UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Instituto de Relações Internacionais
COOPERAÇÃO SUL-SUL: O ACORDO BRASIL-MOÇAMBIQUE NA
ÁREA DE BIOCOMBUSTÍVEIS
TOMÉ FERNANDO BAMBO
VERSÃO CORRIGIDA
COOPERAÇÃO SUL-SUL: O ACORDO BRASIL-MOÇAMBIQUE NA
ÁREA DE BIOCOMBUSTÍVEIS
Dissertação apresentada ao Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências — Programa de Relações Internacionais.
Linha de pesquisa: Economia Política Internacional
ORIENTADORA: PROFª. DRª. ADRIANA SCHOR
FICHA CATALOGRÁFICA
BAMBO, Tomé Fernando.
Cooperação Sul-Sul: o acordo Brasil-Moçambique na área de biocombustíveis
Orientadora: Profª. Drª. Adriana Schor-IRI-USP 80 páginas
SUMÁRIO
Dedicatória……….………..………….. i
Agradecimentos ………….………... ii
Sumário de Figuras... iv
Sumáriode Gráficos ………... v
Sumário de Tabelas…... vi
Sumário de Siglas e Abreviaturas... vii
Resumo………... 1
Abstract... 2
ARTIGO 1. COOPERAÇÃO SUL-SUL BRASIL–ÁFRICA.………... 5
INTRODUÇÃO……… 5
1. ABORDAGEM TEÓRICA DA COOPERAÇÃO EM RI……… 6
1.1 A cooperação internacional na visão realista……….... 6
1.2 A cooperação internacional na perspectiva liberal ……….. 9
1.3 A cooperação internacional na ótica da teoria de dependência………..….. 12
2. A “NOVA” MODALIDADE DE COOPERAÇÃO: A CSS………...…. 14
2.1 O conceitode CSS……… 14
2.2 CSS: o surgimento histórico do termo……….. 16
3. AS RELAÇÕES DE COOPERAÇÃO SUL-SUL: O BRASIL NA ÁFRICA……. 19
3.1 A cooperação Brasil-África no governo Lula……….. 26
CONCLUSÃO………. 34
BIBLIOGRAFIA ………. 37
APÊNDICES………. 43
Apêndices 1. Eventos realizados para o fortalecimento da CSS ... 45
INTRODUÇÃO……… 46
1 COOPERAÇÃO BRASIL-MOÇAMBIQUE EM BIOCOMBUSTÍVEIS: MOTIVAÇÕES E TENDÊNCIAS………... 46 2. ATUAL QUADRO DA COOPERAÇÃO BRASIL-MOÇAMBIQUE EM BIOCOMBUSTÍVEIS……….. 52 A) Apoio do desenvolvimento do programa dos biocombustíveis em Moçambique 53 i). Ambiente institucional: propriedade da terra e marco regulatório ……….. 53
a) Propriedade da terra……….. 53
b) Marco regulatório para o setor dos biocombustíveis……… 57
ii) Zoneamento agrícola e desenvolvimento regional………...… 60
iii) Arranjos produtivos e modelos de negócios para o desenvolvimento da produção e consumo de biocombustíveis……….……… 61 iv) Intercâmbio de experiências sobre o papel da agricultura familiar na produção de biocombustíveis……… 63 B) Elaboração conjunta de projetos de cooperação técnica para capacitar os recursos humanos do setor dos biocombustíveis em Moçambique……….… 63 C) Cooperação triangular em biocombustíveis……….. 65
3. COOPERAÇÃO BRASIL-MOÇAMBIQUE NA PROMOÇÃO DOS BIOCOMBUSTÍVEIS: QUE OPORTUNIDADES E QUE DESAFIOS DELA ADVÊM?... 67 3.1 Oportunidades………... 67
3.2 Desafios………. 68
4. ANÁLISE CRÍTICA SOBRE A COOPERAÇÃO BRASIL-MOÇAMBIQUE EM BIOCOMBUSTÍVEIS………... 70 CONCLUSÃO………. 73
BIBLIOGRAFIA ………. 75
Anexo 3. Política e Estratégia Nacional de Biocombustíveis
Dedico à
Minerva, Fernando, Keyven, Flora, Mouzinho,
Nina (em memória), Helena, Rosita, Guida,
Lurdes, Nita, nana Matineja, Adozinda e ao meu
pai, Fernando (em memória) cuja falta, sinto a cada
Agradecimentos
Indicar nomes de todos quanto contribuíram para fazer deste trabalho uma realidade, é uma
tarefa difícil, se não mesmo impossível. Embora incorrendo o risco de deixar alguns desses
nomes no esquecimento, não mencionar outros, seria imoral.
Portanto, gostaria de agradecer a Profª. Drª. Adriana Schor, pela orientação, discussão,
sugestões e acima de tudo, o apoio, a paciência e a disponibilidade que permitiu abordar
múltiplas questões cujo benefício para o trabalho foi evidente.
Ao Prof. Dr. Amâncio Jorge Silva Nunes de Oliveira pelo tempo investido na discussão do
projeto de pesquisa e troca de ideias durante o período em que a minha orientadora esteve na
Alemanha.
A Profª. Drª. Janina Onuki, pela forma sabia na transmissão de conhecimentos nas disciplinas
sobre Questões Normativas e Análise da Política Externa, cujos mesmos, foram fundamentais
para a concepção e feitura da presente pesquisa.
A Profª. Drª. Antonieta Del Tedesco Lins, pela criação do grupo de pesquisa de Economia
Política Internacional que permitiu aprofundar o debate do projeto de pesquisa dentro do
grupo.
A todos docentes e funcionários especialmente à Giselle, Bete, Berbel, Rodrigues e Alex que
sempre foram solícitos e atenciosos nessa minha caminhada à procura do saber no Instituto de
Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
A CNPq, pela bolsa de pesquisa que me concedeu sem a qual, seria impossível a
materialização este curso.
Os objetivos deste trabalho seriam intangíveis sem a colaboração de outros internacionalistas,
nomeadamente, Fernando e Francisco (Argentina), Celso (Cabo Verde), Erika (Venezuela),
Zhaowei e Zheng (China), Robert (Irlanda), Gillian (Jamaica), Justin (EUA) e aos anfitriões,
Matheus, Chindalena, Mariana, Patrícia, Murilo, Bruno, Nathalie, Leandra, Dani, Thalita,
Durante todo o tempo em que estive na USP contei sempre com o entusiasmo apoio e
amizade de compatriotas moçambicanos—, Aníbal (carinhosamente tio Aníbal), que desde o
primeiro dia da minha estadia na USP, abriu mãos em me recebeu, mais do que um
compatriota, amigo constitui um verdadeiro tio. Ao Vicente, Tique, Lúcia e Ilídio pelas
amistosas conversas nas horas de lazer.
Pelo amor expresso, amizade e calor de conforto, vai o meu obrigado a minha mãe, Minerva,
aos meus avôs, Fombe (em memória) e Saio, ao meu tio Tomé pelo carinho e importantes
lições oferecidas ao longo da minha vida.
Gostaria de endereçar calorosamente, o meu muito obrigado, ao Benedito Tovele, Lina,
Betinho, Aires, Terêncio, Vicente Fombe, Maria Fombe e todos aqueles que de forma
involuntária, caíram no esquecimento.
E por último, agradecer a Deus, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis e presente em
Sumário de Figuras
Figura 1.1 Esquema de convergências e divergências das teorias realista e liberal sobre a cooperação internacional....………..…..
