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DA ÁFRICA AO BRASIL MERIDIONAL: presença africana no Rio Grande de São Pedro (Santa Maria da Boca do Monte, )

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DA ÁFRICA AO BRASIL MERIDIONAL: presença africana no Rio Grande de São Pedro

(Santa Maria da Boca do Monte, 1814 – 1822)

LEANDRO GOYA FONTELLA1

Os escravos Manoel e Luiza compareceram na Capela Curada de Santa Maria da Boca do Monte no dia vinte e sete de março do ano de 1814. Nesse dia, eles se tornaram pais espirituais de Joaquim, que na ocasião, segundo o Cura Antonio Jose Lopes, contava com 216 meses de vida, ou seja, aproximadamente 18 anos de idade. Ao receber os santos óleos na pia batismal, Joaquim se tornou o primeiro escravo africano a ser batizado em Santa Maria da Boca do Monte.2

De acordo com José Roberto Góes,

os africanos, como se sabe, são em certo sentido, uma invenção americana. Trazidos dos mais diferentes lugares do „continente negro‟, foi nas fazendas e cidades americanas que milhões de homens e mulheres, oriundos de diversas sociedades e tradições culturais, foram levados a se fazerem africanos. A fôrma do africano foi a escravidão e o material usado [...] foram as tradições culturais específicas que traziam da África (2003, p. 206). [grifos do autor]

Assim como na grande maioria dos assentos de batismos de indivíduos africanos, no registro de Joaquim não consta informações relevantes como, por exemplo, a sua etnia africana. Circunstância essa que, devido às fragilidades das informações de que dispomos sobre o meio social onde forjaram-se as orientações valorativas desses sujeitos, dificulta bastante as reflexões qualitativas sobre as experiências históricas desses agentes sociais. Contudo, a partir de algumas obras de referência sobre a África, a escravidão e o tráfico negreiro podemos nos aproximar, ou ao menos conceber uma ideia-representação, dessas experiências.

Segundo Florentino; Góes (1997) e Florentino (2010), eram três as principais áreas de procedência dos negreiros aportados no Rio de Janeiro, o porto brasileiro pelo qual entrou as mais vultosas somas de africanos, entre 1795 e 1830: África Central,

1

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2

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Ocidental e Oriental. Foi da primeira dessas áreas de procedência – África Central Atlântica – que provieram cerca de 90% da população africana que se espalhou pelo Sul-Sudeste da América portuguesa e posteriormente do Império do Brasil. Nesse contexto, para Slenes (1999) e Góes (2003), o tronco linguístico banto era um dos elementos culturais comuns a todas as sociedades dessa área africana. Situação essa que, por consequência, segundo esses autores, pode ter possibilitado a formação de uma identidade, ou até mesmo uma proto-nação, banto entre os indivíduos que compunham a população africana radicada compulsoriamente no Brasil. Além disso, pesquisas recentes vêm mostrando que, em uma vasta região da África Central, “a cultura é menos heterogênea e menos particularista do que geralmente se supõe” (CRAEMER apud SLENES, 1999, p. 143).

Assim sendo, apesar de não termos base empírica, não é descabido tentar imaginar a trajetória percorrida por Joaquim antes de ele ter sido levado a receber o primeiro sacramento católico. A partir dos argumentos dos autores citados acima podemos presumir que Joaquim tenha passado significativa parte de sua vida em alguma tribo do interior da África Central. Também não é difícil imaginar que ele tivesse sido um lavrador, ou então que se dedicava ao pastoreio. Por outro lado, salvo alguma condição excepcional, possivelmente, Joaquim teria sido um dos guerreiros de sua tribo, e do mesmo modo que muitos outros integrantes desta, pode ter sido escravizado após a derrota em uma contenda tribal, ou ter sido alvo de uma expedição de apresamento de escravos promovida pelos grandes reinos africanos litorâneos.

