FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
JORGE VICENTE MUNOZ
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O SABER DAS CLASSES POPULARES E
A
PRATICA DA
TIIESAE M967s
EDUCAÇÃO POPULAR
Jorge Vicente Munoz
Dissertação submetida como requisito
parcial para a obtenção do grau
de
Mestre em Educação.
Rio de Janeiro
Fundação Getülio Vargas
Instituto de Estudos Avançados em Educação
Departamento de Filosofia da Educação
do movimento popular.
A Gabriela, Cristiane e Ana.
CAPITULO
I
Um Saber no Interior da
Experi~nciade Vida . . . , .. ,,, . . . 4
1.1. Prãti cas e Saberes ...
4
1.2. Algumas Reflexões Bãsicas ... 14
Referências Bib1iogrãficas ... 22
CAPITULO 11
Saber Popular: Como
e,
Como Endendê-10
24
Referências Bib1iogrãficas
41
CAPITULO 111 -
Questões: Alguns Encaminhamentos ... 43
3.1. O Saber Popular
e
um Todo
Homog~neo ?
43
3.2. Saber Cientifico, Senso Comum
e
Sa be r Popu 1 a r . . . 49
3.3. Saber Popular: Questão Po1itica.
57
3.3.1. O Po1itico no Saber Popular
59
3.3.2. Saber Popular: O Po1itico
nas
Relações de Classe ... 60
3.3.3. Saber Popular: Mais uma Questão
Po
1i
t ica . . . 65
Referências Bib1iogrãficas .. ,... 69
CAPITULO IV
Saber Popular e Prãtica Educativa .... 70
4.1. Resumo Introdutório .... , ... 70
4.2. Em Busca de Espaços e de Novas Re
lações ., .. , . . . , ... 714.3. A Titulo de Encerramento
90
Entre as questões de fundo que a reflexão da prátl
ca de educação popular - e de outras desenvolvidas
junto
as classes populares - hoje se coloca, destaca-se a do
Sa
ber Popular.
Inerente as diversas práticas de dominado e a
exp~riência de vida das classes populares, há um saber.
Práti
cas e saber que se desenvolvem no interior de dadas
rela
ções sociais que, na atual sociedade, são relações de elas
se.
Saber que sõ pode ser real e especificamente
conh~cido, na medida em que se explicitar quais são as práticas
sociais em cujo interior ele está se dando, quem são
os
grupos que o detêm enquanto agentes dessas práticas e quais
as relações que nestas os agentes entre si estabelecem.
Saber que, enquanto inerente às práticas de domina
do das referidas classes, revela um nucleo comum e atê cer
tas caracteristicas
tamb~mcomuns.
Sabe~que como
quai!
quer outros, entranha contradições, erros e ambiguidades.
Admitida sua presença, ê preciso re-equacionar
a
relação com outros saberes como o acadêmico/cientifico
ou
com a chamada filosofia cientifica/pensamento superior.
Admitida sua presença, reformula-se não so a
dis
cussao da educação popular mas
tamb~mde outras práticas
c~mo a sindical e
at~,a partidária.
A questão politica dessas práticas passa a ser re
em questão politica, em certo modo, determinante.
Esse saber diz respeito
ã
busca de espaços por
pa~te das classes populares.
Espaços que se constituem em reais
oportunidades
para essas classes explicitarem e elaborarem seu saber.
Espaços que são uma experiência de vida
qualitati
vamente nova, porque novas são as relações que superam
a
dominação e expropriação hOje vigentes na nossa
sociedade
caracterizada estruturalmente pelas relações de classe.
Espaço então, substancialmente politico.
Referenciados fundamentalmente na prática de
educ~ção popular, abordaremos no presente trabalho, uma questão
que esta prática e outras ligadas ãs classes populares
-vem colocando aos que delas participam direta ou
indireta
mente. Referimo-nos ao Saber Popular.
Trata-se de uma questão que foi se destacando
ao
longo de um processo de discussão, no qual colocava-se
a
ênfase ora na análise da relação prática educativa /
conte~to sócio-econômico, ora na necessidade e problema da
ava
liação, ora nos desafios pedagógico-metodológicos.
Os caminhos que acabaram desembocando no saber
p~pular passam por perguntas como: De que maneira equacionar
as relações entre os saberes participantes do processo
ed~cativo? Quais e o que sao esses saberes? O que
avaliar
nesse processo e de que modo? O que e como analisar essa
prática educativa?
Nosso assunto então
e
o saber popular. Popular,
e~quanto inerente às práticas de dominado das classes
popul~res.
postos da prática educativa, apontamos novos caminhos para
sua efetivação.
Esse trabalho torna-se possivel a partir do materl
al que fomos recolhendo e sistematizando enquanto
partic!
pantes que somos desde 1968 e a diversos níveis, tanto
da
prática da educação popular, como da sua reflexão e
análi
se.
Encontros, seminários, assessorias, estudos e
pe~quisas os mais diversos foram oportunizando nossa
busca,
nosso trabalho.
Ao longo do texto abriremos espaço para que
pess~as e grupos ligados frequente mas não exclusivamente
as
práticas de educação popular digam a sua palavra. E entre
eles a presença dos próprios populares ê marcante e decisi
va.
Pretendemos com isto nao só possibilitar que falem
dessas prãticas aqueles que as vivem e efetivam, mas
tam
bêm incorporarmos sua palavra no nosso discurso como parte
integrante do mesmo. No fundo, como parte integrante
do
nosso próprio pensamento.
Dado que nossa reflexão estarã particularmente vol
tada para a prãtica/discussão da educação popular
conside
ramos
~portunoexplicitar desde agora o que por ela
enten
demos.
Reservamos o nome de educação popular para aquelas
prãticas educativas que, desenvolvidas por agentes institu
c
io n a
isou não
ju n t o
ã
s c 1 as s e s p,o p u 1 a r e s, v i s a m a
c o n t r
i1.1. Prati cas e Saberes
Entre aqueles que estão ligados
ã
pratica e
reflexão
da Educação Popular, a discussão mais especifica sobre
o
Saber Popular vem se explicitando e se precisando cada vez
mais nesses ultimas sete ou oito anos.
De inicio, agentes e assessores* perguntaram-se
pela
existência ou não de um saber que fosse próprio das
clas
ses populares**. Posteriormente passaram a tentar entendê
10 melhor e a refletir sobre seu significado a nive1
da
pratica educativa de base, ou seja, aquela que se dá junto
aos grupos populares.
