An sanctus Leander, aut sanctus Isidorus, aut sanctus Iulianus auctor fuerit Missalis Mozarabici (col. 82 § 16); Missale Mozarabum cum libris liturgicis Gallicanis comparator (col. 86 § 16 [bis]).

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 10

Figura 2. Aspecto externo do volume 85 (frente e verso)

enquanto as figuras 3-4 reproduzem o dorso, o corte e as capas do volume 86 da Patrologia latina.

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 11

Figura 4. Aspecto externo do volume 86 (frente e verso)

Por sua vez, as figuras 5 e 6 reproduzem as folhas de rosto, respectivamente dos volumes 85 e 85 da Patrologia latina.

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 12

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 13 gothicum (col. 37-38).

Figura 7. CALENDARIUM MOZARABICUM (Missale mixtum, col. 95-96 (v. 85) e Missale mixtum, appendix secunda, Kalendarium gotho hispanum, col. 1051 (v. 85)

Figura 8. CALENDARIUM MOZARABICUM

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 14 cada uma dessas versões do calendário godo. Assinalam-se em todos eles as indicações dos dias das kalendas, das nonas e dos idos.

2.2 A edição

É bom lembrar que, originalmente, trata-se de textos latinos anteriores à invasão árabe (711), editados no séc. XVI pelo Cardeal Ximeno.

No Praefatio (col. 9, L. 46-52), lê-se:

Zelo fidei accensus eximius ille cardinalis Xime- / nius, Christianus et politicus heros, sparsos undique / Gothicos, Isidorianos, seu Mozarabicus Codices in / unum collegit; viros doctissimos undequaque accivit; / peritiores in Mozarabico ritu sacerdotes selegit; / iisque divitiis onustus. Breviarium secundum regulam / sancti Isidori tandem, anni 1502 prelo commisit4.

Ainda no Praefatio (col. 25, L. 42-59) pode ler-se:

imo quidam post multa saecula floruerunt; nunc autem ex pervetustis nostris Codicibus manu- / scriptis secernuntur festivitates, de quibus tempore / Gothorum, seu Paulo ante Maurorum invasionem age- /

batur facilique negotio pereallebunt id quod opta- / bant: nam hymni in corpore Breviarii et post cantica / appositi vetustati ritus omnes congrunt; nec ullus, / fastidium generet, quando hymni sunt in corpore / Breviarii, fit remissio ad propriam festivitatem; nam / licet in quibusdam verbis discrepet Editio card. Xi- / menii a nostro Codice ms., cum in módico appareat / discrimen, non est justa causa praefatos hymnos cor- / rigendi. Non leve ad asserendam nostri Codicis vetustatem / argumentum insurgit ex numero et

4

Traduzindo: “O Cardeal Ximeno, cidadão cristão e político, foi o escolhido, pelo zelo da fé, para coletar em um único volume os códices godos, isidorianos e moçarábicos esparsos por toda parte. Para tanto, chamou, de todos os lugares, homens doutíssimos e escolheu os mais doutos sacerdotes acerca do ritual moçarábico. Pleno daquelas riquezas, o Breviarium secundum regulam / sancti Isidori foi, enfim, mandado ao prelo no ano de 1502”.

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 15 Ressalta-se na edição a Lectori Salutem de Franciscus Antonius Lorenzana, na qual chama-se a atenção para o uso de alguns sinais abreviativos, como vão indicados nas figuras 9 e 10 a seguir.

= idem ac repetitio

= paragraphum

= solicitudinem ubi aliquid obscuritatis est

= matutinum

Figura 9. Sinais abreviativos e suas equivalências, segundo Lorenzana

5 Traduzindo: “[...] mas alguma coisa floresceu depois de muitos séculos; agora, ao contrário, as

festividades são separadas a partir dos nossos códices manuscritos postos às avessas, sendo conduzidos desde o tempo dos godos ou de Paulo antes da invasão dos mouros e conhecem de modo fácil o que escolhem. Com efeito, todos os ritos antigos adicionados reúnem, no corpo do Breviário, os hinos e depois os cânticos. Nem mesmo se gerou aversão quando os hinos foram colocados no corpo do Breviário, sendo feita remissão à própria festividade. De algum modo é permitido que a edição de nosso códice feita pelo cardeal Ximeno discrepe em palavras, quando são de pequena monta, não é justo que se corrijam os citados hinos. Não é pouco levantarem-se argumentos antigos que atribuam a nossos códices, pelo número e ordem das horas canônicas, hino a elas adaptado, restituído pela Igreja antiga, por todos os séculos”.