O caminho percorrido por Joaquim do interior da África até a longínqua paragem de Santa Maria da Boca do Monte, possivelmente, começou por longos dias de percurso terrestre pelo interior do continente negro em direção a alguma localidade portuária do litoral. Ou ainda dentro de uma embarcação, conhecida como pumbeiro, a qual servia de transporte para os carregamentos de escravos nos inúmeros rios africanos, que serpenteando planaltos e planícies ligavam regiões interioranas e o litoral africano.3 Dali, após ter sido negociado com traficantes de escravos, ele acabou sendo embarcado em um dos navios negreiros que rumavam à América. Por conseguinte, após algumas semanas da travessia atlântica, provavelmente, Joaquim tenha desembarcado no porto

3

Sobre uma história social do tráfico negreiro e de sua complexa dinâmica ver: RODRIGUES, J. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários no tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780 – 1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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de São Sebastião do Rio de Janeiro. Nesta altura de seu trajeto como cativo, é plausível crer que Joaquim já teria passado por intensas experiências como a abrupta apartação de sua família e o próprio desterro compulsório. Além disso, no decorrer da insalubre viagem nos porões negreiros ele teria também visto inúmeros de seus companheiros de cativeiro sucumbirem devido a doenças, fome ou aos maus tratos.

Já em território luso-brasileiro, Joaquim acabou sendo separado da maioria dos parceiros africanos, os quais haveriam de seguir às plantations do sudeste e nordeste. Por sua vez, após algum tempo em poder de um mercador de escravos, seu destino acabou sendo selado: rumaria em direção aos confins meridionais da América portuguesa. Desta forma, mais uma vez, teria de passar pela sina de uma embarcação que transportava escravos, no entanto, esta, possivelmente, realizava a navegação de cabotagem pelo litoral do Brasil. Partindo do Rio de Janeiro em sentido austral, após mais algumas semanas, e depois de ter atracado em diversos entrepostos, o navio que transportava Joaquim deve ter chegado à última localidade luso-brasileira ao sul da América, a povoação de Rio Grande.

Mas como sabemos, a longa marcha de Joaquim não teria fim ali. Indiferente dos diversos episódios que devem ter marcado a trajetória de nosso protagonista, podemos presumir que para chegar até Santa Maria da Boca do Monte, provavelmente, em Rio Grande tenham-no colocado noutra embarcação, a qual seguindo via Lagoa dos Patos desembarcaria, em poucos dias, na localidade de Porto Alegre. De lá, após outra mudança de embarcação, ele seguiria seu percurso, em direção oeste, pelo rio Jacuí até a povoação de Rio Pardo. A partir dali, seria preciso deslocar-se por terra até as proximidades do sopé da Serra Geral, local aonde situava-se Santa Maria da Boca do Monte e, provavelmente, encontravam-se as propriedades de Thomaz Cardoso, seu senhor.4

Essa pode ou não ter sido a trajetória de Joaquim desde o interior da África até o extremo meridional da América portuguesa. Mas provavelmente, muitos dos eventos superficialmente narrados aqui fizeram parte da trajetória de muitos dos africanos que chegaram a esses confins de que tratamos. Desde que foram escravizados até chegar a pia batismal da Capela Curada de Santa Maria da Boca do Monte, Joaquim e outros

4

(4)

cento e trinta e dois africanos5 tiveram que superar condições de existência extremamente inóspitas. Na verdade, essa narrativa não tem por finalidade vitimizar esses indivíduos. Muito antes pelo contrário, o que realmente pretendemos é argumentar que, as intensas experiências vividas por esses africanos, embora lhes infligisse um abissal sofrimento, acabava também os obrigando a elaborarem estratégias para que antes de qualquer coisa pudessem sobreviver. Entendemos que os africanos possuíam um arcabouço cultural que lhes provia de recursos, com os quais compreendiam o cativeiro e suas próprias condições de cativos. Nesse sentido, todas as experiências pelas quais passavam os escravos africanos, ao longo de todo o trajeto desde seu continente natal até os mais remotos rincões da América, também se tornavam elementos que enriqueciam, de forma bastante dolorosa, o lastro cultural de cada indivíduo. Além disso, as violentas vivências as quais esses sujeitos eram submetidos passavam, imediatamente, a servir como elementos para enfrentarem as difíceis demandas da escravidão em um contexto bastante distinto do africano.6

Enfim, a significativa presença de africanos nos assentos de batismos, além de constatar que os produtores da região de Santa Maria da Boca do Monte recorriam ao tráfico negreiro para a reincorporação de mão de obra cativa, pode nos contar mais sobre o caráter hierárquico daquela sociedade.