Essa discussão sobre o saber popular, ao nosso
ver,
esta simplesmente lançada e por isso mesmo se constitui em
*
Chamamos de agentes aquelas pessoas ou grupos de setores
das classes medias, que desenvolvem trabalhos educativos
junto a grupos das classes populares. E entendemos
por
assessor as pessoas ou grupos tambem de setores das c1as
ses medias que acompanham de diversas maneiras a pratica
educativa dos agentes, colaborando com estes na sua ana
1 ise. Com certa frequência encontramos assessores
que
desenvolvem ao mesmo tempo, uma pratica de agente.
um caminho a ser criado ao mesmo tempo que percorrido.
Queremos que o presente trabalho faça parte dessa bus
ca. Para isso tentaremos sistematizar as ideias que
consid~ramos fundamentais e esboçaremos, ao mesmo tempo, uma
base
teórica que possa referenciar nosso posicionamento.
Nesse sentido, gostariamos de assinalar entre as refe
rências bãsicas que orientam nosso pensamento sobre o saber
popular, uma primeira que nos ocorre como de fundamental im
portância.
Falamos da relação saber/prãtica. Por prãtica
entend~mos toda atividade humana e social que efetive, no seu
cam
po, uma transformação. Pensamos então nas atividades
mais
diversas, ora da produção econômica e/ou criação artistica,
como da pesquisa cientifica e/ou luta social.
Essa referência, aliãs,
e
frequentemente
explicitada
por pessoas das classes medias ligadas a trabalhos
educati
vos de base e particularmente apontada por pessoas e grupos
das próprias classes populares.
A relação saber/prãtica se constitui numa
referência
teórica que explicita ou implicitamente perpassa quanto
po~sa ser dito sobre o saber popular ao longo deste trabalho.
Traremos a seguir os testemunhos e depoimentos dessas
pessoas e grupos, começando pelos de classe media.
Vejamos então o depoimento de um assessor/agente
que
jã faz alguns anos estuda e pesquisa sobre o saber popular:
tal~ troca informações entre si~ interpreta a reali
dade em que vive ... O Saber Popular não é algo
'puro' inteiramente distinto de um outro saber (não
popular). Na realidade os saberes dominante e domi
nado interagem e se confrontam - um não existe se~
o outro. Imaginar um saber sem o adjetivo popular e
imaginar uma sociedade sem classes distintas". 1
Focalizando agora um campo especifico do saber
pop~lar, qual seja o da medicina popular, transcrevemos as
se
guintes colocações de um pesquisador:
" A medicina popular é capaz de diagnosticar doenças~
fazer anamneses~ prescrever medicamentos especifi
cos para cada moléstia~ estudar suas possiveis etio
logias, além de possuir semiologia especifica, se
bem que de modo precário e não sistematizado, mas
muito longe de ser alguma coisa desprovida de lógi
ca, sem sentido ou que não tenha partido da observã ção concreta da doença e da sa~de humana" . . . "
DI
ante de tal realidadeJ não
é
possivel encarar a medicina popular de maneira desprezivel. Tal medicina
precisa ser estudada sob vários ângulosJ para que
se demonstre a grandeza da inteligência popular e
para que a medicina popular não desapareça sob o do
minio da medicina do silêncio". 2
o
agente* de Educação Popular, pela sua
participação
direta e permanente na própria pratica educativa de
base,
tem uma contribuição muito significativa a nos dar.
Assim os participantes do Seminario de Agentes organi
zado pelo Centro de Trabalho e Cultura de Recife em 31
de
maio de 1976 concordaram em afirmar:
* Mantemos a nomenclatura mais usada. Porém, do nosso ponto
de vista, os grupos populares participantes da ação educa
tiva são agentes ativos e co-responsaveis dessa ação.
Ex
cluimos portanto qualquer idéia que nos leve a pensar
nu
u a populaç50 tem as suas maneiras de organizaç50 e o seu saber. A história fala. Nós (agentes) temos di ficuldades de captar~ por conta de nossa posiç50 e falta de instrumentos.
Usamos contatos artificiais~ técnicas nossas~ quan do o povo tem os seus instrumentos e técnicas".
3
-o
texto a seguir foi extraIdo do depoimento de
um
agente, publicado no Cadernos de Educação Popular nQ 1:
U Sem enxergar esse processo de luta que j5 existe
(independente de nós~ 'classe média') n50 consegui remos fortalecer os espaços que as camadas popula res estão conquistando~ n50 poderemos contribuir na criação de espaços que se inscrevam no processo de luta delas. E
é
por manter uma vinculaç50 com es se processo que nesses espaços elas podem criar um novo conhecimento que vem da pr5tica de pensar cole tivamente a sua própria luta". 4Gostaria simplesmente, de destacar nesse texto a exis
tência de uma prática (por parte das camadas populares)
de
pensar coletivamente a sua luta, o que nos alerta de
pass~gem para o significado polltico desse saber. Significado
e~te a ser explicitado e aprofundado nos próximos capItulos.
A relação experiência diãria de vida/saber das
elas
ses populares tambem se faz presente no campo da técnica.
t
o que confirmam diversas equipes de agentes cuja
educativa se dá em escolas de profissionalização.
prática
Antes de trazer a palavra desses agentes, convem
lem
brar que há um conhecimento técnico, geralmente
produzido
no interior e sob o controle de certas empresas, o qual
se
constitui em propriedade privada diretamente ligada aos
in
teresses do capital.
transformou em certo patrim6nio da sociedade. Ele
~comu
mente transmitido pelas faculdades e/ou escolas de
profi~sionalização contribuindo assim na produção/reprodução
de
uma hierarquia de saber/poder que vai do aprendiz
at~o en
genheiro altamente especializado e baseada no fundo, na
pr~pria divisão do trabalho.
Conhecer, penetrar no porquê, ter uma visão
abrange~te dos processos, é um nlvel do saber técnico reservado
p~la sua própria organização, àqueles que estão ou sao
prep~rados para participar dos comandos dessa escala hierárquica.
A mecânica execução de tarefas
~habitualmente a
pa~te reservada às classes populares.
Mas, escutemos a esse respeito o depoimento de um pa!
ticipante do Seminário de Agentes sobre o saber popular, ar
ganizado em Sobral em 1980, pelo NOVA:
"
então tem experiências interessantes . . . o negócio da raiz quadrada~ na au~a de matemática. Por
que para fazer determinadas peças (o operário) tem
que saber raiz quadrada; o négocio é comp~icado .