10
Figura 1.2 Mapa de visitas oficiais de Lula à África (2003-2010)……... 28
Figura 2.1 Previsões sobre mudanças climáticas em 20 anos……... 48
Figura 2.2 Previsões sobre mudanças climáticas em 50 anos ...………...…. 48
Figura 2.3 Projeção de mercado global dos biocombustíveis até 2030.….…. 49
Figura 2.4 Mapa comparativo do Brasil e Moçambique das potenciais
zonas produtoras das plantas bioenergéticas em Moçambique…... 50
Figura 2.5 Quadro de critérios de sustentabilidade de produção dos
Sumário de Gráficos
Gráfico 1.1 Fluxo comercial entre o Brasil e a África 2000-2010 em USD.... 30
Gráfico 2.1 Preço do barril de petróleo/ano……..………...…….... 48
Sumário de Tabelas
Tabela 1.1 Eventos realizados para o fortalecimento da CSS………... 43
Tabela 1.2 Comércio do Brasil com o mundo e a África, 2000–2010
(USD)……… 45
Sumário de Abreviaturas e Siglas
ABC Agência Brasileira de Cooperação
AGOA African Growth and Opportunity Act
APEX Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CID Cooperação internacional para o desenvolvimento
CNS Cooperação Norte-Sul
CSS Cooperação Sul-Sul
CTPD Cooperação técnica entre os países em desenvolvimento
DNTF Direção Nacional de Terra e Florestas
DUAT Direito de Uso e Aproveitamento de Terra
EUA Estados Unidos da América
FARA Fórum de Pesquisa Agrícola na África
FHC Fernando Henrique Cardoso
G77 Grupo dos 77
GEE Efeito Estufa
GM Governo de Moçambique
IFAD Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola
IFAD Fundo do Reino Unido para o Desenvolvimento Agrícola
IIAM Instituto de Investigação Agrária de Moçambique
INMETRO Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
MERCOSUL Mercado comum do Sul
MRE Ministério de Relações Exteriores
NOEI Nova Ordem Econômica Internacional
OIs Organizações Internacionais
ONU Organizações das Nações Unidas
PABA Plano de Ação de Buenos Aires
PALOP Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
PEC-PG Programa de Estudantes de Convênio de Pós-Graduação
PED Países em desenvolvimento
PEI Política externa independente
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
RI Relações Internacionais
SADC Comunidade dos Países da África Austral
SI Sistema Internacional
UNAVEM III Terceira Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola
EU União Europeia
URSS União das Repúblicas Socialista Soviética
Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar a dinâmica da cooperação Sul-Sul (CSS) nos últimos
decênios, tomando como foco, o acordo Brasil- Moçambique na área de biocombustíveis.
Iniciada de forma tímida nos anos 50 e 60, a CSS é vista como uma ação interativa dos países
em desenvolvimento (PED) para a solução dos seus problemas. O Brasil desponta nesse
processo na década de 1960, no seio da Política Externa Independente (PEI) inaugurada pelo
governo Jânio Quadros, primeiro, junto dos países da américa latina e mais tarde com os
africanos. Porém, devido aos constrangimentos estruturais e conjunturais, a CSS brasileira
com África passou a se caracterizar até em 2002, por momentos de alta e baixa intensidade.
Com Lula no poder (2003-2010) e com ele a sua política de diversificação de atores e de
“solidariedade”, as relações Brasil – África ganham novos contornos e dinamismo, um dos
quais, a assinatura do acordo com Moçambique na área de biocombustíveis. Portanto,
concluiu-se na presente pesquisa que, no setor de biocombustíveis, o que está por detrás da
solidariedade, são os objetivos econômicos, apesar disso, Moçambique não tem alternativa a
não ser cooperar com o Brasil no setor de biocombustíveis.
PALAVRAS-CHAVES: Brasil. Moçambique. Biocombustíveis. Cooperação Sul-Sul.
Abstract
The aim of this research is to analyze the dynamics of South-South cooperation (SSC) in
recent decades, taking as its focus, the agreement between Brazil and Mozambique in biofuels
area. Timidly started in the 50s and 60s, the SSC is seen as an interactive action of developing
countries (LDCs) in the solution of their problems. Brazil is coming up in this process in the
1960s, within the Independent Foreign Policy (IEP) inaugurated by Jânio Quadros
government, first, among latin american countries and later with the africans countries.
However, due to structural and situational constraints, Brazil's SSC with Africa began to be
characterized by moments of high and low intensity by the year 2002. With Lula in power
(20032010) and with him, his policy of diversification of actors and "solidarity", Brazil
-Africa relations gain prominence and dynamism, one of which is the agreement signed Brazil
- Mozambique in the area of biofuels. Therefore, it was concluded in this study that, in the
biofuels, what is in behind of solidarity is economic goals, nevertheless Mozambique has no
choice but to cooperate with Brazil in the biofuels.
KEYWORDS: Brazil, Mozambique, Biofuel, South-South cooperation, Relationships
A cooperação Sul-Sul (CSS) tal como ela é entendida hoje na literatura especializada,
remonta nos anos 50 e 60 com advento dos movimentos de descolonização dos países
afro-asiáticos, da criação do Grupo dos 77 países (G77) que reivindicava a restauração de uma
Nova Ordem Econômica Internacional (NOE) em virtude da então Ordem ser desajustada aos
seus interesses e da tomada de consciência desses países de que deveriam ser parceiros
integrais de si mesmos na solução dos seus problemas.
O Brasil se insere no processo de CSS na dêcada de 1960, no seio da Política Externa
Independente (PEI) iniciada pelo governo Jânio Quadros (1961). É neste período em que o
país começa a ensaiar os primeiros passos como parceiro junto dos países da américa latina e,
mais tarde, com os africanos. Porém, devido aos fatores tanto estruturais quanto conjunturais,
as relações Brasil-África passaram a se caracterizar por momentos pendulares de alta e baixa
intensidade.
Com Lula (2003-2010) no poder e com ele a sua política de diversificação dos atores e da
agenda, o eixo de cooperação Brasil-África viria a ganhar adensamento. Vários são elementos
que testemunham a nova dinâmica brasileira em África: o aumento do número de missões
diplomáticas, fluxos de investimentos, trocas comerciais e visitas presidenciais.
Contudo, com o aumento do preço de petróleo no mercado internacional em 2007 e a
consequente divulgação do relatório sobre a crise ambiental global pelos pesquisadores do
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o tema sobre a promoção de
biocombustíveis passa a ganhar acento tônico na agenda da política externa brasileira para
África.
Foi neste quadro e acrescida às condições geopolíticas e geoestratégicas internas favoráveis
de Moçambique, tais como, clima, solo, terras aráveis subutilizadas, abundância de mão de
obra, dependência da agricultura e das importações de petróleo e a relativa estabilidade
econômica e política que Brasil e Moçambique assinaram em 2007, o acordo de cooperação
na produção e uso de biocombustíveis. Este cometimento surge não só para dar resposta aos
problemas ambientais e energéticos, mas também, como forma de dinamizar as relações de
Deste modo, busca-se na primeira parte da pesquisa, compreender a dinâmica da CSS nos
últimos anos, tomando como foco as relações entre o Brasil e a África. Para o efeito,
apresenta-se o debate teórico da cooperação em Relações Internacionais (RI) dentro do
arcabouço teórico realista, liberal e de dependência, o conceito, debate histórico do
surgimento da CSS e as relações de CSS entre o Brasil a África desde o governo de Jânio
Quadros (1961) até à gestão do governo Lula. E conclui-se que a CSS resultou da necessidade
dos PED.
Em seguida, a pesquisa analisa a cooperação Brasil - Moçambique em biocombustíveis,
aflorando as motivações e tendências, o atual estágio da parceria, suas oportunidades e seus
desafios e por último, faz-se uma análise critica dessa parceria. E, chega a concluir que, longe
de se tornar em uma parceria solidária e desinteressada, como apregoado nos discursos
diplomáticos, a cooperação Brasil-Moçambique em biocombustíveis pode trazer vantagens
ARTIGO 1.
COOPERAÇÃO SUL-SUL BRASIL–ÁFRICA
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, a cooperação entre os países em desenvolvimento (PED), também
conhecida por cooperação Sul-Sul (CSS), vem ganhando importância crescente nos debates
acadêmicos, nos discursos políticos e na comunidade internacional, seja pela limitação
relativa à cooperação tradicional de geometria Norte-Sul, dominada por práticas centralizadas
nos países desenvolvidos, seja pelas vantagens que os países mais pobres do hemisfério Sul
vislumbram como meio de promover uma articulação com vista a estimular o seu
desenvolvimento.
