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QUANDO A VIOLÊNCIA VEM DO PAI

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Academic year: 2021

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QUANDO A VIOLÊNCIA VEM DO PAI

Assistimos hoje a um movimento social que leva ao palco das discussões sobre a violência contra a criança o tema do abuso sexual e que faz dessa manifestação da sexualidade humana um comovente espetáculo dos horrores. Notícias jornalísticas, denúncias, escândalos nas instituições políticas e religiosas, campanhas preventivas: são incontáveis as estratégias com que o homem faz frente aos acontecimentos que lhe revelam algo de espantoso a respeito da natureza humana, algo que lhe é tão estranho quanto íntimo, incontestavelmente do campo sexual.

A psicanálise, desde a centenária descoberta da sexualidade infantil e de seu caráter essencialmente perverso, permite verificar que presentificam-se, nessas manifestações ditas abusivas, uma escolha inconsciente da dita vítima – escolha essa referida ao seu desejo e sustentada por sua fantasia. Revela-se, ainda, a extração de um gozo sexual, mediante violência ou não, fundado na disposição perverso polimorfa da sexualidade infantil.

Todavia, como abordar a questão diante de casos em que o ato sexual é imposto mediante uma violência que exclui o desejo, reduzindo o sujeito à condição de puro objeto de gozo – assim como fez o tirano austríaco que, em uma versão atualizada do pai da horda, encarnou o poder arbitrário, deteve o gozo com exclusividade e tomou para si a posse absoluta das mulheres, dessubjetivando, pelo encarceramento do desejo, a filha-amante, os filhos-netos, e quem quer que o cerasse? Que contribuição a psicanálise pode oferecer?

Espanto, horror, essas são reações do homem frente a manifestações sexuais que dizem respeito a algo que lhe escapa, algo ele próprio não pode reconhecer, uma vez que são traços submetidos ao recalque e que, portanto, dizem respeito a um saber não sabido, um saber do qual não se quer saber. Sigmund Freud nos deixou um legado, aquele que atesta que o homem está submetido a forças que ele não conhece e tampouco domina: o eu não é senhor de sua própria casa. Quem está no comando é o inconsciente e essas forças dizem respeito à pulsão, que exige satisfazer-se a qualquer custo. É ela, em sua articulação com o complexo de Édipo, a responsável por conferir ao inconsciente o caráter sexual.

Não foi, pois, sem razão que Freud escreveu, há mais de cem anos, seus célebres Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Introduzindo o conceito de pulsão, ele defende, entre algumas idéias centrais, o deslocamento das transgressões sexuais do

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Mais do que isso, Freud amplia o conceito de sexualidade, asseverando que toda sexualidade é infantil e perverso-polimorfa. A perversão, ao contrário de ser um fato isolado na vida sexual da criança, está situada nos processos normais. Eis a subversão freudiana: a partir da sexualidade infantil perverso-polimorfa, Freud coloca, no lugar da barreira entre o normal e o patológico, um elo – a saber, a sexualidade infantil. Contrariando a teoria segundo a qual a sedução seria a causa traumática das neuroses, as novas descobertas implicam reconhecer o próprio infantilismo da sexualidade como o que há de traumático para o sujeito – muito embora não esteja descartada, para Freud, a participação de outrém, uma vez que todo sujeito do inconsciente é inevitavelmente introduzido na sexualidade pelo Outro.

O que Freud põe em jogo é, portanto, a impossibilidade de se evitar o trauma, pois que ele é de estrutura. Tão impossível quanto isso é evitar que um outro tome parte nessa empreitada, dado que a sobrevivência do bebê, em seu desamparo fundamental, bem como sua relação com a linguagem são tributárias de sua inclusão no desejo do Outro. O grande Outro firma-se como um lugar cuja paradoxal função é traumatizante e, ao mesmo tempo, constituinte do sujeito. Essa articulação é, pois, oportuna, uma vez que toca, diretamente, a questão da qual nos ocupamos nesse trabalho: a relação entre as normas civilizatórias às quais o sujeito está referido no laço social e as exigências pulsionais calcadas na sexualidade infantil.