... Então professora toca a fazer raiz quadrada e
nego não pega. Porque é um negócio chato mesmo. Di
fici~ de fazer a raiz quadrada. O pessoa~ (operári os-a~unos) na prática~ e~e tinha um jeito de fazer
a raiz quadrada~ porque e~e tinha que fazer uma pe
ça. E nego inventou um jeito; pode ser o que for ~
mas fazia a peça e tinha um jeito de fazer a raiz
quadrada. Então~ enquanto nego ficou empurrando a
regra de raiz quadrada que se aprende no gera~~ não
houve jeito. Ai desistiu ... Mas vocês não fazem es
sa peça ? Como é que vocês fazem ? Pronto, ai saiu
a raiz quadrada do pessoal. Ai os que não sabiam pas
saram a entender. Porque faz~ e o resu~tado
é
o mesmo". 5
faziam, uma peça que exigia a aplicação daquela fórmula. Ou
seja,que a própria pratica da tecnica colocava-lhes e
ao
mesmo tempo os levava a resolver um dado problema por
cami
nhos diferentes dos percorridos pelo saber classista afiei
a
1 .De fato, conforme falara aquele assessor, o saber
pop~lar e fruto da experiência de vida (trabalho, vivência
afe
tiva, religiosidade, etc.). A vida
e
tudo isso e muito mais.
E e no seu interior que se aprende, que se sabe.
Os depoimentos ate agora apresentados são de
grupos
e individuas que, sem ser das classes populares, mas
apoi~dos em praticas especificas junto a essas classes,
falam
de um saber popular.
Achamos fundamental abrir o presente espaço para
que
pessoas dos mais diversos setores das camadas populares
ma
nifestem
individual ou coletivamente seu pensamento.
Nes
te, eles nos falam sobre seu saber,ao mesmo tempo o
eviden
ciam claramente.
O Cadernos de Educação Popular nQ 2, publica um
lon
go depoimento de um operaria que, embora tenha tido
certo
acesso a um saber mais acadêmico, nunca deixou de ser
um
operaria metalurgico-soldador. Vejamos o que ele nos diz:
" ... porque eu acho que ali est& a vida~ a consci~n
cia~ a visão~ a história da classe oper&ria; tudo
isso est& exatamente na experi~ncia de cada oper&
rio que, somados um ao outro, vão dar a história da classe oper&ria.
E com essa forma de obter conhecimento~ nenhum ope
rário vai se tornar o 'can-can' do conh~cimento, ne
nhum individuo fica distanciado da classe.
gente faz. Eu só quero ver, quero ter a capacidade
de ver as coisas. E na medida em que vejo, eu que
ro apenas gritar o que é realmente descobrir as
coisas. Porque, em geral, o que acontece é o se
guinte: primeiro as coisas devem ser elaboradas p~
los cientistas para só depois passarem a ser do do minio popular. Mas por que as coisas não podem nas cer e ficar no dominio popular? E a partir de que sejam do dominio popular é que elas vão extrapolar e ser conhecidas pelas outras camadas sociais. Então é você buscar o conhecimento lá, no convivio com o povo que realmente está produzindo não só es
se tipo de ciência social, mas todo tipo de ciên
cia; o povo está desenvolvendo, está criando, sem
pre criando coisas novas, de forma artistica mes
mo ... Muita gente diz assim: Tem que fazer uma
'universidade popular' que ensine todas as coisas
para o pessoal poder raciocinar dessa e daquela
forma. Mas a gente adquire as coisas é justamente
nesse convivio. E dentro disso, a gente tem inte
resses que não se distinguem em nada dos in teres
ses dos outros companheiros. Quer dizer, eu nao
sou um cara- que estou sensibilizado com os pro
blemas da classe operária; eu sou um cara que ta~
bém tenho interesse em que essa sociedade se trans forme de fato; eu sou um fi lho 'da c lasse operária;
um filho violentamente sofrido e que preciso da
mesma solução que todos os meus companheiros. E
quem não é da classe operária, na medida em que se coloque apenas 'com peninha', esse não entendeu na
da de história nem de coisa nenhuma; não percebe
que a solução dos problemas dele também depende de que as coisas caminhem e se transformem". 6
Da fala de um cabloco do interior da Bahia,
selecio
namos a seguinte passagem:
" Nós tudo aqui tá no caminho da luta. 20, 30 anos
de luta neste mundo de mato. Vocês tudo já enfren
tou cobra. Eu pergunto: 'quantas pancada mata uma
cobra ?' - Uma - Duas É isso
ai,
Só uma, nacabeça, a primeira ou a segunda. Antes da terceira
você tá mordido. Todo serviço tem seu tempo e lu
gar, E alguns serviços só se fazem em batalhão.
O
nosso serviço tá sendo a luta contra a onça. Nós
se ajuntou aqui só por isso, porque apareceu a on
ça em todos nossos lugar. Nós começou conhecendo
o
jeitinho dela, as pegada, as vareda, prato que ela
gosta, onde ela bebe. Ela comeu boi, ela deu medo
agora que nos se ajuntou mais, daqui, da Bahia, de
toda parte, tudo num só caminho de luta. O jeito de
nós se ajuntar foi arrodiando a onça. Nós arrodeia, nos encurrala, nós mete fogo . . . Acabou?
Acabou nada. D.eus é grande, ~ mato é maior. Nós tra
balhador conhece bem as vareda desse mato do mund~
cá enfrenta cobra e onça, todo dia. Agora eu pergun
to: 'Pra onde vai essa vareda toda ? Donde sai os
bichão tudinho que a gente não mais dá conta de
les ?'. Meu pai dizia: 'Tudo vem do entroncamento ~
Quem quiser vá lá mexer no ninho das cobras. Eu não vou. Quem quiser vá lá no curral das onça'. Então a
conversa da gente sobre esse entroncamento vem lá
de tempo atrás, conversa vai, bla-bla-bla, conversa
vem, ble-ble-ble. Nós se ajuntou de todo canto. As
vareda tudinha se ajuntou neste caminho com nós ,
pau na cobra, olho na onça. Quer dizer: nós quer se
guir pro entroncamento. Nós caminhou um bocado do
nosso jeito: pé no chão, pau na cobra, orelha na di reção do curral das onça lá no entroncamento.