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 16 = ymnum

Figura 10. Sinal abreviativo para ‘hino’, segundo Lorenzana

A Patrologia latina foi editada por Jacques-Paul Migne, no século XIX (1862), momento em que, no Praefatio (col. 25, L. 20-32), foram apontados alguns problemas de grafia.

In praefato Psalterio mici pro mihi, macina pro machina / semper scribitur; aliquoties b pro v, vel e contra, / Josep pro Joseph; Asap pro Asaph, tropeum pro tro- / pheum, et alia his simillima, praetermittendo aspira- / tionem litterae h, reperies; et hoc evidens est si- / gnum Gothicae pronuntiationis et scripturae; lingua / etenim vernacula illorum gutturalis magna cum diffi- / cultate Latino ingenuo sermoni assuefiebat; et ob / hec rudes exscriptores pervetusti ritus memorat /a verba apposuerunt, ut videre est in aliis ejusdem ae- / tatis Codicibus; et ne offendiculum sacerdotibus Moza- / rabicis remaneret, correcta sunt in Psalterio praefata / verba6.

6

Traduzindo: No Psalterio citado está sempre escrito mici por mihi, macina por machina; algumas vezes

b por v, e vice versa, Josep por Joseph; Asap por Asaph, tropeum por tropheum, encontras, ainda, outros

semelhantes, negligenciando a aspiração da letra h. E isto é sinal evidente da pronúncia e da escrita dos godos, pois a língua vernácula deles, fortemente gutural, acostumava-se com dificuldade ao modo de expressão do latim comum. Diante dessa palavras lembradas, os escritores rudes acrescentaram rituais

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 17 pelos seus trabalhos difundindo as obras dos Padres”. Entretanto, não deixa de falar nos “muitos defeitos” da obra, mas ressalta a união da ciência eclesiástica e a iniciativa de uma empresa capitalista privada (CURTIUS, 1957, p. 268). Lembra, por fim, que, no século IX, por necessidades do culto, teve origem a poesia dos hinos (CURTIUS, 1957, p. 268).

A propósito dos hinos moçárabes, ressalta Roger Wright que se conservaram cerca de trinta ou quarenta hinos moçárabes da Espanha muçulmana (WRIGHT, 1982, p. 235). Alguns deles foram atribuídos a Álvaro ou a Eulógio. Foram pensados intrinsecamente para sua reprodução oral, sendo, portanto, rítmicos e não métricos (WRIGHT, 1982, p. 236).

Assinala R. WRIGHT que tanto o latim híbrido dos documentos notariais como o “latim” mais respeitável dos hinos, histórias e poemas podem ser explicados pela teoria da existência de um único nível falado, em lugar de três ou de dois. Assim, a língua de Leão é uma “só língua vernácula, com um tipo de escritura complexo associado a ela, utilizado com um maior ou menor grau de perfeição pelos diferentes escritores” (WRIGHT, 1982, p. 264).

O hino segue o modelo normal dos trímetros jâmbicos rítmicos: doze vogais escritas (ou ditongos clássicos) em cada verso. Dentro dessa tradição, a sílaba portanto continua sendo definida mediante a ortografia original (WRIGHT, 1982, p. 265).

Nos hinos moçarábicos é comum a vacilação entre as formas secla, seclum, seclis, carbunclus e as correspondentes proparoxítonas, de acordo com a necessidade do ritmo.

Quanto ao Missale mixtum, Alexandro Lesleo afirma no Praefatio:

invertidos, que podem ser vistos em códices de outras épocas e, para que não se tornem obstáculos para os sacerdotes moçárabicos, tais palavras foram corrigidas no Psalterio.