Diante desse panorama, as relações Brasil-África passam a constituir tema permanente no
quadro da política externa ——, tanto brasileira quanto dos países africanos. Porém, em
virtude das alterações de ordem tanto estrutural, quanto conjuntural, tais relações têm-se
caracterizado por movimentos “pendulares” de intensidade diversa ——, com altos níveis nos
anos de 1970, acentuados declínios entre os anos 1987 e 1990 e esboçando recuperação e
possível adensamento no virar do século XXI, com a ascensão de Lula da Silva à presidência
da República em 2003.
Nessa relação, o Brasil1 rejeita o caráter condicional e assimétrico da cooperação e coloca à
disposição dos seus parceiros, sua experiência, seus conhecimentos e sua tecnologia, com o
objetivo de colaborar na promoção do progresso econômico e social do Sul global (IPEA,
2010). É sob este argumento, com viés “heterodoxo” no campo epistemológico das relações
internacionais que cabe questionar: porque os Estados cooperam? E sob que condições a
cooperação é possível ou mutuamente vantajosa? Seria a cooperação Sul-Sul entre Brasil e
África realmente solidária, desinteressada e distinta da cooperação tradicional Norte-Sul?
Na busca de elementos que possam ajudar a dar resposta às questões colocadas, o artigo
discute, na primeira seção, a abordagem teórica da cooperação em RI à luz das teorias realista,
liberal e de dependência. Na segunda seção, traz ao debate o conceito e o contexto histórico
1
do surgimento da cooperação Sul-Sul no cenário internacional. Na terceira, analisa a dinâmica
da cooperação Sul-Sul Brasil-África, desde a década de 1960, no seio da Política Externa
Independente (PEI) inaugurada pelo governo Jânio Quadros, até a gestão do governo Lula
(2003-2010). Posto isso, vem à parte conclusiva e a referência bibliográfica.
O artigo é de natureza qualitativa, baseia-se em análise de dados bibliográficos, com o fito de
contribuir para a compreensão da cooperação Sul-Sul que vem-se desenrolando nas últimas
décadas, concentrando-se especificamente nas relações de cooperação Brasil-África durante o
governo Lula.
1. ABORDAGEM TEÓRICA DA COOPERAÇÃO EM RI
Durante muito tempo, as relações internacionais (RI) foram explicadas sob a égide das teorias
realista e liberal, sendo inescapável o seu conhecimento aos estudiosos e analistas da área.
Apesar de canônicas e por muito tempo dominarem o meio acadêmico, essas teorias, até certo
ponto, mostraram-se incapazes de explicar a crescente complexidade das RI decorrentes da
intensa interação entre os Estados. O exemplo nítido disso é o fenômeno das cooperações
Norte-Sul e Sul-Sul que vêm ganhando espaço nos últimos anos.
1.1. A cooperação internacional na visão realista
Florescida nos Estados Unidos após a II Guerra Mundial em reação ao moralismo utópico
wilsoniano, a teoria realista se imperou como a visão do mundo dominante entre analistas e
tomadores de decisões. As suas bases históricas contam com a herança de Tucídides (400
a.C.), Hobbes (1588 – 1679), Maquiavel (1469 – 1527), Hans Morgenthau (1904 – 1980),
Raymond Aron (1905–1983) e Kenneth Waltz (1924–2013) entre outros.
Apesar de todos serem rotulados de realistas, é possível distingui-los em realistas clássicos,
realistas estruturais (neorrealistas) e realistas neoclássicos (neorradicais ou neotradicionais).
Dentro de cada um dos grupos, também existem os chamados realistas ofensivos, realistas
defensivos, realistas políticos e realistas econômicos. Todavia, para o propósito desta
pesquisa, todos são considerados como “realistas”, uma vez que osseus autores partilham dos
mesmos pressupostos básicos.
Para os realistas, os Estados são atores centrais das relações internacionais, cuja principal
meio de alianças. No plano doméstico, os Estados se caracterizam pelo que Marx Weber
chamou de monopólio de uso legítimo da força (WEBER2, apud COHN, 1986). Tal
monopólio não é extensivo ao ambiente externo onde a anarquia3 e as guerras são uma
realidade permanente (NOGUEIRA & MESSARI, 2005).
Dada à anarquia vigente, o sistema internacional (SI) deve ser analisado por meio da ideia de
estado de natureza hobbesiano, no qual a sobrevivência e a segurança estatal determinam as
políticas externas dos Estados. Portanto, os Estados devem contar apenas com os seus
próprios meios para garantir a sua sobrevivência (STEIN, 1990). Este fato, segundo Patrícia
Soares Leite (2011), limita a cooperação, por duas razões.
A primeira está relacionada com ganhos relativos. Em um sistema de autoajuda, cada Estado é
juiz final da sua causa e, como inexiste divisão do trabalho regulada por uma entidade
superior, cada Estado provê a sua própria segurança, prosperidade econômica, social e outras
metas.
Quanto à possibilidade de cooperação para um ganho mútuo, os realistas ressaltam que um
Estado teme que o outro ganhe proporcionalmente mais do que ele na distribuição dos ganhos
auferidos e, assim, aumente o seu poder. Sob esse ponto de vista, o empecilho à cooperação
não consiste na irracionalidade ou intenção do Estado, mas na condição de insegurança e
incerteza de cada um sobre as intenções e ações do outro.
A segunda razão advém do medo da dependência. Os Estados resistem a especializar-se e a
depender dos demais para a provisão de bens e serviços por temerem a vulnerabilidade. De
fato, é consensual na literatura que, quanto mais um Estado importa ou exporta, mais
dependente se torna dos outros para alcançar os seus objetivos econômicos e sociais. Como
este não consegue exercer o controlo sobre os demais, arrisca-se a ter o seu bem-estar
“hipotecado” por vicissitudes externas.
Nesse contexto, o comportamento dos Estados na estrutura do SI mostra como a estrutura
anárquica afeta o comportamento dos Estados e este, por seu turno, constrange a cooperação.
Não obstante, vozes dissonantes dentro do realismo são céticas à inexistência do espaço
2
WEBER, M., A “Objetividade” do Conhecimento nas Ciências Sociais, In: COHN, G., Max Weber: Sociologia. São Paulo: Ática, 1986.
3
cooperativo entre os Estados. Usando a teoria de stag hunt game (caça ao veado), Robert
Jervis explica duas opções antagônicas: i) dois caçadores cooperam e caçam um veado,
animal de grande porte e valor que pode render muito, ou ii) não cooperam, cada um caça
um coelho——, animal com pouco valor quando comparado ao veado (JERVIS, 1978).
Para o autor, cooperar tem custos e pode ser difícil, mas os ganhos podem ser muito maiores.
E, como os Estados são atores racionais, eles fazem cálculos dicotômicos, entre custos versus
benefícios e ganhos versus perdas, antes de tomar qualquer decisão, entendida na
terminologia dos economistas como maximização da utilidade esperada.
Baseando-se no modelo explicativo proposto por Robert Jervis, Arthur Stein é peremptório:
no realismo, os Estados só cooperam para lidar com ameaças comuns (STEIN, 1990), ou seja,
a cooperação deve ser vista como uma ação efêmera dos Estados que visa acudir
determinadas situações de ameaças de conflito. Fora dessas ameaças, os Estados devem
depender da própria capacidade. Neste contexto, a autoajuda passa a ser vista como uma regra
e a cooperação, uma exceção na política externa dos Estados.