Mais na frente nós encontrou o padre, um padre qu~
rendo ajudar ao trabalhador: 'Vejam só, esse cam~
nho de vocês vai longe, a pé não vai dar. Vocês qu~
rendo tal o cavalo da Igreja 'A gente bem que
suspeitou: 'Padre empresta cavalo mas é pra não cor
rer'. A{ faltou falar: 'Nós aceita sim, mas olhe ~
padre, o cavalo é da Igreja mas a espora é nossa' .
Espora pra enfrentá, não pra fugi. Quer dizer que
com cavalo de padre eu posso continuar caçador de
onça, eu posso virar sacristão.
Depois nós entrou no asfalto. Padim Ciço dizia :
'Nascerá um rio preto, todo mundo acha que por ele
chegará a salvação, eu vejo a desgraça chegando'
Chegou, com aquele barulhão todo a nossas costas,
foi a rural. Nós toc-toc, a cavalo bem na beira
Quando a rural brecou. É o pessoal amigo, o advoga
do, os técnicos. De novo a conversa, a história das
cobra, do entroncamento longe e os cavalo cansado ,
cavalo de padre, a{ eles também quer ajudar: 'Vocês
querendo, a gente pode seguir de rural'. Eta moto
rista bom na direção! Eta viagem pai d'água. Da
até pra uma boa durmida, nem sonho com cobra e on
ça ... A{ a gente acorda. Tamos parado. O que foi?
chegou? - Chegou nada. Deu prego. Dois doutor foi
na cidade trocar a peça. Dois fica mais os trabalha
dor. A{ já muda a conVersa: - vai dar pra chegar no
entroncamento mas vai demorar. - É a rural que não
presta, até cavalo velho era melhor . . . - mas será
que a gente não entrou no desvio ? - Mas o advogado
falou que era atalho ... - vocês sabem duma coisa?
acho que pra enfrentar as onça não precisava seguir este caminho, escuta lá: a raiva delas tá passando,
vai ver que fica mansinha como gato. - É mesmo; tem
~ ~
Nesta conversa todo o miolo e que a onça e onça,
gato é gato, doutor é doutor~ trabalhador é traba
lhador. Padre vai a cavalo~ doutor vai de rural,
trabalhador vai a pé. Também padre e doutor podem
enfrentar a onça, do jeito deles. Então eu vou si~
mas vou do nosso jeito~ do jeito do trabalhador ,
pelo caminho do trabalhador que não é dos doutor.
O atalho deles é arrodeio pra nós. Ora~ eles qu~
rem entrar no atalho da gente ? •.. Mas talvez vai
ser arrodeio pra eles . .• ". 7
Finalmente destacamos alguns trechos da análise
que
-um campones cearense escreveu sobre a seca e que fora publl
cada no IICadernos de Educação Popular nQ 4
11:
" Este livrinho é uma analise da realidade que vive
mos. Não foi preciso pesquisa; somente com a prátI
ca da vida que a gente vive~ como camponês que so~
já é tudo para fazer uma análise desta.
t
uma analise totalmente minha.
Sei que não é perfeição mas é honesta com meus pe~
samentos ...
... A iniciativa desta minha análise partiu de um
longo momento de estiagem que estamos vivendo. Mo
mento este que deu muita margem para os donos de
mundo aproveitarem mais ainda das consequências ,
necessidades e mentalidades menos esclarecidas por
parte do povo atingido~ para enriquecer mais e te
rem mais poder".
"A seca é uma doença que pode ser curada facil
mente, mas como existe muitos interesses por part~
dos ricos e politicos pelaseca~ ela nunca sera
curada" . ..
"Por outro lado a seca é vista como causadora
de toda miséria. Tirando toda possibilidade~ visi
bilidade do povo de ver o sistema econômico e pol7
tico como verdadeiro culpado.
-Mas se analizarem a situação da classe pobre vendo os ângulos, veremos bem claro que realmente os cau
sadores de toda esta situação não é a seca, e sim
esse tal poder. Porque nunca houve tempo bom para
pobre, é sempre ele morrendo de trabalhar, e seca
é só de dez ou quinze anos uma. E porque o pobre é
cada vez ficando mais pobre ? E trabalhando mais ?
POl'que o pobre fez sua safra mas não pode guardar
para se arremediar ? Porque a produção do pobre
que vender todinha, depois, precisar comprar nova
mente muito caro para comer ? O pobre começa su
jeitar a sua produção ainda no plantioJ porque
ele não tem mais o que comerJ dai precisa se fo~
necer nos comerciantesJ ou arranjar dinheiro em
prestado para pagar com a produção que está pla~
tando.
Quando entra um novo ano ele já está devendo toda
sua produção porque toda produção perde o valor.
Dai já vai ter seu valor quando está nas mãos dos ricos. Os pobres não tem mais e já está é compran
do novamente. A seca não é culpada disto. Assim
como eles planejam a indústria da secaJ planejam
também a indústria da produção do pobre". 8
Depois de lermos os depoimentos de agentes,
assess~res, pesquisadores (todos de classe media) e tambem os
de
pessoas das classes populares, nos permitimos destacar nes
te momento, só três aspectos que consideramos de grande im
portância:
a presença de um saber inerente à experiência
de
vida e mais especificamente, às diversas práticas
que essa experiência comporta;
de um saber que percebe, que analisa e que
tem
"seus caminhos";
de um saber que pelo fato de fazer parte da
exp~riência de vida, faz parte das relações
sociais
que a perpassam. Relações essas que se apresentam
de diversas maneiras e que aparecem nos
depoime~tos com roupagem diferente.
Pois bem, sao esses pontos ou aspectos que abordar!
mos a seguir, tendo sempre como referência o próprio
pr~cesso de prãtica/reflexão do movimento popular, do qual fa
zem parte, entre outras, as prãticas que nos oferecem
os
diversos depoimentos.
1.2. Algumas Reflexões Bãsicas
Queremos agora dar inlcio a uma reflexão mais siste
mãtica que percorrera os próximos capltulos.
Vamos falar do saber, o que nos leva a entrar
no
campo da discussão epistemológica e da sociologia do conhe
cimento. Vamos falar do saber popular, ou seja, de um
sa
ber inerente às diversas prãticas das classes populares
e
diferente do saber das outras classes ou setores de
ses.