O que se estabelece entre esses dois pólos é um conflito inexorável e estrutural – conflito ao qual, todavia, Josef Fritzl não se sujeitou. Ao contrário, rompeu com as normas que regulam o laço social, ultrapassando os limites civilizatórios numa espécie de estupro perene da própria filha e de uma violência sem freios para com os filhos que nela engendrou, tudo em prol da irrestrita satisfação pulsional que, nesse caso, a Lei não foi o bastante para barrar. Mas, que lei está em jogo na sustentação do laço social e que, no caso de Joserf Fritzl, escapa? Não seria a mesma que escapara, igualmente, a Édipo? Entre o mito e a realidade, um denominador comum: o rompimento com a Lei que proíbe os dois crimes máximos que se opõem à civilização: o incesto e o parricídio.

Freud tomou o mito de Édipo como a mais fiel expressão das fantasias que habitam o psiquismo humano e que estão na base do complexo constituinte do sujeito do inconsciente. Pela importância central que os desejos edípicos – parricida e incestuoso – ocupam para o psiquismo e por sua forte oposição ao laço social, Freud se ocupa dessa paradoxal relação e acaba por construir um outro mito, que fixa, para tais desejos, um ponto de origem.

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Em Totem e Tabu (1913), ele nos conta que nos tempos primitivos havia um pai tirano e cruel, detentor do poder por força do qual expulsou da horda cada um de seus filhos e tomou para si a posse absoluta de todas as fêmeas. Em resposta, os filhos se unem no ódio pelo pai, matam-no e o devoram no afã de incorporarem sua potência. A ambivalência de sentimentos impõe-se, então, com a contradição entre o ódio pelo pai potente que fazia obstáculo aos seus desejos sexuais e de poder e o amor pelo pai admirado e invejado. Surgem o remorso e o sentimento de culpa, cujo alívio é buscado no fortalecimento do vínculo amoroso entre os irmãos, bem como no respeito ao pai morto. É em torno do lugar que o pai primevo deixa vazio que se estrutura o laço social.

A negação do parricídio que se segue, propiciada pelo recalque, permite a instituição de uma nova ordem social, na qual fica vedado o exercício do poder arbitrário, a liberdade irrestrita e o livre gozo de todas as mulheres. A transgressão dessa proibição de ocupar o lugar do pai onipotente implicaria a morte. Instauram, para tanto, um representante simbólico do pai morto – o totem – cuja reverência atenuaria o sentimento de desamparo, bem como o de culpa, trazendo proteção. Eis, portanto, o momento mítico de inauguração da civilização, dado pela promulgação da Lei simbólica. A lei que civiliza o homem é a lei que, por promover a fusão entre pulsão sexual (ou de vida) e pulsão de morte, interdita o gozo, tirando da barbárie os membros da horda primeva.

Contudo, o ato de civilizar impõe um conflito sem saída entre as exigências pulsionais e as exigências culturais. Resulta disso que o mal-estar é inexorável. A criação dos tabus que proíbem o incesto e o parricídio – que são, assim como a guerra, “manifestações que ocorrem no registro da agressividade não-erotizada” (Fuks, 2007, p. 38) – institui no lugar do pai morto a lei simbólica que regula o laço social em torno do vazio. Esse diferencial é obtido justamente porque ali onde reinavam a tirania e crueldade, a Lei do Pai introduz a libido, articulando-a à pulsão de morte e instituindo, num só tempo – mítico – a ordem civilizada.

Note-se a fundamental relação que aí se esboça entre Lei e desejo, pois que a Lei dá lugar à libido, à erotização sem a qual a pura agressividade se estabeleceria. Desta feita, o incesto, além do parricídio e da guerra, apresenta-se como uma realização não erotizada, à margem da Lei que põe a libido em jogo e promove o laço entre semelhantes. No plano familiar, ele equivale ao que é a guerra no plano coletivo: “a manifestação real de práticas pulsionais arcaicas que perpetuam a horda selvagem e os tempos de barbárie.” (Fuks, 2007, p. 38). É somente pela via da Lei do pai que se torna

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A civilização depende do equilíbrio entre as pulsões; a desfusão pulsional, por sua vez, implica a lógica da pura destruição, do aniquilamento do outro e da dissolução de tudo aquilo que a vida e a cultura construiram. Esse parece ser o retrato mesmo do incesto imposto pelo austríaco Josef Fritzl a Elizabeth. Vivendo na era da barbárie, o que estava em jogo, muito aquém do desejo, era unicamente o puro gozo da pulsão de morte; a libido foi descartada, a pulsão de vida, posta fora do jogo. O que impera é a irrestrita vontade de gozo e a total ausência de barreiras aos excessos sexuais – aqueles diques anímicos dos quais a criança de tenra idade é desprovida, conforme Freud havia-nos alertado e conforme o próprio Fritzl havia-nos cofirma, ao dizer:

"Sabia que a Elisabeth não queria fazer o que eu queria, mas a pressão para fazer o proibido era enorme. Para mim era uma obsessão", confessou. (Diário de Notícias, mai 2008. Aceso em 20/05/08)

Para ele, os diques ruíram; ele é um homem fora do laço, portanto, fora do mal-estar, tornando patente a não submissão à ordem social instituída pela Lei do Pai, ordem que interdita o exercício do poder arbitrário, a liberdade irrestrita e o livre gozo das mulheres, indistintamente. Josef Fritzl desumaniza a filha-amante e os filhos-netos que nela engendrou, chegando mesmo a incinerar o corpo de um deles: “Um deles morreu depois de três dias de vida. Joseph queimou o corpo do bebê na estufa onde queimava também o lixo produzido por eles.” (Revista Fantástico, mai 2008. Acesso em 06/05/08). Cito Freud:

Em circunstâncias que lhe são favoráveis, ... [a agressividade] também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com a sua própria espécie é algo estranho. (Freud, 1930[1929], p. 133)

Longe de pretendermos proceder a uma análise do caso e de fazer suposições diagnósticas – uma vez que não dispomos da clínica – o que pretendemos com esse trabalho é tão somente abrir um campo de reflexão e discussão acerca de manifestações da pulsão de morte que, muito embora tão primitivas, são, por nós, testemunhadas justamente na era moderna. Em pleno século XXI, eis que um tal de Josef Fritzl nos coloca frente à horda primeva, formação primeira de agrupamentos humanos, a mais arcaica e, não obstante, absolutamente contemporânea. Eis que Josef Fritzl vem endossar o legado freudiano:

Na impossibilidade de simbolizar plenamente a natureza enigmática da violência, o homem contemporâneo e o selvagem das cavernas podem ser igualmente bárbaros,

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cruéis e malignos. Desse modo, o discurso freudiano desconstruiu a idéia de uma superioridade da civilização moderna sobre as mais primitivas... não há diferença diacrônica entre civilizados e selvagens. (Fuks, 2007, p.38)

Às tantas questões que aqui levantamos, soma-se apenas a hipótese de estarmos diante de um tirano para quem o gozo era irrestrito, não barrado, mortífero; um primata para quem aquela que seria sua filha é puro objeto. Extraditada do campo do desejo, do mundo civilizado, Elizabeth é objetalizada, gozada e desumanizada; ela é puro objeto de um uso desumano e mortífero, cujas conseqüências são atestadas pelo seu próprio aspecto físico. Cito outra matéria jornalística:

Quando Elisabeth deixou a prisão imposta pelo pai, 24 anos depois, tinha todos os cabelos brancos, todos os dentes cariados e o rosto muito arranhado... Elisabeth tinha a cor da pele branco-acinzentada, de um cadáver. Os filhos, Stefano e Felix, sem músculos no corpo. (Revista Fantástico, mai 2008. Acesso em 06/05/08) Elizabeth e seus filhos foram amputados da possibilidade de serem humanizados pela incidência da lei simbólica que rege o laço social; amputados da possibilidade de gozar da vida civilizada, nas parcas possibilidades que ela oferece e das quais o psiquismo é capaz de tirar proveito. É nesse sentido que Freud recorre a Plauto para reafirmar que 'o homem é o lobo do homem' – Homo homini lúpus” (Freud, 1930[1929], p. 133). Para o homem, no âmago do desejo, quem opera como instrumento e como causa de gozo é a morte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Joseph Fritzl pediu para receber a visita da mulhser. Lisboa, 10 maio 2008. Disponível em: <http://dn.sapo.pt/2008/05/10/internacional/josef_fritzl pediu_para_receber_a_vi.html>. Acesso em 20 maio 2008.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a sexualidade infantil [1905]. In: ESB, v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu [1913 (1912-1913)]. In: ESB, v. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização [1930 (1929)]. In: ESB, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FUKS, Betty Bernardo. Freud e a cultura (2007). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. REVISTA FANTÁSTICO. A história de um monstro. Rio de Janeiro, 04 maio 2008.

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<http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1680123-4005-0-0-04052008, 00.html>. Acesso em: 06 maio 2008.

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