Com base no exposto, é incorreto afirmar categoricamente que no realismo não existe
cooperação, antes pelo contrário. Mesmo admitindo a anarquia do sistema internacional (SI),
essa teoria oferece bases explicativas para a ocorrência da cooperação. A partir da teoria de
estabilidade hegemônica, uma liderança com poder suficientemente forte pode atuar como
uma autoridade na esfera internacional para garantir o respeito às normas, assegurar a
estabilidade do SI, diminuir os conflitos entre os Estados e, por conseguinte, impor a
cooperação (NOGUEIRA & MESSARI, 2005). É um argumento paradoxo dentro do próprio
realismo na medida em que, e segundo essa mesma teoria, os Estados são atores unitários e
soberanos dentro do espaço jurídico dos seus territórios.
A criação de um Estado hegemônico implicaria, indubitavelmente, a dissolução dos demais
Estados, ou, na melhor hipótese, a negação das suas soberanias a favor de um “governo global”——, o que seria improvável de acontecer no atual cenário internacional, pelo menos
do ponto de vista do direito internacional. Ademais, o modelo westfaliano está claro e
entabula condições de autonomia para unidades políticas com o livre arbítrio de estreitar ou
Contudo, devido à presença de atores não estatais no SI, como empresas privadas, igrejas e
organizações internacionais (OIs), nos processos da política e da economia durante os anos de
1970, a realidade moldada pela teoria realista, como a mainstream theory das RI, viria a ser
modificada. A partir de então, a hegemonia teórica realista é posta em “xeque” pelas teorias
concorrentes, das quais destacam-se a liberal e a de dependência.
1.2. A cooperação internacional na perspectiva liberal
Retomada por Robert Keohane e Joseph Nye, em sua obra mais famosa “Poder e
Interdependência: a política internacional em transição de 1977”, a teoria liberal4
ganha
preponderância e prestígio nos debates acadêmicos das RI. Embora os liberais tendam a
concordar com os realistas no que diz respeito à caracterização do SI como anárquico, essa
teoria enfatiza a possibilidade da sua transformação em uma ordem mais cooperativa e
harmoniosa.
Sob essa visão, Robert Keohane, em After hegemony: cooperation and discord in the world
political economy, apresenta uma abordagem menos pessimista acerca das interações
interestatais e confere maior visibilidade à promoção de relacionamentos cooperativos entre
os Estados. Para ele, apesar da dificuldade de se estabelecer acordos de cooperação, dadas as
limitações do SI, esta pode ser concretizada no âmbito das instituições internacionais
(KEOHANE, 1984).
Nesta ordem de ideia, a cooperação não significa para o autor, a harmonia de interesses (ibid).
Sob esse prisma, Keohane afasta-se da matriz liberal Kantiana, segundo a qual o maior
contato entre países geraria um meio harmonioso de cooperação conducente, em última
instância, à paz e rejeita a ideia de que a cooperação é alcançada por atores auto-interessados,
mesmo involuntariamente.
Para o autor, a cooperação não é automática, não deriva de mera existência de interesses
mútuos. Ela exige alteração de padrões de comportamento, ou seja, o ajuste de interesses nas
condutas dos Estados. É um processo de coordenação de políticas em que o comportamento
de um ator é visto como compatível com a promoção dos objetivos do outro. Tal processo,
segundo Stephen Krasner, é facilitado pela criação de regimes internacionais que constituem
4
um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões em torno
das quais as expectativas dos atores convergem (KRASNER, 1985).
Apesar de o sistema internacional carecer de uma autoridade central com funções de
“capataz”, os Estados parecem estar imiscuídos em uma rede institucional em um sentido
mais amplo, com regras explícitas ou implícitamente estabelecidas que contribuam para a
modificação do comportamento estatal e, eventualmente, para a convergência com o
comportamento dos demais.
Em outras palavras, diz Rober Keohane, os regimes fornecem incentivos expressivos para a
ocorrência de cooperação internacional. Enquanto isso, as instituições internacionais oferecem
diretrizes para os comportamentos individuais dos Estados, restringindo-os aos padrões
preconizados por suas normas, além de reduzir a incerteza característica no cenário
internacional e são, por conseguinte, capazes de influenciar positivamente a promoção de
resultados mutuamente benéficos entre os Estados (KEOHANE, 1984).
Robert Keohane não contrapõe as premissas realistas como um todo. Se, por um lado,
reconhece a possibilidade de cooperação na política externa dos Estados, por outro, reafirma o
egoísmo racional dos Estados, aproximando-se dos realistas (figura 1). E parte da premissa de
que os Estados perseguem os seus próprios objetivos, visando maximizar o poder e a riqueza,
e norteiam-se por considerações autointeressadas em que fazem cálculos de custos e
benefícios.
Figura1.1 Esquema de convergências e divergências das teorias realista e liberal sobre a cooperação
Internacional
Fonte: Elaborado pelo autor
Teoria Liberal Cooperação
internacional Teoria realista
Liderança mundial
Regimes Internacionais (princípios, normas, regras e
Dito isso, pode-se depreender na figura acima que os realistas e os liberais partilham da
premissa de que a anarquia internacional constitui empecilho à cooperação. Embora unanimes
desse pressuposto, as expectativas apontadas pelas correntes teóricas são diametralmente
divergentes no que concerne a atuação do Estado no SI. Para os realistas, a cooperação é
comprometida por causa da natureza do próprio sistema e, quando esta ocorre, é para resolver
situações de conflito. Enquanto isso, os liberais tem uma perspectiva menos pessimista da
ocorrência de cooperação.
Critica às teorias realista e liberal
A despeito do mérito atribuído às teorias realista e liberal na explicação das RI, estas não
provêm um marco explicativo claro sobre a cooperação Norte-Sul e, muito menos, sobre a
cooperação Sul-Sul. Para efeito, basta atentar para as obras dos mais conceituados teóricos
modernos realistas e liberais, representados, respectivamente, por Kenneth Waltz (1979) e
Robert Keohane (1984). Em ambos os casos, nota-se que a cooperação por eles referida é
entre os países desenvolvidos.
Kenneth Waltz, em sua obra Theory of International Politics, afirmaque, “a general theory of
international politics is necessarily based on the great powers” (WALTZ, 1979). Essa
assertiva, explicita ou implicitamente é corroborada pelos teóricos e estudiosos das RI na
medida em que, desde a sua publicação há quase 30 anos, esse argumento raramente tem sido
rechaçado.
Em face do exposto, as RI entre Estados fora da Europa Ocidental, os Estados Unidos, Rússia
e Japão têm sido largamente ignoradas no bojo das abordagens dos realistas. O outro exemplo
evidente que testemunha a omissão do Sul global nas RI advém da obra de Robert Keohane
(1984) intitulada After hegemony: cooperation and discord in the world political economy.
Nesse livro, o autor é incisivo,
(…) this book is about how cooperation has been, and can be, organized in
the world political economy when common interests exist. (...) Because I begin with acknowledged common interests, my study focuses on relations among the advanced market-economy countries, where such interests are manifold. These countries hold views about the proper operation of their economies that are relatively similar ——, at least in comparison with the differences that exist between them and most less developed countries, or the nonmarket planned economies. They are engaged in extensive relationships
of interdependence with one another; in general, their governments’ policies
complicate the politics of economic transactions less than they do in East-West relations (KEOHANE, 1984).
Com base nessas duas obras, pode-se constatar que, tanto no realismo quanto no liberalismo,
não há referência à cooperação Norte-Sul ou Sul-Sul, mas sim, àquelas que ocorrem entre
países desenvolvidos.
Contudo, nem tudo é ruim nas abordagens das mainstream theories das RI. Apesar de
lembradas pelas suas lacunas em explicar as relações Norte-Sul e/ou Sul-Sul, o realismo e o
liberalismo têm oferecido grandes contribuições para explicar sob que condições a cooperação
internacional pode ocorrer, bem como os dilemas, as vantagens e as desvantagens de um
Estado cooperar ou agir de forma individual na atual era de globalização ——, sem dúvida,
elementos indispensáveis para o entendimento das RI contemporâneas.