Batismos, africanos e tráfico atlântico

No livro I de assentos de batismos da Capela Curada de Santa Maria da Boca do Monte foram registrados 1234 registros. Para esse montante de assentos, de acordo com as discriminações feitas pelos clérigos responsáveis por lavrar o livro de batismos, chegou-se aos seguintes qualitativos sociais que distinguiam os agentes históricos a partir da sua cor de pele e/ou sua origem: sem referência de cor, indígenas, crioulos, africanos, pardos e mestiços. Abaixo, o quadro 1 mostra como ficou a distribuição dos batismos levando em consideração a cor da pele e/ou origem atribuída aos batizandos.

5

Dos 133 africanos batizados na dita Capela, no período que abordamos, dois deles não foram discriminados como escravos. No restante do trabalho trataremos apenas dos 131 africanos que foram identificados como cativos.

6

Nesse contexto, faz-se imprescindível concordar com a ressalva que faz Nikelen Acosta Witter (2005), esta autora lembra que um componente inerente a história da escravidão é que ela constituiu-se em uma história do sofrimento humano.

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Quadro 1 - Distribuição dos batismos segundo a cor de pele e/ou origem dos batizandos

(Santa Maria da Boca do Monte, 1814 - 1822)

Sem Referência de cor Indígenas Crioulos Africanos Pardos Mestiços Total

534 393 151 133 20 3 1234

43% 32% 12% 11% 2% 0% 100%

Fonte: arquivo da Cúria Diocesana de Santa Maria.

Como se pôde perceber no quadro 1 (acima), os batismos de africanos representam 11% do total. Contudo, se levarmos em consideração somente o número de escravos, veremos que a presença de africanos foi realmente bastante significativa na região de Santa Maria da Boca do Monte nas primeiras décadas do século XIX. Segundo a condição jurídica discriminada pelos párocos, 278 destes registros são de escravos, número que corresponde a 23% do total de assentos. Dentre os 278 escravos batizados, 131 deles eram africanos, o que corresponde a um percentual de 47% do montante dos batizados de escravos. Vejamos o Gráfico 1 abaixo.

Essa constatação é coerente com o quadro verificado por Florentino; Góes (1997). A partir da análise sobre a flutuação do desembarque anual de africanos no porto do Rio de Janeiro, esses autores colocam que entre os anos de 1810 e 1825 houve um período de elevação dos desembarques de africanos naquele porto. Os autores chamaram esse período de aceleração do tráfico de fase A, o qual foi diretamente influenciado pela presença da família real portuguesa no Brasil e as implicações ligadas a essa situação como, principalmente, a abertura dos portos coloniais ao comércio

Gráfico 1 - Distribuição de escravos quanto a origem

(Santa M aria da Boca do M onte, 1814 -1822)

53% 47% 0% Crioulos - 146 Africanos - 131 Sem referência - 01

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internacional. Situação que, grosso modo, possibilitou um significativo aumento das exportações brasileiras e, consequentemente, gerou uma forte demanda brasileira por escravos africanos.

Assim, a expressiva representatividade de indivíduos africanos nos assentos batismais dessa capela sugere que a reincorporação de braços para as atividades produtivas nessa região passava pela sua vinculação com o tráfico atlântico de escravos. Isso se torna ainda mais relevante se levarmos em conta que se trata de uma região de economia periférica marcada, consideravelmente, por pequenas propriedades de produção voltadas à subsistência, que, no entanto, dividiam espaço com propriedades pastoris de significativo porte.7 Este cenário pode indicar que: na região em torno de Santa Maria da Boca do Monte também ocorria à subordinação da sociedade ao que Florentino; Góes chamaram de função sociológica primária do tráfico transatlântico de cativos, qual seja, perpetuar a diferenciação social entre os agentes sociais livres. Segundo os autores,

[...] em última instância, o tráfico destinava-se a abastecer de

escravos não a sociedade como um todo, mas sim uma elite que, por meio dele, reproduzia seu lugar social e, desse modo, reiterava sua distância em relação a todos os outros homens livres (1997, p. 56).