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 18

Gotho-Hispanam, seu Mozarabicam, saeculo vii ex- / cogitatum fuisse, et a viris sanctis Leandro et Isidoro / in cum quem postea ordinem retinuit digestam fuisse / atque dispositiam (Parte X, § 171, col. 55, L. 39-48)7.

Liturgiam Gotho-Hispanam apud catholicos / Hispanos solam obtinuisse, praeter hactenus dicta, / persuadet scriptorum Hispanorum, et maxime sancti / Isidori, silentium de alia quacunque liturgia quae in / illis regionibus aliquando in usu fuerit. Si enim unus / excipiatur canon, quem mox examinabo, nihil in / scriptoribus, nihil in conciliis Hispaniensibus inve- / nire est quod suspicionem moveat aliam liturgiam eos unquam suscepisse praeter hanc unam quam Gotho-Hispanam et postea Mozarabicam appelarunt (Parte XIV, § 227, col. 73, L.

44-col. 74, L. 10)8.

3. O latim no reino visigodo

R. Menéndez Pidal, no clássico Orígenes del español (1968, p. 503), data a época visigoda de 414 a 711, afirmando que na corte visigoda os mais doutos falavam um latim, escolástico, como o que era escrito por São Julião, Santo Ildefonso ou Santo Isidoro.

Quanto à fala dos que não tinham esses estudos especiais, seria, sem dúvida, “um latim muito romanceado”. Os rústicos não se serviam do latim para nada, nem mesmo as damas hispano-godas mais distintas. A língua familiar seria um “romance plano” (MENÉNDEZ PIDAL, 1968, p. 503).

7

Traduzindo: “Estes são argumentos unos que demonstram os canais que são hispanos e cujos varões apostólicos aceitam a liturgia romana com a fé de Cristo, de que alguns são contrárias, outras fracas e outras são as que são conduzidas facilmente pela parte contrária. Agora passo àquelas razões examinadas, pelo que querem convencer que a liturgia godo-hispana, ou moçarábica, fosse descoberta no século VII, e, a partir de homens como Leandro e Isidoro, quando, em seguida, conservou a ordem para que fosse aceita e ordenada”.

8 Traduzindo: “Para os católicos hispanos, ao longo do que até aqui foi dito, apenas a liturgia

godo-hispana prevaleceu e convenceu os escritores hispânicos, em especial Santo Isidoro, havendo silêncio de todos para outra liturgia que estivesse em uso naquelas regiões. Se, na realidade, outro cânone existisse, era de imediato avaliado. Nada nos escritores, nada nos Concílios Hispanienses, é encontrado que provoque suspeita de que algum dia outra liturgia fosse sustentada ao lado da que chamaram Godo-Hispana e depois Moçarábica”.

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 19 PIDAL, 1968, p. 503).

No século X, assinala R. Menéndez Pidal (1968, p. 527), o romance falado (que se manifestava fora dos moldes do latim escolástico, que oprimiam a língua escrita) podia, comumente, ter maior estabilidade do que o latim escrito vulgarmente. O latim dos notários corria em paralelo a esse latim escolástico.

A propósito das relações entre o latim e o romance na Idade Média, Roger Wright (1982, p. 79) assinala que existem diferenças de atitudes referentes à natureza desse latim e do romance.

Que latim era esse? É, ainda, Roger Wright que, lembrando o De orthographia de Alcuino, lembra que “os que pronunciavam da maneira ali prescrita falariam como os Padres, que haviam escrito as homilias (WRIGHT, 1982, p. 184).

4. Considerações finais

A busca de dados que corroborassem a língua dos hispano-godos ou moçárabes sobretudo nos hinos moçarábicos não foi de todo infrutífera.

Se, por um lado, a interferência do editor novecentista no texto não permite que sejam oferecidos dados seguros, registraram-se nos textos latino-cristãos hispano-godos ou moçarábicos resquícios de uma língua falada, inúmeros traços da fala puderam ser vistos aqui e ali, de acordo com as necessidades rítmicas.

Destacam-se, desse modo: a grafia de formas sem a vogal postônica ou a grafia das vogais átonas pretônicas. Ainda aparecem formas lexicais, que necessitam de um exame

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 20

Referências

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CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e idade média latina. Trad. Teodoro Cabral, com a colab de Paulo Rónai. Rio de Janeiro: MEC; INL, 1957.