Dai que, para o entendimento da CSS Brasil-África no geral, e particularmente da cooperação
Brasil-Moçambique em biocombustíveis, sugere-se incluir a análise da teoria de dependência,
por esta ser a mais rica na explicação da cooperação Norte-Sul (CNS) e/ou Sul-Sul.
1.3. A cooperação internacional na ótica da teoria de dependência
A teoria de dependência formou suas lentes centrais de interpretação das RI entre os finais de
1960 e princípio de 1970. Foi desenvolvida por economistas da América Latina, como Raul
Prebisch, Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Theotônio dos Santos e Arghiri
Emmanuel, tendo ganhado adeptos como Samir Amin e Tomas Sentze na África e retomada
na Ásia por A. K. Baghshi e Michael. P. Todaro.
A sua difusão e aceitação no hemisfério Sul se dá, por um lado, pela semelhança dos
problemas vivenciados pelos PED e, por outro, como réplica a algumas teorias ocidentais,
principalmente as de desenvolvimento internacional harmônico, concebida pelo economista
norte-americano Walt Rostow, que defendia que os países ricos deveriam assumir liderança
no estímulo ao desenvolvimento dos países pobres por meio de modernização das suas
economias e de transferência de receituários extraídos da experiência dos países
desenvolvidos (ROSTOW, 1960).
Teóricos como Samir Amin passaram a clamar que o desenvolvimento deveria ser estudado
fenômeno ontologicamente primitivo, mas teria este gerado retrocesso dos PED (AMIN,
1990).
Segundo eles, a cooperação com os países do Norte, não só destruiu o mercado para a
produção nacional, como também reduziu a mobilização local de recursos. Reduziu, ainda, a
legitimidade do Estado e dos governos na sequência da sua reduzida capacidade de fornecer
bens públicos necessários para satisfazer as necessidades da população.
Nessa visão, o autor defendia o delinking, ou seja, o desligamento dos Estados periféricos da
divisão internacional do trabalho e do SI capitalista como forma de romper com o mecanismo
de trocas desiguais, transformando o desenvolvimento desigual em desenvolvimento
autônomo, autocentrado (ibid.), baseando-se nos princípios de solidariedade entre povos, o
respeito à soberania e a não interferência nos assuntos internos.
Ainda no entender de Samir Amin, o subdesenvolvimento não é uma etapa rumo ao
desenvolvimento, mas sim um produto de expansão do sistema capitalista pelo mundo,
resultante de controle e exploração na era moderna, em que as instituições financeiras
internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, são vitais na
concepção e aperfeiçoamento dos mais complexos, difusos e sofisticados mecanismos que
colocam os PED permanentemente “curvados” perante o Norte(ibid.).
No mesmo tom, Theotônio dos Santos refuta a premissa de que o desenvolvimento econômico
seja um desafio eminentemente doméstico e que, se um país do terceiro mundo adotasse
conjunto de medidas econômicas, políticas e sociais adequadas, reuniria condições suficientes
para a sua “decolagem” rumo ao desenvolvimento5
(DOS SANTOS, 2000).
Retomando o pensamento de Samir Amin, um dos caminhos para se sair do
subdesenvolvimento dos PED seria estimular trocas econômicas, tecnológicas, técnicas e boas
práticas entre si. Essa collective self-reliance contribuiria para que os países do Sul se
livrassem das relações desiguais, tornando seu desenvolvimento autônomo e aumentando seu
poder de barganha vis-à-vis aos países do Norte (AMIN, 1990).
5
Deste modo, pode-se concluir dizendo que a teoria de dependência contribui
significativamente para entender a força política de cooperação entre países do terceiro
mundo. Contudo, não fica a margem de críticas.
2.A “NOVA” MODALIDADE DE COOPERAÇÃO: A C SS
2.1. O conceito de CSS
Dentro do campo das RI na atualidade, um dos temas mais candentes do debate nos círculos
acadêmicos é o da CSS. Pesquisadores das mais diversas áreas de saber (Oliveira, Janina
Onuki, & Emmanuel Oliveira, 2006; Patrícia Soares Leite, 2011; Lídia Cabral, 2011 e; Iara
Costa Leite, 2012) debruçam-se sobre o tema, chegando não raro a conclusões díspares.
Patrícia Soares Leite, por exemplo, afirma que o conceito de CSS ganhou projeção nas RI
depois da conferência de Bandung (1955), como meio de promover uma maior articulação
entre países do Sul com vista a estimular o seu próprio desenvolvimento (LEITE, 2011). Em
tal conferência, acrescenta a autora, ficou enfatizada a necessidade de uma maior cooperação
entre os países da África e Ásia, encorajando-os a estreitarem as trocas comerciais e o
intercâmbio de experiências (ibid., 2011).
As análises da autora acima, baseiam-se na noção de que os PED haviam identificado
determinados interesses e problemas comuns que afetavam o Sul global dentre eles, a
descolonização, comércio desfavorecido e dependência aos países desenvolvidos, cuja
magnitude ultrapassava as capacidades internas individuais de cada Estado e, a partir daí,
deviam-se articular entre si a fim de resolvê-los de forma solidária.
Deste modo, a CSS ou cooperação horizontal seria vista segundo Oliveira et al (2006), como
um conjunto de ações interativas entre PED, manifesta por meio de formação de coalizões de
geometria múltipla, barganhas coletivas e negociações multilaterais, arranjos regionais de
integração, assistência para o desenvolvimento, intercâmbio de políticas, fluxo de comércio e
de investimentos privados visando o desenvolvimento dos países do Sul.
Lídia Cabral por seu turno, define a CSS ou cooperação horizontal, como sinônimo de
cooperação para o desenvolvimento com benefício mútuo entre os parceiros (CABRAL,
2011). Com esta definição a autora tenta se afastar da retórica que oculta parte da verdade, de
Nas palavras de Lula, então Presidente do Brasil, citado pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), a cooperação Sul-Sul é “um modelo ainda em construção, que, apesar de já
revelar algumas das suas características, ainda carece de maior sistematização e debate”
(LULA, apud, IPEA, 2010). Esta definição, vista sob outro ângulo, tenta desvendar a parte
oculta da retórica brasileira. Aliás, como tem sido expresso nos documentos oficiais, o Brasil
enseja ser parceiro de desenvolvimento do Sul e não doador e refuta os critérios da ajuda
oficial para o desenvolvimento, como condicionalidade políticas e as práticas interessadas dos
países do Norte que associam a cooperação para o desenvolvimento a interesses lucrativos de
laços comerciais (CABRAL, 2011).
Iara Costa Leite define a CSS como uma das modalidades da cooperação internacional para o
desenvolvimento (CID) que ocorre entre países do Sul (LEITE, 2012), na qual engloba
inúmeras áreas temáticas, podendo haver cooperação política, econômica, científica e técnica,
comercial ou humanitária, com o objetivo de promover o desenvolvimento dos países do Sul.
Portanto, como dito e justificado pelos autores acima, para a presente pesquisa, a CSS deve
ser concebida como o sinônimo de cooperação horizontal, expressões utilizadas para fazer
referência à promoção do desenvolvimento no Sul global.
2.2. CSS: o surgimento histórico do termo
Em perspectiva histórica, o termo CSS é relativamente recente. Este emerge nos meandros
das RI na década de 1970, não obstante as primeiras iniciativas de cooperação lato sensu
surgirem nos finais dos anos 50 e no decurso dos anos de 1960, com adventos dos
movimentos de descolonização dos países afro-asiáticos, dos debates Norte-Sul, da
publicação das teses cepalinas, da ascensão do Terceiro Mundo como ator uno e organizado
que passa a questionar nos fóruns internacionais o modus vivendi e modus operandi do
sistema internacional (SI) vigente (PUENTE, 2010).