Isto significa, ao mesmo tempo, que vamos
clas
referen
ciar nossa reflexão nas relações de classe que
caracteri
zam nossa sociedade e que perpassam as mais diversas
pr~ticas, particularmente, no caso, as que dizem respeito
ao
conhecimento e suas representações.
destina ou a Vlsao de vida dos posseiros de tal area do Pa
ra.
De qualquer maneira, precisamos fazer essa
abstra
ção, mesmo porque tentamos identificar algumas
categorias
teóricas que nos permitam uma aproximação dos saberes
con
eretos e especificos.
Então, retomando em parte nosso pensamento, podemos
afirmar o seguinte:
e
muito comum hoje entre os grupos
e
pessoas ligadas ãs práticas de educação popular, a
convic
çao de que, fazendo parte da experiência de vida das
clas
ses populares, existe um saber, ou seja, um modo de
enten
der, de ver e valorar, de posicionar-se na vida e nas rela
çoes sociais que esta comporta, que
e
próprio dessas
clas
ses.
Tal convicção decorrente dessa prática educativa
e~contra seu correspondente a nivel da teoria quando
afirma
mos com Schaff, Lefebvre e outros que tão somente a prática
nos coloca em contato com as realidades objetivas e que
o
conhecimento só existe na prática concreta e sensivel.
O próprio Lefebvre ao abordar a teoria do
conheci
mento vai acrescentar: "Antes de elevar-se ao nivel
teõri
co, todo conhecimento começa pela experiência, pela
prátj.
ca". 9.
Nesse sentido
e
importante lembrar uma das
ideias
básicas expostas pelos autores de "A Ideologia Alemã": não
e
a consciência que determina a existência social mas e es
ta que determina a consciência".
do conhecimento,resume com precisão: lias homens pensam te.!!.
do como base aquilo que fazem e o modo como se
relacionam
nesse fazer; e agem conforme seu modo de pensar e suas
re
lações sociais".
10.Digamos então que a relação prática/conhecimento
e
consequentemente prática/saber (concebemos o saber como co
nhecimento, mas tambem como posicionamento e açao, nao
se
esgotando portanto a nivel da conceituação) e constitutiva
da própria gênese/processo do conhecimento.
Ainda mais, para 5chaff o caráter ativo por excelê.!!.
cia do sujeito que conhece está em relação com o fato
que
o conhecimento equivale a uma atividade prática; e uma
pr~I ( ,
tica. 50 analiticamente podemos separar o sujeito que
co
nhece (sujeito ativo, agens) e a prãtica no interior
da
11
qual o sujeito conhece.
11.Palavras que fazemos nossas.
Donde, enquanto explicitamos a relação prática /
c~nhecimento, tomamos posição no tocante à relação cognitiva
sujeit%bjeto em termos da reciproca interação, ou seja,
uma relação "na qual tanto o sujeito como o objeto mantem
a sua existência real e objetiva, ao mesmo tempo que
atua
um sobre o outro". 12.
Aquela constatação das pessoas ligadas às
práticas
de educação popular e por vezes claramente explicitada
em
algumas pesquisas (ref. supra: depoimento dos
pesquisad~res) não sã alerta para a relação prática/saber como
tam
bem nos leva a assinalar uma caracteristica desse
saber,
a qual consideramos fundamental. Trata-se de um saber
pr~tes, no fundo, diferente do saber oficial, quer dizer,
da
quele reconhecido como tal na sociedade e que perpassa
com
seus criterios e valores as mais diversas prãticas e
rela
çoes.
Face a essa
especificidade~uma primeira
pergunta
que imaginamos, pode ser a seguinte: o que faz com que esse
saber não seja simplesmente diferente dos outros, mas possa
ser qualificado como próprio de um determinado grupo
so
cial ? E como equacionar essa questão na nossa sociedade de
classes?
Uma resposta muito inicial que nos ocorre de imedia
to diz respeito ao contexto cultural e condiç6es de vida em
que se dão as diversas prãticas dos grupos humanos. Quer di
zer, que em sendo fundamental a relação prática/saber,
preciso identificar de quais práticas se trata, qual a
lidade cultural, quais as necessidades e interesses.
-e
rea
Porem nada disso seria suficientemente esclarecedor
enquanto não fosse referido às relaç6es sociais que caracte
rizam aquele dado grupo social.
Em outras palavras, só poderemos explicar porque
e~ses saberes são diferentes quando possamos conhecer
"0que
aqueles homens fazem", em qual contexto cultural e
"como
se relacionam nesse fazer".
Mas se focalizássemos por exemplo, os inumeros
gr~pos das classes populares participantes ou não das
ativida
des de educação popular, verificariamos uma grande
heterog~neidade.
ses grupos se o modo como estão se dando as relações sociais
nas diversas práticas específicas; se a realidade
cultural
e as próprias condições de vida diferem de grupo para
gr~po
?Uma coisa é pensar no pequeno proprietário de Sobral
(Cearã) e outra no pequeno proprietãrio gaucho de Ijuí;
uma
coisa é pensar no peao metalurgico da industria automobilís
tica de são Bernardo e outra no peão metalurgico da Belgo Mi
neira em Monlevade; uma na doméstica em Teresina e outra
na
doméstica em São Paulo.
Porém cabe mais alguma interrogação: mesmo
diante
dessa heterogeneidade, seria possível descobrir alguns
ele
mentos ou nucleo comum a essas diversas experiências de vida
e consequentemente aos saberes que elas entranham?
Se assim fosse, de um lado se veria enriquecido o re
ferencial teórico que nos orienta no acesso aos saberes
con
eretos e de outro, teríamos condições de explicitar e de
ju~tificar até, o fato de pensarmos num saber próprio das
elas
ses populares.
Acreditamos que casos análogos aos que narraremos
a
seguir colocam as bases para uma resposta.
No 39 Encontro Nacional das Comunidades Eclesiais de
Base (João Pessoa/1978) do qual pessoalmente participamos
grupos populares vindos de praticamente todas as regiões
do
Brasil, discutiram e trocaram experiências ao longo de
vári
os dias.
sua anãlise dos principais problemas que elas enfrentam no
seu dia-a-dia. Feita a anãlise e definidas algumas
de ação, chegou-se à avaliação final do encontro.
linhas
Foi por ocasião dessa avaliação que um campones da
região centro-oeste falou assim:
" Chegamo aqui operario~ agricultor e at5 um cacf
que {ndio~ sem a gente se conhecer e cada um pen
sando no seu problema. Hoje nós vai sair daquI
vendo que somo a mesma coisa~ que temo o mesmo
problema e a luta ~ igual". 13.