MENÉNDEZ PIDAL, R. Orígenes del español: estado lingüístico de La Península ibérica hasta el siglo XI. 6. ed., segúnlLa tercera muy correg. y adic. Madrid: Espasa-Calpe, 1968.

MIGNE, J.-P. Patrologiae: cursus completus sive bibliotheca universalis, integra, uniformis, commoda, oeconomica, omnium SS. Patrum, Doctorum Scriptorumque ecclesiasticorum qui ab aevo apostolico ad usque Inocentii III tempora floruerunt... Parisiis: Excudebat Migne, 1862. t. 85 e 86.

MIGNE, J.-P. Patrologiae; cursus completus sive bibliotheca universalis, integra, uniformis, commoda, oeconomica, omnium SS. Patrum, Doctorum Scriptorumque ecclesiasticorum qui ab aevo apostolico ad usque Inocentii III tempora floruerunt... Parisiis: Excudebat Migne. 1844. 221 t.

PRADO, Germán. Historia del rito mozárabe y toledano. Burgos: Abadía de Santo Domingo de Silos,1928.

SCHMITT, Jean-Claude. Ritos. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Coord. da tradução de Hilário Franco Junior. São Paulo: EDUSC. v. 2, 2002. p. 415-430.

TELLES, Célia Marques. Fontes medievais no Mosteiro de São Bento da Bahia. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL, 24. Brasília: ANPOLL. Comunicação no GT de Estudos Medievais, 2008.

WRIGHT, Roger. Latín tardio y romance temprano: en España y la Francia carolingia. Vers. esp. de Rosa Lalor. Madrid: Gredos, 1982.

ZAMORA VICENTE, Alonso. Dialectología española. 2. ed. aum. Madrid: Gredos, 1996.

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 21

A configuração do amor nas cantigas

pastorelas

Clarice Zamonaro Cortez Marciléia de Souza Apolinário Universidade Estadual de Maringá (UEM)

1. Introdução

Grande parte das cantigas de amigo passou por diversas classificações sociológicas e estéticas, tendo alcançado várias possibilidades de abordagem. Quanto à temática do amor, Spina (1996) lhes confere um saudosismo culturalmente típico, capaz de atingir uma confidência lírica de retoques muito mais realísticos do que as cantigas de amor.

Nas cantigas de amigo, a importância da mulher é indiscutível. A expressão dos sentimentos, fora do convencionalismo cortês marca, segundo Ferreira (s/d [19??], p. 21), “as reações femininas suscitadas pelo amor por meio de um realismo psicológico singular”, pelo qual se pode vislumbrar o encanto do namoro, a ira (sanha) diante da traição, o esquecimento e o abandono. Sob tais ponderações, o amor é o motivo constante dessa poesia, cuja tendência foi a de ornamentar e doutrinar tal sentimento nas suas mais variadas formas de composição. Se às cantigas de amor foram impostos os preceitos exigidos pela ideologia do amor cortês, às cantigas de amigo, com sua diversidade, coube revelar poética e expressamente os sentimentos da mulher pelo seu amado em uma poesia feminina, que se distingue da poesia de inspiração, visto que todas as composições desta espécie são atribuídas a poetas e não poetisas1.

Acerca das pastorelas, fica evidente que possuem uma unidade narrativa capaz de informar, estilisticamente, que os estados sentimentais de seus personagens explicam-se em razões para as quais os trovadores dispensam a ornamentação excessiva, preferindo a predominância dos valores sensoriais e o registro do cenário lírico. Quanto ao tema

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 22 pastoril, são de exclusiva influência provençal as cantigas que registram o encontro de um cavaleiro com uma pastora num ambiente bucólico.

A Provença, antiga província romana, possivelmente adaptou e desenvolveu esse gênero de poesia cujas “raízes encontram-se com os poemas pastorais de Teócrito que, cerca de 200 anos antes de Cristo, demonstrou inigualável naturalidade ao pintar a vida camponesa, principalmente a antiga vida campestre da Sicília” (FERREIRA, s/d [19??], p. 44). Tal variedade temática, doze séculos mais tarde, teve grande voga entre os provençais e no gosto de alguns poetas mais cultos do lirismo galego-português. Muito discutidas são as suas origens e a sua inclusão entre os cantares de amigo. É o cavaleiro que, ao iniciar o poema declarando sua admiração e o seu amor à pastora, contraria o que preceitua a poética fragmentada do trovadorismo medieval.