A principal dicotomia identificada em tal sistema estava assentada nas diferenças de
prioridades entre Norte e Sul. Os países do Norte, sob a liderança dos Estados Unidos,
encontravam-se preocupados com o rumo das relações Leste-Oeste e enxergavam o eixo
Norte-Sul como componente importante a ser utilizado estrategicamente na confrontação
LesteOeste, lógica também entendida pelo bloco leste, encabeçada pela extinta URSS
Esses interesses se contrapunham com os objetivos almejados pelos países do Sul ——, que
tentavam se afastar das influências geopolíticas e geoestratégicas das grandes potências da
época (EUA e URSS). Tratava-se, portanto, de um sistema bipolar, onde a luta pela conquista
da hegemonia mundial se processava em todas as esferas, ideológica, política, econômica e
militar. Esta configuração peculiar do sistema mundial, segundo teoria realista, gerava um
clima de insegurança e de competição generalizada.
A preocupação inicial dos países do Sul era a reafirmação e a manutenção de suas soberanias,
ao mesmo tempo em que tentavam buscar o reconhecimento de seus status e inclusão nas
organizações internacionais, sobretudo na ONU. Portanto, acreditavam que, com o seu
reconhecimento e a consequente participação ativa em foros multilaterais, seria possível criar
uma nova visão para as RI que fosse além dos limites estabelecidos pelo conflito Leste-Oeste
das grandes potências. Foi nesse período, pois, que nasceu a ideia do debate Norte-Sul, que
seria aprofundada nas décadas subsequentes (CASTILLO, 2012).
Com a realização da conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD) em 1964 em Genebra, os PED passaram a ter um fórum de articulação política
no qual discutiam sobre as assimetrias do comércio mundial bem como as estratégias a adotar
para a mudança da tal realidade em nome da promoção do desenvolvimento do Sul (ibid.).
Da UNCTAD, os países latino-americanos se juntaram aos países asiáticos e africanos, o que
resultou na formação do Grupo dos 77 (G77)6. Esse grupo congrega os PED interessados em
reforçar sua posição nas barganhas coletivas vis-à-vis os países desenvolvidos mediante a
identificação de pontos de interesses convergentes e da proposição de medidas concretas que
pudessem alterar as condições em que se assentava a estrutura do comércio internacional,
especialmente desvantajosas para o Sul.
A partir da UNCTAD, o próprio modelo de cooperação para o desenvolvimento em voga
(Norte-Sul) passou a ser objeto de questionamento na medida em que este se baseava em
modelos assistencialistas com determinantes políticos-estratégicos e fortemente conectados
com os interesses comerciais dos doadores, inclusive, a esse propósito, carregado de
condicionalidades. Era um modelo de cooperação que camuflava as reais prioridades dos
6
PED e pouca contribuição trazia aos objetivos de desenvolvimento econômico, além de
perpetuar esquemas de dependência (PUENTE, 2010).
No entender de Iara Leite, tal percepção também era compartilhada por algumas agências
multilaterais, como é o caso do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), que enfatizava que, uma vez que os PED enfrentavam problemas comuns e, por
vezes, ecossistemas e condições sociais similares, esses países também poderiam
compartilhar as suas soluções (LEITE, 2012). Diante disso, no âmbito multilateral, a CSS,
antes discutidas em conferências mais amplas, passou a ganhar conferências específicas,
como ilustra a tabela 1.1, em apêndice.
Conforme mostram os fatos, parece razoável afirmar que a CSS surgiu da tomada de
consciência dos PED de que deveriam ser parceiros integrais de si mesmos no processo de
solução de seus problemas e não apenas recebedores passivos de ajuda externa proveniente
dos países do Norte. Porém, foi a conferência de Buenos Aires7, realizada em 1978, o marco
institucional da CSS (LEITE, 2012; LOPES, 2008). Nessa conferência, foram produzidas e
adotadas por consenso, importantes normas reunidas no chamado Plano de Ação de Buenos
Aires (PABA) cujos objetivos podem ser resumidos em quatro:
1) Promover e reforçar a autonomia coletiva dos PED através de troca de
experiências, colocação em comum a partilha dos respectivos recursos técnicos,
bem como ao desenvolvimento de suas capacidades complementares.
2) Dar aos PED a possibilidade de identificar e analisar os problemas e as estratégias
na conduta das relações recíprocas.
3) Melhorar a cooperação técnica no seu conjunto (reforçar as capacidades técnicas
existentes nos PED).
4) E, garantir o fluxo comunicativo entre os PED no campo de conhecimento técnico
e torná-los mais aptos a absorver e a adaptar-se às técnicas adequadas para
7
A realização da conferência de Buenos Aires revelou a percepção de um leque de questões que afetava os
países do Sul, dentre eles salientam-se as clivagens ideológicas Este-Oeste decorrentes da Guerra Fria que longe
de trazer estabilidade, geravam a insegurança, particularmente após o equilíbrio do terror alcançado pela posse
das armas nucleares de ambos os pólos e isso incutia medo de uma iminente guerra atômica que aniquilaria
todas as nações. Acrescido a esse panorama, persistia ainda a subordinação econômica efetiva, expressa na
enfrentar suas necessidades particulares em matéria de desenvolvimento (BAPA,
1978)8.
Tratava-se, doravante, de demolir a velha ordem internacional e instaurar uma Nova Ordem
Econômica Internacional (NOEI), que representaria uma nova forma de interação entre os
países no cenário internacional, de exclusiva cooperação “Norte-Sul” para o eixo “Sul-Sul”,
deixando de ser unicamente vertical, passando a incorporar características horizontais
assentas aos princípios de igualdade, solidariedade, respeito à soberania e isentas de
condicionalidade. Nota-se que essa parceria Sul-Sul não necessariamente deve ser pensada
como uma contraposição ao eixo Norte-Sul, mas sim um esforço complementar.
Apesar de avanços significativos registrados na década de 1970, as duas décadas
subsequentes a CSS não teve o mesmo fôlego. Um exemplo ilustrativo deste arrefecimento9é
visto pelo número de eventos realizados neste período comparado com os de 1970 (tabela
1.1, em apêndice). Enquanto na década de 1970 foram realizados seis encontros, de 1980 a
1990, tiveram lugar apenas dois eventos dignos de realce: i) a conferência de Alto Nível sobre
cooperação econômica entre PED, em 1981 na Cidade de Caracas e, ii) a Reunião de Países
Pivô, realizada em 1997, no Chile (LEITE, 2012; XALMA, 2008).
A partir de 2000, a CSS ganha um novo impulso e, em paralelo, voltam à ribalta os “velhos”
problemas sobre a efetividade da ajuda internacional. Com efeito, uma série de eventos sobre
o tema foram realizados, merecendo destaque: i) a reunião de Chefes de Estado e do Governo
do G77, realizada em 2000, em Havana; ii) a conferência de alto nível sobre cooperação
Sul-Sul, realizada em Marrakesh, em 200310; iii) a II cúpula do Sul, realizada em 2003, em
Doha; iv) a conferência de alto nível das Nações Unidas sobre a CSS, 2009 e v) o VI fórum
de alto nível sobre efetividade da ajuda do Sul, que teve lugar em dezembro de 2011, em
Busan, cujo documento final reinterou o reconhecimento da CSS como uma modalidade de
cooperação internacional para o desenvolvimento (ibid.).
8
The Buenos Aires Plan of Action - United Nations Office for South-South Cooperation. http://www.//ssc.undp.org/content/sscabout/background.
9
As causas desse fracasso são várias e diversificadas, mas a literatura consultada aponta para as sequelas do segundo choque de petróleo ocorrido em 1979, à crise de divida e, o entusiasmo do fim da Guerra Fria e a consequente atenção dada aos ex - países do leste em detrimento ao Sul global. (COELHO&SARAIVA, 2004; CERVO, 1994).
10
Em suma, se isoladamente cada um dos eventos ora referenciados tiveram impactos
insignificantes na concepção e moldura do atual SI, se analisados de forma global, tais
fenômenos constituíram um verdadeiro catalisador positivo na mudança de mentalidade dos
governantes da época. Evidentemente que, qualquer que seja a estratégia apoiada pela
comunidade internacional, é de deveras importância para o sucesso da mesma.