E na anãlise da seca escrita por aquele
campones
cearense ao se referir às regiões Sul e Nordeste, lemos:
" Pensando certo ou errado~ eu defino tudo da se
guinte maneira: a classe pobre ~ a indústria. Co
mo toda fabrica funciona por seção~ tem a seçao
dos trabalhadores do campo, e a seção operarios
da indústria e das fabricas, operários das cida
des~ seção pol{tica, seção seca, seção comércio
e muitas outras~ até que forma um conjunto de se
ções que significa uma Indústria. Tendo na clas
se pobre tudo o que for necessario para a engr~
nagem dessa Indústria.
Como tem que existir classe pobre, no nordeste e
no Sul, para sustentar a classe rica do pa{s ,
por causa das regiões Sul e Nordeste serem dife rentes~ lá no Sul foi bolado um sistema de domI
nação que causa a mesma pobreza que nem aqui no
Ceara e no Nordeste. Só ~ diferente o sistema
por causa da região. Mas os pobres de lá só se
obrigam se sujeitarem aos patrões, ricos e pol{
ticos por causa das necessidades. E assim, a vI
da da classe pobre ~ a mesma: aqui no Ceara no
Nordeste e no Sul, ou em todo mundo". 14.
Depoimentos e testemunhos como esses abrem determi
nadas pistas à nossa reflexão.
populares, estã dado pela sua situação de classe* e as ine
rentes relações de expropriação e dominação que a
sam e identificam.
perpa~
Trata-se em outras palavras e como já o destacamos,
das classes que se caracterizam pela radicalidade da
sua
situação de exploração e dominação na presente divisão
so
cial do trabalho.
Trata-se das classes que, enquanto tais,
experime~tam no seu dia-a-dia e de maneira dolorosamente real, todo
o peso da relação contraditória entre capital e trabalho.
Enfim, acreditamos que, inerente a essa situaçãode
classe,. muito real nas mais diversas práticas das
classes
populares, existe um saber diferente dos outros saberes
porque diferente das outras situações de classe.
Certamente que essa afirmação levanta de
imediato
questões complexas e diversas. Delas trataremos
oportun!
mente.
Ao encerrar este capitulo, gostariamos de
lembrar
resumidamente que nossa reflexão teve como ponto de partida
não só os depoimentos e testemunhos de pessoas e grupos de
setores das classes medias que participam a diversos niveis
de práticas que se desenvolvem junto ãs classes populares,
mas, particularmente, de pessoas e grupos populares.
Depoimentos e testemunhos que assinalam
explicit!
mente a relação saber/prática ou saber/experiência de vida
(entendida esta, como um saber acumulado).
A seguir desenvolvemos uma reflexão mais sistemãti
ca tendo como referência fundamental as relações de classe
e nos detendo mais especificamente na relação
"prãtica/sa-ber/situação de classe/nucleo comum aos diversos
das classes populares.
saberes
REFERtNCIAS BIBLIOGRÃFICAS
CAPITULO
I
1.
Garcia, Pedro Benjamim,Educação Popular: algumas
refl~xoes em torno da questão do saber, Cadernos do CEDI/2
Rio de Janeiro. Tempo e Presença Ltda., 1981, p. 14.
2.
Carrara, Douglas,Medicina Popular: uma medicina
expro
priada. Trabalho apresentado no Seminãrio de
Educação
Popular convocado pelo IBRADES, Rio de Janeiro,
dezem
bro/82.
3. NOVA-Pesquisa, Assessoramento e Avaliação em Educação,
Relatório do Seminário de Agentes em Recife, Rio de
Ja
neiro, 1976.
4. Weid, Bernard Von Der,
Educação .Popular: um depoimento,
Cadernos de Educação Popular nQ 1, Rio de Janeiro,
VO
ZES/NOVA, 1981.
5. NOVA-Pesquisa, Assessoramento e Avaliação em Educação,
Debates do Seminário de Agentes sobre o Saber Popular /
Sobral. Rio de Janeiro, 1980.
6. NOVA-Pesquisa, Assessoramento e Avaliação em Educação,
Depoimento: fala um operário. Cadernos de Educação
Po
pular nQ 2, Rio de Janeiro, VOZES/NOVA, 1982, p. 59.
7. Centro de Estudos e Ação Social,
Conversa dum cabloco ,
Salvador, 1980.
8. NOVA-Pesquisa, Assessoramento e Avaliação em Educação,
9.
Lefebvre~ Henri)lõgica Forma1/lõgica Dialética, Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira S.A., 1975, p. 49.
10.
Cardoso~ Miriam Limoeiro~la Construcciõn de1
cimiento, Mexico, Ed. Era, 1979, capo 2.
Conoci
11.
Sahaff~ Adam~Histõria e Verdade, São Paulo,
Martins
Fontes Editora ltda., 1978, Primeira Parte, Capo l.
12.
Idem~ Ibidem.13.
NO~-Pesquisa~ As~essoramento e Avaliaç50 em Eduaaç50 ~Re1atõrio do 39 Encontro Nacional das CEBs em João
Pes
soa, Rio de Janeiro, 1978.
14. NOVA-Pesquisa~ Assessoramento e Avaliaç50 em Eduaaç50 )
SABER POPULAR: COMO
t,
COMO ENTENDt-LO
Hã uma opção metodológica que mantemos ao
longo
de toda a dissertação, ou seja, a de ir relacionando
perm~nentemente de uma parte a prãtica/reflexão existente
nao
só na educação popular mas tambem no próprio movimento
p~pular, e de outra, nossa prãtica/teorização pessoal
que
faz parte desse processo mais amplo.
t
dentro dessa opção que abriremos espaço mais uma
vez para que os agentes se manifestem.