Há, todavia, um recato e uma simplicidade por parte da moça, um realismo das situações apresentadas, um ambiente rústico, uma descrição da natureza que, por vezes, expressa a relação do homem com o meio de uma forma que muito difere dos modelos occitânicos. Nas pastorelas galego-portuguesas a narração dos acontecimentos é feita com base, unicamente, na experiência visual do eu-narrante, que pode se revelar ou não como o cavaleiro, que compõe a situação ideal do flagrante campesino. Nas pastorelas dos trovadores goliardos2, compostas em língua latina nos séculos XI e XII, sobretudo, na França e na Alemanha, a poesia é carregada de uma atmosfera sensual, na qual a conquista realiza-se por meio da posse física insistentemente requestada pelo cavaleiro. Nota-se que, na mesma temática, foi possível colocar em perspectiva tanto os sentimentos femininos quanto os masculinos. Todavia, o encanto e a inovação maior se realizaram em solo lusitano, cujas pastorelas apresentam um desfecho amoroso mais recatado, principalmente nos exemplares dialogados. Foram selecionados oito textos definidos, geralmente, como pastorelas (cf. LANCIANI;TAVANI, 2002, p. 285), dos quais três são de autoria do rei trovador D. Dinis (Ua pastor se queixava,/ Ua pastor ben talhada, e Vi ojeu ua pastor cantar), e os demais, respectivamente, foram compostos por D. Joan D’Avoin (Cavalgava noutro dia), Airas Nunes (Oi oj’eu ua

2

De acordo com Spina (1996, p. 27), a poesia dos goliardos floresceu em língua latina com um ritmo acentual, satírico, lírico e confessional. Seus principais trovadores eram clérigos com uma imensa carga cultural resultante do contato com a cultura letrística, clássica e escolástica.

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 23 pastor cantar), Pedr’Amigo de Sevilha (Quand’eu un dia fui em Compostela), João Airas Burgalês de Santiago (Pelo souto do Crexente) e Lourenço Jograr (Três moças cantavam d'amor).

Cronologicamente, o primeiro texto de natureza pastoril entre as cantigas de amigo é o texto atribuído a D. Johan d'Avoin: Cavalgava noutro dia. De acordo com Ventura (apud LANCIANI; TAVANI, 2000, p.355) Johan Perez d'Avoin nasceu em uma família nobre portuguesa no início do século XIII. Conquistou poder e influência junto ao rei D. Afonso III, do qual passou a ser servo particular. Ainda na juventude esteve na França em companhia do rei onde testemunhou as mais ricas formas de compor a poesia de seu tempo. O seu refinado modo de compor reflete imenso repertório lírico desenvolvido em terras lusitanas e fortalecido pelas influências diretas da poesia francesa, pois, de acordo com Spina (1996), os trovadores provençais, antes de irradiar para toda a Europa boa parte de sua tradição, conviveram no início do século XI com personalidades únicas como os clérigos vagantes, cuja cultura lírica prestigiava os nomes de Virgílio, Ovídio e Horácio.

A cantiga de D. Johan d'Avoin, constituída por duas estrofes de 10 versos, na opinião de D. Carolina de Michaelis (1904 apud FERREIRA, 1968, p. 105) há a possibilidade de ter possuído originalmente mais duas estrofes das quais participariam as demais pastoras. No entanto, nos cancioneiros consultados constam apenas duas estrofes: na primeira há o registro do flagrante campesino, momento em que o cavaleiro/trovador ouve e observa o canto triste e saudosista de uma das pastoras e na segunda, outra pastora responde e aconselha paciência à amiga para ouvir os argumentos do cavaleiro.

Cavalgava noutro dia per o caminho francês, e ua pastor siia

cantando com outras três pastores, e, non vos pês, e direi-vos toda via o que a pastor dizia aas outras em castigo:

“Nunca molher crea per amigo 3

, pois s'o meu foi e non falou migo.”