[grifo dos autores]

Para averiguarmos essa hipótese, procurou-se realizar uma estimativa da estrutura de posse de escravos para a região atendida pela Capela Curada de Santa Maria da Boca do Monte a partir da base empírica da qual dispomos, ou seja, os assentos de batismos. Da mesma forma que Fragoso (2006), buscou-se perceber as proporcionalidades na distribuição da propriedade cativa, sem, no entanto, ter-se a pretensão de apresentar a exata estrutura da posse de escravos da região. Este mesmo procedimento, a que recorremos, foi realizado por Fragoso (2006). Na ocasião, esse autor admitiu ter consciência das distorções acarretadas por esse método.8 Do mesmo modo, Engemann; Assis; Florentino (2003), ao utilizarem metodologia semelhante para estimarem a estrutura de posse de escravos a partir de assentos de óbitos, também

7

Ver FARINATTI (2010b). 8

(7)

ponderaram sobre sua fragilidade.9 Todavia, devido a falta de inventários post-mortem para essa região, no período abordado, ficamos impossibilitados de fazer um estudo fidedigno da estrutura da propriedade escrava. Nesse sentido, embora reconheçamos as limitações desse procedimento, ao se recorrer aos registros de batismos pôde-se elaborar uma estimativa da proporção da posse de escravos para a região de Santa Maria da Boca do Monte.

A partir do quadro 1 começamos a ter uma ideia inicial de que maneira estava distribuída a posse de cativos na região e no período que abordamos. Em primeiro lugar, é necessário deixar claro que dos 278 batizados de escravos que foram registrados no livro 1 de batismos da Capela Curada de Santa Maria da Boca do Monte, em 31 deles não foi discriminado o senhor do escravo ou de sua mãe, ou ainda não nos foi possível identificar o nome do senhor. Logo, dos 247 batizados restantes foi possível identificar 136 senhores. Destes, 95 (70% do total) registraram somente 1 cativo. Por seu turno, estes 95 cativos representam 38,5% do total dos 247 escravos que foram batizados. Esses dados indicam certa dispersão da propriedade escrava, já que 70% dos proprietários batizaram ao menos um cativo. Além disso, como era de se esperar, essas informações sugerem também uma considerável importância de pequenos plantéis frente à estratificação da estrutura produtiva. Em contrapartida, aproximadamente 30% dos assentos foram feitos por apenas 9 senhores (6,5% do total). Portanto, além da significativa quantidade de senhores com poucos cativos batizados, nos parece que havia um razoável grau de concentração da escravaria em plantéis de poucos proprietários. Vejamos abaixo o quadro 2.

Fonte: arquivo da Cúria Diocesana de Santa Maria.

9

Ver ENGEMANN; ASSIS; FLORENTINO (2003). (nota 15)

Quadro 2 - Concentração dos batismos de escravos

(Santa Maria da Boca do Monte, 1814 - 1822)

Nº de Batismos Nº de Proprietários % Nº de escravos %

1 95 70 95 38,5

2 17 12,5 34 13,8

3 15 11 45 18,2

4 ou mais 9 6,5 73 29,5

(8)

Ao mesmo tempo em que os dados do quadro 2 indicam relativa dispersão da posse cativa, eles sugerem também certo grau de concentração dessa posse em poucas mãos. A partir da realidade encontrada, de que 6,5% dos senhores haviam concentrado 29,5% de todos os batismos de cativos, entendemos que a propriedade de escravos se configurava em um importante componente de diferenciação social entre os pares livres da sociedade.

Entretanto, a incorporação de mão de obra escrava poderia ocorrer por outros veículos que não apenas o tráfico negreiro. Assim, para que nossa hipótese tenha coerência, entendemos que seria necessária a combinação de ao menos dois fatores. Em primeiro lugar, os proprietários de escravos da região abordada nessa pesquisa precisariam recorrer com razoável frequência ao tráfico atlântico de cativos. Em segundo, a reincorporação de africanos aos plantéis teria de obedecer ao mesmo padrão de concentração verificado no quadro 1, ou seja, considerável parcela dos batismos de africanos também devem ter sido realizados por poucos senhores.