Esta assertiva encontra-se patente nos trabalhos de Amâncio Oliveira, Janina Onuki e
Oliveira, em “Coalizões Sul-Sul e Multilateralismo: Índia, Brasil e África do Sul”. Segundo
os autores, os vínculos da CSS são, no mais das vezes, intermediados pelo Norte, em uma
espécie de “triangulação regulada” (OLIVEIRA et al, 2006). Neste sentido, os limites
presentes na CSS permitem perceber que falar em revolução nas RI é demasiado exagerado
quando mais, o se parece ter é, na verdade, uma mudança de geometria ——, de Norte-Sul
para Sul-Sul, arena privilegiada entre os parceiros sem, contudo, abdicar da cooperação
tradicional Norte-Sul.
Portanto, vale lembrar e realçar de que um dos princípios postulados no PABA é de que a
CSS não surge para substituir a cooperação bilateral ou multilateral existente com os países
desenvolvidos, mas esta emerge como novo elemento a ser acrescido a esse leque de opções.
É sem dúvida——, dentro desse leque de opções e acrescido ao espírito de solidariedade com
cunho desenvolvimentista, que o Brasil vem estreitando suas relações de cooperação com a
África, quer por meio de acordos de cooperação, quer por meio de medidas diplomáticas.
3. AS RELAÇÕES DE COOPERAÇÃO SUL-SUL: O BRASIL NA ÁFRICA
A importância da África no bojo da política externa brasileira emerge de forma emblemática
nos prelúdios da década de 1960, no seio da Política Externa Independente (PEI) inaugurada
pelo governo Jânio Quadros (1961) e prosseguida pelo João Goulart (1961-1964). Em tal
contexto, a política africana esteve associada a um discurso terceiro-mundista que pretendia
atribuir maior peso aos temas Norte-Sul que à clivagem Leste-Oeste da Guerra Fria.
(RIBEIRO, 2009).
No cerne desse debate estava a inserção dos países do Sul, agora acrescidos dos Estados
afro-asiáticos recém-independentes. Para o Brasil, descontente com o trato que a disputa da Guerra
Fria dava aos seus interesses, a articulação das relações com estes novos atores, portanto com
Paulatinamente, a dimensão das potencialidades africanas foi sendo inserida na política
externa brasileira. Todavia, tanto Jânio Quadros quanto seu sucessor João Goulart
encontraram limitações em relação às estratégias desenvolvidas para África em virtude da
escassa margem de manobra para “furar” o sistema internacional, regido pelo conflito Leste
-Oeste e da própria variável interna da nova política externa da época. Esse primeiro impulso
direcionado à África virá perder força.
Foi somente durante a Presidência de Médici (1969-1974), dos adventos da Revolução dos
Cravos (1974), das independências das colônias portuguesas em África (1974-1975) e da
“mudança” de eixo de cooperação que se operava no SI, de Norte-Sul para Sul-Sul, que o
Brasil começa a ensaiar as suas primeiras ações na qualidade de parceiro junto aos países
africanos, principalmente aos africanos de língua oficial portuguesa, PALOP11 (CERVO,
2003).
Tal situação obrigaria o Brasil a adotar uma política externa robusta e decidida. Não obstante
a mudança dos tempos, os argumentos que sustentam a importância estratégica da África
permanecem validos e oportunos. Vale a pena ver como a literatura desvenda tais interesses.
A primeira razão vem da percepção de que o continente africano poderia representar uma
dimensão privilegiada na década de 1960. Essa noção surge respaldada por debates
acadêmicos, que já se realizavam durante o governo Juscelino Kubitschek, que defendiam a
criação de uma comunidade luso-tropical (LEMGRUBER, 2010; PENNA FILHO, 1994;
PINHEIRO, 1988).
A segunda razão está imbuída no caráter indenitário justificado pelo princípio da
solidariedade internacional, pela dívida histórica com os países africanos em razão da sua
contribuição para a formação na nação multiétnica brasileira e pelas semelhanças
econômicas, históricas, culturais e de recursos naturais com países africanos, que ajudariam
na facilitação de transferência de conhecimentos bem sucedidos no âmbito da cooperação
Sul-Sul (SARAIVA, 2007).
11
A terceira, porém, emerge como necessidade de inserção competitiva em um mercado
globalizado e a promoção de imagem do país junto dos países do Sul, na qual o Brasil
ambiciona ser simultaneamente, um global trader e global player com a premissa de que,“na
vida, ganha-se mais jogando em todos os tabuleiros do que limitando-se a um só” (LULA,
2003).
Nesse contexto, a prioridade conferida à África seria articulada ao objetivo de promover uma
atuação internacional do Brasil de forma protagônica nos foros multilaterais, particularmente
no contexto de ampliação do Conselho de Segurança da ONU, em que ambicionava obter um
assento, barganhas na Organização Mundial do Comércio e na questão de sustentabilidade12
(SARAIVA 2007; MACHADO, 2004).
No seu conjunto, todas as motivações referidas se resumem ao papel de ator protagonista
pleiteado pelo Brasil em diferentes épocas históricas na esfera internacional. Não obstante,
Pio Penna Filho apresenta uma versão diferente. Para ele, a aproximação Brasil-África não se
deveu exclusivamente a boa vontade do Brasil, mas a fatores exógenos sobre os quais o país
não tinha controle. São eles:
a) a aliança dos africanos com o mundo árabe, consolidada na conferência de Bandung,
b) a crise do petróleo de 1973 e,
c) a ameaça de boicote por parte do mundo árabe no fornecimento de petróleo aos países,
assim como aos regimes minoritários e seus aliados envolvidos em guerras com os
países africanos (PENNA FILHO, 2008).
São fatores que, segundo o autor, punham em causa o funcionamento da economia brasileira,
na época fortemente dependente da importação do petróleo, sendo que 80% do petróleo
consumido no nível doméstico vinha dos países árabes. Reforça esta tese o fato de em 1973
os países africanos terem votado na Assembleia da ONU contra o Brasil e a favor da
Argentina no projeto hidroelétrico de Itaipu13, como forma de demonstrarem a sua
insatisfação perante a postura brasileira com relação à descolonização africana.14
12
Brasil defendeu a responsabilidade comum, mas diferenciada no direito internacional ambiental na conferência de Quioto.
13
semi-Presente no cálculo estratégico e com pouco espaço de manobra para contornar a situação, em
termos de fontes energéticas alternativas para manter o funcionamento da sua economia,
levou o Brasil a repensar na sua política externa para África, cuja materialização, segundo
Analúcia Danilevicz Pereira, só viria a acontecer após a Revolução dos Cravos e o colapso
eminente do colonialismo em África a partir de 1974 (PEREIRA, 2010).
Nesse contexto, sob os governos militares Ernesto Geisel (1974-1979) e João Baptista de
Oliveira Figueiredo (1979-1985), as relações Brasil-África, registraram um substancial
aprofundamento, tornando-se o Brasil, um parceiro privilegiado de países africanos, com
destaque para a Nigéria de quem o país importava o petróleo, de países da África Austral e
das ex-colônias portuguesas devido aos laços culturais (CAU, 2011, RIBEIRO, 2009).
Na área do comércio, por exemplo, os dados confirmam que, de 1973 a 1974, as exportações
brasileiras cresceram para 129,1%, passando de US$ 190 milhões para US$ 435.3 milhões,
enquanto as importações oriundas do continente africano registram igualmente um expressivo
aumento na ordem de 300%, avançando de US$ 169.9 milhões para US$ 680 milhões. (ibid.).