O texto a seguir foi tirado do relatório das
dis
cussoes havidas no Seminãrio de Agentes (Cearã/1980) jã as
sinalado anteriormente:
" Eu penso assim, diferença entre o pensamento de
um trabalhador e de ... um intelectual. Por exem plo, quando um antropólogo faz uma pesquisa, ele
dedica a introdução ou o primeiro capitulo a mos
trar ao leitor ... que conceitos ele vai usar ~
e no resto do livro todo, ele se dedica a botar
aqueles conceitos numa área que ele tá pensando
... E no caso de um lavrador .. , ele não faz es
sa separação ... conceituar primeiro, pra depois
explicar a realidade ... A coisa vai junto e co
mo vai junto, né ? já ele bota a vivência dele
ali. Ele não tá separado da realidade, ele tá
junto da realidade porque ele mesmo já é a reali
dade, né ? O intelectual, não. Ele dedica trinta
páginas para explicar cinco conceitos que ele
vai usar nas cento e cinquenta páginas seguintes, quer dizer, é uma coisa totalmente diferente, eu acho".
" ... Agora se observar os escritos (do povo) da qui, é uma análise da"sociedade ... mas totalmen
exemplo~ ele se coloca como oppimido e começa a se pepguntap quem é ele na sociedade e a paptip dai ele começa a conceituap. Então só me tpaz é coisa nova mesmo. Não é só um problema de que _o povo escreveu . . .
t
muito difepente a expressa0 neste pessoal". 1Aliãs, lembremos o nucleo do pensamento
daquele
cabloco baiano:
" . . . Nesta conVersa toda 3 o miolo é que a onça é
onça 3 gado é gad0 3 doutor é doutor 3 trabalhador é trabalhador. Padre vai a caval0 3 doutor vai de rural 3 trabalhador vai a pé. Também padpe e dou
tor podem enfrentar a onça~ do jeito deles. En
..
tão eu vOU 3 sim3 mas vou do nosso jeit0 3 do je~to do trabalhador, pelo caminho do trabalhador que não é o dos doutor. O atalho é arrodeio para nós. Ora, eles querem entrar no atalho da gen te ? ... Mas talvez vai ser arrodeio pra eles
"
Os depoimentos citados no inIcio deste trabalho
como os agora transcritos e muitos outros colhidos em
as
sessorias, seminãrios e contatos na base nos levam a
reto
mar e complementar o assunto que encerra o capItulo anteri
or: a diferença existente entre a visão de mundo, valores,
lôg;ca e tomadas de posição dos grupos populares e dos agen
teso
A diferença estã ai, apontada pelos prôprios
gr~pos populares, pelos agentes e assessores. Porem, como
en
tendê-la; o que acrescentar
ã
discussão sobre o nucleo
co
mum assinalado no capItulo anterior? O que acrescentar
a
relação saber/situação de classe?
Não que a gênese dele enquanto conhecimento
(le~bremos esquematicamente: experiência senslvel de um
objeto
do conhecimento no interior de uma prãtica e sistema de
re
lações, representação mental decorrente, a qual se expressa
num conceito) se processe de maneira diferente.
Porem, consideramos que a relação prãtica / conheci
mento no caso das classes populares se apresenta com
fre
quência de maneira mais dialetica e menos dicotômica do que
no caso dos saberes das outras classes e/ou grupos sociais.
Lemos na anãlise da seca:
" Este livrinho
i
uma an~lise da realidade que viVemos. Não foi preciso pesquisa. Somente com a
pr~tica dh vida que a gente vive~ como camponês que sou~ j~
i
tudo para fazer uma an~lise desta.t
uma an~lise totalmente minha".2.
E
Odepoimento do operãrio destaca o seguinte:
" .. . Porque quando a gente est5 de macacãoJ igual
a todo mundo~ ninguém nos vê como um cara que s~
be mais do que os outros não.
Pelo contr5rio~ muitas vezes o companheiro chega
e d1.:z: 'Pô~ você é o que? Você é um oper5r1.:0 ~
você não entende nada f' E quando você contesta
uma idéia dele~ ele diz: 'Você não sabe coisa ne
nhumaJ como é que você Vem me contestar ?'
Ele quer dizer que tanto você pode estar certo J
como ele pode estar certo; você é igual a ele .
... A não ser que você fale alguma coisa com
muito cuidado e que realmente tenha a ver com a
visão que o companheiro tem e com a realidade de le.
Pode até contrariar a idéia dele; mas é preciso
ele perceber que realmente a experiência dele
mostra que aquela posição que você est5 colocan
do
i
uma posição certa.Ai
ele vai respeitar a sua opinião. De outra forOu seja, que há uma caracteristica predominante do
saber que nos ocupa, qual seja a intima e dinâmica
relação
entre prática e conhecimento.
E nessa relação a prática e referência fundamental
nao so na elaboração de quaisquer conhecimentos
(11 •••com
a prática da vida que a gente vive, como camponês que sou,
já e tudo para fazer uma análise desta
ll. ) ,
mas tambem
na
aceitação e incorporação de novos
(11 •••e preciso ele perc!
ber que realmente a experiência dele mostra que aquela
e uma posição certa
ll . ) .Assim tudo que diz respeito a um conhecimento mais
discursivo, ou seja, baseado muito mais na abstração e
na
articulação de noções e definições, e ãs vezes paralelo ate
às próprias práticas (encontrado na academia, escola e
ou
tras instituições de ensino e veiculado nos livros, cursos,
seminários) parece ter um peso muito secundário no processo
de elaboração do saber das classes populares.
Para estas, sua referência e a vida diária, sua ex
periência social, o que viu e sentiu e não por exemplo,
o
mais recente livro ou conferência de tal escritor.
Entretanto e bem diferente a presença efetiva
e
marcante desse conhecimento discursivo na elaboração e
de
senvolvimento do saber das outras classes, como e o
caso
das classes medias.
sistência, moradia, saude, trabalho bem remunerado,
educa
ção dos filhos) que essas classes vão definindo prioridades,
estabelecendo valores, descobrindo estratégias,
sua lógica e fazendo suas anãlises.
recrtando
r
sem duvida, um saber que se constitui no
interi
or de lutas muito concretas e de relações contraditórias
cabendo ao saber dominante e seus interesses o outro
polo
da relação contraditória.
-A esse respeito assinala- aquele campones cearense:
" Era muito bom que n6s refletisse todas essas
coisas sozinhos, depois com mais alguém, depois
com mais outros de nossa classe. Eu fiz estas
perguntas e esta história para n6s mesmo da nos
sa classe. Não foi para as outras classe não. Ca
da c lasse que faça· sua his t6ria, como eles jã
tem muitas .