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 24

“Pastor, non dizedes nada.” diz ua d'elas enton,

“se se foi esta vegada,

ar verrás' outra sazon e dirá-vos por que non falou vosc', ai ben talhada; e é cousa mais guisada de dizerdes, com' eu digo: “Deus, ora vees' o meu amigo e averia gran prazer migo.”

Na primeira estrofe, o trovador confere ao cenário a referência ao espaço físico, presente também nas estruturas do imaginário literário: o caminho francês. Segundo Bédier (apud FERREIRA, 1986, p.106), esse caminho corresponde à estrada real da cidade de Bordeaux, na França, a Santiago de Compostela, pelo qual passavam inúmeros peregrinos destinados ao Santuário. O histórico trajeto de origem romana também liga a cidade de Pamplona a Compostela e encontra na pastorela de Guiraut Riquier, trovador provençal, semelhante referência nos seguintes versos: D'Astarac vênia/ l'autrier vas la Ylla/ pel camin romieu (RIQUIER apud CUNHA, 2006, p.89). De acordo com Pimpão (1947), a escolha de Santiago de Compostela expressa a atmosfera religiosa da sociedade da época e as influências literárias advindas da Provença.

Em conformidade com as regras gerais que se aplicavam às cantigas de caráter pastoril, dentre as quais se sobressaíam o elemento narrativo e a abordagem por parte do cavaleiro, D. Johan d'Avoin, estilisticamente, identifica seu narrador como um cavaleiro pelo primeiro verso: Cavalgava noutro dia. No entanto, sua participação restringe-se à função expositiva inicial dos fatos e dos diálogos existentes na estrofe. A hipótese de se ter perdido outras duas estrofes dessa pastorela, leva-nos à possibilidade de imaginar uma participação mais efetiva do eu-narrante personificado por um cavaleiro, nas palavras de julgamento e afetividade, denunciados pela caracterização das pastoras.

O traço estilístico que permite atribuir uma moldura descritiva ou um cenário ao desenvolvimento temático das pastorelas é recorrente em sete dos oito exemplares galego-portugueses. Somente o trovador Lourenço Jograr omite em sua cantiga

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 25 qualquer descrição paisagística em função do encantamento do trovador no momento em que se depara com a pastora cantando uma canção ou revelando suas desventuras amorosas. D. Johan d'Avoin não desenvolve um extenso “prelúdio naturístico” em sua cantiga, mas, implicitamente, que se trata de uma estação propícia às peregrinações e aos flagrantes sentimentais dos trovadores.

Dos versos que revelam o canto das pastoras, verificamos que toda composição se inspira na esperança fundada no amor que se presentifica nos versos (em negrito) da segunda estrofe. A desilusão cantada pela primeira pastora em forma de conselho (castigo) nunca molher crea per amigo,/ pois s'o meu foi e non falou migo, inspira a tonalidade emotiva que se configura nas palavras da segunda, que devota uma fiel e incansável credibilidade às razões do amigo que deixa de dar notícias à jovem enamorada.

D. Johan d'Avoin retrata as jovens como mulheres entregues às suas sentimentalidades em seu cotidiano, uma peregrinação ou um pastorear pelos campos. Embora as descrições paisagísticas sejam mínimas (caminho francês), percebemos que as ações e os diálogos acontecem em meio à dinâmica dos quadros que nos sugerem a presença de um cavaleiro e de jovens pastoras num mesmo cenário. Em um ambiente cultural pleno de efervescência, o trovador se destaca pela requintada observação da tradição lírica occitânica e provençal, que irá se desenvolver efetivamente no reinado de Dom Dinis.

A confidência amorosa entre as mulheres (apresentadas em grupo) na cantiga de D. Johan d'Avoin, ua pastor siia/ cantando com outras três, repete-se na cantiga de Lourenço Jograr: Três moças cantavam d'amor. Lourenço Jograr, de acordo com Tavani (2002), é um poeta singular do período alfonsino e servo do trovador Johan Garcia de Guilhade, com o qual frequentou a Corte portuguesa de Afonso III e a castelhana de Alfonso X.