Tal fluxo comercial demandaria instituições financeiras flexíveis, as quais a África não
possuía. Para responder a essas demandas, são instaladas na Nigéria, Costa do Marfim,
Senegal, Gabão e Angola agências do Banco do Brasil e, na Costa do Marfim, uma sucursal
do Banco Real. Em paralelo, nota-se uma corrida das empresas brasileiras investindo na
África. Dentre elas, destacam-se: a construtora Norberto Odebrecht (Angola), Mendes Júnior
(Nigéria e Mauritânia), Ecisa (Tanzânia), Andrade Gutierrez (Zâmbia, Camarões e Congo),
Sisal (Angola), além de atuação de companhias como Pão de Açúcar e Hidroservice
(RIBEIRO, 2007).
habitada, acabaria por dominar a região por completo (BARBOZA, 1992). Esta controvérsia de natureza confrontante entre Brasil e Argentina, que levaram a questão regional para esferas extracontinentais de atuação, como a Assembleia Geral das Nações Unidas de 1972 e 1973, e a Conferência do Meio-Ambiente de Estocolmo de 1972, dando oportunidade aos africanos de expressarem o seu sentimento através de votos.
14
Em termos de ganhos, as relações de cooperação Brasil-África não só lograram vantagens
econômicas para os dois lados, mas ajudaram a África na melhoria das suas capacidades
internacionais, balanceando a ordem mundial. Do lado brasileiro, houve a projeção da sua
imagem na arena internacional enquanto “potência média” que buscava autonomia e
diversificação econômica.
É neste contexto que se inicia, de forma mais estruturada, o projeto de ampliação das relações
Sul-Sul, sob o programa de política externa intitulada “Pragmatismo Responsável”, que
retomava as premissas de projeção internacional do Brasil a partir das relações com os países
em desenvolvimento (FONSECA, 1997).
Aqui o Brasil sai radicalmente da posição definida por Letícia Pinheiro como ambígua
(PINHEIRO, 1988) e passa a tomar partido. Esta postura viria a validar o postulado da teoria
de dependência de que os países do Sul deviam-se unir para promover o seu desenvolvimento
endógeno.
Todavia, entre os finais da década de 1980 e no decorrer de 1990, a importância atribuída à
África viria a decrescer no cenário brasileiro (CERVO, 2003). Este fato deveu-se
principalmente à crise econômica mundial e à introdução dos programas de ajuste econômico
que afetavam ambos os lados. Deste modo, a África não servia mais aos grandes desígnios do
novo lugar que o Brasil fazia de si no mundo no contexto do fim da guerra fria (1989) e da
criação do MERCOSUL, em 1991.
Como consequência dessa marginalização, a participação da África no comércio internacional
regrediu drasticamente, de 4,7% em 1980 para 2,1% em 1989 e com uma dívida calculada em
US$260 bilhões em 1989 (RIBEIRO, 2009). A despeito de haver tendências de recuo da
prática de diversificação na política externa brasileira nesse período, Hilário Simões Cau diz
que isso não significou ruptura de contatos com o continente africano. Muito pelo contrário, a
política continuou, mas, desta vez, de maneira seletiva, com prioridade precisa e bem
delimitada (CAU, 2011).
O governo de Itamar Franco (1992 -1994) tentou recuperar o lugar da África no âmbito da
ações pontuais, como é o caso do projeto de criação de Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP)15.
Fernando Henrique Cardoso (FHC, 1995-2002), por seu turno, tenta dar certa continuidade à
política brasileira africana de Itamar Franco, mas a “balança pendia” mais para o lado das
relações com o Norte e o MERCOSUL em detrimento da África. Frente a este panorama
desolador, a cooperação com África começa a ser relativizada. A justificativa expressa tanto
pela opinião pública quanto pelos acadêmicos era de que, uma vez que os dois parceiros se
encontravam em situação similar de insatisfação do ponto de vista financeiro e comercial,
seriam incapazes de suprir as suas demandas internas por meio da CSS (ibid.).
É sob essa visão afro-pessimista, que o Embaixador Alberto da Costa e Silva argumentava
que “não valia apena investir na África” (COSTA E SILVA, 1989). Segundo ele, “porque
Angola e Moçambique estavam em guerra civil, Guiné-Bissau era um país paupérrimo, Cabo
Verde, se pudesse, devia voltar a fazer parte de Portugal ——, pois seria vantajoso para si,
uma vez que grande parte do dinheiro advinha dos emigrantes residentes em Portugal e assim,
teriam livre acesso e não precisariam de passaporte” (ibid.). Ademais, “mesmo os países
considerados relativamente estáveis em termos políticos, como a Etiópia e a Libéria,
encontravam-se em crise econômica” (ibid.).
A percepção que o autor endossa é de que a África parecia ser um continente abandonado,
não apenas pelos políticos, mas também pelo próprio Itamaraty. No nível diplomático, José
Saraiva descreve com dados quantitativos e qualitativos a tendência da diminuição gradativa
da importância estratégica da África para o Brasil (SARAIVA, 1996).
Parafraseando o autor acima, até no final de 1993, o Brasil tinha apenas 24 diplomatas
servindo o continente africano. Uma década antes, ainda no contexto da expansão dos
interesses brasileiros na África, o número era de 34. Foram deslocados dez diplomatas
brasileiros da África para outros continentes e áreas de maior prioridade, como a Europa e a
América do Sul (ibid.).
15
Nesse caso, fica evidente que o perfil do Brasil em voga não era nada mais do que o sinônimo
de ruptura do modelo universalista da política externa e a tentativa de construção de uma nova
forma de inserção no ambiente internacional (CERVO, 2003) baseada na premissa
aglutinadora das teorias realista e liberal. Segundo essa premissa, os Estados perseguem os
seus próprios interesses, visando maximizar o poder e a riqueza. Em tal contexto, pode-se
afirmar de forma categórica de que a África não estava no quadro das prioridades brasileiras.
Mesmo reconhecendo que havia no continente africano “ilhas” de riquezas muito grandes,
principalmente de recursos naturais, a política brasileira em direção à África não ganhou
força. Apesar disso, algumas iniciativas dignas de relevo ocorreram. Merece destaque, i) o
relançamento da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (formação geoestratégica)16, ii)
a efetivação da criação da CPLP, iii) a aproximação com África do Sul no pós–apartheid, iv)
a participação do Brasil em missões de paz, com destaque para a Terceira Missão de
Verificação das Nações Unidas em Angola (UNAVEM III)17 e, v) visitas presidenciais
articuladas no contexto do multilateralismo (SARAIVA, 2012; CERVO, 2003).
Segundo dados oficiais da presidência da República mostram que, em oito anos de mandato,
FHC realizou somente duas visitas oficiais com intuitos bilaterais à África ——, uma para
Angola e outra para a África do Sul, ambas realizadas em 1996. Em âmbito de visitas
relacionadas a encontros multilaterais, houve uma a Moçambique, em 2000 e outra à África
do Sul, em 200218.
Acresce-se a esse esforço, a atuação conjunta do Brasil, África do Sul e da Índia na ONU na
questão da propriedade intelectual na área farmacêutica (SARAIVA 2012), cujos esforços
viriam facilitar o acesso a medicamentos essenciais. Contudo, como se verá adiante, com
Lula no poder a cooperação brasileira africana ganha novo dinamismo.
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ZOPACAS foi estabelecida em 27 de Outubro de 1986, por iniciativa do Brasil, sob Resolução 41/11 da ONU, cujo objetivo é o de promover a cooperação regional e a manutenção da Paz e de Segurança no entorno dos 24 países localizados na América Latina, África Ocidental, Equatorial e Meridional que aderirem a iniciativa.
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Na Terceira Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola, do inglês United Nations Angola Verification Mission III (UNAVEM III), o país enviou um contingente de 4.222 homens, dentre os quais, observadores e equipe médica. (CANNABRAVA, 1996 p.99). A participação do Brasil em operações de manutenção de paz, além de servir para o cumprimento de obrigações internacionais no campo da paz e da segurança, contribui para a projeção do país e para o adensamento das relações com países e regiões de particular interesse político e econômico, atuando, portanto, como instrumento de política externa brasileira.
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