... Classe rica e classe pobre são duas hist6ri
as totalmente opostas, diferentes. Se juntar as
duas s6 interessa mesmo ao rico. Por isto seria
muito bom que a classe rica nunca visse os pensa
mentos da classe pobre, para nunca saberem que
a classe pobre sabe pensar. Porque eles fazem tu
do para a nossa classe nunca se organizar ... " ~
t
no interior dessa luta que os saberes nascem
e
se consolidam. Pensã-los fora dessa relação equivale a
des
conhecê-los.
E
é
exatamente voltando nossa atenção para
relação, que descobrimos mais uma caracteristica que
essa
acre
ditamos ser comum aos diversos saberes dos grupos populares,
e que ao nosso ver, e uma caracteristica fundamental.
O saber popular constitui no minimo
embrionariame~forme o permitirem as mais diversas circunstâncias.
t
interessante ver como aquele camponês,
depois
de analisar o problema da seca, vai encerrar seu
depoime~to do seguinte modo:
" Agora o que resta ~ perguntar a nos mesmo.
Qual ~ mesmo o nosso compromisso com a clas se ?
- Com a nossa classe ? Comigo mesmo ? Com minha fami. lia ?
- Ser~ com estes tris anos de seca seguidos~ j~ não d~ para pensar como se preparar para ou tros anos de seca que poderão vir ?
- Ser~ bom nós ficar mesmo do jeito que esta mos ?
- Assim como os governos e poli.ticos sabem pre parar a indústria da seca às nossas custas ; ser~ que nós não sabemos se preparar como clas se pobre para se defender destas indústrias e-armadilhas dos governos~ poli.ticos e ricos? Sem precisar ser peças das máquinas das indús
trias de les ?
-A inteligincia ~ deles~ o trabalho
é
nosso Ser~ que nunca podemos mudar isto ?- Será que nós~ cablocos pobres~ analfabetos não podemos pensar nisto ? DeVemos deixar só para os sabidos pensarem? . . .
. . . Muitas lutas que existe na nossa classe e~
bre ~ com estes objetivos: DPotestos~ exigen
cias~ peclamações~ reivindi~ações aos poderosos. Porque a nossa luta não ~ com o objetivo de constpuirmos o nosso ppóppio mundo". 5.
o
texto é muito claro: é preciso a classe
perc~ber que a luta de fundo
e
construir uma outra sociedade.
Voltemos mais uma vez ao depoimento do
metalurg~co para observar essa força/poder e suas estratégias:
" Agopa~ o que ~ tomap decisões em comum? Pop
exemplo~ naquele caso da faxina - quando a fi~
tica dos companheiros, uma vez que todo o resto
da turma estava assumindo a faxina; mas ele não
ia contra o que os companheiros estavam pensa~
do. Quer dizer, o pessoal estava aceitando fa
zer o serviço mas achava que a atitude correta
era aquela de não aceitar fazer; aceitava por
que no momento estava tão pressionado que nãO
tinha condições de reagir. Um companheiro até
chegou junto do que não pegou na faxina e f~
lou: 'Olha, você está agindo certo, mas eu es
tou nessa situação, agora não posso entrar em
conflito com a firma " . ' . Quer dizer, o cara
que não fez a fazina tinha toda a solidariedade do pessoal, Tanto é que, na hora em que ele se
retirou do local de trabalho e foi para o ba
nheiro para não pegar a faxina, foram dois conPQ
nheiros atrás dele e falaram: 'Olha, o problema
é o seguinte: a gente acha que tinha que ficar
com você aqui, a gente não podia ir para lá fa
zer a faxina . . . " O outro ai, respondeu: 'Olha-;
vocês tem que resolver sabendo qual é a situa
ção. Então vão, façam a faxina, e não esquentem
a cabeça comigo porque eu estou a fim de qual
quer negócio'.
Quer dizer, o cara que não fez a faxina tinha a
solidariedade do resto da turma; eles estavam
apoiando embora não tivessem condições de fazer
o mesmo. E talvez essa solidariedade é que ga
rantiu dele não ser mandado embora da firma. Eu
acho até que o próprio engenheiro - que seria
quem o mandaria embora - percebia que todo mun
do estava do lado dele, estava solidário com
ele. Então, foi uma atitude individual mas que
tinha o apoio de todo mundo", 6.
o
saber popular enquanto força/poder está sempre
presente e atuante, porem se regendo por uma lógica e
in
teresses próprios, a qual as vezes nos surpreende e
deso
-rienta, porque seus caminhos nao sao os nossos.
Por outra parte, de tal maneira ele constitui uma
força/poder de transfQrmação da sociedade que a
presente
organização do saber (a qual responde aos interesses
domi
nantes) não lhe concede um espaço, a não ser na medida
em
que possa cooptá-lo.
-nes, qual a luta que enfrentam as classes populares na bus
ca de espaço para seu saber:
" E o pior
é
que tudo que pensamos e fazemos~ jáaprendemos deles. Das histórias deles. Nós não
pensamos nada da nossa própria história. Da
nossa própria vida. E se nós descobrissemos a
nossa história~ a gente via como não dava. Era
impossivel a nossa classe pensar o que eles e~
sinam. Era terrivelmente proibido nós pensar
do jeito deles. Não pudia nem sonhar. Classe
rica e classe pobre~ são duas histórias total
mente opostas~ diferentes. Se juntar as duas
só interessa mesmo ao rico. Por isto seria mui
to bom que a classe rica nunca visse os pens~
mentos da classe pobre~ para nunca saberem que
a classe pobre sabe pensar. Porque eles fazem
tudo para a nossa classe nunca se organizar Por isso colocam em nossas cabeças os pensamen tos deles. E nós como pensamos que não sabemos pensar~ ·aceitamos tudo que e les ensinam. Só fa
zemos o que eles pensam e ensinam".
7.
-Força/poder porque o aparecimento, elaboração
c~letiva e consolidação do saber das classes populares - que
e
conhecimento e experiência das práticas de dominado
e
que diz respeito às lutas pelos seus interesses e
necessi
dades - acaba se constituindo num espaço/poder
contraditõ
rio aos interesses dominantes.
Isto
e
claramente exposto por um grupo de
oper~rios que, baseados nas suas prãticas produtivas e de
luta
diãria na fãbrica,explicitam o seguinte, no Seminário
de
Operários, reunido em são Paulo em dezembro de 1982:
" ... A partir do momento que o grupo de fábrica
começa a pensar a fábrica~ a recuperar e siste
matizar a memória de luta da fábrica~ está se
formando um poder organizado contra o capi
tal . . . Sem esse saber operário~ criado no dia