Tanto os quartetos quanto o refrão revelam o caráter popular e folclórico da cantiga, conferindo-lhe um caráter popular e folclórico. A predominância da redondilha maior também contribui à natureza musical dos versos:

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 26

Três moças cantauam d'amor, mui fremosinhas pastores, mui coytadas dos amores, e diss'end ua, mha senhor; “dized', amigas, comigo

o cantar do meu amigo”.

Todas três cantauam mui ben, come moças namoradas e dos amores coytadas, e diss' a por que perco o sen:

“dized', amigas, comigo o cantar do meu amigo”.

Que gram sabor eu auya de as oyr cantar enton, e prougue-mi de coraçon quanto mha senhor dizia: “dized', amigas, comigo

o cantar do meu amigo”.

E, sse as eu mays oysse, a que gran sabor estaua e que muyto me pagaua de como mha senhor disse:

“dized', amigas, comigo o cantar do meu amigo”.

Além do refrão e da opção pelo uso da redondilha (traço de musicalidade) é a alusão ao canto de três jovens que se individualiza na cantiga. Ela se encontra nos limites de classificação entre as pastorelas, porque não retrata especificamente o flagrante campesino mais evidente que caracteriza as demais composições, mas apresenta três jovens como pastoras, aproximando-se (semanticamente) do relacionamento amoroso e da atividade pastoril existente no universo literário das pastorelas.

De acordo com Spina (1996), a espionagem de amor que faz o poeta demonstra ser a composição de uma cantiga que privilegia a exaltação do tema amoroso e saudosista em detrimento da identificação alegórica da poesia com as normas convencionais das pastorelas. Lourenço Jograr, inspirado nos recursos líricos oferecidos pela temática pastoril e pelas cantigas de amor, cria o cantar de seus personagens (o cavaleiro e as pastoras). Numa mesma cantiga temos o arrebatamento amoroso com tons de uma sondagem do sentimento por parte do amigo, e os suspiros alegres e a vivacidade do

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 27 canto da donzela expressos no refrão.

Na primeira estrofe uma das jovens enamoradas faz o convite para iniciar o canto do amado (“dized', amigas, comigo/ o cantar do meu amigo”). Diferentemente dos códigos do amor cortês, que exigiam do trovador absoluto sigilo da identidade da senhora da corte (comprometida, casada), na cantiga em questão há um jogo aberto de palavras nos versos três moças cantavan d’amor/ mui fremosinhas pastores/ mui coytadas dos amores [...], que permitem ao trovador resgatar o vocabulário das cantigas de amor, incluindo-se a expressão mha senhor para indicar a sua preferida entre as três jovens. Do mesmo modo, o uso do adjetivo fremosinhas refere-se à beleza singular das moças, provocando a perda do juízo (e diss’ a por que perco o sen). Nas cantigas ocorre sempre uma confissão amorosa da jovem que, com a partida de seu amigo, sofre e canta a saudade e as dores da separação: Ali ouv'eu de mia morte pavor/ u eu fiquei mui coitada pastor,/ pequena e d'el namorada. Nos textos de Lourenço Jograr e Pero de Veer, o retrato da mulher apresentado como pastora é a reprodução de um modelo de beleza e ingenuidade, expressão considerada como tópica das pastorelas.

No plano lexical, tanto a expressão senhor quanto pastor apresenta uma mesma função – a de acentuar as qualidades da mulher que provocam no trovador o gran sabor de a oir (grande prazer de ouvi-la). Tavani (2002) explica que um dos tópicos da cantiga de amor, também presente na cantiga de amigo, é a equação de que o (a) amado (a) equivale à chama dos olhos daquele que ama. Sendo assim, nada interrompe esse êxtase de sentimento que perdurará por toda composição.