Como já se pôde averiguar, o primeiro fator parece ter ocorrido, visto que: entre os 278 escravos batizados no período abordado, 131 eram oriundos do continente africano (ver gráfico 1). Por sua vez, o gráfico 2 mostra a ocorrência dos batismos de escravos africanos ao longo do tempo.

A média geral de batizados de cativos africanos alcançou mais de 14 rituais por ano. O intervalo correspondente ao decréscimo de cerimônias envolvendo escravos

GRÁFIC O 2 - Ocorrência de batismos de africanos ao longo do tempo

(Santa Maria da Boca do Monte, 1814-1822)

0 5 10 15 20 25 30 35 1814 1815 1816 1817 1818 1819 1820 1821 1822

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africanos se deve a interrupção dos registros de batismo no final do ano de 1816, retornando em outubro de 1817. Desconhecemos ainda a causa, conquanto, supomos que a Capela fora fechada devido a alguma contenda na região. Já, a pouca ocorrência de batismos em 1822 se deve ao término do livro 1, com o qual desenvolve-se essa pesquisa, no final do mês de maio daquele ano. Contudo, acreditamos que essa limitação não comprometa as reflexões aqui promovidas, já que, o número de africanos batizados até maio de 1822 já igualava-se ao montante de batismos realizados em todo o ano de 1821. Por consequência, a média geral e o número absoluto desses, muito provavelmente, teria sido maior. Circunstância essa que, salvo uma situação bastante anômala, não poderia gerar distorções no cenário de concentração de batizados de escravos africanos.

No que tange ao segundo fator, percebe-se que o quadro de considerável dispersão da posse de escravos concomitante com a sua significativa concentração por uma elite de senhores, averiguado na distribuição de escravos em geral, também se repete nos batismos de escravos africanos. Dos 131 cativos africanos batizados, conseguiu-se identificar o seu proprietário em 128 assentos. Os registros destes 128 cativos africanos foram feito por 77 senhores diferentes. Sendo que, desse total de senhores, 55 (71,4% do total) deles batizaram somente 1 escravo africano. Esses números revelam que, mais de 70% dos senhores batizaram 43% dos escravos africanos. Situação essa que, como já se constatou para os escravos em geral, mostra a disseminação da posse de cativos africanos em pequenos plantéis. Em compensação, apenas 6 (7,8% do total) dos proprietários batizaram quatro africanos ou mais, reunindo, dessa forma, 29,7% dos batismos de cativos oriundos do continente africano. Esses dados indicam também a provável existência de uma elite de senhores que concentravam a propriedade de escravos africanos.

Fonte: arquivo da Cúria Diocesana de Santa Maria.

Quadro 3 - Concentração dos batismos de escravos africanos (Santa Maria da Boca do Monte, 1814 - 1822) Nº de Batismos Nº de Proprietários % Nº de escravos %

1 55 71,4 55 43

2 13 16,9 26 20,3

3 3 3,9 9 7

4 ou mais 6 7,8 38 29,7

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Para reforçar ainda mais nosso argumento, fizemos no quadro 4 uma listagem com os nomes dos 9 proprietários que batizaram mais de 4 escravos no geral. A partir desta lista, verificamos que, dos 6 senhores que formaram a elite que mais batizou cativos africanos, 4 deles foram os proprietários que mais batizaram escravos em geral. Tendo, cada um deles, batizado nove ou mais escravos. Somente um dos cinco senhores que tiveram nove ou mais escravos batizados registrou menos de quatro batismos de escravos africanos. Essa situação foi protagonizada por José Cardoso da Silva.