Quanto ao amor, os personagens apresentam-se sempre envolvidos em sua coita amorosa que, neste caso, pode ser traduzida como desejo e paixão4, conectados a uma aspiração natural de cada um que os impele a querer aproximar-se de uma felicidade total encontrada no outro. O drama passional sugerido pelo termo coita, que em outras composições alcança o extremismo do tormento amoroso que pode resultar na morte como solução, não se aplica à cantiga de Lourenço Jograr por não se tratar da exposição de um drama amoroso com todas suas tonalidades marcantes e expressões trágicas

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 28 como o abandono, o desprezo, a mentira e a morte. Por outro lado, a pastorela Três moças cantavam d'amor reflete a sinceridade amorosa presente no espírito dos amantes que encontram no canto o meio mais expressivo para comunicar as notas mais típicas de sua emoção.

Misto de pastorela e reminiscência de cantiga de amor, a canção de Lourenço Jograr denuncia seu empenho e esforço ao trabalhar com tantos elementos diferentes que provinham de um rígido sistema poético. O trovador, como tantos outros galego-portugueses, conferiu à sua produção a organização retórica e estilística dos trovadores de seu tempo que criavam e recriavam a partir do rígido sistema poético provençal.

O poeta se refere às jovens mui fremosinhas pastores, o que nos remete a imagens semelhantes como a bailia de Airas Nunes Bailemos nós, já, todas três, ai amigas e a pastorela de D. Joan D’Avoin, Cavalgava noutro dia/ [...] e ua pastor siia/ cantando com outras três, que destacam o baile das moças em grupos de três, levando-nos a refletir sobre o simbolismo do número três que corresponde à perfeição. Na concepção cristã5, de acordo com São Cesário de Arles (s/d), Fides omnium christianorum in Trinitate consistit – A fé de todos os cristãos consiste na Trindade, pois se Deus cria tudo com sabedoria, e sendo a Unidade divina dogmaticamente Trina, logo podemos relacionar sua bondade e perfeição a sua existência Trina no Pai, no Filho e no Espírito Santo.

Curtius (1996) explica que a Antiguidade recebeu de Pitágoras e sua escola um simbolismo e um misticismo numérico que confluíram com o cristão. Se o número sete representa a criação, o três relaciona-se à Trindade (harmonia e perfeição). Antes mesmo do simbolismo cristão, o número três remete às imagens da mitologia grega como as Cárites representando harmonia e beleza, ou ainda, as Três Graças, filhas de Zeus, sensivelmente interpretadas por pintores renascentistas como Sandro Botticelli (1445-1510) em A Primavera (1478) e Peter Paul Rubens (1577-1640), na tela As Três Graças (1639).

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Série Estudos Medievais 3: Fontes e edições 29 Em continuidade à nossa leitura, a pastorela Oi oj’eu ua pastor cantar, / du cavalgada per ua ribeira, de autoria de Airas Nunes, coloca-nos diante de um estado sentimental que se difere das anteriores. O eu-lírico (na figura do cavaleiro) num tom narrativo, ao passar por uma ribeira, depara-se com uma pastora de muito boa aparência (parecia mui bem) que cantava sozinha (senlheira) e resolve aproximar-se para ouvir (ascuitar) suas queixas de amor, enquanto confeccionava ua guirlanda de flores, conforme registram os versos:

Oi oj’eu hũa pastor cantar, du cavalgava per hũa ribeira, e a pastor estava [i] senlheyra, e ascondi-me pola ascuytar e dizia muy ben este cantar: “So lo ramo verde frolido 6

vodas fazen a meu amigo [e] choran olhos d’amor.”

E a pastor parecia muy ben e chorava e estava cantando e eu muy passo fuy-mh-achegando pola oyr e sol non faley ren, e dizia este cantar muy ben: “Ay estorninho do avelanedo

cantades vós e moyr[o] eu e pen[o]: e d’amores ey mal,”

E eu oí-a sospirar enton,

e queixava-s’estando com amores e fazi’ [ũ]a guirlanda de flores, des y chorava muy de coraçon e dizia este cantar enton:

‘Que coyta ey tan grande de sofrer!

amar amigu’e non [o] ousar veer! e pousarey so l’avelanal.”

Poys que a guirlanda fez a pastor, foy-se cantand’, indo-ss’en manselinho, e torney-m’eu logo a meu caminho, ca de a noiar non ouvi sabor; e dizia este cantar ben a pastor: “Pela ribeyra do ryo cantando

ya la virgo d’amor: quem amores á como dormirá, ay bela frol !”

Referências

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