Quadro 4 - Relação dos proprietários que mais tiveram escravos batizados

(Santa Maria da Boca do Monte, 1814 -1822)

Proprietários Crioulos Africanos Total

Antonio da Costa Pavão 7 7 14

Manoel Francisco da Silva (Capitão) 1 9 10

Balthazar Pinto de Aguiar (Capitão) 5 5 10

Jozé Machado Fagundes (Capitão) 2 7 9

José Cardoso da Silva 7 2 9

Manoel Carneiro da Silva e Fontoura (Tenente-Coronel) 3 5 8

Manoel Ferreira Serpa * 5 5

Manoel Joaquim Vieira 2 2 4

Bento Gonçalves Chaves 4 * 4

Total 31 42 73

Fonte: arquivo da Cúria Diocesana de Santa Maria.

Parece-nos que os dados até aqui expostos comprovam que o tráfico transatlântico de escravos africanos era uma possibilidade viável tanto para os grandes, quanto para certa parcela de pequenos produtores da região de Santa Maria da Boca do Monte, no período estudado. Por conseguinte, essa constatação implica dizer também que, a mão de obra cativa tornou-se componente imprescindível para o estabelecimento das atividades produtivas ainda durante o conturbado processo de ocupação territorial (luso-brasileiro) nas primeiras décadas do século XIX. Período no qual, essa região esteve imersa em um contexto de endemia bélica devido: as frequentes lutas pela manutenção dos territórios conquistados e disputas fronteiriças no extremo sul da América portuguesa. Assim, as possibilidades de fuga de escravos para os Estados da região platina, convulsionada pela guerra de independência contra a Coroa espanhola e

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suas pelejas intestinas, ou que esses fossem requisitados para o exército ou milícias que passavam pela região transformavam a aquisição de escravos – principalmente africanos, por meio do tráfico negreiro –, em um investimento econômico de alto risco. Mesmo assim, nessa região de economia periférica, marcada por constantes vicissitudes, reflexos do povoamento (luso-brasileiro) recente, fronteiras instáveis e endemia bélica, a escravidão era um regime de trabalho amplamente difundido.

Essa circunstância, em nosso entendimento, reforça a ideia de que essa sociedade caracterizava-se por uma intensa hierarquização, uma vez que, práticas costumeiras de poder idealizavam, legitimavam e naturalizavam as desigualdades e as hierarquias sociais. E que, por sua vez, a escravidão se configurava como norma, e não como exceção. Logo, a possibilidade de se tornar proprietário de terras e escravos motivou muitos dos primeiros povoadores desse território em questão a se dirigirem a ele.

Outro importante fator que deduzimos das informações até aqui apresentadas é que mesmo em uma região onde predominavam os estabelecimentos voltados para produção de subsistência havia certa parcela de pequenos produtores que conseguia gerar excedentes, os quais lhes possibilitavam investir na aquisição de escravos, inclusive africanos.

Além disso, entende-se que as informações levantadas corroboram com a coerência da hipótese de que, no espaço e período estudados, o tráfico negreiro cumpria a função sociológica de reproduzir o lugar social de uma elite que buscava se distanciar do restante da população livre. Enfim, a vinculação dessa região ao tráfico atlântico se configurava também em importante componente de reprodução das complexas hierarquias sociais daquela sociedade. Hierarquias essas que se manifestavam, grosso modo, tanto entre escravos – crioulos, africanos ladinos, africanos boçais -, quanto entre escravos e livres e, também, entre os próprios pares livres – principalmente entre abastados e pobres.

Referências bibliográficas

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FARINATTI, L. A. E. Lavradores, escravos e criadores de gado: o universo agrário de Santa Maria (meados do século XIX). IN: Weber, B. T; RIBEIRO, I. (orgs.). Nova história de Santa Maria: contribuições recentes. Santa Maria: RS, [s.n.], 2010b.

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_________. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010.

FRAGOSO, J. Os principais da terra, escravos e a república: o desenho da paisagem agrária do Rio de Janeiro seiscentista. Revista Ciência e Ambiente, n. 33 (jul/dez, 2006) Santa Maria: UFSM, 2006.

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SLENES, R. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava no sudeste do Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

WITTER, N. A. Negociando cuidados e liberdades: a prática de saúde, doença e cura entre os senhores e escravos (RS, século XIX). CD-ROM [do] 2º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional: Porto Alegre, 2005.

Fontes documentais

Arquivo da Cúria Diocesana de Santa Maria

Referências

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